7. O IMPÉRIO E OS SEUS TEÓRICOS

(Capítulo 7. do Livro A GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL, Robert Kurz, Janeiro 2003)

É perfeitamente claro em que consiste a lógica do imperialismo de exclusão: tendo em conta o processo global de crise, que se tornou socialmente impossível dominar no interior da economia capitalista, tem de se proceder a uma divisão fundamental do mundo em duas zonas ou submundos. Dum lado, uma zona global de "relativa normalidade", caracterizada por procedimentos democráticos, um Estado de direito burguês e a reprodutibilidade da vida assegurada à massa da população, onde a miséria produzida pela economia de mercado pode ser considerada minoritária e controlável enquanto socialmente marginal. A este nível, o carácter de desaforo do capitalismo tem de permanecer como linha de conduta interiorizada, de certo modo num estado de pacificação. Esta zona inclui, por enquanto, os centros ocidentais, o Japão e os "enclaves de reprodutibilidade" ou "ilhas de produtividade" capazes de aceder ao mercado mundial, nas grandes regiões do globo que no seu conjunto já não são viáveis do ponto de vista capitalista. Por outro lado, e justamente por isso, assistimos ao crescimento de uma zona global onde a economia de mercado já caiu no "estado de natureza" da concorrência capitalista. Esta zona, onde a sorte da maioria é a miséria, já não pode ser enquadrada nas formas do direito burguês.

Uma vez que a linha de demarcação entre as duas zonas é traçada cada vez mais nitidamente – literalmente com muros, vedações, barreiras eléctricas, faixas de morte, etc. – impõe-se a comparação, não só com as fronteiras fortificadas da história e com a muralha da China, mas também com os impérios que lhes estavam ligados. A própria noção de imperialismo tem a sua origem nas ideias de dominação das velhas civilizações agrárias e no seu poder repressivo (latim imperium = poder de mandar).

 

O império e os novos bárbaros (Jean-Christophe Rufin)

"O Império e os novos bárbaros" (Rufin, 1991): foi assim que o médico e politólogo francês Jean-Christophe Rufin (membro dos Médicos sem Fronteiras) intitulou o seu estudo sobre o tema, no início dos anos 90, quando ocorreu a queda do capitalismo de Estado, chegou ao fim a constelação política mundial bipolar e começou a surgir claramente outra bipartição global nova e diferente.

Rufin estabelece aí uma analogia directa com a antiguidade, comparando a presente situação da civilização ocidental norte-americana e europeia com a de Roma após a queda de Cartago: agora, como então, desaparece o adversário exterior, com as consequências daí decorrentes. Segundo Rufin, terá sido o historiador Políbio (ca. 200-120 A.C.) quem legitimou a missão imperial de Roma: "Ao escrever a sua história, Políbio modela o passado de Roma, recria-o, dá-lhe retrospectivamente um percurso de rectidão. Ele persuade os romanos de que a sua vitória não foi fortuita, mas tem a marca de um destino particular. Desde a sua origem, a Roma foi cometida uma obra de paz, justiça e sabedoria [...]. O resto do mundo, tudo o que está fora do império, está numa situação lamentável: os bárbaros estão privados da civilização. Roma tem o dever de lhes levar a civilização, ou de combatê-los, se eles persistirem no seu arcaísmo e tentarem ameaçá-la. Políbio substitui a angustiante imagem de uma Roma perante o vazio pela ideia exaltante de uma responsabilidade imperial, de uma missão universal. E assim ele descobre uma 'massa dupla': o Império contra os bárbaros [...] Ora eis que surge uma nova revolução polibiana. A oposição Norte-Sul ressuscita esta ideologia da desigualdade, da assimetria. Sem dúvida que, para esconjurar a angústia nascida do recuo soviético, o Sul vê-se a partir de agora remetido ao papel dos novos bárbaros, face a um Norte supostamente reunificado, imperial, depositário dos valores universais da civilização liberal e democrática" (Rufin, 1991, p. 19s.).

Esta constelação não é assim tão nova. Com efeito, ela fora preparada no plano ideológico desde os tempos de Woodrow Wilson; e, no plano político e militar, desde o fim da Segunda Guerra Mundial que o império capitalista da Pax Americana se definira com "mundo livre", tanto face ao "sistema totalitário" do bloco de leste, como perante os "países subdesenvolvidos" do conjunto do Sul. Tal definição já fazia sua esta ideologia missionária, cujo objectivo é precisamente unificar política e economicamente o sistema mundial. Os elementos fundamentais da analogia que Rufin estabelece, entre o império romano após as guerras com Cartago e os anos 90 do século XX, já antes estavam constituídos.

Na história da Guerra Fria, a ideologia missionária ocidental, obviamente sob influência da mobilização fordista e do concomitante "milagre económico" após a Segunda Guerra Mundial, ainda continha a promessa de prosperidade e "desenvolvimento" para o conjunto do planeta. Tal promessa revelou-se objectivamente desprovida de realidade. O que dela resta ressurge hoje sob forma degradada, tão falaciosa como desacreditada, na boca dos conservadores neoliberais e dos novos sociais-democratas. Na crise mundial da terceira revolução industrial já ninguém afirma com seriedade que seja possível um novo "milagre económico" capitalista; se já antes a maioria da população mundial estava de facto excluída e apenas numa perspectiva ideal se integrava num futuro imaginário, hoje trata-se apenas de encontrar um vocabulário disfarçado, para apresentar a pérfida dialéctica da exclusão total e da simultânea vontade de dominação total. Na verdade, os próprios economistas reconhecem entretanto abertamente que os centros do capitalismo não voltarão a conhecer o "pleno emprego", nada mais sendo de esperar que uma pauperização crescente de partes cada vez maiores da população. Do conteúdo da ideologia missionária resta apenas, embalada numa fraseologia democrática, a vontade nua e crua do capitalismo de dominar um mundo, cuja reprodução económica já não é capaz de assegurar.

Assim, hoje pode-se considerar retrospectivamente que a antiga cortina de ferro constituiu, de certa maneira, a primeira versão do novo limes [latim = fronteira] entre o "império" e os novos "bárbaros"; como dá a entender a voz do povo no Ocidente, hoje, contas feitas, melhor fora ter deixado ficar "o muro", ou até convém mesmo erguer outro (o que, de qualquer modo, há tempos vem sendo feito, apenas alguns meridianos mais a leste). O que se verifica é que, no tempo da Guerra Fria, ambos os lados se iludiam: o que para o capitalismo de Estado do bloco de leste era uma garantia de “desenvolvimento atrasado” autónomo, e para o império ocidental um obstáculo malévolo a impedir o acesso a mercados prometedores, revela-se mais tarde como a linha de demarcação provisória entre "zonas temporais" de um processo de crise comum, em que o moderno sistema produtor de mercadorias esbarra no seu limite absoluto.

Se reportarmos a análise a antes de 1989, que marca o fim de uma época, a argumentação de Rufin apresenta-se bruscamente invertida. A cortina de ferro teria então constituído este paradoxo: não teria sido, em primeiro lugar, o "império" a isolar-se com um limes face aos bárbaros, mas antes os "bárbaros" a isolar-se face ao "império", até que, apenas nos anos 90, a realidade deu razão à analogia. Evidentemente, esta analogia não explica tudo. Ela ilustra apenas um estádio particular dum desenvolvimento comum, que se prolonga tanto a montante como a jusante. A analogia de Rufin constitui uma descrição dos fenómenos actuais sob muitos aspectos certeira, mas válida apenas para a constelação dum estádio transitório determinado: "O novo limes contemporâneo entre Norte e Sul marca o paulatino surgir duma moral de desigualdade, duma espécie de apartheid mundial. Na ideia de limes está mais ou menos clara a intenção de definir e proteger a civilização do Norte. Mas tal implica o abandono violento do Sul, identificado com a barbárie. Este abandono já hoje é perceptível em muitos domínios. Demográfico: à ambição de limitar a população mundial substitui-se uma esperança minimalista de conter as massas do Sul e de recorrer aos flagelos maltusianos para a sua regulação. Económico: ao ideal de desenvolvimento universal substitui-se uma política selectiva, que consiste em prestar assistência apenas aos estados tampões, situados ao longo do limes, que devem assegurar a estabilidade" (Rufin, 1991, p. 26).

Infelizmente, Rufin não se interroga nada, ou quase, sobre as razões estruturais desta nova percepção das coisas; pelo contrário, ele fixa-se apenas nela, como um "constructo" que supostamente poderia ser diferente. Assim ele não se apercebe do que afinal soa falso na construção aparentemente tão pertinente da sua analogia. Ele parte implicitamente de uma relação entre dentro e fora que já não existe há séculos. A grande diferença é que o império romano não foi edificado na base duma socialização planetária sob a forma do valor, ou seja, sobre um sistema universal de produção de mercadorias. Na antiguidade o grau de socialização era muito mais fraco do que na modernidade, sobretudo no limiar do século XXI, tanto na sua densidade interior como no seu alcance exterior.

É por isso que a relação entre o "império" e os "bárbaros" na antiguidade pode ser realmente compreendida como uma relação entre "estar dentro" e "estar fora". Mesmo no interior do império romano, as estruturas de mediação directa eram sobretudo superficiais e enxertadas (ligações sob a forma de tributos, cobrança antecipada de impostos às províncias e redes comerciais relativamente ténues, no quadro de uma economia agrária dominante e de modo nenhum socializada), apesar da constituição de um certo quadro cultural. O "dentro" propriamente não passava de um ponto, a saber, Roma como centro. Quanto às regiões situadas para além da fronteira exterior, marcada no Baixo-Império como limes, elas de modo nenhum se encontravam numa relação de ligação com o interior do império; na sua maioria, tratava-se mesmo, do ponto de vista de Roma, de território "inexplorado", cujas formas sociais e modelos culturais eram tanto mais independentes de Roma quanto, visto do império, ele se perdia nos confins do espaço exterior.

A legitimação ideológica desta "missão civilizatória", cujo cerne económico é o rapto de escravos em larga escala, fundava-se numa relação real com o exterior, apenas comparável, relativamente à história da modernização, quando muito com o início da colonização nos séculos XV e XVI. Em ambos os casos, uma critica histórica da ideologia pode trazer à luz, simultaneamente, o pano de fundo predador e assassino da pretensa "missão civilizatória", bem como a ignorância e falta de distanciamento da definição pejorativa do estrangeiro como "bárbaro", que involuntariamente denunciam essa pretensão civilizadora. Marx preparou o terreno para esta crítica histórica da ideologia, reinterpretando o conceito de "barbárie", de uma caracterização do "mundo subdesenvolvido" para uma consequência do modo de produção capitalista moderno. E, com efeito, estamos hoje confrontados com uma barbárie "secundária", saída do processo de crise e desmoronamento do próprio sistema produtor de mercadorias global.

Esta a razão porque, definitivamente, a analogia de Rufin não é pertinente. O novo limes é uma fronteira traçada no interior do próprio "império" que, como sistema mundial totalitário, já não conhece "exterior". Não se trata de uma barreira contra forças exteriores, contra tribos ou o que se chama culturas, nem de uma medida de segurança contra a intrusão do desconhecido, mas sim de uma tentativa de exteriorizar momentos do próprio "interior", a fim de externalizar e manter de fora o que foi produzido pela sua própria lógica social. Mesmo quanto às suas formas de consciência, os "novos bárbaros" não são "tribos" bizarras de hábitos estranhos, nem populações enclausuradas em relações arcaicas, que permanecem em estádios inferiores de desenvolvimento social. Pelo contrário, são manifestações próprias do capitalismo pós-moderno, por demais conhecidas: de tal modo conhecidas que formas de consciência e de comportamento similares (novas formas de violência: amoques, kamikazes, crises de demência, actos individuais de desespero, etc.) surgem igualmente nos centros do "império", onde parecem ainda controláveis.

Tanto os processos de barbarização na periferia como a política de portas fechadas e de exclusão no "império" são partes integrantes duma relação de crise global, que se desenrola na sociedade mundial, chegada ao fim da sua capacidade de desenvolvimento. Rufin dá-se conta que "há qualquer coisa que não bate certo". Mas, permanecendo também ele prisioneiro do velho aparelho conceptual da modernidade produtora de mercadorias, não consegue passar duma compreensão fenomenológica da realidade, que é insusceptível de ser captada com tais conceitos (a não ser que ele a recalque, à maneira dos "ideólogos de choque" ocidentais). É o mundo categorial dos conceitos – "desenvolvimento económico, economia de mercado, política, democracia, direitos humanos", etc. – que assim entra em flagrante contradição com o mundo empírico dos fenómenos, apreendido na realidade concreta. É precisamente aí que parece residir uma das fraquezas fundamentais dos críticos ocidentais, por mais honestos que sejam, que simplesmente não querem pôr de parte a ideologia democrática do sistema produtor de mercadorias, a fim de avançar para novas ideias de emancipação humana.

Assim, Rufin aproxima-se muito duma crítica nova, quando põe em questão, ainda que de maneira vaga, o "invólucro económico" universal, negativo, do mundo: "Habituámo-nos a viver neste economismo omnipresente, que parece natural" (ibid., p. 129). Ele reconhece também que, até aqui, as contradições passadas, duma maneira geral, mas sobretudo na época da sociedade bipolar global do pós-guerra, estavam encerradas neste "invólucro económico", em última análise categorialmente idêntico: "O produtivismo ocidental estendeu-se ao mundo inteiro. O marxismo, sob as suas diversas formas, longe de se lhe opor, contribuiu para propagá-lo, ao pregar por todo o mundo os mesmos fins, apenas com uma via diferente para atingi-los” (ibid., p. 129).

Sem dúvida que também este conceito crítico do "produtivismo ocidental" (manifestamente tomado do movimento verde e alternativo dos anos 80) é ainda insuficiente. Rufin ainda vai mais longe, ao constatar, sempre numa perspectiva vagamente crítica, que o dado mais "apreciado" sob o fascínio deste produtivismo é, independentemente do campo ideológico, "o índice (abstracto) da produção, ou seja, da ‘criação de valor’" (ibid., p. 129). E chega mesmo a esta constatação, tão surpreendente com esclarecedora: "Sob esta perspectiva, Marx é concorrente de Adam Smith e não seu negador" (ibid.).

Seria de crer que restava apenas dar um passo e retirar de tudo isto as consequências lógicas duma nova crítica fundamental das categorias da modernidade, e assim tomar finalmente Marx a sério; considerando-o, não na dimensão reduzida de um simples concorrente de Smith, mas o seu negador (pela crítica radical do moderno fetichismo do sistema produtor de mercadorias, como fim em si mesmo, sob o fascínio da valorização do valor), e pôr em evidência a relação entre o "produtivismo" abstracto, alheio às necessidades humanas, e esta "criação de valor", que se trataria de descobrir e ultrapassar como critério negativo e não positivo. Em síntese: trata-se de salvar e sobretudo arranjar a sério, positivamente, o mundo unificado da humanidade, que foi desfeito à escala planetária pelo "modo de produção baseado no valor" (Marx), ou seja, pelo moderno fim em si da chamada economia.

Mas Rufin abstém-se de retirar tais consequências. De facto, ele desenvolve a sua crítica apenas a partir do carácter falacioso dos dados estatísticos do "produto social" e outros índices abstractos da economia capitalista. Assim ele pode demonstrar que os "bons resultados" provisórios de países como o Brasil, os "tigres" asiáticos e outros bons alunos do totalitarismo de mercado, escondem na realidade profundas desigualdades sociais e económicas (por exemplo: criação de produtos de substituição não rentáveis do ponto de vista capitalista, dependência unilateral das exportações, etc.) que, mais tarde ou mais cedo, acabarão por desmentir os pretensos sucessos estatísticos. O colapso dos países do milagre asiático confirmou esta análise de forma chocante, poucos anos depois. Em todo o caso, as conclusões que daí retira Rufin não são claras. Agarrando-se a uma crítica vaga, que recua perante o obstáculo das categorias, depressa recai aquém dos fundamentos críticos desta. Assim, ele abandona o terreno "perigoso" do sistema de referência comum do terror económico por excelência, o trabalho e o valor abstractos, tal como ele é imposto na prática com rigor universal no mercado mundial, e, pelo contrário, regressa sem qualquer mediação às diversas diferenças sub-sistémicas, culturais, etc.

Tal fazendo, ele namora perigosamente com as reinterpretações pós-modernas e culturalistas da economia capitalista, que culpam os países "perdedores" e as zonas de colapso da periferia de serem eles próprios responsáveis pelos seus problemas, por estarem "errados" e incompatíveis com o mercado os modelos culturais que os regem. Implicitamente, Rufin permite que reentrem pela porta das traseiras os critérios categoriais do "invólucro económico" negativo e abstracto universal. Por um lado, ele reconhece, ainda que de modo limitado aos fenómenos, que é problemático fixar de forma geral os critérios capitalistas do "desenvolvimento": "No Sul, nem sempre o desenvolvimento é desejável; pode ser perigoso ou inútil" (ibid., p.142). Por outro lado, quando aborda os conceitos e os critérios categoriais, Rufin não deixa de se lhes referir, ainda que implicitamente, na escala de referência do economismo real capitalista: "Hoje é preciso reconhecer que o Sul inventou muito mais meios que o marxismo para bloquear, quiçá cortar a mão invisível" (ibid., p. 65. Isto não soa propriamente a "negação" de Adam Smith que, como se sabe, fez o elogio da "mão invisível" dos mecanismos cegos do mercado.

Com efeito, se não é a "mão invisível" global da valorização capitalista do valor que está na origem da aberta barbárie nas regiões onde reina o colapso e a crise, mas se, pelo contrário, é a barbárie que corta a "mão invisível", então tal barbárie, como causa primeira autónoma, deve ser necessariamente a característica autóctone do próprio "Sul". Assim, a pretendida crítica de Rufin desliza para uma estranha penumbra que a transforma exactamente no seu contrário: a cega afirmação dos "valores ocidentais". Esta contradição atravessa toda a sua argumentação: Por um lado ele constata: "O empobrecimento do Sul é novo, é recente, construído à custa de pacientes esforços. A actual miséria é o produto de trinta anos de desenvolvimento". (ibid., p. 74). Por outro lado, ele supõe que as regiões de crise do Sul obedecem a uma inclinação natural, pré-moderna, para uma "economia de predação fundada no assalto, no roubo, no ataque a comboios civis" (ibid., p. 124). Esta última perspectiva é de novo claramente a do culturalismo neo-eurocentrista.

E tal argumentação torna-se naturalmente absurda em si mesma, quando Rufin afirma "que particularmente em África, por tradição a troca e a apropriação das riquezas dominam largamente as actividades de produção nas sociedades. Os nossos critérios económicos de desenvolvimento seriam no fundo bastante inadaptados para estas sociedades, baseadas na predação e na circulação de bens. Aquilo a que chamamos corrupção não seria senão um dos aspectos desta economia sem produção [!]" (ibid., p. 140). Aqui convém lembrar o que Marx dizia dos antigos piratas: para haver qualquer coisa para pilhar, é preciso ter sido produzida. Para lá da colheita selvagem mais elementar, mesmo nas sociedades mais primitivas, a massa dos bens é constituída por "produtos". O folclore fenomenológico descrito por Rufin, de uma economia do Sul consistindo em "pilhagem sem produção", na realidade não é senão a economia de saque mundial do próprio capitalismo de crise: a produção segundo critérios capitalistas retirou-se, e decorre algures, num nível cada vez mais restricto, enquanto a economia de saque, por um lado, esquarteja a substância em ruína e, por outro, continua indirectamente ligada aos grandes centros produtores de capital por circuitos secundários. Neste sentido, a corrupção não é um fenómeno autóctone, mas (independentemente da "herança" negativa do período colonial) resulta do facto de crescer a dependência material da produção externa, por ter sido destruída toda a base produtiva autónoma pela relação de capital global, devido à “rentabilidade” insuficiente.

Esta estranha tendência de Rufin torna-se ainda mais clara quando se trata de interpretar as inúmeras novas "guerras civis" do one world do capital. Aos olhos da crítica radical da forma do valor negativa globalizada, os modelos de legitimação cultural pseudo-arcaicos e pseudo-religiosos da nova violência não são senão a máscara do asselvajamento da concorrência universal, que penetra até às micro-regiões e até aos poros do dia-a-dia; aos olhos da afirmação culturalista, pelo contrário, são as identidades culturais profundamente enraizadas, "no fundo" pejorativamente definidas como pré-modernas, que geram esta violência contra o mecanismo do mercado em si tão pacífico.

Rufin constata que os conflitos internos do Sul, que na história do pós-guerra passavam por momentos da Guerra Fria, "sobrevivem" a esta (ibid., p. 115). De novo se põe a questão das conclusões a tirar. Aos olhos da crítica radical, resulta da interpretação disso que a Guerra Fria apenas encobriu uma crise mais profunda do sistema de referência comum – o do contexto global de mediação na forma da valorização e do dinheiro – crise que agora reaparece pouco a pouco à luz do dia. Rufin, na linha da apologética culturalista, tira uma conclusão exactamente oposta: "O confronto Leste-Oeste no Terceiro Mundo encobriu rivalidades muitos mais antigas, também mais misteriosas para nós" (ibid., p. 119).

Seja no plano social e económico (economia de "predação" pretensamente pré-moderna) ou no plano político ("rivalidades misteriosas" muito antigas), Rufin, ao contrário do que ele desenvolve noutro lado, reduz assim o "Sul" à qualidade negativa de uma "barbárie" completamente "autónoma", que jaz sob a superfície da modernidade e hoje ressurge. Uma qualidade de "barbárie" que se situaria completamente fora dos conceitos universais ocidentais, que são a economia de mercado, a democracia, os direitos humanos, etc. : uma razão literalmente "negra" do demoníaco irracional, oposta à "racionalidade" do Norte. E este traço demoníaco, a sua natureza pretensamente "original", segundo Rufin, leva o "Sul" a tomar, "face à civilização produtivista e comercial, disposições antagónicas" (ibid., p. 146), apenas escassamente revestidas e sincreticamente misturadas com restos de ideologias ocidentais (sejam elas o marxismo ou o liberalismo). O poder emergente destas "posições" violentas e bárbaras seria, apenas agora, "[...] a descolonização, sim, a primeira descolonização radical" (ibid., p. 112).

Para apresentar esta nova constituição identitária do Sul, que define como "uma muito concreta pregação do ódio" (ibid., p. 107), Rufin chega mesmo a servir-se de Frantz Fanon, o teórico argelino da passada revolução anticolonial. Aparta do seu objectivo histórico a afirmação emocional de que a identidade do colonizado, imposta de modo violento, só pode ser superada de modo igualmente violento, para apresentá-la como tendo sido desde sempre a identidade por excelência do "Sul": "O movimento ideológico do Sul contemporâneo não se construiu ‘em direcção a’, mas ‘contra’. A ausência de racionalidade, que mostra uma aparente incoerência, é na realidade vontade de ruptura com a racionalidade. O grito de Fanon, que tanto agradava a Sartre, é a nova e última palavra de ordem: ‘Quando um colonizado ouve um discurso sobre a cultura ocidental, saca logo da catana’" (ibid., p. 105).

Na realidade, a frase de Fanon é inseparável da constelação formada por colonização e movimento anticolonial, movimento que também ele evoluía no interior das categorias da modernidade. O aspecto violento e irracional que contém releva precisamente desta constelação e não é de modo nenhum uma qualidade "subjacente", "original", "ontológica" e sulista dos colonizados. A vontade de ruptura com a racionalidade não constitui apenas um resultado; pelo contrário, ela faz parte integrante desta racionalidade, que com isso revela a sua própria irracionalidade. Ou seja, a profunda irracionalidade das próprias categorias sociais ocidentais. A catana de Fanon é o símbolo do trágico levantamento anticolonial; trágico pela única razão de se ver obrigado a manifestar-se, ele próprio, em nome dos valores ocidentais. A catana não simboliza a violência do Sul, enraizada profundamente e culturalmente fundada, mas a violência da civilização ocidental, sob cujo império a elementar sede de libertação apenas pode exprimir-se "sacando da catana". Tal grito exprime somente uma coisa: a total mentira e baixeza da economística "cultura ocidental"; uma mentira tal que faz do acto de "sacar da catana" um acto de razão, de humanidade e de bondade.

Tendo partido da crítica do sistema mundial negativamente unificado (segundo os seus próprios critérios), Rufin desliza para uma definição culturalista e negativa do Sul (irracional e bárbaro), oposto ao Norte (racional e esclarecido), acabando assim por se enganar dupla e grosseiramente quanto aos factos empíricos.

Por um lado, ele limita o rebentamento do "invólucro económico" apenas ao Sul planetário, que seria incapaz do critério económico pela "natureza" cultural supostamente diferente, enquanto, por outro lado, mantém sem mais explicações a área de influência da antiga potência soviética como fazendo parte do "Norte" e sendo capaz de se integrar sem fricções no novo "império" da economia de mercado e democracia: "A abertura à economia de mercado, a saída do comunismo, a integração de métodos e de correntes de produção e troca procedem a uma rápida igualização de sistemas na Europa de leste. Concluída esta transformação será então legítimo "integrar" e classificar as suas economias como ligadas às do Oeste" (ibid., p. 133). E Rufin prossegue no mesmo tom: "Esboçam-se dois universos. Por um lado, o Norte, unificado no seu sistema económico (ou em vias disso), apresenta condições para um verdadeiro desenvolvimento, ou seja, para uma evolução análoga à dos países mais avançados. Neste mundo homogéneo é possível um invólucro económico: tem sentido classificar a Hungria em comparação com a França, ainda que muitas coisas as separem, pois ambos estes estados vão no mesmo sentido. O Sul, pelo contrário, é um mundo muito diferente [...]" (ibid., p. 142).

No princípio dos anos 90, esta visão das coisas ainda podia passar por plausível, tendo em conta a euforia generalizada que suscitavam os presumidos "novos mercados do Leste". Entretanto, a última década pôs em evidência o carácter perfeitamente ilusório do triunfalismo ocidental. Como se pode ver, a maior parte da Europa Oriental e da Ásia Ocidental encontram-se para lá da linha de demarcação do novo limes. A fronteira do império passa mesmo ao meio do Norte; ou então, para usar a terminologia de Rufin, ter-se-ia de dizer que zonas cada vez maiores do Norte se transformam em zonas do "Sul". A evolução dos factos põe a nu uma crise crescente do sistema mundial e não a existência de um "mundo de natureza diferente", que seria constituído pelo Sul e que se tornaria necessário circunscrever.

Por outro lado, Rufin supõe a priori confirmada a integração dos centros do Norte, na base do modelo capitalista de civilização. Mesmo abstraindo das capacidades maiores ou menores dos países do antigo bloco do Leste em se adaptarem ao capitalismo e em se desenvolverem nesse modelo, pelo menos o domínio central imperial ocidental do Norte deveria estar em condições de constituir um espaço de "democracia e direitos humanos" unificado e positivo no "invólucro da economia": "O Norte procede a reunificações, a novas integrações económicas e políticas, em síntese, ao que Toynbee designa como passagem revolucionária do pluralismo à unidade. O Sul, pelo contrário, é atravessado por inúmeras fissuras; entidades cada vez menores, identificadas como tribais, religiosas, revolucionárias ou seja o que for, entram em conflito armado com os poderes centrais" (ibid., p. 125).

A história dos anos 90 e do começo do século XXI demonstrou, entretanto, que o centro imperial é também ele atravessado por "fissuras" de toda a espécie e cada vez mais numerosas. Sob a forma de bandos e seitas, de movimentos separatistas (como a Liga do Norte em Itália), de concorrência de crise com sinais etnicistas e irrupções de violência xenófoba, de clãs locais (ramos duma máfia política transversal aos partidos), de processos de guetização, etc., vai aparecendo um "tribalismo" secundário, por igual em Nova Iorque e Milão, em Londres e Berlim, em Paris e Bruxelas.

As campanhas de "localização do investimento" no contexto da globalização favorecem patriotismos locais e regionais, enquanto os processos de individualização a estes inerentes destroem os laços sociais. E cresce de ano para ano a massa de indivíduos cuja reprodução o capitalismo já não consegue assegurar, mesmo nos centros; sistemas de protecção social, serviços públicos, cuidados médicos, tudo se desfaz sob o ditame da valorização do capital. Com o movimento de integração oficial de mercados, moedas e instituições políticas, há muito tempo que começou a desintegração social, a todos os níveis e por todo o lado. Tal como o fracasso da reconstrução do capitalismo de Estado do antigo bloco de leste no contexto de um capitalismo concorrencial, também a crescente desintegração do Ocidente demonstra a crise dos fundamentos económicos do mundo, o limite histórico do moderno sistema produtor de mercadorias e do seu "invólucro económico" mundial.

Rufin exprime o respeitável desejo de manter um mundo unificado para a humanidade, de não deixar que se divida numa zona imperial de "civilização" e noutra rejeitada de barbárie exterior. Mas, porque não consegue prosseguir e levar a bom termo a crítica da forma geral da sociedade, tal como ela é constituída pelo "invólucro económico", a sua crítica fica assim contraditória e fraca, e ele vê-se obrigado a ficar por um moralismo insípido, que acaba por cair no nível da propaganda dos "valores ocidentais" e do seu universalismo abstracto e negativo. Já não se interroga sobre o nexo interno existente entre este "invólucro económico" (supostamente tornado inacessível apenas ao Sul) e os ideais da democracia, dos direitos humanos, etc., que prega sem a menor crítica. Nem reconhece o conteúdo intrinsecamente negativo destes ideais hipócritas, nem afronta o problema de saber como poderão estes "valores ocidentais" apresentar-se separados dos seus fundamentos económicos.

Ainda que ele mesmo tenha demonstrado a nocividade e a impossibilidade prática para o "Sul" da "mitologia do desenvolvimento" ocidental (ibid., p. 147), ele não pode (apesar dos votos piedosos de um mundo único sem limes) deixar de legitimar esta "mitologia", contra tudo e contra todos, por meio de uma fórmula nostálgica: "A ideologia do desenvolvimento mantinha um laço entre os dois mundos: ela postulava a sua natureza comum e a possibilidade de o atrasado apanhar o que se tinha adiantado. A ideologia do limes quebra esta unidade. Ela separa, por um lado, o mundo histórico, onde se aplicam as categorias universais, e, por outro, o mundo dos novos bárbaros, onde reina o relativismo cultural, ou seja, as divisões étnicas, os ódios entre grupos da população e o particularismo violento" (ibid., p. 228).

Mas esta bipartição está votada ao fracasso, pois são precisamente as "categorias universais" do capitalismo que, por força da concorrência universal de crise, engendram o seu aparente contrário: o relativismo cultural dos novos bárbaros, as divisões étnicas, o ódio entre as populações, etc. É por isso que os fenómenos da nova barbárie, pretensamente mantidos fora do limes, se encontram por toda a parte, mesmo no interior do império. Na verdade, esta "mitologia" económica constitui uma lei coerciva para o conjunto do mundo, submetido à relação de capital; e tornou-se nociva e impossível para todos, mesmo para o Ocidente. A inconsequência e a insuficiência da sua análise são tais que Rufin não vê isso; o balanço da sua crítica da nova ideia imperial fica assim insuficiente e erróneo: "A ideologia do limes permite ao Norte, que se unifica e se vê como guardião da democracia e do direito, esquecer que o caminho ainda é longo até chegar aos seus ideais" (ibid., p. 265).

Este caminho é, na verdade, um beco sem saída, no fim do qual está a barbárie universal, que revela a verdadeira natureza desses "ideais". Rufin não sabe muito bem se há-de ser um Políbio do império da NATO ou seu crítico; mas, na incerteza, sempre acaba por ser o Políbio que se impõe. Assim, como por magia, ele transforma-se de pensador crítico em ideólogo envergonhado da guerra de ordenamento mundial capitalista: pois como poderia ser doutro modo, para restabelecer a unidade do mundo na base dos valores ocidentais e universais, contra a barbárie localizada exclusivamente no Sul? Aqui Rufin vira-se contra os ideólogos autoproclamados "antitotalitários", que continuam a avaliar a potencialidade de conflito do ponto de vista da Guerra Fria, hoje terminada, e que dividem estes conflitos entre posições "pró-ocidentais", por um lado, e "pró-totalitárias", por outro (de algum modo aparentadas com o comunismo de Estado): "A capacidade de distinguir entre o bem e o mal, erigida como fim último da filosofia, pelo menos por André Glucksmann, tornou legítima, mesmo inteligente, esta divisão. Para os antigos marxistas não pode haver outro perigo, nem sequer outra realidade que o objecto sempre adorado do seu próprio arrependimento" (ibid., p. 114).

Mas a ironia sobre o anacronismo dos "cães de caça antitotalitários" do estilo de Glucksmann não consegue esconder que a lógica da argumentação de Rufin está muito próxima: tal como Glucksmann, ele fustiga a "moleza" e a "indiferença" do Ocidente, que se tranca atrás de uma linha de segurança, em vez de, contra a barbárie ascendente, levar ao mundo os benefícios dos valores ocidentais (ou de lhos impor à força de bombas). É exactamente a mesma argumentação que a desenvolvida por Glucksmann contra Enzesberger, sendo que Rufin teve a intuição de a formular a partir de 1991, em conformidade com a nova definição culturalista do inimigo, ignorada pelos Glucksmann, que por sua vez têm os olhos obstinadamente cravados no velho malvado totalitarismo marxista.

No fim da sua argumentação, Rufin quase se transforma num ideólogo da legitimação de tipo novo, à moda de Fukuyama ou de Huntington, ainda que não o faça sem "dores de barriga". Pelo menos uma das alternativas que procura formular contra a "ideologia do limes" – e que ele apresenta simbolicamente como inspiradas no exemplo de duas figuras históricas pouco conhecidas – vai nesse sentido. A primeira atitude, que o próprio Rufin privilegia abertamente, é ilustrada pelo exemplo de Jean-Baptiste Kléber, general de Bonaparte, que teria sido um "homem de ideais" (ibid., 257) e que tinha por divisa: "Quem subiu deve esforçar-se por puxar os outros para cima […] A ideia dum limes, duma fronteira Norte-Sul, dum mundo compartimentado seria insuportável para um homem como Kléber […] Contra todas as prudências da realpolitik, ele continuaria a incomodar a China, a apoiar os seus dissidentes, a militar pela sua democratização. Perseguiria Castro com acusações […] Mas não se limitaria a importunar os velhos marxismos estafados: assediaria também os novos totalitarismos, particularmente os religiosos. Ajudar o Irão, recebê-lo de novo no concerto das nações, muito bem. Mas na condição de se exigir que ponha termo à opressão que sofre o seu povo. Cooperar com a África negra, sim, mas não para proveito exclusivo dos chefes de clã que aferrolham a vida política local […] Kléber é um universalista, ele aceita a ideia dum imperialismo da democracia" (ibid., 257s.).

Este discurso exala uma ideologia perniciosa do princípio ao fim, não apenas à Glucksmann, mas também à Huntington. É a postura moral dos que, num tom escandalizado, acusam o império capitalista de não fazer com suficiente energia e convicção o que de todo modo ele faz. Sob a falaciosa designação duma crítica ao "egoísmo" e à "indiferença", pugna-se por cada vez mais ingerência violenta, por cada vez mais espírito de missão, por uma polícia mundial cada vez mais activa. Os homens que vivem nas zonas de colapso não são vistos como vítimas e simultaneamente sujeitos auto-referenciais do economismo ocidental totalitário, mas como "imaturos" da democracia, aos quais seria preciso oferecer, quais pérolas de vidro, os costumes civilizados, a tiro de canhão.

Depois de se ter retirado a estas massas humanas toda a autonomia económica e depois de o mercado mundial ter destruído a sua reprodução, chega-se à conclusão altamente moral de que a democracia e os direitos humanos não podem "deixá-los ficar mal", pelo que convém bombardeá-los um bocadinho. Aí está um exemplo típico da estrutura double bind: o postulado da "autonomia", como resultado duma coerção externa. Vamos fazer-vos entrar na era dos direitos humanos à força de bombas, até que nada reste de vocês! Isto não é a moral da crítica emancipatória, é a moral dos agitadores ideológicos. É destes moralistas que o Pentágono precisa.

Rufin sente nisso um desconforto suficiente para esboçar a possibilidade de uma segunda "atitude", que apresenta de forma distanciada – a "revolta" encarnada pelo exemplo do oficial czarista von Ungern. Não será por acaso que este não é um revolucionário (no sentido dos séculos XIX e XX), mas sim um reaccionário, ou um contra-revolucionário: "Resta uma última atitude: inverter a questão, afirmar que só a insegurança e a destabilização do Norte podem trazer a justiça. O destino de Roman von Ungern é um exemplo. Após a revolução bolchevique, este oficial do czar combateu primeiro no exército branco da Sibéria, comandado pelo almirante Koltchk. Após a derrota deste, von Ungern recusou exilar-se ou render-se. Com um punhado de russos, passa para a Mongólia, cavalga pelas estepes e subleva os guerreiros nómadas que encontra" (ibid., p. 262).

A estranha conversão revolução/contra-revolução, que ocorre neste simbolismo, retira o seu significado da identificação entre revolução bolchevique e "modernização", ou seja, a "colocação sob a forma do valor", ou o pôr em marcha do moderno sistema produtor de mercadorias, sob a forma de capitalismo de Estado, na Rússia. E, sob este ponto de vista, a Rússia bolchevique e o Ocidente são efectivamente gémeos, ou apenas momentos historicamente diferentes duma mesma lógica, que se manifesta no "invólucro económico" comum do mercado mundial.

Mas em quê exactamente seria von Ungern o símbolo da "revolta" contra esta lógica? Para o explicar, Rufin passa a Marx, sem qualquer mediação, não conseguindo ainda assim tornar plausível essa ligação: "Quem é hoje von Ungern? Todos os que vêem na reunificação do Norte o fim de qualquer oposição séria ao produtivismo capitalista. Os que pensam que as críticas de Marx eram fundadas e que a partir de agora reina um economismo frio, a máquina cinzenta da democracia, uma sociedade fechada sobre o seu espectáculo, que apenas tem para oferecer aos cidadãos o simulacro mediático duma falsa escolha. Os que pensam que, à falta de uma verdadeira alternativa de sociedade, o Norte é uma gigantesca e nojenta tirania. Para todos eles, o futuro do ser humano, a aventura, a liberdade, o ideal, só podem estar do lado dos bárbaros, isto é, algures nas estepes, como acreditava von Ungern" (ibid., p. 263).

É preciso reconhecer que Rufin, a despeito do seu pendor ideológico para os falsos "valores ocidentais", acaba por dizer abertamente que o maravilhoso Ocidente e a sua maravilhosa liberdade devem ser considerados pelas melhores razões "uma gigantesca e nojenta tirania". São manifestamente as suas experiências práticas nas regiões de crise que a cada passo põem Rufin em contradição com a sua identidade ideológica. Mas, porque não pode ou não quer conceptualizar esta disparidade, porque a crítica que transparece da sua apologética e que parcialmente vem à luz do dia não vai suficientemente longe, nem deixa de ser contraditória, ele vê-se obrigado no fim a reconhecer a sua falta de perspectivas. Com efeito, se a constituição do império significa, na verdade, o fim de "qualquer oposição séria" à lógica capitalista, nesse caso a oposição do género von Ungern só pode ser "não séria", quer dizer, em si mesma não verdadeira.

Perante a revolução bolchevique da modernização, o von Ungern real, histórico, em si mesmo não constituía qualquer alternativa emancipatória, mas de facto uma alternativa bárbara, reaccionária. Se a modernidade burguesa é em si mesma falaciosa e um desaforo sem paralelo, por maior razão o é a contramodernidade burguesa, simplesmente reaccionária. Regredir atrás da modernidade, para o feudalismo, não seria senão trocar o mal do terror económico por um mal menos duro, mas também mais primitivo, que em caso algum poria fim ao mal da "dominação do homem pelo homem" (Marx), sendo que tal regresso é obviamente impossível. Também von Ungern, no seu cargo ao serviço do czar, era um produto da modernização, e a sua alternativa fantasmagórica, como toda a ideologia simplesmente reaccionária, há muito se situava no terreno da modernidade.

O mesmo se aplica hoje, mais ainda, a todas as ideologias de barbarização, etnicistas e pseudo-religiosas. São apenas ideologias (mesmo sob uma forma refinada e sincrética), ou seja, produtos da decomposição da modernidade produtora de mercadorias em decadência. "Algures nas estepes" não há nada de autóctone, nenhum ideal para o futuro da humanidade, nada senão o sujeito asselvajado da concorrência da modernidade capitalista, atolado a meio caminho, produto duma barbarização secundária. A alternativa emancipatória não é a regressão fantasmagórica, representada pelo fundamentalismo cristão, islâmico, judeu, hindu, etc., ou pelas diversas seitas suicidárias, bandidos etnicistas, clãs e senhores da guerra da economia de saque.

A alternativa tem que ser procurada para lá da simples oposição, imanente ao sistema, entre a sociedade mundial do terror económico, com o seu embuste democrático, por um lado, e os produtos da sua barbarização e asselvajamento, por outro. A alternativa não pode ser uma regressão, mas sim um futuro para lá do moderno sistema produtor de mercadorias, um romper para a frente e não para trás, para um passado simplesmente imaginário. Tal alternativa está para ser formulada, pois todas as críticas, por mais radicais, até hoje continuam prisioneiras até ao cansaço (e no entanto sempre tão incansavelmente) das categorias do moderno sistema produtor de mercadorias.

 

Empire: O mundo da crise como disneylandia da multitude (Michael Hardt/Antonio Negri)

O dilema do encerramento da crítica social nas categorias da ontologia capitalista muito menos se resolve quando as ideias antiquadas do marxismo do movimento operário são enfarpeladas com as plumas e lantejoulas da pós-modernidade. Dez anos após o livro de Rufin "O Império e os novos bárbaros", Michael Hardt e Antonio Negri publicaram "Empire", o seu opus que pretende descrever a "nova ordem do mundo" e a sua ultrapassagem futura, no quadro duma vasta teoria da história da modernidade e do desenvolvimento humano em geral (Hardt/Negri, 2002/2000). Ainda que os autores caminhem na peugada de Rufin, a ponto de lhe tomarem a referência a Políbio, não o citam nem sequer o referem na bibliografia. Na perspectiva duma nova formulação duma teoria social emancipatória, porém, tratar-se-ia não de sacar às escondidas elementos a Rufin, mas de proceder à crítica imanente da sua argumentação, para dar um passo decisivo além dela.

Hardt/Negri não chegam lá, porque, tal como Rufin, também não conseguem conceptualizar de forma satisfatória as formas sociais capitalistas fundamentais e as suas consequências. Para eles, a forma de mercadoria totalitária da reprodução social (o problema do "invólucro económico" em Rufin) é um facto assente, a ponto de nem sequer ser evocado, enquanto conceito a pôr em causa, como já foi observado numa recensão: "Antes de falar do conteúdo do livro, há que referir aquilo de que os autores não falam: nem valor, nem mercadoria, nem dinheiro, nem trabalho são referidos como categorias críticas. Daí que, à partida, pouco valem todas as análises num livro que, numa grande curvatura histórica, pretende falar sobre tudo o que é essencial na ascensão e queda da forma social capitalista" (Jappe, 2002, 122). De facto, querer fazer a crítica do capitalismo, sem criticar a forma do valor e a sua valorização, é quase como querer fazer a crítica da religião, sem criticar o conceito de divindade.

É precisamente a este absurdo que chegam Hardt/Negri: para eles, a forma do valor – forma fetichizada que faz dum produto uma mercadoria – é simplesmente um dado ontológico; mais ainda: para eles, "criar valor" é, com toda a seriedade, algo de eminentemente positivo, em que se realiza a humanidade. Parece então que "o conhecimento e a existência no mundo biopolítico consistem sempre numa produção de valor" (Hardt/Negri, ob. cit, p. 396). O capitalismo sofreria apenas da negatividade de que "os valores resultantes da cooperação colectiva do trabalho são explorados […]" (ibid., p. 397). Em suma, nada para lá do mais banal e empedernido marxismo do movimento operário, e uma profunda regressão, não só para trás de Marx, mas até para trás daqueles marxistas que ainda consideravam a forma fetichista do valor e da valorização algo a ultrapassar, quanto mais não fosse num estádio posterior do seu "socialismo proletário". Estes, pelo menos, ainda tinham uma concepção da forma do valor (a forma de mercadoria totalitária da reprodução) não como simples condição ontológica da humanidade, mas como uma formação histórica e, portanto, em última instância social.

Daí que não seja nada surpreendente que Hardt/Negri não desenvolvam qualquer crítica da categoria "trabalho". Também aqui eles vão atrás do mais vulgar velho marxismo do movimento operário, quando a toda a hora elogiam "a força do trabalho vivo" (ibid., p. 65) definida "como simples poder de agir" (ibid., p. 365), como actividade autónoma de indivíduos que cooperam (e apenas externamente são "explorados") e não como forma de actividade específica do capitalismo; como fonte de desejo e não como contaminação capitalista do desejo, etc.

Assim, o que lhes interessa, tal como ao mais banal marxismo do movimento operário, é ainda e sempre a "libertação do trabalho" (ibid., p. 74) e não a abolição desta categoria de actividade reduzida à economia e unicamente determinada pela relação de capital. Já o operaísmo italiano (donde vem Negri, que nunca o soube ultrapassar) tinha impingido a sua superficial "critica do trabalho" vendendo gato por lebre, na medida em que não formulava tal crítica como crítica categorial duma forma social de actividade, mas apenas como crítica superficial e fenomenológica dum regime de produção suposto não ser capitalista senão externamente, crítica atrás da qual continua a poder ouvir-se o eterno elogio paleoprotestante e arquiburguês do "trabalho vivo".

Apesar dos abundantes empréstimos tomados à fraseologia pós-moderna, Hardt/Negri, continuam vulgares marxistas tradicionais; dão lustro aos velhos conceitos de capital, trabalho e luta de classes, a fim de ressuscitar supostamente na "pós-modernidade" a velha constelação dos conflitos há muito desaparecida. Sem que se dêem conta, a velha forma da crítica, já exangue, torna-se com eles pura afirmação. Tão desprovidos dos conceitos da teoria da acumulação como qualquer pesquisador de tendências ou cronista da economia, anunciam triunfalmente "a passagem à economia da informação" (ibid., p. 306) e festejam o trabalho "imaterial" e as suas formas de cooperação, no contexto da passagem à informática, à Internet e aos novos media, etc., cada vez mais como uma "possibilidade de autovalorização [!!]" (ibid., p. 305); ideia já antes propagada por Negri.

Exactamente o último grito das técnicas sociais e de management, utilizadas pelo capitalismo na gestão da crise (outsourcing, pseudo-autonomia, "empresariado individual", etc.), acede assim à categoria de força libertadora. "Aqui se torna claro que Negri quer convencer os novos empresários da miséria que o seu "trabalho independente" é uma verdadeira liberdade – a propaganda neoliberal faz exactamente o mesmo" (Jappe, 2002, 128). O facto de as novas forças produtivas da microelectrónica serem incompatíveis com a forma do valor do economismo real da nossa época é confundido com uma força que libertaria deste fetichismo, precisamente na forma por ele assumida na crise. O que já constituía uma ilusão do antigo movimento operário, a saber, a vontade de perpetuar o processo de valorização do valor autonomamente, enquanto "classe sociológica", ou seja, reproduzir o capital como "capital sem capitalistas", pretensamente para as necessidades do movimento operário e sob a sua direcção, sem tocar na qualidade do capital como forma social, eis o que Hardt/Negri tornam a trazer numa versão nada melhor, em estilo pós-moderno. Mesmo considerado dum ponto de vista imanente ao sistema, Empire surgiu precisamente no momento em que esta ideia foi posta completamente a ridículo: no exacto momento em que a "nova economia" do capitalismo da Internet entregava a alma que não tinha.

Comportando-se de modo acrítico e aconceptual perante as formas categoriais do moderno sistema produtor de mercadorias, Hardt/Negri não podem deixar de passar ao lado da nova crise mundial. Para eles, que nesta questão estão completamente na tradição da social-democracia e do leninismo, não se trata dos limites históricos objectivos deste sistema, nem da correspondente crise das categorias da forma social. É certo que falam constantemente de "crise", mas nunca no sentido preciso duma análise baseada na teoria da acumulação. Só vagamente evocam o seu conteúdo e de forma tão pueril que se torna simplesmente ridícula, quando, por exemplo, afirmam que "o poder imperial funciona pela ruptura […] A sociedade imperial está sempre e em toda a parte em ruptura, mas tal não quer dizer de modo nenhum que caminhe para a ruína total" (ibid., p. 213).

Que isso não quer dizer nada, é o que se torna claro quando Hardt/Negri chegam ao ponto de negar a evidência empírica da crise efectiva: "No momento em que escrevemos este livro e em que chega ao fim o século XX, o capitalismo está milagrosamente de boa saúde e a sua acumulação é mais vigorosa do que nunca" (ibid., p. 281). Tal como a partir da ideia puramente ilusória duma substância do valor (ontologizada, ainda por cima) da "nova economia" eles deduzem uma pretensa nova subjectividade dos produtores que "se valorizam a si mesmos", também a afirmação segundo a qual "a acumulação é mais vigorosa do que nunca" se funda na ilusão de que o capital poderia emancipar-se das leis do trabalho abstracto e da substância do valor em geral; e assim passam a uma arbitrária definição da "criação de valor", onde literalmente tudo é de algum modo "trabalho" e logo "criador de valor" (incluindo, com toda a seriedade, o "desemprego" e até mesmo as emoções humanas). O verdadeiro pano de fundo social desta fantasmagoria económica, perfeitamente inconsistente em termos de argumentos e de análises, era simplesmente o capitalismo global das bolhas financeiras dos anos 90, de que a "nova economia" não constituía senão uma bolha secundária.

Assim Hardt/Negri desmascaram-se, não apenas como arcaicos ideólogos dum tosco e anacrónico marxismo do movimento operário, vestidos de pós e pop-modernos, mas também, simultaneamente, como banais teóricos "de esquerda" do novo capital financeiro que, por azar, tal como a "nova economia", esbarrou também nos seus limites empíricos no preciso momento em que aparecia este livro. De olhos cegos pelo "ano louco" de 1999, com a escalada das cotações em milhares por cento de valor fictício em todas as praças financeiras, eles atribuem a este capitalismo financeiro um potencial de valorização ilimitado, à maneira dos analistas e ex-eufóricos do investment banking (depois tornados mais discretos, é verdade).

Portanto, eles não criticam este capitalismo financeiro no quadro duma construção teórica, mas, à maneira da religião do trabalho e do antigo leninismo, e de de modo perigosamente próximo da economia política do anti-semitismo, esforçam-se por denunciá-lo banalmente como "parasitário": "Como diz Santo Agostinho, os grandes reinos não são senão projectos acrescidos de pequenos ladrões. Agostinho, tão realista na sua concepção pessimista do poder, ficaria sem dúvida estupefacto perante os ladrões actuais do poder monetário e financeiro" (!) (ibid., p. 397). Tal como o pequeno especulador que, após se ter deixado depenar, como era inevitável, lança diatribes moralistas contra os grandes especuladores e contra "os judeus", também Hardt/Negri vociferam contra os "grandes ladrões" dos mercados financeiros, enquanto eles mesmos não passam de ideólogos de esquerda pop e pós-modernos do "capital fictício", que elevam de forma entusiástica à categoria de "nova ontologia" da pós-modernidade.

Em vez de analisar a relação intrínseca existente entre os limites históricos da acumulação real, as manifestações empíricas da crise à escala mundial e o novo capitalismo de bolhas financeiras, eles juntam-se também à frente dos que dão aos processo de desagregação social uma pseudo-explicação culturalista, segundo a qual tais processos seriam imputáveis à "corrupção"; uma teoria que não é melhor por se dirigir pretensamente contra o capitalismo e não contra os seus filhos transviados.

Em vez de explicar a corrupção pela crise da relação de capital, é esta que é reduzida à "corrupção" de forma simplista: "No empire a corrupção domina em toda a parte. Ela é ao mesmo tempo a pedra angular e o fecho da abóbada da dominação. Ela está sob diferentes formas no governo supremo do empire e nas administrações vassalas, nas forças da polícia administrativa mais refinadas e nas mais corruptas, nos grupos de pressão das classes dominantes, nas estruturas mafiosas dos grupos sociais ascendentes, nas igrejas e nas seitas, nos autores de escândalos e nos seus seguidores, nos grandes centros financeiros e nas transacções económicas do dia a dia […] Através da corrupção, o poder imperial estende uma cortina de fumo sobre o mundo" (ibid., p. 396). Assim, o capitalismo do empire aparece “[…] imediatamente como corrupção. O seu modo de funcionamento cada vez mais abstracto – da acumulação de mais valia à especulação monetária e financeira – revela-se um potente promotor da generalização da corrupção" (ibid., p. 397).

A interpretação culturalista do impiedoso processo social e económico da crise conduz Hardt/Negri a conclusões já subjacentes no velho operaísmo italiano, agora de volta em novo estilo pós-moderno e sob forma conceptualmente degradada. Tais conclusões, porém, assentam numa base filosófica que deixa muito a desejar; o que Hardt/Negri procuram dissimular, esgravatando abundantemente na história das ideias e disso fazendo ostentação, com toda a falange do grande pensamento ocidental a desfilar em fileiras cerradas. Porém, o substrato do seu pensamento, enriquecido com este name dropping, não passa de um subjectivismo assaz vulgar e enfático, que dissolve o desenvolvimento social em puras relações de vontade.

Não é nada de novo, naturalmente, apenas uma tendência dum certo "marxismo do factor subjectivo" e, mais genericamente, duma corrente permanente do moderno pensamento burguês, que sempre opôs ao "objectivismo" a sua contratendência polar, sem chegar a criticar o campo de referência comum desta polaridade, nem muito menos acabar com ela. Deslizando constantemente para a que era a posição da esquerda tradicional e, por outro lado, do anti-semitismo, esta maneira de ver as coisas não associa os sofrimentos e as crises às formas fetichistas do sistema, mas a "maquinações" voluntárias de "contra-sujeitos" de origem mal determinada; sem que possa ser ultrapassado o "objectivismo", que igualmente faz parte integrante da forma de consciência capitalista. Trata-se sempre apenas de dois momentos, ou dois pólos, da mesma imanência errónea e afirmativa.

Sem compreender esta relação, Hardt/Negri atiram-se às "teorias dos ciclos" ou teorias objectivas do desenvolvimento: "De todo o modo julgamos esta forma de pensamento totalmente inadequada, porque cada teoria dos ciclos, ao impor uma lei objectiva que rege as intenções e as resistências, as derrotas e as vitórias, as alegrias e os sofrimentos dos seres humanos, parece esquecer-se do facto de que a história é um produto da acção humana. Pior ainda, ela obriga as acções humanas a dançar ao ritmo das estruturas cíclicas" (ibid., p. 249).

Ora, verifica-se que a natureza do moderno sistema fetichista de produção de mercadorias, totalitário, autotélico e orientado para a "acumulação" sem sentido da abstracção valor, divide-se precisamente na polaridade sujeito-objecto, como já Marx sabia, quando constatava que "os homens fazem, sem dúvida, a sua história, mas sem o saber". É precisamente o que caracteriza a estrutura paradoxal da relação fetichista: a sociedade impõe a si mesma uma lei cega e coerciva, ou seja, através de actos de vontade (em si irreflectidos relativamente ao contexto social) produz uma lei pseudonatural da sua própria reprodução, a qual conduz a sociedade a consequências destruidoras e autodestruidoras. Ainda que no imediato tudo ocorra na sequência de actos voluntários, estes são preformados pela lei da forma, anterior à vontade individual ou institucional, que na modernidade é a lei da forma do valor ou da produção de mercadorias à escala mundial, como resultado cego e inconsciente de processos de formação histórica.

Uma crítica radical seria, com a ajuda do Marx "esotérico" da crítica do fetichismo, libertar-se desta lei pseudonatural da sociedade, para chegar a relações de vida com consciência de si e não mais guiadas pela "mão invisível fetichista"; em que os membros da sociedade regulariam directamente as relações recíprocas e determinariam a utilização dos recursos comuns, em função das necessidades e da razão, como indivíduos sociais, sem um princípio formal cego e anterior a eles, e sem uma mediação reificada e autonomizada. Os teóricos que não chegam ao nível desta questão – e deles fazem parte sem dúvida Hardt/Negri – vêem-se paradoxalmente constrangidos a encerrar a emancipação social na prisão desta moderna polaridade sujeito-objecto e assim a fracassar, naturalmente.

A partir deste inevitável fracasso há duas possibilidades, cada uma das quais se reclama afirmativamente de meia verdade, ou seja, de um dos pólos situados no interior da inultrapassada "jaula de ferro" da moderna sociedade fetichista. A primeira posição, objectivista, considera a emancipação social como a realização consequente de "leis históricas", e não como ruptura consciente com a lei real pseudonatural do sistema produtor de mercadorias. Ignorada esta ruptura com a falsa "segunda natureza" da sociedade fetichista, a sociedade pretensamente liberta volta a funcionar de novo segundo as suas leis estruturais cegas, em vez de ser colectivamente determinada pela consciência dos seus membros (Louis Althusser foi um representante da tendência estruturalista, sobretudo implícita no seio do marxismo tradicional).

A outra posição, subjectivista, age como se esta "segunda natureza" cega, constituída por leis sociais de estrutura e desenvolvimento, sob o domínio do meio autonomizado que é o valor/dinheiro, simplesmente não existisse (ou não existisse "efectivamente"). Como se o fetichismo da modernidade não fosse "uma aparência real" (Marx), mas apenas um epifenómeno da consciência, hoje já sem validade; como se o nexo social não fosse um contexto da forma realmente reificada a priori, não passando pelo contrário dum somatório de decisões e actos voluntários conscientes (Hardt/Negri constituem, de certo modo, a ponta de lança desta posição, sempre dominante no pensamento contestatário desde os anos 60, apesar de Althusser).

Irónica mas também consequentemente, ambas as posições têm que rejeitar o conceito marxiano da constituição fetichista da moderna sociedade produtora de mercadorias, ainda que por razões opostas: precisamente porque tal conceito não permite a dissolução unilateral da polaridade numa imanência errónea e afirmativa, seja a da subjectividade pura ou a da objectividade pura.

Assim, para Hardt/Negri o empire não é um fenómeno de crise do capitalismo que se estrangula a si mesmo, nem o produto da decomposição da modernidade produtora de mercadorias, nem um regime de estado de necessidade global, mas apenas uma pura constituição positiva da vontade dos "poderosos", dos tais da "corrupção generalizada". A corrupção não aparece aqui, à maneira da ideologia oficial, como obstáculo à benéfica "mão invisível", mas como um regime de autoridade que estaria nas mãos de elites corrompidas, enquanto a "mão invisível" parece ter desaparecido.

Pois o dinheiro, encarnação da forma do valor e das suas leis fetichistas, apresenta-se para Hardt/Negri como privado de toda a autonomia e dinâmica próprias, em total ignorância da realidade dominante do mundo (de certo modo como em Ulrich Beck); ele está como que submetido a uma "economia de comando geral" (!) (ibid., p. 212): "O comando imperial opera por meio de três meios mundiais e ilimitados [!]: a bomba atómica, o dinheiro e a comunicação [...] O dinheiro é o segundo meio mundial de controlo absoluto [...] Enquanto as estruturas monetárias nacionais tendem a perder qualquer característica de soberania, atrás delas perfila-se já a sombra de uma nova reterritorialização monetária unilateral, que se concentra nos centros políticos e financeiros do empire, nas global cities. Uma construção monetária […] que corresponde apenas às necessidades políticas do empire [...]" (ibid., p. 353).

Ora, na verdade aquilo que Hardt/Negri enfunam como substância toda-poderosa, como puro "poder de controle sem limites" de "sujeitos corruptos" não passa duma sombra. Logicamente, vêem-se assim obrigados a reinterpretar o declínio real e o real processo de decomposição da política, que ocorre com a globalização, como o surgir de um novo poder político, o do empire. Um subjectivismo destes, esta ignorância da constituição fetichista da sociedade e da sua "segunda natureza" cega, transforma-se necessariamente em "politicismo", em hipostasiação do "poder".

Da sua realidade de gestão global do estado de necessidade, o empire transforma-se assim fantasmagoricamente numa constituição positiva, autónoma, quiçá nesta nova "ontologia" pós-moderna dum suposto "poder de comando" imediato financeiro-capitalista, como Hardt/Negri não deixam de sublinhar. O poder autocrático do empire, assim positivado, já quase negativamente glorificado, surge como francamente "monárquico": "Antes de mais, a monarquia imperial pós-moderna significa a dominação do conjunto do mercado mundial" (ibid., p. 327). Eis a teoria transformada definitivamente em mitologia, uma mitologia na verdade bem miserável.

Na sua forma pós-moderna, o subjectivismo operaísta "de classe" é ainda mais primitivo do que na anterior versão proletkult. O objectivismo e o subjectivismo, os dois pólos hipostasiados, unilateralizados, duma relação fetichista comum (incompreendida e logo não criticada), têm de ser fatalmente recuperados pela Némesis das respectivas contrapartes e transformados um no outro.

O objectivismo social-democrata e estalinista, da execução de "leis sociais independentes dos homens" (de que se era orgulhoso!), da "necessidade histórica", etc., teve assim de transformar-se no subjectivismo da política, na razão do partido que "tem sempre razão", na arbitrariedade da ilusão estatista da política e do comando burocrático sobre a economia moderna não ultrapassada, o que estava condenado ao fracasso.

Inversamente, o subjectivismo neo-operaísta, da política, da autoridade, etc., no preciso momento em que se exprime, terá de transformar-se exactamente na objectividade muda das estruturas, dos estádios de evolução, etc., denunciados como violência teórica contra a liberdade subjectiva das pretensas "relações de vontade", como igualmente se mostrará.

A constituição pretensamente positiva do empire realiza-se, segundo Hardt/Negri, como processo revolucionário da época da pós-modernidade (cuja verdadeira importância é de todo sobreavaliada), como expressão das novas forças produtivas da "economia da informação" e do "trabalho imaterial", etc., até mesmo como a chegada de uma nova ontologia. Mas que é isto senão uma "teoria dos ciclos", que introduz uma "lei objectiva", uma vez que esta ontologia pós-moderna é erigida em pano de fundo objectivo de todo o pensamento e actividade ulteriores? Que significa este assinalar por Hardt/Negri que os sujeitos ficam prisioneiros deste "campo de imanência" objectivo, preexistente e definido, senão "mandar as acções humanas dançar ao ritmo das estruturas cíclicas"?

Esta lastimável desventura acontece-lhes porque eles pensam os seus sujeitos e a respectiva actividade sem pressupostos, como puras vontades em si, sem simultaneamente reflectirem a constituição histórico-social destas vontades, ou seja, a forma apriorística fetichizada destes sujeitos sociais, já postos como sujeitos da concorrência antes que possam pensar e agir por si mesmos. A ignorância relativamente à constituição inconsciente da forma (o que é por eles apresentado insuficientemente como "constituição" não passa de facto da modificação consciente, intra-histórica, das relações de vontade e logo das relações de poder) acaba por se vingar, pois a tão vilipendiada objectividade cega regressa pela porta das traseiras, na própria argumentação destes enfatizadores do sujeito.

Hardt/Negri tornam-se assim involuntariamente objectivistas num duplo ponto de vista: desde logo, de certo modo "meta-ontologicamente", quando remetem os homens a uma ontologia objectiva da "criação de valor", apresentada como natural e trans-histórica, que deve formar o próprio "campo de imanência" do ser humano social; por outro lado "intra-ontologicamente", quando definem a "autovalorização" do ser humano definitivamente reduzido ao economismo real, que fica degradado ao seu próprio capital humano, como o "campo de imanência" objectivamente inevitável e historicamente actual da pós-modernidade, ao mesmo tempo que redefinem como forma de "libertação" esta redução e auto-rebaixamento extremos dos idiotas do mercado.

Eis-nos de volta ao objectivismo hegeliano do desenvolvimento: o que existe é bom, porque necessário e válido, como momento de uma teleologia da história. Assim, até esta estúpida pós-modernidade e os igualmente estúpidos autovalorizadores da "nova economia" passam por emancipatórios, pelo simples facto da sua existência histórica. Mas, mal Hardt/Negri acabam de dar a sua bênção a esta estupidez global ideal, infelizmente para eles, eis que ela já só existe sob a forma de uma bancarrota global real.

Isto não é teoria crítica, mas sim ideologia afirmativa, cujo gesto crítico consiste apenas em lançar uns contra os outros os diversos fenómenos, momentos e categorias, empíricos e "ontológicos", da "imanência" capitalista. O empire corrompido ou império da corrupção é aferido pelas virtudes capitalistas perdidas: "A aristocracia transnacional parece preferir a especulação financeira às virtudes empresariais [!] e assim se revela como oligarquia parasitária" (ibid., p. 327). Qualquer nazi ou anti-semita diria exactamente o mesmo.

Correspondentemente miserável fica a visão emancipatória resumida por Hardt/Negri: "O modo de produção da multidão coloca o trabalho contra a exploração [sic!], a cooperação contra a propriedade, a liberdade contra a corrupção. Ele procura que os corpos [!] se autovalorizem no trabalho [!] [...] e transforma a existência em liberdade” (!) (ibid., p. 415), graças a "novas reconfigurações [...] da autovalorização, da cooperação e da auto-organização política" (ibid.). É mesmo a velha lenga-lenga do movimento operário: o capitalismo (agora pós-moderno) sem capitalistas, só com a "mudança do poder". Depois de ter reduzido a relação de capital à "corrupção" e apresentado a gestão do estado de necessidade global como sendo o glorioso empire desta corrupção, eles opõem a isso o "trabalho honrado" do pequeno burguês e a "sã autovalorização" dos "corpos" em cooperação. Também aqui se ouve de novo o refrão nazi/anti-semita.

O problema levantado por Rufin do "invólucro económico" planetário, com a intenção teórica a ele associada de não encarar Marx como concorrente de Adam Smith, mas como seu "negador", não é resolvido por Hardt/Negri, e já nem sequer é colocado. Pelo contrário, Hardt/Negri transformam Marx numa espécie de versão turbo de Adam Smith, enriquecida com um ethos do trabalho proletkult e um anti-semitismo encoberto. Partindo da crítica da economia política, caem completamente numa retórica intra-capitalista das possibilidades e ao mesmo tempo na ilusão política.

Rufin tinha deixado entrever – ainda que com inequívocas dores de barriga – que preferia à ideologia do limes, que pretende externalizar os "bárbaros", a "responsabilidade" democrático-humanista do próprio império. Hardt/Negri, pelo contrário, pretendem ultrapassar a corrupção do império capitalista mundial no seu próprio terreno com as suas próprias categorias, virtuosamente redefinido por uma nova subjectividade imanente, pós-moderna, "a partir de baixo". Diferentemente de Rufin, vêem claramente que já não há "exterioridade" espacial ou social, e que todos os fenómenos se desenvolvem no interior do império. Deste ponto de vista é totalmente inútil a tentativa de erigir um limes. Mas, como esta ideia de que não existe "exterioridade" real está ligada em Hardt/Negri à obrigação duma imanência "positiva", não pode ser assumida num sentido crítico e emancipador, antes se vê obrigada a procurar mobilizar uma força puramente imanente ou a proclamá-la.

Naturalmente que tudo é de algum modo "imanente"; por outras palavras, não há nada fora do mundo existente e, por essa razão, também a crítica é determinada pelo seu objecto. Dito assim, é uma observação trivial. A questão, no entanto, é que a crítica radical é determinada negativamente, e não positivamente, pelo seu objecto; ela pretende ultrapassá-lo e, portanto, não pode invocar nenhuma força imanente positiva, mas apenas a força da negação, que tem, ela própria, de constituir-se em movimento social de emancipação, em vez de ser categorialmente determinada a priori pela forma daquilo que existe.

Esta é que é a dificuldade operaísta de Hardt/Negri: colocam a priori um sujeito de pura vontade, para o qual as categorias formais do capital pretensamente não seriam pressupostas, mas apenas exteriores e secundárias: seja como "meios" funcionais do poder, ou como meios do contra-poder, não residindo a diferença na forma social enquanto tal, mas apenas na vontade de que está animado. Hardt/Negri têm, portanto, de esconder a constituição ou formatação dos sujeitos, como sujeitos da valorização do valor e da concorrência; pois o processo de valorização, como substância da subjectividade, é por eles compreendido positivamente, como potencial de "auto-realização" do homem, enquanto a lógica da acção imanente desta subjectividade, a concorrência universal, praticamente não aparece (uma verdadeira proeza, numa obra que pretende abrir novas perspectivas sobre o capitalismo!).

Sendo no fundo incapazes de formular uma "crítica", tal como Rufin, Hardt/Negri têm que escolher uma alternativa imanente imposta pelo império da crise, e adivinha-se qual é: a imanência da barbárie, reinterpretada positivamente. Na argumentação de Rufin, tratava-se de uma pseudo-alternativa, tal como era encarnada na personalidade de von Ungern; agora já não se trata de uma externalidade, de um "lá longe, nas estepes", mas de uma internalidade do próprio empire. Os "bárbaros" são imanentes, mas tal imanência para Hardt/Negri já é positiva, o que os leva a concluir, apoiando-se numa interpretação errónea de Walther Benjamin: "Os novos bárbaros destroem com violência afirmativa e traçam novos caminhos de vida através da sua própria existência material" (ibid., p. 227). Estes novos bárbaros, segundo Hardt/Negri, não são eles próprios produtos da crise de valorização global do capital; pelo contrário (em absoluta conformidade com a ideologia do culturalismo pós-moderno e da economia institucional) estão na origem da crise; compreendidos não negativamente, mas positivamente, como "subjectividade rebelde".

De acordo com esta ideologia fantasmática do sujeito, a valorização do capital porta-se às mil maravilhas, não estando o negativo nela, mas na dominação corrompida que a governa; correspondentemente, não há supérfluos, "o empire tem trabalho para todos" (ibid., p. 346), ainda que se trate de um trabalho "explorado" e dominado pela corrupção. Como o capitalismo pós-moderno teria de todo o modo conseguido transformar tudo em trabalho e criação de valor (coisa que eles não se sentem obrigados a provar), já não pode haver crise real, nem limite interno absoluto à valorização do capital. Mesmo o indivíduo que se masturba algures, na privacidade dum w. c., de certa maneira "valoriza capital": eis enfim o sonho do "sujeito automático", se ele pudesse sonhar, mas tal constitui uma impossibilidade lógica e prática. Em Hardt/Negri, uma pura relação de vontade transforma-se na realidade do valor.

Deste modo, a crítica reduz-se à ilusão de um confronto entre sujeitos imanentes; a barbárie negativa do empire corrompido seria curada pela barbárie positiva dos produtos sociais e ideológicos da sua decomposição. Mas assim estes enfatizadores do sujeito enredam-se em novas contradições. Pois o seu novo sujeito ontológico da "economia da informação" e do "trabalho imaterial", etc., não se tem feito notar até hoje por qualquer espécie de rebelião; ele representa mais a barbárie e a corrupção do próprio sistema do que a contra-barbárie dos produtos da sua decomposição.

Sempre que Hardt/Negri querem falar das famosas "lutas", levadas a cabo pela famosa subjectividade recauchutada à maneira operaísta, vêem-se obrigados a pôr de parte os seus sujeitos autovalorizadores da nova economia e a recorrer para o efeito aos movimentos migratórios e aos êxodos maciços da crise mundial, aos bandidos étnicos e de crise, à cega evolução dos actuais processos de colapso. Ora, a subjectividade que aí se manifesta não é de modo nenhum a das forças produtivas mais avançadas dos centros, antes pelo contrário, é a subjectividade pseudo-arcaica das zonas de colapso até hoje periféricas, ou delas proveniente.

Hardt/Negri já não se detêm perante o absurdo da sua produção de um kitsch neo-operaísta. No fundo tudo é “sujeito” e, em última instância, tudo está em tudo. Tendo eliminado definitivamente o carácter fetichista, objectivado e autonomizado em contexto sistémico da valorização do capital, os sujeitos não apenas têm de "fazer" a crise de maneira puramente voluntarista, mas também podem reinterpretar discricionariamente a lógica do sistema.

Contudo, há uma diferença de dignidade entre estes sujeitos da pura vontade. Os sujeitos do "poder", os dominantes (não se sabe quem são, nem donde vêm, uma vez que a constituição lógica e histórica do sistema fica envolvida na obscuridade mística de uma metafísica do sujeito) sem dúvida exercem realmente o poder, continuando ainda assim "irreais" e não autónomos. Estes sujeitos do poder são simplesmente movidos; movidos obviamente não pelo imperativo sem sujeito da valorização do valor, como fim em si irracional, nem preformados pelas leis sistémicas coercivas do "sujeito automático" e da concorrência universal, mas movidos apenas pelo contra-sujeito proletariado ou "multidão" (multitude), que é como Hardt/Negri rebaptizam pomposamente o velho conceito de sujeito do sociologismo das classes, que não chega ao conceito de crítica do sistema. É este proletariado, aliás multitude, que constitui o sujeito verdadeiro e autónomo da história (faz lembrar uma hipóstase conceptual análoga em Georg Lukacs), enquanto os dominantes mais não fazem que vigiar e reagir às acções autónomas e criadoras deste "verdadeiro" sujeito.

De acordo com esta lógica algo confusa, o desenvolvimento capitalista das forças produtivas não se efectua em primeiro lugar por meio da concorrência nos mercados mundiais, mas apenas e só como reacção às "lutas" sociais do proletariado/multidão. Hardt/Negri levam até ao absurdo este ponto essencial e mais que falso do velho operaísmo, que ignora todas as relações de mediação da forma social. Tendo sido ofuscadas e mesmo ontologicamente positivadas até este ponto as formas de mediação e as leis do movimento fetichistamente objectivadas do sistema de referência comum, a sociedade fica literalmente reduzida ao confronto directo e imediato de puros sujeitos da vontade, sendo a subjectividade da multitude suposta constituir o momento unificador e a verdadeira força motriz do desenvolvimento.

O velho movimento operário, que agia apenas no interior das leis da forma do sistema e apenas podia imaginar a emancipação no terreno ontologizado da forma fetichista da modernidade, por causa desta limitação histórica tornou-se efectivamente um dos motores internos do desenvolvimento da sociedade capitalista, assim ficando também ele encerrado no sistema universal da concorrência e limitado a uma determinada época do desenvolvimento. Hardt/Negri, não só hipostasiam este papel, como o destacam do contexto global das relações de concorrência do capitalismo e das suas "leis coercivas" (Marx), para sublimar a velha "luta de classes do proletariado", que continua miserávelmente imanente, como se fosse o único e verdadeiro motor da sociedade, assim transformando enganosamente a limitação histórica e a heteronomia sistémica do movimento operário na força de vontade autónoma da história.

Assim, absolutamente tudo o que se passa na sociedade seria resultado directo ou indirecto da "vontade criadora" do proletariado/multitude, sempre e em toda a parte. Hardt/Negri nem receiam afirmar que a hegemonia americana após a Segunda Guerra Mundial foi "de facto sustentada pelo poder de oposição do proletariado nos EUA" (ibid., p. 280), por mais misteriosa que seja a omnipotência desta "luta de classes", que já tinha desaparecido das relações gerais de concorrência nos Estados Unidos antes de desaparecer na Europa. Será de questionar porquê e com que objectivo deveria o proletariado/multitude "libertar-se", uma vez que, como sujeito autónomo da história, ele já "faz" tudo.

Esta mitologia aconceptual dum sujeito proletário da vontade, cujo invólucro formal social é simplesmente ignorado, prolonga-se sem descontinuidade até aos processos da globalização e da constituição pretensamente positiva do empire. Aqui, Hardt/Negri vêem-se obrigados a negar abertamente os factos, como é próprio dos mitólogos e dos mistagogos, ajustando impiedosamente a realidade global em flagrante contradição com o seu mito das "lutas".

Os gloriosos autovalorizadores da "nova economia", voltando a ela por um momento, não lutam verdadeiramente, apenas abrem falência; ainda assim, tudo sendo "trabalho", não poderá ser tudo em si "luta" social, mesmo "abrir falência"? Ao falido (ou falida, a falida pós-moderna) não será muito difícil, através da falência, constituir-se, segundo a mesma lógica de Hardt/Negri, tanto em "trabalho" e "valorização do capital", como até em "luta", tudo em um. O "campo da imanência", pelos vistos, inclui em si tudo isso.

O que de certa maneira é verdade, se compreendermos a concorrência universal como uma "luta" social permanente; sendo que neste caso tal "luta" não contem a menor centelha de autonomia, nem o menor potencial emancipador, é preciso agora que o kitsch sentimental do operaísmo aí invista a "subjectividade de classe" proletária, com um toque de varinha mágica, sendo tal potencial de libertação encarado como uma ânsia que lhe seria inerente.

Seja na farsa auto-afirmativa do economismo real e seus projectos de empresa sem substância, seja na auto-exploração dum novo empresariado de miséria, o facto é que os autovalorizadores pós-modernos "lutam" apenas de forma virtual, contrariamente ao que pretendem Hardt/Negri, para quem eles supostamente constituem a base ontológica dum novo sujeito em si das "lutas". De repente, não sendo nada disto verdade, parece que cabe à multidão da periferia, de Chiapas à Chechénia, conduzir uma espécie de "luta por procuração" em nome dos sujeitos da nova economia, algo desajeitados em matéria de luta social.

Infelizmente, esta multitude da periferia – a massa real de miseráveis que nem sequer estão ligados por telefone – apenas de maneira negativa está ligada ao conjunto dos sujeitos das novas forças produtivas, através do "invólucro económico" planetário e das leis coercivas da concorrência. Ou será que os nossos autores estão aqui a pensar nos chefes de clãs e senhores da guerra equipados com telefone por satélite, nos piratas da Internet e nos dirigentes da indústria do rapto de reféns?

Pouco importa, pois, como repetem monotonamente Hardt/Negri, em todos estes casos está a energia criadora autónoma da multitude em acção. As monstruosas migrações desencadeadas pela miséria global, neste começo do século XXI, são logicamente reinterpretadas como "movimentos de libertação" objectivos: "Os movimentos da multidão desenham novos espaços e as suas viagens estabelecem novas residências. É a autonomia do movimento que define o lugar adequado à multidão [...] Uma nova geografia é instaurada pela multidão, à medida que os fluxos produtores dos corpos definem novas correntes e novos portos. As cidades do mundo vão tornar-se simultaneamente grandes depósitos de humanidade cooperante e locomotivas para a circulação, residências temporárias e redes de distribuição maciças para a humanidade viva. Através da circulação, a multidão reapropria-se do espaço e constitui-se como um sujeito da acção" (ibid., p. 404). É verdade que "tais movimentos custam muitas vezes terríveis sofrimentos" (ibid.), mas esta "nova singularidade nómada" (ibid., p. 371) não deixaria por isso de ser plena de força autónoma e de potencial emancipador.

E, é escusado repeti-lo, seriam novamente os lázaros da autonomia e as suas "lutas", e não a lógica interna da concorrência capitalista e a sua dinâmica, que "realmente" engendrariam a globalização: "São eles próprios que põem em marcha o processo da globalização e o sustentam. O poder imperial murmura os nomes das lutas para as seduzir e reduzir à passividade" (ibid., p. 72).

É preciso dar prova de raro sangue frio na contemplação intelectual do exterior para, por um lado, apresentar as migrações maciças de "inúteis", devidas à miséria, como uma valorização do capital de tipo novo e, por outro lado, querer retirar delas um potencial emancipador de que estão naturalmente de todo desprovidas. Nas condições de concorrência planetária universal, a migração não passa de um momento desta, ou da sua continuação por outros meios; migrar, em si, não é mais emancipador do que ficar em casa, e o sujeito "nómada" da valorização não é mais inclinado à crítica e à revolta do que o sujeito sedentário. Se o único pensamento das pessoas é deixar gastar a própria vida segundo os critérios capitalistas e conseguir "trabalho", de tal modo que abandonam os seus próximos e arriscam a própria vida, elas não estão mais próximas dum acto emancipatório que os autovalorizadores pós-modernos ocidentais, de que apenas constituem a variante miserável.

A realidade empírica a nível global mostra bem que a época da "luta de classes" e da "subjectividade de classe" há muito terminou. A nova natureza da crise e a globalização também há muito tempo tornaram clara a limitação destes conceitos historicamente imanentes ao sistema, tal como da realidade que os suporta. Contudo, Hardt/Negri esfalfam-se para enquadrar a nova realidade mundial nesta lógica anacrónica e apresentá-la como seu prolongamento linear. Esta argumentação anacrónica só pode levar a interpretações grotescas. Já é extravagante reinterpretar as não-lutas dos autovalorizadores e dos migrantes da miséria como uma espécie de emancipação virtual e de resistência social. Mas onde Hardt/Negri se desacreditam totalmente é quando tratam acontecimentos, que são efectivamente "lutas" autênticas, conduzidas com grande força de bombas e armas de fogo, mas que são tudo menos lutas de emancipação social.

Com toda a seriedade, Hardt/Negri fazem entrar na lógica e nos conceitos da sua "lutas de classes" anacrónica os produtos da barbarização e decomposição da concorrência universal, ou seja, as suas formas asselvajadas, étnicas e pseudo-religiosas, e interpretam-nos como a emergência positiva de um contra-poder: "O que há de novo nos fundamentalismos contemporâneos é realmente que se defendem das potências que se constituem na nova ordem mundial imperial. Deste ponto de vista, a revolução iraniana foi uma poderosa recusa do mercado mundial [!] e, nessa medida, podemos considerá-la a primeira revolução pós-moderna" (ibid., p. 162).

Se até Khomeini já é porta-estandarte do anticapitalismo, também há que admitir Osama bin Laden no panteão dos combatentes da liberdade e atribuir-lhe um lugar de honra ao lado de Che Guevara. Hardt/Negri provam involuntariamente que manter nas condições da pós-modernidade o mito da luta de classes, que continua obviamente limitada pelos critérios do sistema, leva à perda de qualquer faculdade de julgamento.

Mas esta perda coincide com a crescente incapacidade de reprodução da relação fetichista moderna, que é o seu fundamento, pelo que os nostálgicos da luta de classes têm razão, mesmo sem o saberem; mas apenas no sentido em que a "luta de classes" ou, mais geralmente, a luta social determinada pelas relações de concorrência universal, não pode voltar a aparecer, na moderna forma do sujeito em deliquescência, a não ser numa forma asselvajada, que desmente qualquer gesto emancipador.

É o que Hardt/Negri involuntariamente demonstram quando, entre os "confrontos mais radicais e mais fortes do fim do século XX" (ibid. p. 67), em que "a multidão recusa a exploração” (ibid.) e que "anunciam uma nova espécie de solidariedade e de militância proletárias" (ibid.), colocam em primeiro lugar, como por acaso, "a intifada palestiniana contra a autoridade do estado israelita" (ibid.).

Se a intifada palestiniana é "luta de classes", e é-o em certa medida, pelo menos como versão da ultima ratio da concorrência, então luta de classes, modernização e "desenvolvimento", etc. são hoje idênticos à total perda de si. Se a "solidariedade proletária", hoje, consiste em fazer-se explodir juntamente com quem passa, e em abater crianças com espingarda de mira telescópica, então os massacres entre os trabalhadores assalariados na Primeira Guerra Mundial eram uma expressão desta "solidariedade proletária", até duma natureza particularmente nobre, em comparação com os actos bárbaros da intifada. E porque não escriturar na coluna dos "proveitos" do "movimento de emancipação proletária" os jovens bandos de neonazis na Alemanha e em toda a Europa, o visceralmente anti-semita Black Power nos Estados Unidos e, dum modo geral, as atrocidades do conjunto dos guerreiros étnicos do capitalismo global de crise? Tudo é "trabalho criador" da multidão, tudo é valorização de si e do capital, tudo é luta de emancipação. Só podemos voltar as costas com horror.

Não é por acaso que nesta ambiciosa inquirição de Hardt/Negri, tudo menos modesta, o anti-semitismo, tal como a concorrência, brilham pela ausência. Fazer a história e a análise do modo de produção capitalista apenas a partir do conceito positivo do sujeito da vontade "criador de valor", omitindo sistematicamente a concorrência e o anti-semitismo, é mais ou menos como fazer a história do cristianismo a partir do conceito de amor ao próximo, sem nunca evocar as cruzadas, as guerras de religião e a queima das bruxas. Procedendo assim, Hardt/Negri não só passam ao lado da história, mas também passam ao lado do presente do capitalismo global de crise. E eles próprios caem num entendimento redutor, que em muitos pontos coincide irreflectidamente e até dá cobertura à lógica do anti-semitismo.

Tal com Rufin antes deles, Hardt/Negri continuam encerrados na falsa imanência da ontologia capitalista, ou seja, no terreno categorial do moderno sistema produtor de mercadorias e com ele no "invólucro económico" do mundo, que no entanto se revela na prática irrealizável para a maioria do planeta.

Entrincheirar-se constitui para o empire da valorização do capital uma tendência espontânea da reacção imperial sistémica ao processo de decomposição. Assim, o limes não se estende apenas ao longo de fronteiras exteriores, mal definidas e duvidosas, mas torna-se um fenómeno universal, mesmo no interior do empire e dum modo geral no interior de cada sociedade em crise, no contexto do processo da globalização. Os muros e os arames farpados erguem-se tanto na fronteira Sul dos EUA, como na fronteira Leste da União Europeia; mas também entre Israel e os palestinianos, entre "etnias" e "tribos", por todo o lado, entre bairros de lata e bairros residenciais. A consequência última desta lógica é que todo o indivíduo abstracto que, duma mamneira ou doutra, goza ainda da estranha "felicidade" poder deixar-se triturar à maneira do capital, leva consigo, para todo o lado, um muro móvel e uma barreira de arame farpado portátil.

A rejeição e desesperada externalização dos novos fenómenos de crise e processos de barbarização do próprio sistema mundial, da anomia, do caos, da violência à toa, desta propagação descontrolada de metástases sempre novas da manifesta pulsão de morte capitalista, transforma o imperialismo da exclusão num momento abrangente da constituição imperial global do estado de necessidade, contra o qual o pontual imperialismo da segurança e o específico imperialismo do petróleo constituem apenas momentos secundários, ainda que estes possam passar temporariamente para primeiro plano.

Quer Rufin, quer Hardt/Negri menosprezam completamente o carácter do "imperialismo global ideal", na medida em que querem entendê-lo como constituição político-económica positiva dum "império" em si pacificador e com capacidade de reprodução.

A crítica que continua prisioneira das categorias do sistema e duma má imanência já não é crítica, e só pode enganar-se a si mesma. Nestas condições resta apenas a alternativa formulada por Rufin: ou a opção de Kléber ou a de von Ungern, isto é, ou o imperialismo democrático moralizador dos direitos humanos, que ignora a crise do sistema, ou a reinterpretação positiva em termos de "subjectividade rebelde" dos produtos da barbarização, igualmente ignorante da crise do sistema. Em ambos os casos forçoso se torna recorrer, de maneira positiva e ilusória, a uma das formas de manifestação da subjectividade moderna em desmoronamento: em Rufin, o sujeito ideológico dos direitos humanos e da democracia, com a sua pérfida novilíngua orwelliana; em Hardt/Negri, o sujeito ideológico da barbárie aberta, que enganosamente se apresenta como cura de rejuvenescimento da humanidade.

A alternativa entre Bush e Bin Laden, entre o "imperialismo global ideal" e o poder regressivo pseudo-arcaico, já não é aceitável, se o pensamento da libertação social não quiser render-se completamente. A crítica emancipatória, em todas as suas variantes categorialmente imanentes, costumava, até hoje, agarrar as alternativas oferecidas pelo processo de desenvolvimento do sistema e assumir o respectivo polo positivo "progressista". Isto é apenas outra expressão para o facto de que estas variantes da crítica social, agora completamente passadas à história, ainda estavam ligadas ao processo de ascensão e imposição do moderno sistema produtor de mercadorias e à sua lógica de dissociação sexual.

Agora esta ocupação duma alternativa imanente tornou-se impossível, pois seria apenas a escolha entre diversas variantes da mesma barbárie violenta. No processo de desmoronamento e decomposição da subjectividade moderna, a lógica de dissociação estruturalmente "masculina" do sistema cada vez mais revela apenas o seu cerne repressivo de violência e, na verdade, de ambos os lados da polaridade aparente dos "conflitos", que de ambos os lados ficaram igualmente sem perspectivas. Já não há qualquer progresso capitalista e, por essa razão, já nem sequer há mal menor, mas apenas males de igual grandeza e igualmente inaceitáveis.

(Capítulo 7. do Livro A GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL, Robert Kurz, Janeiro 2003)

Original alemão: http://www.exit-online.org/

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