'Turbocapitalismo' reserva
à humanidade uma série de catástrofes tecnológicas
Terror em alta
velocidade
ROBERT KURZ
Os célebres presságios da Bíblia são augúrios que o
destinatário, por sua própria natureza, é incapaz de levar em
consideração: por força de uma necessidade interna, é seu
destino que o obriga a insistir em seus atos e sucumbir no final,
apesar de toda advertência. Na história do capitalismo, houve
toda uma série desses presságios, que, na forma de catástrofes
regionais, mas significativas, comoviam os contemporâneos e eram
tidos como agouro para a "hybris" da modernidade. Em
1755, o terremoto de Lisboa abalou o otimismo histórico dos
iluministas; em 1912, junto com o Titanic, transatlântico
considerado "inafundável", foi a pique também o
otimismo tecnológico de finais do século 19.
Se em 1755 tratara-se de uma autêntica catástrofe natural, que,
como surdo poder alheio à sociedade, turvou as esperanças numa
nova razão social, a catástrofe de 1912 já se relacionava às
criações da própria sociedade moderna, e o que se frustrou foi
a esperança numa redenção pela tecnologia, depois que a razão
social da modernidade há muito expusera o seu lado sórdido.
Os presságios de 1755 e 1912 eram relembrados com insistência
na literatura cultivada, porém as instituições dominantes
jamais concluíram pela mudança de rumos no desenvolvimento
social. Parece que a modernidade traça sua órbita de modo tão
impassível como um cometa, sem o mínimo de reflexão, a exemplo
desses aglomerados de poeira e gelo que cruzam o espaço. Após o
naufrágio do Titanic, os presságios tecnológicos foram
encobertos pelas catástrofes históricas e sociais da época das
grandes guerras, relegando-os ao segundo plano. Essa foi uma das
razões porque durou menos o impacto provocado pelo desastre de
1937 com o dirigível alemão Hindenburg, que levava a bordo
inúmeros passageiros e queimou, num inferno de chamas, sobre o
campo de aviação norte-americano de Lakehurst.
Ora, se o Titanic ainda colidira com um objeto de natureza
extra-social, sob a forma de um iceberg, no caso da primeira
catástrofe da aviação civil tratava-se de um contratempo no
mecanismo interno da tecnologia de risco. Da irrupção do poder
natural no meio da sociedade, passando pela colisão da técnica
com a natureza externa até o colapso interno à própria
técnica, que só no plano puramente físico tem algo a ver com a
natureza -tal evolução dos acidentes paradigmáticos mostra
como a sociedade moderna torna-se a sua própria catástrofe
natural, já sem necessidade de terremotos ou furacões.
Hoje, na terceira revolução industrial, essa tendência
agrava-se ainda mais: as catástrofes tecnológicas concentram-se
desde o início dos anos 80 e são responsáveis por um número
maior de mortos e feridos do que as "autênticas"
catástrofes naturais e as contendas militares juntas. Em termos
globais, portanto, nada houve de extraordinário quando, no
início de junho desse ano, um trem do ICE alemão
(Intercity-Express), a mais de 200 quilômetros por hora,
descarrilou nas cercanias do vilarejo de Eschede. As imagens de
vagões totalmente arruinados, dos ferros retorcidos, correram
mundo. O saldo foi de cem mortos e inúmeros feridos nesse que
foi, até hoje, o maior acidente na história ferroviária
alemã. Mas, se no estrangeiro, diante da inflação das
catástrofes da técnica e dos meios de transporte, a notícia
desse acidente foi somente uma entre as muitas na ordem do dia, o
choque na Alemanha repercutiu profundamente.
Não foi, em primeiro lugar, a compaixão pelas vítimas que
desencadeou esse choque, mas uma dupla e amarga constatação.
Primeiro, a indústria ferroviária alemã há tempos ameaça
perder a sua posição de destaque internacional, como temia a
revista "Wirtschaftswoche", e com isso caem as
possibilidades de exportação e os postos de trabalho são
ameaçados.
Segundo -e esse ponto é talvez ainda mais importante-, a
população alemã mostra-se tão assustada porque, até agora,
era ponto pacífico que tais catástrofes só aconteciam com os
"outros", para os quais a técnica não é tão sólida
e o pessoal é menos disciplinado -nos países mediterrâneos e
do Terceiro Mundo. Na Alemanha, assim pensava a mentalidade
vulgar e chauvinista, a água corre confiavelmente para o ralo ao
se abrir o registro, os aviões pousam sem contratempos e os
trens são sempre pontuais e seguros. A catástrofe de junho
destruiu esses contentamentos tecnológico e administrativo do
mesmo modo que aos vagões do ICE. Mas essa fatalidade ultrapassa
as fronteiras da ilusão alemã. É um presságio para todo o
capitalismo "high-tech" e o terror que são as suas
altas velocidades.
A lógica da destruição
O campo de destroços e cadáveres de Eschede não foi,
absolutamente, resultado do acaso e do destino cego, que só
abriria espaço a silêncio e pesar. Antes, essa catástrofe é
fruto da lógica de uma política capitalista de transportes, que
já vem de longa data. Em sua origem, a ferrovia foi uma das
tecnologias maternas do capitalismo industrial. Ao fim do século
19, porém, ela caiu em desgraça junto aos investidores, pois
ficou patente que, em razão dos elevados investimentos e do
longo período de carência para recuperá-los, só a custo -ou
não como empreendimento privado- ela se prestava a uma
exploração rentável. Foi assim, porém, que o
"espírito" capitalista concebeu a gloriosa idéia de
vender não a mera utilização do transporte, mas o próprio
meio de transporte: a todos sua própria locomotiva, na figura de
um automóvel!
Essa forma de transporte de pessoas e bens correspondia
perfeitamente à mentalidade de indivíduos abstratos, isolados
entre si. Da rede viária quem cuidava era o Estado, e as cidades
se deformaram para comportar a frota de carros, o espaço
público foi jugulado e destruído em nome da mobilidade privada.
E nessa malha de ruas, unidas não por bitolas, mas governada
apenas pelo tráfego individual, desenrola-se desde então a
inconfessa Terceira Guerra Mundial, que, mês após mês, ano
após ano, exige hecatombes de vítimas.
A imolação programada
Mesmo crianças, que ainda não se habituaram à
"conduta" desse sistema de transportes autonomizado,
são imoladas no altar desse ator principal da economia, o
automóvel, com toda a inescrupulosidade típica do cálculo
estatístico de riscos. A mobilidade privada assumiu o caráter
de um fim tautológico irracional e espelha assim (como as formas
do consumo de massas em geral) o fim tautológico de todo esse
modo de produção.
A ferrovia, agora num plano secundário, converteu-se na maioria
dos países num sistema de transportes para os despossuídos,
subvencionado pelo Estado. A sua participação no transporte de
mercadorias também decaiu drasticamente, a fim de as empresas de
transporte viário poderem infestar as paisagens e, ao contrário
das ferrovias, utilizarem sem custos as estradas, onerando de
forma irresponsável os seus motoristas com salários reduzidos e
horas extras.
As ferrovias estatais não puderam concorrer com tais métodos. O
capitalismo do "tudo pelo automóvel" reagiu com uma
orgia do sucateamento: hoje a Europa está repleta de linhas
ferroviárias desertas e estações abandonadas, que foram até
tema de exposição. A maioria dos vilarejos não possui mais
nenhum meio de transporte público entre eles. Noutras regiões
do mundo, que jamais alcançaram uma rede ferroviária tão densa
quanto a européia, a evolução da mobilidade capitalista
centrou-se sobretudo no automóvel e, para a classe alta, no
avião.
Aquilo que sobrou das ferrovias foi quase totalmente privatizado,
na esteira da campanha neoliberal. E isso significa prestigiar
incondicionalmente o princípio da rentabilidade. Um meio para
tanto é pulverizar a administração das ferrovias: a
manutenção nada rentável dos trilhos, das pontes e dos túneis
é impingida a municípios e a comunas -de ordinário, em
detrimento de obras sociais. A ferrovia, esta, é cedida a
companhias privadas, segundo o antigo lema: socialização dos
custos, privatização dos lucros! Em poucos trechos centrais,
trens de luxo climatizados atraem um público com dinheiro no
bolso, cujo gosto impregna a decoração dos vagões de forma
análoga ao que acontece na sala de espera de um dentista.
E o trem deve ser rápido e rasteiro, pois "tempo é
dinheiro". O funcionalismo abstrato das pessoas em
trânsito, quase sempre a serviço, retira todo o interesse da
viagem em si mesma: as distâncias devem ser cobertas do modo
mais breve possível. Dessa forma de pensar nasceu o ICE, para
que o trem de alta velocidade concorresse com o avião. Os
percursos do ICE não se amoldam mais à paisagem: são traçados
quase em linha reta, como se cruzassem, indiferentes, o espaço
aéreo.
Ao compará-lo a tecnologias análogas à da França e do Japão,
o "modelo ICE" foi vendido à opinião pública como
integração de rentabilidade, velocidade, segurança. O ICE foi
promovido a menina dos olhos do empresariado e, na relação
entre trem e automóvel, insinuou-se uma nova mudança de
posições: o tráfego pesado das ruas, com seus infindáveis
congestionamentos, seria cada vez mais deixado à classe média
baixa; o trem, por sua vez, antiga gata borralheira, ascendia à
posição de "Hilton" da mobilidade para grupos sociais
mais remediados, em sua suposta versão de luxo a altas
velocidades, restrita aos eixos centrais das linhas nacionais e
continentais.
A afirmação de que a eficiência empresarial, ao contrário da
desorganização das estatais, garantiria a total segurança dos
trens deu com os burros na água. Quando os mercados financeiros
oferecem um rendimento de 20%, a ordem suprema das empresas é
baixar os custos, a qualquer preço. Com salários em queda, o
pessoal foi reduzido ao limite do possível.
A par disso, começou uma reestruturação de toda malha
ferroviária, e um número crescente de suas tarefas foi delegado
a outras empresas, para cortar despesas. A "cultura da
segurança" foi substituída por uma ilusória "cultura
da embalagem": enquanto a parafernália eletrônica para o
suposto conforto do passageiro entulhava os vagões, o
empresariado recusou expressamente as complexas técnicas de
segurança sugeridas por engenheiros, em razão do acréscimo de
gastos. Delas constavam um sistema para a supervisão dos pneus
reforçados de aço. Desgraçadamente, foi um desses pneus
(talvez por fadiga do material) que se soltou e provocou o
acidente de Eschede.
A catástrofe, portanto, estava programada, justamente por aquela
"eficiência" empresarial que tanto se evoca. Já
antes, os ferroviários, reduzidos ao extremo, haviam demonstrado
que eram exigidos acima de suas capacidades, e o sistema
técnico, pulverizado pelo "outsourcing", falhara
repetidas vezes. Em Berlim, por ocasião da mudança nos
horários dos trens, todo o sistema entrou em colapso, os
comandos e sinalizações eletrônicos deixaram de funcionar, e
os trens mantiveram-se à espera, no meio do percurso. Inseguros,
os maquinistas não conseguem evitar o pânico. Mas o trem
"rentável", com pessoal cada vez menor, mal pago e
desmotivado, continuará a aumentar a sua velocidade. A cultura
capitalista da alta velocidade deve ser tão questionada quanto a
sujeição do transporte público aos critérios da maximização
de lucros da empresa privada.
O punhado de sangue
Assim, podemos estar certos de que o futuro do
"turbocapitalismo" nos reserva mais outras catástrofes
tecnológicas, estatisticamente calculadas. A "sociedade
móvel" exige, vez ou outra, o seu "punhado de
sangue", opinou impassivelmente o jornal de economia alemão
"Handelsblatt". A tal afirmação teria provavelmente
consentido a maioria dos passageiros de primeira classe cujos
corpos foram severamente mutilados nesse acidente do ICE. O que
nos falta, assim argumentou o notoriamente liberal "Neue
Zürcher Zeitung" (Nova Gazeta de Zurique), com untuoso
cinismo, é o "arsenal de palavras e de gestos" para
uma "liturgia da morte", a fim de "dominar as
catástrofes" que, infelizmente, são inevitáveis. Talvez
as empresas de transporte privatizadas devessem apenas distribuir
santinhos com versículos consoladores da Bíblia para seus
passageiros. Essa, ao menos, seria uma forma nada dispendiosa de
livrar-se do assunto.
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão; publicou no Brasil, entre outros, "Os
Últimos Combates" (Vozes) e "O Colapso da
Modernização" (Paz e Terra); é co-editor da revista
"Krisis"; ele escreve uma vez por mês na série
"Autores". (1998)
Tradução de José Marcos Macedo.