Como nós o amámos, o valor de uso! Foi sempre a categoria predilecta da esquerda na crítica da economia política. Para o marxismo tradicional, que se iludiu com uma versão positivista da teoria marxiana, trata-se com efeito duma definição positiva, ontológica, em todo o aparelho conceptual d "O Capital". A crítica e a revolução social devem ocorrer no plano destas categorias, para regulá-las de modo mais racional e filantrópico, em vez de aboli-las. Mas apesar disso sempre havia algo de suspeito inerente ao conceito de valor de troca. Só o valor de uso parecia encontrar-se no estado de inocência histórica. A "orientação pelo valor de uso" era portanto a palavra mágica para poder passar de contrabando um motivo transcendente, apesar da aceitação da produção de mercadorias. E não tinha o próprio Marx declarado o valor de uso como condição supra-histórica no "processo de metabolismo com a natureza"?
Pode ser. Mas, a propósito, há que levar a intenção crítica de Marx para além da letra da sua teoria. Se os conceitos centrais na crítica da economia política devem ser compreendidos como negativos, críticos, o mesmo vale para o valor de uso. Este não descreve a "utilidade" simplesmente, mas a utilidade sob a ditadura do moderno sistema produtor de mercadorias. O que não era talvez ainda tão claro para Marx no século XIX. Pão e vinho, livros e sapatos, construção civil e cuidados de saúde pareciam então ser sempre as mesmas coisas, fossem ou não produzidas de forma capitalista. Isso mudou profundamente. Os alimentos são cultivados de acordo com normas de embalagem; os produtos vêm com um "desgaste artificial", para que rapidamente se tenha de comprar outros; o tratamento dos doentes obedece a critérios económico-empresariais, como o dos automóveis na estação de serviço. O debate sobre as consequências destrutivas do transporte individual e da urbanização predadora da natureza, já com dezenas de anos, arrasta-se sem qualquer resultado.
Manifestamente, a "utilidade" torna-se cada vez mais duvidosa. O que ainda tem a ver com os velhos ethos e pathos do valor de uso, o poder-se ver um filme em andamento com requintes de high tech num ecran do tamanho de um selo? Com o progressivo desenvolvimento capitalista mostra-se que a própria categoria do valor de uso é uma categoria negativa no sistema da produção de mercadorias. Não se trata do oposto sensível e qualitativo do valor de troca, mas do modo como as próprias qualidades sensíveis são adaptadas pelo valor de troca. É a categoria valor que une ambos os lados, o "uso" e a forma social abstracta.
Mais precisamente, trata-se de uma redução do próprio conceito de "utilidade". O ponto de partida é o valor de uso da mercadoria força-de-trabalho. Como é sabido, este não consiste em ela produzir coisas concretamente úteis, mas em produzir mais valia. Assim, o valor de uso já está totalmente degradado em função do valor de troca. E este específico valor de uso da mercadoria força-de-trabalho influencia crescentemente todas as outras mercadorias. O que se vê tanto mais claramente nas coisas, quanto mais elas são afinal meros produtos residuais da valorização do capital. Ao nível do conteúdo material, resta apenas o simples "funcionar". A mina anti-pessoal deve rebentar sem falhas, essa é a sua "utilidade". Para o capitalismo não se trata do "quê", da qualidade do conteúdo, mas apenas do "como". Uma "utilidade" de tal modo unidimensional tem que se tornar destrutiva. Não se trata aqui de subtilezas teóricas, mas da nossa vida prática do dia a dia. Uma crítica do capitalismo nova, mais penetrante, já não pode comportar-se ingenuamente perante o valor de uso.
Original
Tradução de Boaventura Antunes