O
BURACO NEGRO DA ECONOMIA MUNDIAL
A
causa mais profunda de todas as crises econômicas da modernidade, inclusive a
atual, é sempre a contradição lógica do capitalismo: de um lado, o potencial
técnico para a ampliação da produção cresce vertiginosamente; de outro, a
massa crescente dos produtos tem de passar pelo buraco de agulha do limitado
poder de compra. Essa desproporção cada vez maior entre potencial produtivo e
restrição econômica foi aparentemente solucionada, após a Segunda Guerra,
pela desvinculação entre crédito e substância real do valor. Da mesma forma
que, na astrofísica, um buraco negro absorve matéria e a faz desaparecer,
assim também o crescimento capitalista é simulado por uma crescente expansão
autônoma do sistema de crédito. A produção suplementar, por assim dizer, é
despejada no buraco negro de uma antecipação irreal da "renda
futura".
Na
era keynesiana dos anos 60 e 70, foi sobretudo o crédito estatal da economia
interna dos países desenvolvidos que compôs o buraco negro da expansão
simulada. Mas o preço para tanto foi a "inflação secular", a
crescente desvalorização do dinheiro creditício, que se mostrava numa ascensão
cada vez mais rápida dos preços das mercadorias. O "deficit
spending" retrocedeu com espanto, ao passo que, por meio do processo forçado
da racionalização e da automatização, as possibilidades de investimentos
rentáveis em novos empregos e empresas sofreram uma drástica redução. Às
pressas, descobriu-se um novo buraco negro a fim de manter a expansão
capitalista em curso, para além de suas limitações internas: os vários
regimes do Terceiro Mundo, aos quais foram impingidos os generosos créditos do
sistema financeiro ocidental. De certo modo, tratou-se de um "keynesianismo
para Terceiro Mundo".
Mas,
obviamente, os governos do Terceiro Mundo não estavam em condições de desviar
esse capital monetário para a produção suplementar no nível de rentabilidade
do mercado global. Como poderia a periferia produzir algo para o qual os próprios
centros não se encontravam mais capacitados? Com isso, os créditos
internacionais para os Estados do Terceiro Mundo perderam-se em boa parte na
compra de objetos de luxo e investimentos a fundo perdido (usinas atômicas,
barragens, consumo militar etc.). O resultado foi a conhecida crise de
endividamento do Terceiro Mundo e a hiperinflação nesses países. Como os créditos
para o regime estatal eram concedidos, em sua maioria, a médio e a longo prazo,
as instituições monetárias globais puderam transformar essas dívidas
"podres", numa ação em grande escala, em títulos
("Brady-bonds"), que, desde então, são negociados nos mercados
financeiros internacionais com sensível desconto. A crise da dívida não foi
extinta com esse expediente, mas adiada para o futuro.
No
início dos anos 80, o neoliberalismo monetarista afirmou dar uma resposta
definitiva ao problema do crescimento: trocar a duvidosa captação estatal de
crédito pelo desenvolvimento autônomo dos mercados e manter a emissão
suplementar de dinheiro dos Bancos Centrais restrita ao crescimento real da
produção de bens. A grande ironia, uma das maiores da história, é que essa
doutrina só teve êxito momentâneo pelo fato de ser absurdamente implementada,
na forma de seu oposto, pela política econômica dos Estados Unidos. Sob o
presidente Reagan, a última potência mundial fez com que a União Soviética
se curvasse sob o peso da corrida armamentista. Mas isso só foi possível com a
majoração das dívidas estatais para além de todas as dimensões conhecidas
até então, acompanhada da diminuição dos impostos para os ricos. Como a
quota de poupança norte-americana é até hoje uma das menores do mundo, o
gigantesco "keynesianismo militar" só pôde ser realizado com um rápido
endividamento externo do Estado. Os Estados Unidos consolidaram uma balança de
pagamento que, hoje, em sua estrutura interna, corresponde à dos países em
crise do Terceiro Mundo.
Enquanto
todo país tem de ganhar divisas com um elevado índice de exportações, a fim
de poder captar e pagar créditos externos, os Estados Unidos meramente
endividam-se no exterior com empréstimos em sua própria moeda. Isto só
funciona porque o dólar cumpre a função de um "dinheiro universal",
na condição de ser a mais importante moeda mundial de comércio e reservas.
Tal função não repousa mais, porém, ao contrário do período posterior à
Primeira Guerra Mundial, no fato de os Estados Unidos possuírem uma
superioridade absoluta na exportação global de capitais e mercadorias. De
certo modo, é a máquina militar dos Estados que vale como o "ouro"
do dólar: o peso da força militar de combate tomou o lugar da substância real
da economia. Com isso, um "fator extra-econômico", no sentido
rigoroso do termo, assumiu uma tarefa central no sistema econômico – e isso
de forma totalmente irracional.
O
paradoxal endividamento externo norte-americano em sua própria moeda não só
financia o seu aparato militar onipresente, mas serve também, desde meados dos
anos 80, como combustível de toda a economia mundial. Como ele não tem de ser
pago com divisas, mas apenas com o aceite de uma dívida abstrata e não
resgatada em favor dos credores de sua riqueza nacional, os Estados Unidos são
capazes de gastar duplamente o capital monetário emprestado do exterior:
primeiro, são quitados os armamentos e, segundo, esse mesmo dinheiro é
novamente gasto para poder importar um volume de mercadorias maior do que é
exportado. Em outras palavras, a compensação para os títulos da dívida com
que os Estados Unidos pagam o seu enorme excedente de importação, na verdade,
há muito já se acha esgotada e navega pelos mares na figura de porta-aviões
ou, então, foi lançada no espaço.
Desse
modo, os Estados Unidos tornaram-se o maior “buraco negro” da economia
global: eles absorvem o capital monetário e o fluxo de mercadorias de todo o
mundo, mas não pagam, de fato, nem um nem outro. O keynesianismo militar
financeiramente globalizado do governo norte-americano é o pressuposto nacional
para o aparente sucesso da guinada neoliberal em todo o globo. Trata-se, porém,
de um processo que consome a si mesmo. Numa escala inconcebível, são retidas
letras do Tesouro sem qualquer valor, que jamais poderão ser resgatadas. Esses
títulos absurdos, cujo valor há muito foi dilapidado, circulam pelo mundo como
uma pseudomoeda. Os países que contabilizam excedentes de exportação diante
dos Estados Unidos pagam com ela suas dívidas com outrem. Isso não vale apenas
para o circuito de deficit interasiático entre Japão e os tigres, mas também
para os déficits da União Européia e demais países em relação ao Japão.
Por
isso, toda a conjuntura mundial dos últimos 10 a 15 anos é uma prosperidade
ilusória dessa economia-zumbi global, cuja base são os Estados Unidos.
Enquanto o consumo gigantesco dos norte-americanos dissipa boa parte dos
recursos financeiros e materiais do planeta, acumula-se no Japão, em imagem
espelhada, uma montanha de títulos sem valor. Mas isso não diz respeito
somente à relação direta entre Japão e Estados Unidos, mas, indiretamente,
à relação entre esses dois Estados e o resto do mundo. Da pseudoliquidez
acumulada no Japão surgiu a onda global de especulação que, desde meados da década
de 80, foi "preparada" pela conjuntura alimentada pelo “buraco
negro” dos Estados Unidos. Essa especulação acionária e imobiliária já
deu como favas contadas, com sua peculiar irracionalidade, que a conjuntura do
fluxo financeiro e de mercadorias ainda irresgatado não só persistirá século
21 adentro, mas também crescerá de proporção.
E,
de novo, foi o Japão que, mesmo depois do estouro de sua própria bolha
especulativa, impulsionou impassivelmente a grande roda: os japoneses baixaram
os juros do yen a quase zero e criaram do nada, sem custos, novas massas de
liquidez, que, por sua vez, foram investidas, a uma alta taxa de juros, nos títulos
norte-americanos. Com ajuda dessa "licença de emissão de moeda",
eles impediram não apenas a realização de suas perdas na economia interna,
mas impeliram para fora novas massas de liquidez no sistema financeiro mundial
(sobretudo nos Estados Unidos e no seu campo de ação asiático). Devia estar
claro, contudo, que a pseudoliquidez, cuja reprodução é mais rápida que a
dos coelhos e eleva a si mesma à segunda, à terceira ou à quarta potência, não
poderia fluir indefinidamente.
Assim,
era fatal chegar o instante em que, de um lado, o “buraco negro” glutão dos
norte-americanos começasse a padecer de cólicas digestivas e que, de outro, os
países com excedentes não fossem mais capazes de aumentar suas remessas.
Quando os Estados Unidos, nos últimos dois anos, tentaram timidamente "pôr
as coisas nos eixos" e pelo menos não aumentar o déficit interno ou o
endividamento externo, os "tigres" atingiram simultaneamente os seus
limites internos, tanto financeiros quanto materiais, de exportação. O aumento
vertiginoso do endividamento externo e a concomitante baixa das taxas de
crescimento provocou primeiro a queda das moedas e, depois, das bolsas dos
"emerging markets" – e isso com efeitos ameaçadores ou já
manifestos de uma reação em cadeia em todo planeta. Resultado: subitamente, a
massa de créditos "podres" tornou-se maior do que o potencial japonês
de criar nova liquidez.
Portanto amadurece uma situação análoga a um grande "dia de pagamento". Este cenário tomará corpo tão logo o “buraco negro” da economia deficitária americana seja tapado à força. O corpo-a-corpo ocorrerá entre as economias-chave do Japão e dos Estados Unidos. Das duas, uma: ou o Japão deixará que seu sistema financeiro entre em colapso, numa espécie de haraquiri, como os soluçantes empresários da Yamaichi acabaram de demonstrar diante das câmeras do mundo – e aí a segunda maior economia mundial cairá em miséria da noite para o dia; ou, então, os japoneses, para livrarem a cara, retirarão seu patrimônio investido nos Estados Unidos – e aí será a potência mundial, sentada em sua máquina militar, que terá de declarar-se falida. Ora, em ambos os casos, a pseudoconjuntura global, alimentada pelos paradoxais déficits norte-americanos, será sufocada. Primeiro, a pseudoliquidez especulativa evaporará e, com ela, a produção global de bens de luxo. A inflação dos preços de ações, imóveis e bens de luxo de todo tipo converte-se num processo de desvalorização deflacionário que, em breve, alcançará a suposta economia "real" e provocará uma depressão global sem precedentes.
Esse
processo teve início há pouco na Ásia. Se não ocorrer um milagre, só existe
um meio de conter momentaneamente a avalanche: os Estados e Bancos Centrais da
OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) têm de
dar uma guinada ideológica e político-econômica de 180 graus e não só
trocar o monetarismo neoliberal pelo velho keynesianismo, mas criar um novo
hiperkeynesianismo político-financeiro no plano supra-estatal -embora os
Estados, sem exceção, estejam endividados até o pescoço. Isto obviamente
seria a confissão de que a lógica do "deficit spending", na verdade,
nunca foi superada, tendo sido, todo esse tempo, a determinante da economia
mundial, sob a figura do keynesianismo militar norte-americano e por trás da
fachada monetarista. Os primeiros passos nessa direção revelaram-se há
algumas semanas. O Fundo Monetário Internacional (FMI), financiado pelos
Estados e Bancos Centrais, aumentou em 45% suas quotas disponíveis (490 bilhões
de marcos). E o governo japonês assegurou que impedirá o colapso do sistema
financeiro com auxílio estatal. Falando claramente: a "autonomia das forças
de mercado", evocada desde a guinada neoliberal, não vale mais um tostão.
Ora,
de onde o FMI e os governos pretendem retirar o capital necessário? Hoje, em
termos absolutos, a soma das ajudas requisitadas ultrapassa tudo que se acha à
disposição do fundo de crise. Segundo estimativas ainda pendentes de confirmação,
a massa dos ameaçadores créditos "podres" pode atingir a soma da
capitalização global das bolsas. Não restará aos governos da OCDE senão
fomentar conjuntamente a emissão de moeda de seus Bancos Centrais. Este seria o
último “buraco negro” que o capitalismo poderia criar, a fim de prolongar
artificialmente sua vida. A expansão autônoma do sistema de crédito econômico
nos últimos 15 anos restringiu o processo inflacionário ao preço de ações,
imóveis e bens de luxo.
Mas,
se um novo hiperkeynesianismo estatal e supra-estatal abandonar-se à criação
de crédito por meio de seus bancos emissores, para evitar o processo inverso de
deflação global, o dinheiro, como tal, será desvalorizado – e, então, o
fantasma da inflação, a exemplo do gênio da lâmpada, voltará mil vezes
maior. Inflação ou deflação, afinal de contas, redundam no mesmo: aniquilação
do capital fictício. Atingida tal situação, a humanidade terá finalmente de
perguntar a si mesma se não pode fazer algo melhor com a terceira revolução
industrial do que meramente sacrificá-la à tautologia da acumulação de
capital.
Publicado
na Folha de São Paulo de 12.12.1997 com o título O
último buraco negro. Tradução de José Marcos Macedo. Original alemão integral não disponível.
Versão
reduzida do texto Das
schwarze Loch der Weltwirtschaft
em www.exit-online.org.
Publicada em Neues Deutschland de 28.11.1997.