O
ABOMINÁVEL INVESTIDOR FINANCEIRO
Os
fóruns sociais e as alianças de organizações de crítica social estão a ter
afluência, os estudantes estão em greve. A sociedade está a ferver, desde
que, sob o rótulo Agenda 2010, as contra-reformas anti-sociais estão a fazer
alterações de fundo e a atingir mais duramente do que o previsto as pessoas,
incluindo até as da classe média da sociedade. Como era de esperar, a dinamização
social na esquerda e em organizações de movimento como a ATTAC, reacende a
disputa pela interpretação da crise. Esta disputa sobre as causas da decadência
social não é recente.
No
século XIX havia uma crítica do capitalismo específica da pequena burguesia,
que visava explicar a crise e a pobreza apenas pelas exigências do capital que
rende juros ou capital financeiro. Se não existisse a "servidão dos
juros", assim pensava por exemplo Proudhon, também não haveria crises.
Este foi o ponto de vista de pequenos proprietários, que ainda hoje, do
snack-bar até à lojinha de software, gostam de ter a impressão de que
"trabalham apenas para o banco". Eles esquecem que sem crédito bancário
não poderiam ter pago o seu investimento ou já teriam entrado em bancarrota.
Pois o capital monetário é, na produção capitalista, um objecto de mercado
específico, que tem o seu preço.
De
forma completamente diferente argumentava o marxismo clássico do movimento operário,
como o representou Rudolf Hilferding na sua obra Das
Finanzkapital (O capital financeiro), publicada em 1910. Para ele o capital
financeiro não era a fonte de todo o mal, mas um poder progressivo e a ser
socializado, que apenas tinha de ser submetido ao controlo do "Estado
proletário". De acordo com esse controlo seria em grande linhas
concretizado na prática o socialismo. Não há dúvida de que se tratou de uma
abordagem fortemente redutora. Pois Hilferding, como todo o marxismo de
movimento operário, não pôs em questão o princípio da valorização
"produtiva", a forma social da “valorização do valor” (Marx),
mas opinava que com um controlo político externo pelo "partido e pelo
Estado operários" a transformação decisiva já ficaria concluída. No
entanto esta abordagem truncada contra Marx e não reflectindo a forma
fetichista do valor era reconhecidamente diferente da abordagem da
pequena-burguesia.
Na
ideologia espontânea dos movimentos de hoje defende-se antes a versão original
pequeno-burguesa da crítica do capitalismo. Considera-se a economia
especulativa de bolhas financeira desde os anos 90 a verdadeira causa da crise.
E que deve ser limitado o capital que rende juros, como pretensa fonte do mal, a
fim de reconduzir o dinheiro, do qual aparentemente "há o
suficiente", para os investimentos de capital produtivos. Nisso, a relação
de causa e efeito é posta de pernas para o ar. Na realidade, a crise está
condicionada pelo próprio limite intrínseco do capital produtivo. A força
produtiva da terceira revolução industrial ultrapassa a capacidade da produção
capitalista, demasiada força de trabalho é "libertada", os
rendimentos capitalistas diminuem, criam-se sobre-capacidades, pelo que os
investimentos produtivos já não compensam. Só por causa disso nasceu a
economia de endividamento e de bolhas financeiras, como mero resultado da
manifestação da crise, não como a sua causa.
Mas
a consciência de momento dominante nos movimentos quer criticar apenas o
capital financeiro, não o modo de produção capitalista. Este padrão de
argumentação é utilizado até nos sindicatos e no marxismo académico
remanescente, como se tivesse sido esquecida toda a teoria de Marx da acumulação
e da crise. Isto é um retrocesso, até para trás de Hilferding. Quais são as
razões para tal?
Em
primeiro lugar, com a queda do socialismo estatal, tornou-se obsoleta a opção
original do marxismo do movimento operário, de assumir na governação do
"Estado proletário" o "poder progressivo" do capital
financeiro. Isto já ninguém ousa defender. Em segundo lugar a base social dos
movimentos já não é nenhuma "classe operária que produz
mais-valia", mas um difuso sujeito universal da valorização, cujas
diferentes categorias sociais se misturam cada vez mais, desde a beneficiária
do rendimento mínimo garantido, passando pelo trabalhador temporário, a
estudante de longo prazo e o trabalhador de ABM1, até à mal-afamada Ich-AG
(Eu, S.A.)2. De forma espontânea o carácter social daí resultante tem uma
qualidade pequeno-burguesa de certo modo secundária (cada um é o seu próprio
capital humano, cada uma faz a sua própria auto-valorização), em que o meio
de produção “autónomo” se reduz à pele do ser humano. E, em terceiro
lugar, na nova qualidade da crise, até o núcleo remanescente do trabalho
industrial aparentemente produtivo de capital ficou dependente da antecipação
feita pelo capital financeiro sobre a futura produção de valor
(super-estrutura de crédito, mega-endividamento a todos os níveis, economia de
bolhas).
Com
base nestas relações, a dependência geral do capital financeiro desacoplado
é experimentada como o verdadeiro escândalo, ignorando-se a causa real da
crise. Também o marxismo académico já aguado pelo keynesianismo se torna sensível
a esta interpretação redutora; a teoria keynesiana concentra-se assim numa
pretensa solução endocapitalista da crise cingindo-se aos juros e ao capital
financeiro. Não pode ser ocultado que a crítica de capitalismo reduzida de tal
forma torna-se susceptível de ligação com as ideologias de crise populistas
da direita. Assim, é simplesmente um facto que historicamente a crítica
reduzida ao capital financeiro se enriqueceu cada vez mais com estereótipos
anti-semitas. E os média burgueses descobrem aqui já uma possibilidade de
denunciar o movimento social como "potencialmente anti-semita". Isto só
pode ser enfrentado quando a redução regressiva da análise ao capital
financeiro for ultrapassada, exigindo em novos moldes a socialização e seus
potenciais civilizatórios (serviços públicos etc.) já insusceptíveis de
serem representados pela valorização do valor: para além de Hilferding, não
para detrás dele.
1 ABM = Arbeitsbeschaffungsmassnahme; forma específica de trabalho temporário para desempregados
2
Ich-AG = forma específica de sociedade unipessoal para desempregados
Original