Analfabetos Secundários

A crise da educação nos países industrializados ocidentais

Robert Kurz

Fez parte da história do colonialismo que o Ocidente se apresentasse a si mesmo como civilização superior na relação com o resto do mundo, não apenas no sentido técnico e econômico, mas também no cultural. As ideologias ocidentais do século 19 e da primeira metade do 20 falavam do "fardo do homem branco", encarregado de alegrar o mundo com suas bênçãos. Foi só após a Segunda Guerra Mundial que a intelligentsia ocidental deu início a uma crítica do "eurocentrismo". Descobriram-se as realizações culturais autônomas do "outro", depois de suas conquistas terem sido destruídas até a raiz ao longo de vários séculos. Foi um reconhecimento para o museu e para a reminiscência culpada.

A descolonização não trouxe naturalmente nenhuma renovação das antigas culturas, há muito tempo naufragadas, ainda que sejam instrumentalizadas até hoje para uma fundação ideológica de identidades. Ao invés disso, os movimentos sociais pós-coloniais e os Estados do hemisfério Sul se orientaram em todos os aspectos pelo protótipo ocidental, começando pela categoria política de "nação" até chegar à forma jurídica burguesa moderna e a racionalidade da economia empresarial. Disso faz parte também a campanha de alfabetização e a instalação de um sistema escolar e educacional segundo os padrões ocidentais.

Justamente no caso da alfabetização e da ofensiva educacional se trata à primeira vista de uma grande conquista emancipadora. Quem iria contestar que a técnica cultural elementar da leitura e da escrita representa um pressuposto irrenunciável para o progresso civilizador? Como a transmissão de saber e a educação poderiam ser interpretadas de outra forma senão positivamente? Todavia são importantes também o conteúdo do saber e a forma da transmissão. E nesse aspecto o surgimento do sistema educacional ocidental não pode de modo algum ser entendido em linha reta no sentido emancipador. A alfabetização européia e a "escolarização" da sociedade não foram um presente civilizador generoso para as pessoas, mas parte do processo designado na literatura crítica pelo conceito de "colonização interna". A submissão externa do mundo por parte do Ocidente vem de par com uma flagelação interna do próprio homem ocidental para se converter em "material" da valorização capitalista. Nisso desempenhavam uma função não apenas as medidas de disciplinamento violento, mas também o adestramento espiritual e o aprendizado de parâmetros comportamentais com a finalidade de ajustar a práxis inteira da vida ao "trabalho abstrato" (Marx) e à concorrência universal. Tanto as formas institucionais da educação "para o povo" como os conteúdos transmitidos serviam em primeiro lugar a esse objetivo da "interiorização" de um perfil capitalista de requisitos.

Só aparentemente o processo era diferente para a formação "superior" da juventude da elite burguesa. A nova geração destinada aos escalões de liderança na economia, na política e na cultura deveria receber um saber o mais universal possível e ser capaz de reflexão filosófica para além das exigências práticas imediatas. Na Alemanha, Wilhelm von Humboldt (1767-1835) chegou a criar um ideal de formação neo-humanista, entendendo o desdobramento universal do espírito como fim em si mesmo, o qual não poderia ser degradado à mera "instrução", reduzida em termos funcionalistas, para fins dados. Mas ideais de formação dessa espécie não estavam dirigidos à crítica, mas antes à autofruição de uma burguesia que não havia delegado completamente sua autoconsciência aos mecanismos funcionais "do sistema", permitindo-se ainda o luxo de uma formação, pesquisa e auto-representação cultural supostamente "sem finalidade". Os Estados pós-coloniais do Sul reproduziram, junto com as instituições capitalistas restantes, as idéias ocidentais de educação, tanto aquela para o "povo", reduzida em termos funcionalistas, como aquela para as elites, mais elevada e "sem finalidade".

Mas, na mesma medida em que o paradigma da "modernização recuperadora" entrou em colapso desde os anos 1980 com o processo da globalização e com a crise mundial provocada pela terceira revolução industrial, a ofensiva educacional das nações do assim chamado Terceiro Mundo chegou a seus limites. Constata-se que um sistema educacional moderno, com escolas, universidades, institutos de pesquisa e instituições culturais, só pode ser financiado se a economia nacional correspondente é capaz de concorrer no mercado mundial. Em regiões cada vez maiores do globo, o sistema escolar e educacional se dissolve junto com a economia. Assim como há "fábricas fantasma" que só existem nominalmente e mal produzem alguma coisa ainda, há também "escolas fantasma" e "universidades fantasma" em que nada mais é realmente ensinado e pesquisado. Não é só no Afeganistão ou na Somália que o índice da alfabetização retrocede.

Esse destino o sistema educacional partilha com a maioria das outras infra-estruturas ou serviços públicos. Subjaz ao problema, que aqui se torna visível, uma determinada lógica econômica. Instituições infra-estruturais, como correio, abastecimento de água, sistema de saúde e, precisamente, a educação, não são, segundo sua essência, empresas de mercado, mas condições estruturais da sociedade inteira para a economia empresarial e de mercado.
Visto em termos econômicos, trata-se de custos gerais, custos indiretos, custos mortos ou "faux frais" (Marx) da reprodução capitalista. As empresas pressupõem determinadas qualificações nas forças de trabalho encontradas no mercado de trabalho; a mais elementar delas é naturalmente a capacidade de ler e escrever. Mas mesmo essa qualificação básica não surge por natureza (embora seja tratada pelas empresas como um recurso natural, sem custos); para tanto são necessárias despesas sociais.

As empresas só podem calcular seus custos econômicos imediatos; segundo sua natureza, elas não têm competência para custos da sociedade como um todo. Por esse motivo o Estado assumiu usualmente não só o funcionamento das infra-estruturas e, com isso, do sistema educacional, mas também os seus custos. Trata-se de um financiamento secundário, derivado: os rendimentos capitalistas do mercado (lucros, salários, honorários) são taxados pelo Estado, para que possa executar os serviços públicos com esse dinheiro extraído.

Porém, nesse aspecto, o desenvolvimento das forças produtivas engendrou um contexto fatal, pouco refletido até o momento. Pois quanto mais a produção das empresas é cientificizada e, com isso, maior a porção de capital real (tecnologia), tanto mais sobe o grau de socialização e tanto maior se torna a importância da infra-estrutura, principalmente da formação e da instrução. Sob o ponto de vista do cálculo capitalista privado, esse desenvolvimento resulta em que o verdadeiro fim, a produção empresarial para o lucro, é de certo modo sufocado pelas condições estruturais da sociedade inteira. Isso significa por sua vez que os custos sociais indiretos ou (do ponto de vista da economia empresarial) os "custos mortos" aumentam desproporcionalmente. Desse modo, surge um problema de financiamento crônico das infra-estruturas, que crescem de maneira objetivamente necessária. Em outras palavras: o grau de socialização produzido pelo próprio capitalismo não é mais representável em termos capitalistas. Esse problema aparece como dimensão especial de um processo crise secular.

Com a terceira revolução industrial da microeletrônica, esse problema se exacerba no curso de uma crise estrutural dos mercados. No plano da economia empresarial, torna-se supérflua uma tamanha massa de força de trabalho, cuja reabsorção não é mais possível por meio de uma ampliação dos mercados. O Estado pode cada vez menos taxar salários e precisa, além disso, financiar o desemprego. Ao mesmo tempo, no processo de globalização, as empresas transnacionais fogem do alcance fiscal do Estado, indo parar nos "oásis" de países que taxam pouco ou não taxam de modo algum os investidores estrangeiros. O endividamento já há muito tempo precário do aparelho do Estado praticamente explode. Desse modo, o financiamento dos serviços públicos e das infra-estruturas é fundamentalmente posto em questão, embora as exigências objetivas a esses domínios continuem a crescer devido à mesma terceira revolução industrial. Ou seja, temos de lidar com uma contradição interna aguda do sistema.

Em um curso quase natural dessa crise, acabam se paralisando tanto as capacidades da produção, por falta de rentabilidade, como os setores públicos, por falta de "financiabilidade". O aparelho do Estado se reduz cada vez mais a uma administração restritiva das pessoas e dos recursos, ao seu papel de aparelho da violência. Os custos para a "segurança" interna e externa aumentam continuamente, ao passo que diminuem os custos para a sustentação infra-estrutural. Com outras palavras: o cerne anti-social, anticivilizador, bárbaro da modernidade vem à luz, enquanto o "excesso civilizador", como a medicina, a assistência médica, a educação, a cultura etc., vai desaparecendo sucessivamente.

Se o Ocidente produz, sob a liderança dos EUA, um novo colonialismo da crise e invoca ideologicamente a "salvação da civilização", ele se desmente a si próprio em suas próprias relações internas por conta do desenvolvimento anticivilizador. Hoje o sistema educacional e as instituições culturais decaem nos países ocidentais, já em completa semelhança com as regiões críticas do Sul. Geralmente os suportes da educação, da instrução e da cultura são os municípios e as Províncias; e justamente para esses níveis mais baixos da administração estatal a crise financeira no Ocidente progrediu tanto quanto para os Estados centrais do Terceiro Mundo. Analfabetismo secundário Nas escolas o reboco das paredes cai, os materiais didáticos estão envelhecidos, os subsídios para a instrução são cortados e setores inteiros da produção de nichos culturais são liquidados. Os discursos domingueiros dos políticos sobre a necessidade de uma ofensiva educacional no contexto da "concorrência global" estão em crassa contradição com a realidade. Mesmo de escolas de aperfeiçoamento e universidades saem jovens que não dominam técnicas culturais básicas e são incapazes de refletir para além dos dados imediatos. Nesse aspecto, há muito tempo já se fala de "analfabetos secundários", pessoas que podem ler e escrever em caso de necessidade, mas sem entender e elaborar o conteúdo. E, apesar do ensino obrigatório universal, até mesmo o analfabetismo primário, total, aumenta nos EUA e na Alemanha.

A política e a administração reagem às contradições críticas no sistema educacional de maneira estereotipada, com três medidas paradigmáticas. O primeiro paradigma se chama, como em todos os outros domínios, "privatização". No entanto escolas privadas, universidades privadas e outras instituições educacionais privadas, operadas como empresas de mercado, não são mais, naturalmente, infra-estruturas públicas; antes, elas estão orientadas para uma minoria de clientela solvente. Na mesma direção se vai quando se elevam as taxas nas escolas públicas e nas universidades e o material didático deixa de ser gratuito.

Está intimamente ligado a essa tendência o segundo paradigma, isto é, a propaganda reforçada para uma assim chamada educação de elite. Em termos práticos isso significa que as escolas e as universidades normais são conscientemente negligenciadas para que o fomento estatal se concentre em poucas instituições de elite. Essas condições, habituais nos EUA já faz muito tempo, se difundem agora no mundo ocidental inteiro. Mas, se a formação se torna dependente da solvência, o nível intelectual da sociedade como um todo declina forçosamente. Bolsas privadas não podem compensar a perda de serviços públicos que cobrem áreas inteiras. O reservatório social de talentos intelectuais deixa de ser esgotado.

Vai ainda mais fundo o alcance do terceiro paradigma da superação aparente da crise: a redução funcionalista da educação e da pesquisa à capacidade de valorização econômica imediata. Com força cada vez maior, as escolas e as universidades são atadas diretamente à "economia", guiadas segundo critérios da economia empresarial e, no plano dos conteúdos, dirigidas ao conformismo com o mercado. Por assim dizer, vale a divisa: "Não importa o que você estuda, é sempre economia empresarial!". Inteligência subversiva O totalitarismo econômico chegou ao sistema educacional. Mas isso significa que, junto com os últimos restos do ideal de formação de Humboldt, desaparece a autofruição cultural das elites capitalistas; elas mesmas se reduzem aos "idiotas funcionais do sistema". Desse modo se dissolve também a capacidade intelectual de tomar distância, que é, porém, pressuposta para a condução de processos complexos em geral. A nova "elite" se desmente a si mesma.
Mas o que acontece com o potencial intelectual da sociedade, posto de lado e não mais resgatável? Se a educação para a grande massa é desmantelada de maneira tão crassa, desaparece também sua função anterior de disciplinamento. Desse modo, porém, é desencadeado não apenas um "analfabetismo secundário", mas talvez também uma "inteligência subversiva" que não siga mais os princípios do totalitarismo econômico. Pode ser que a administração capitalista da crise educacional ponha a caminho, sem querer, uma nova contracultura intelectual.

Original alemão Sekundäre Analphabeten. Die Krise der Bildung in den westlichen Industrieländern. Deustch

Publicado na Folha de São Paulo, 11 de Abril de 2004, com o título O efeito colateral da educação fantasma

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