O COMBUSTÍVEL DA MÁQUINA MUNDIAL

Vem aí uma nova crise do petróleo?

Robert Kurz

Nos últimos meses, ao subir de maneira dramática, o preço do petróleo foi se tornando mais e mais uma questão política. O barril de petróleo cru (159 litros) chegou a custar por algum tempo mais de US$ 41. É o recorde mundial. Com isso, moveu-se para o primeiro plano um fator que há muito tempo não parecia desempenhar mais nenhum papel particularmente importante: a base energética do modo de produção capitalista e seu mercado mundial. Por conta da dependência universal dos processos de produção e de consumo em relação à energia, o preço do petróleo tem, como sempre, uma posição-chave para a conjuntura global. Ele não é um preço como qualquer outro. E tampouco é determinado por leis puramente econômicas. Pelo contrário, trata-se do preço de um bem para o qual convergem problemas econômicos, políticos e ecológicos ou "naturais". Aqui opera um elemento que abarca todos os domínios da reprodução social.

É evidente que o moderno sistema produtor de mercadorias tem uma base energética. Já para as sociedades agrárias pré-modernas, não se pode afirmá-lo na mesma medida. Nessas épocas da história da humanidade, o combustível era sobretudo a madeira. Mas os processos de combustão serviam então, em primeiro lugar, à preparação de comida e, em segundo lugar, ao aquecimento das habitações. De qualquer maneira, existiam máquinas, algumas muito refinadas, mas cujo modo de funcionamento se baseava ou na força da água ou em efeitos mecânicos de alavanca, ligados à força muscular animal ou humana. Os processos de combustão não possuíam nenhuma importância central para a sociedade.

É algo bem distinto o que se passa no modo de produção industrial do moderno sistema produtor de mercadorias. Aqui a combustão está, em termos tecnológicos, no ponto central - trata-se de uma verdadeira cultura da combustão. Pois a maquinaria moderna do sistema industrial consiste essencialmente em máquinas a combustão. Isso se aplica tanto à produção quanto ao consumo, ao tráfego e à esfera cultural. Trata-se ou de processos de combustão diretos (máquinas a vapor, automóveis, aviões etc.) ou do emprego de energia elétrica, obtida em usinas de modo indireto por meio de megaprocessos de combustão. Nesse sentido, quase todas as máquinas modernas são máquinas a combustão, desde máquinas automáticas de fazer café até grandes turbinas, desde CD players até locomotivas.

Entende-se por si mesmo que uma semelhante cultura universal da combustão não possa mais se basear na madeira como matéria-prima, pois do contrário já haveria muito tempo não teria crescido mais sobre a Terra uma única árvore, abstraindo inteiramente o fato de que essa matéria-prima biológica "jovem" não é tecnicamente apropriada para os processos de combustão maquinais regulares. Por esse motivo, a cultura moderna de combustão precisa recorrer a matérias-primas como carvão, gás natural e, sobretudo, petróleo como suportes de energia, em que estão armazenados milhões de anos de energia solar. E só nesse sentido se pode falar de uma base energética da sociedade. Com a tecnologia da máquina a vapor, o carvão foi determinante no século 19, enquanto, com a tecnologia do motor de combustão e do motor elétrico, o petróleo (e em segundo lugar o gás natural) se tornou determinante no século 20.

A nova qualidade da crise global, no contexto da terceira revolução industrial baseada na microeletrônica, se mostra no fato de ela se manifestar não somente como crise econômica, mas também como crise energética. O desemprego estrutural em massa, numa extensão até hoje desconhecida, e "crises do petróleo" ou crises energéticas vêm abalando o sistema mundial moderno desde os anos 70 do século 20 em dimensão crescente. De certo modo, estão em jogo duas espécies distintas de crise de energia, com direções opostas. Pois a cultura capitalista é uma cultura da combustão em duplo sentido. Em termos tecnológicos, ela se baseia em máquinas a combustão, em termos socioeconômicos, na combustão de força de trabalho humana para o fim da valorização do capital monetário.

O valor, que se "apresenta" na forma dinheiro, como diz Marx, não é nada senão um quantum determinado de energia humana despendida no quadro social específico da produção capitalista de mercadorias. O que Marx designou "trabalho abstrato" e "substância do capital" consiste, em última instância, em processos de combustão do corpo humano, medidos em unidades de tempo. Essa energia despendida coagula, como "realização", no valor econômico e independentemente do conteúdo concreto da produção. O que interessa ao processo de valorização não é a questão sobre o que é materialmente produzido. Se são móveis ou canhões, dá no mesmo; o principal é queimar força de trabalho humana que possa se transformar em dinheiro, quer dizer, em mais dinheiro do que os custos originais do investimento, ou seja, em lucro. A substância desse processo, o "trabalho abstrato" ou a combustão de força de trabalho, possui certamente um conteúdo material, isto é, o dispêndio fisiológico de "nervo, músculo, cérebro" (Marx). Mas esse conteúdo é abstrato, não é concreto. Por isso ele não é nem "natural" nem transistórico. Pois nem na natureza nem em sociedades diferentes da moderna sucede que o dispêndio de energia seja tratado ou "apresentado" separadamente da forma material concreta desse dispêndio. É exatamente isso que acontece, no entanto, se o objeto material é indiferente, só importando a substância abstrata "trabalho" na forma do dinheiro.

A força de trabalho humana não pode, porém, ser queimada arbitrariamente. Para que esse processo de combustão seja "rentável", ele tem de se realizar no nível padrão de produtividade em vigor a cada período. A crise econômica consiste justamente no fato de, em razão de uma produtividade "demasiado alta", a força de trabalho humana existente não poder mais ser queimada de maneira rentável e precisar ser posta de lado. Esse problema conjuntural - no passado, meramente relativo - tornou-se o problema estrutural absoluto no contexto da terceira revolução industrial. A força de trabalho é disponível em massa e se torna cada vez mais barata, mas essa massa de energia humana é "supérflua". É exatamente o inverso disso o que se passa com as matérias-primas fósseis, em sua qualidade de suportes energéticos para o nível tecnológico da cultura capitalista de combustão. Elas se tornam cada vez mais escassas e, assim, cada vez mais caras. A crise energética dupla da acumulação do capital consiste, portanto, em que a energia humana não pode mais ser suficientemente consumida, já que ela se tornou não-rentável em massa, ao passo que a energia fóssil não pode mais ser suficientemente consumida, já que ela se tornou demasiado cara. Desvalorização do ser humano e valorização do petróleo, eis uma fórmula sucinta para descrever o dilema crescente do modo dominante de produção e de vida.

De início, ambos os momentos da crise energética se desenvolveram de maneira desigual. Nos anos 70, a crise do petróleo se encontrava no ponto central. Uma razão importante para o fim do boom após a Segunda Guerra foi a explosão dos preços da energia. No auge da crise do petróleo de então, ocorreram na Europa até mesmo algumas proibições de circulação para automóveis; na Alemanha, por conta disso, em determinados dias as ruas ficaram fantasmagoricamente vazias. O preço do petróleo tornou-se, pela primeira vez, tema político, e nasceu no Ocidente a imagem do inimigo como o árabe ou o muçulmano, muito antes de a imagem do inimigo como o comunista ou o soviético ter se mostrado obsoleta. Por mais de uma década, o debate ecológico se tornou o foco da crítica social; o Clube de Roma chegou a proclamar o fim rápido da "era do petróleo".

Desde os meados dos anos 80, contudo, a crise do petróleo retrocedeu para o segundo plano. Os preços acabaram cedendo, porque tiveram êxito as medidas dos Estados, dos conglomerados e das economias privadas com a finalidade de cortar pelo menos parte dos gastos com energia e porque novos fornecedores se apresentaram nos mercados globais de energia. Em vez disso, agora é a crise da energia humana que se faz cada vez mais notável na forma do desemprego estrutural global em massa, tendo por conseqüência uma debilidade permanente do crescimento global e colapsos de economias nacionais inteiras. Enquanto a desvalorização da energia humana se agudiza irresistivelmente desde então, a crise do petróleo parece retornar nesse meio tempo, como demonstra a subida igualmente irresistível dos preços do petróleo. Os dois momentos da crise energética começam a se cruzar e se agravar mutuamente.

Por causa do significado central do petróleo enquanto "combustível da máquina mundial", o preço do petróleo é sempre também um preço político, ou seja, não determinado somente pelas leis do mercado. A subida dramática desse preço tem, portanto, uma razão política ou quase política. Porém há uma diferença decisiva em relação aos anos 70. Naquela época, a razão política da explosão do preço do petróleo consistia na fundação do cartel da Opep [Organização de Países Exportadores de Petróleo]. Esse ato político encontrava-se ainda totalmente sob o signo da "modernização recuperadora". Os Estados pós-coloniais do Terceiro Mundo com ricas reservas de petróleo queriam vender sua matéria-prima mais importante em condições substantivamente melhores aos países industriais do Ocidente, a fim de garantir seu quinhão no movimento para frente ainda ininterrupto do crescimento global.

Hoje é bem diferente. O crescimento da economia mundial está estagnado ou baseado somente em Bolsas financeiras e em ciclos de déficits, e a "modernização recuperadora" do Terceiro Mundo entrou em colapso na maior parte. Os governos dos Estados membros da Opep se entregaram ao Ocidente e buscam a aliança defensiva com os EUA para manter sob controle a situação explosiva de suas sociedades. O novo fator político na subida do preço do petróleo é, na verdade, um fator pós-político, a saber: o terrorismo islâmico na qualidade de sintoma da crise. Para a Al Qaeda e organizações semelhantes, não está mais em jogo uma fatia do bolo do crescimento global; elas querem atingir o Ocidente em sua substância econômica, sem ter uma perspectiva própria. Essa reação irracional à irracionalidade do mercado mundial é muito mais perigosa do que o cálculo racional-burguês anterior do cartel da Opep. Em intervalos cada vez mais curtos, realizam-se no Iraque, na Arábia Saudita e alhures ataques a instalações petrolíferas e a oleodutos. É um azar do capitalismo que as principais reservas de petróleo se encontrem justamente nas regiões críticas ou colapsadas mais explosivas do mundo. Quanto mais sobem os custos de segurança, tanto mais sobe o preço do petróleo.

O fator pós-político, constituído pelo ataque terrorista ao "combustível da máquina mundial", não é, porém, o único e nem sequer o motivo mais importante do aumento irresistível dos preços de energia. Pois a matéria-prima energética principal torna-se cada vez mais escassa. Por um lado, as razões decisivas disso são econômicas. As capacidades existentes de exploração e elaboração do petróleo e do gás natural no espaço árabe, na Ásia Central e na Rússia, mas também na África e na América Latina, estão envelhecidas e extenuadas irremediavelmente. Os respectivos países não possuem a força de capital suficiente para pagar os investimentos colossais necessários, os conglomerados ocidentais temem o risco de insolvência e preferem se concentrar nos mercados financeiros, e os Estados ocidentais já estão financeiramente sobrecarregados somente com os custos da segurança. Por isso, a capacidade de exploração global antes diminui, ao invés de aumentar.

Por outro lado, estão em profunda desproporção as exigências de uma economia de crescimento global e as reservas naturais de matérias-primas energéticas fósseis. Mesmo que o terrorismo desapareça e o capital de investimento flua em megaescala, o petróleo se tornará, não obstante, mais escasso e mais caro. Simplesmente porque as reservas naturais não são grandes o suficiente. Há muito tempo o mundo busca petróleo com métodos cada vez mais refinados; ninguém mais espera a descoberta de novas e grandes reservas. Segundo dados discutíveis, demasiado altos, existiriam na Terra, em termos absolutos, cerca de 2 trilhões de barris de petróleo. Em 150 anos de industrialização, a metade disso já foi consumida. Isso não significa naturalmente que o resto baste para mais 150 anos. A coerção economicamente imanente para o crescimento devora as reservas com uma velocidade cada vez maior. A produção não pode mais manter o passo com a demanda.

O crescimento na China e na Índia, de qualquer modo já precário por causa da orientação unilateral de exportar para a economia deficitária dos EUA, sorve massas palpáveis de matérias-primas do mercado mundial. A China, há pouco tempo ainda país exportador de petróleo, consome hoje, dia a dia, o dobro de petróleo que ela mesma pode produzir, ascendendo assim ao posto de segundo maior consumidor de energia do mundo (estando na frente do Japão). Em virtude do baixo nível do produto social na China e na Índia, o resultado não é um surto de crescimento, mas a intensificação global da dupla crise energética. Aumentando velozmente, uma massa de força de trabalho de mais de 2 bilhões de pessoas na China e na Índia é desvalorizada, ao passo que, devido ao mesmo processo de industrialização voltada à exportação, o preço do petróleo é catapultado às alturas.

O limite do moderno sistema produtor de mercadorias é um limite duplo, um limite interno econômico e político, e um limite externo ecológico e energético. O petróleo se torna demasiado caro, muito antes de as reservas físicas terem se esgotado. Em combinação com uma desvalorização completa da força de trabalho humana, amadurece uma situação em que "o modo de produção baseado no valor" (Marx) não pode mais ser mantido em pé. Contudo deveria ser óbvio que uma cultura universal da combustão não pode ter uma vida histórica muito longa.

Original alemão "DER TREIBSTOFF DER WELTMASCHINE. Kommt es zu einer neuen Ölkrise?" em http://www.exit-online.org/.

Publicado na Folha de São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004, com o titulo "ENERGIAS EM COMBUSTÃO. Desvalorização da força de trabalho e crise do petróleo, decorrente de atentados terroristas, escassez das reservas e crescimento da China, ameaçam ruir modo de produção baseado no valor". Tradução de Luiz Repa.

http://obeco-online.org/