O
CURTO VERÃO DO KEYNESIANISMO
Da
consciência infeliz à perda de memória colectiva da teoria económica
John
Maynard Keynes (1883-1946) foi talvez um dos homens mais interessantes do século
20. Como especialista na teoria do dinheiro e da moeda, ele desfrutou de
eminente reputação já desde a Primeira Guerra Mundial. Mas seus interesses
eram muito mais vastos. Matemático nato, primeiro granjeou fama internacional
com seu ''Tratado Sobre a Probabilidade'' (1921). Seu verdadeiro amor, porém,
era a filosofia. Mas não lhe foi dado exercer funções acadêmicas nessa área
em Cambridge, como esperava. Embrenhou-se na política, foi funcionário do
Departamento da Índia e obteve sucesso também como economista nos seguros e na
Bolsa. Seu patrimônio lhe emprestava a independência financeira; promotor das
artes, foi também um grande colecionador. Arrematou o espólio de Isaac Newton,
tornou-o acessível à pesquisa e chegou mesmo a publicar sobre o assunto.
Essa
amplitude do horizonte intelectual não se deixava capturar nos estreitos
limites de uma disciplina acadêmica. À semelhança de Marx, encontramos a cada
passo nos escritos de Keynes reflexões interdisciplinares nas quais ressurge a
unidade entre filosofia, política e economia. E, no entanto, o economista
Keynes, como ele próprio afirmava, jamais transgrediu as fronteiras de sua
tradicional especialidade ou do renome acadêmico de sua instituição. De certa
maneira, sua obra teórica contém um elemento daquilo que o filósofo Hegel
denominou ''consciência infeliz''. Também sua vida pessoal é marcada por
certos laivos desse infortúnio. O ilustre graduado por Eton movia-se nos mais
altos círculos da sociedade oficial, mas desposou a dançarina russa Lydia
Lopokova (e interessou-se ainda mais, desde então, pela história do teatro e
do balé). Sua índole foi impregnada por fortes inclinações homossexuais,
como correm os boatos. Talvez John Keynes tenha sido uma águia encerrada numa
gaiola de ouro. E talvez sua infelicidade fosse não poder ter sido um outsider
rebelde.
Esse
elemento de ''consciência infeliz'' comparece também em sua principal obra,
publicada em 1936 (''Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda''), considerada
mais tarde como o estopim da ''revolução keynesiana'' na teoria econômica. Até
essa data, vigorava na disciplina acadêmica o indisputado teorema formulado por
Jean-Baptiste Say (1767-1832), segundo o qual toda oferta cria automaticamente
sua própria demanda e o equilíbrio do mercado, em princípio, pode ser alcançado
pela ação do próprio mercado. Say sistematizou assim uma idéia fundamental,
que já podia se encontrar nos economistas clássicos Adam Smith e David
Ricardo. De acordo com tal concepção, disfunções no mercado, crises e
desemprego são sempre resultado de ''causas extra-econômicas''. Responsáveis
para tanto são as guerras, a política e não em último lugar os sindicatos,
que supostamente adulteram o processo ''natural'' do mercado.
Keynes
foi o primeiro economista sério a pôr em questão os fundamentos deste
teorema. Mas não foi o primeiro teórico a fazê-lo; pois quase um século
antes, Karl Marx, o enfant terrible da ciência moderna, já explicara as
crises não por ''causas extra-econômicas'', mas pelas próprias leis do modo
de produção capitalista. Marx, porém, não era tido como sério; sua teoria não
teve acesso ao panteão oficial e, como notou Keynes, foi proscrita da ciência
acadêmica para um ''mundo inferior''. Assim, Keynes assumiu a tarefa infeliz de
formular a crítica já formulada há tempos por um outsider a Say e à
teoria clássica agora também no seio da economia política académica. A
''revolução keynesiana'' não foi uma revolução contra a teoria dominante,
mas sim o paradoxo de uma revolução do próprio establishment científico.
A
fama de Keynes é impensável sem a grande crise econômica mundial de 1929-33.
Esse terremoto econômico abalou tão profundamente a sociedade moderna, que os
próprios fundamentos básicos da economia clássica vacilaram. A ''Teoria
Geral'' de Keynes pode ser compreendida como a resposta da economia política
acadêmica à crise econômica mundial. Keynes provou que o teorema de Say só
representa um caso específico e não pode reivindicar validade universal. Um
equilíbrio relativo do mercado é possível também a níveis baixos e com a
difusão em larga escala do subemprego. Em outras palavras, o próprio mercado
pode levar a uma situação em que não haja demanda suficiente por bens de
consumo e investimentos, de modo a fazer com que uma boa parcela da oferta
social de força de trabalho não encontre demanda alguma, independentemente das
actividades sindicais.
Ao
contrário de Marx, Keynes não quis reconhecer nesse fato quaisquer limites da
economia moderna. Ele considerava possível superar a deficiência na demanda.
Isso não ocorreria, no entanto, por meio de simples decisões microeconômicas
dos indivíduos e das empresas, mas sobretudo com medidas no plano macroeconômico
na extensão da circulação econômica como um todo. Keynes salientou, com
isso, o significado preponderante da macroeconomia negligenciado pelos clássicos.
Baseou-se para tanto no conceito de ''rendimento total'' económico, cuja
maximização na economia política inglesa já era designada antes de Keynes
como Welfare Economics. Keynes, todavia, de forma mais enérgica que seus
precursores, desligou tal conceito de uma simples adição de ''rendimentos
individuais''. Desde Keynes, a Welfare Economics adquiriu um significado
inteiramente novo, fundado em bases macroeconômicas.
Como
a maioria dos socialistas, Keynes quis também mobilizar o Estado como uma espécie
de deus ex machina, a fim de controlar a crise econômica. À diferença
do socialismo, não caberia ao Estado assumir o papel de ''empresário geral'',
mas sim exercer a simples função de estimular a demanda insuficiente por
intermédio de medidas macroeconômicas. Com um aumento na quantidade de moeda,
com a repartição de rendas e com investimentos públicos suplementares, o
Estado seria capaz de atingir tal objetivo. Para que os investimentos públicos
adicionais não resultem num jogo econômico de soma zero, diz Keynes, eles não
devem ser financiados por impostos suplementares, pois desse modo o aumento da
demanda pública só se daria pelo fato de estrangular a demanda privada. O
Estado teria assim de financiar seus investimentos adicionais por via do deficit
spending (gasto baseado no deficit), ou seja, contraindo empréstimos e
criando moeda através do banco central.
Keynes
preconizou medidas estatais tidas até então como levianas e perigosas. Mas
para tanto pôde basear-se numa prática econômica que se tornara regra geral
na Primeira Guerra Mundial. A Welfare Economics manteve desde o início
uma estreita relação com a Warfare Economics da economia de guerra. O
denominador comum era o deficit spending. Desde os primórdios da era
moderna, muitos Estados endividaram-se em tempos de guerra, uma vez que as
receitas regulares arrecadadas com impostos não eram suficientes. Na Primeira
Guerra Mundial, porém, essa prática ganhou novos contornos, pois os custos com
a condução da guerra industrializada excederam todas as dimensões até então
conhecidas. Na época, ainda se acreditava que o enorme endividamento estatal
era um fenômeno excecional da guerra. Sob a impressão da crise econômica
mundial, contudo, Keynes sugeriu implementar o deficit spending para
tomar as rédeas da economia civil. Chegou mesmo a propor ao Estado em crise,
caso fosse necessário, ''construir pirâmides'' ou ''cavar buracos e tapá-los
novamente'', a fim de suscitar uma demanda adicional. Involuntariamente, provou
assim que a economia moderna tem o caráter de um absurdo fim em si mesmo. O
consumo insensato e destrutivo de recursos nas indústrias militares da morte
repete-se na economia civil, com o único propósito de alimentar a dinâmica própria
do dinheiro cegamente pressuposta. Dessa perspectiva, mais uma vez, a teoria de
Keynes revela uma ''consciência infeliz''.
O
destino histórico da ''revolução keynesiana'' foi extremamente singular.
Tanto a prática econômica do New Deal do presidente norte-americano
Roosevelt quanto a da ditadura fascista na Alemanha (respostas, uma e outra, à
crise econômica mundial) indicam uma certa semelhança com as idéias de
Keynes. Mas tais práticas surgiram de forma espontânea e pragmática e, em
todo caso, não foram legitimadas pela ''Teoria Geral''. Após a Segunda Guerra
Mundial, grande parte da nova geração de economistas foi influenciada por
Keynes. Em contrapartida, a antiga geração, que ainda ocupava a maioria das
cadeiras acadêmicas, aferrava-se com empenho à teoria clássica. Nesse meio
tempo, contudo, os próprios paladinos dos clássicos reagiram à crise econômica
mundial, se bem que de forma diametralmente oposta a Keynes. O economista alemão
Walter Eucken (1891-1950) reduziu a crise ao fato de a concorrência dos agentes
econômicos não estar suficientemente assegurada e o mercado poder conduzir,
por si mesmo, a monopólios. Em seu argumento, defendia a intervenção do
Estado, mas não através do deficit spending no plano macroeconômico,
como em Keynes, e sim através de uma ''política de ordenação''
institucional, cuja tarefa era garantir a livre concorrência. Essa escola foi
chamada ''neoliberalismo''.
Nos
anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, os neoliberais ganharam ascendência
sobre os keynesianos. E o inesperado boom dos anos 50 e 60, em especial o
''milagre econômico'' alemão, parecia depor contra Keynes. O ministro da
economia alemão Ludwig Erhard, uma figura simbólica da prosperidade do período,
declarou-se partidário da doutrina neoliberal. Mas a prosperidade não tinha
sua causa numa concorrência mais livre do que antes, mas no desenvolvimento
estrutural das indústrias centrais (produção de automóveis, geladeiras,
lavadoras, televisores etc.), que desencadeou uma enorme demanda em todos os níveis
(emprego, consumo, investimento). Além disso, tal evolução foi posta em
movimento (pelo menos indiretamente) por impulso da economia estatal. O tiro de
largada para a nova prosperidade foi dado justamente pela Warfare Economics
da Guerra da Coréia, no início dos anos 50; desde então, os EUA, como polícia
mundial, aperfeiçoaram uma ''economia permanente de guerra'', mantida à custa
de um contínuo deficit spending.
Mas
os tempos do ''milagre econômico'' foram apenas um curto verão siberiano da
história posterior à época das guerras mundiais. Já nos anos 60, as taxas de
crescimento decaíram novamente; na década de 70, o mundo foi rondado pelo
espectro de 1929. Parecia ter chegado a hora do keynesianismo, sobretudo porque
nesse meio tempo os jovens economistas dos anos 40 ascenderam a posições de
destaque. Nos maiores países ocidentais, em especial nos EUA, na Inglaterra e
na Alemanha, teve início uma era de política econômica keynesiana. O deficit
spending foi implantado em grande escala como o marcapasso do capitalismo. A
maioria dos planos de desenvolvimento do Terceiro Mundo também sofreu a influência
de Keynes.
Deve-se
dizer, infelizmente, que o verão do keynesianismo foi ainda mais curto que a
era de prosperidade neoliberal. O próprio Keynes acreditou que o deficit
spending pudesse restringir-se a uma espécie de impulso inicial para a dinâmica
interna do mercado. Mas logo tornou-se evidente que o coração do mercado não
era capaz de pulsar sem marcapasso. O resultado foi uma inflação meteórica e
uma crise generalizada das finanças estatais. Com essa nova crise, no início
dos anos 80, o keynesianismo foi definitivamente sepultado. Confirmou-se assim
sua ''consciência infeliz'': para a crise econômica mundial, chegara muito
tarde; na prosperidade após 1950, não foi utilizado; quando finalmente se
tornaria o ''cavaleiro branco'' da economia, já estava envelhecido.
Qual
foi o erro? Keynes, assim como seus rivais neoclássicos ou neoliberais, não
entendia a economia moderna como um processo histórico (irreversível), mas
como a forma de existência de categorias econômicas atemporais. Isso é
surpreendente, pois já num ensaio de 1930 ele foi um dos primeiros a referir-se
ao conceito de ''desemprego estrutural'', prevendo que ''nossa descoberta de
meios para economizar trabalho progride mais rápido do que nossa capacidade de
encontrar novos empregos para a mão-de-obra''. Mas, porque acreditava que esse
estágio seria atingido somente dali a um século, ele não seguiu o fio de seu
pensamento. Na ''Teoria Geral'', o que está em jogo não é o verdadeiro
desenvolvimento estrutural do capitalismo, mas sim a ''psicologia dos agentes
econômicos'' atemporal e as possíveis “armadilhas” daí resultantes para
um sistema econômico atemporal. O keynesianismo dos anos 70 não fracassou em
virtude de uma política econômica ''equivocada'' neste plano atemporal, mas
sim pelo fato de que as indústrias responsáveis pelo desenvolvimento histórico
após a Segunda Guerra Mundial estavam estruturalmente esgotadas.
Desde
a década de 80, a revolução microeletrônica tem avançado nos limites da
economia moderna profetizados por Keynes em 1930 (embora sua avaliação fosse
naturalmente imprecisa). Eis por que sua própria teoria perdeu a razão de ser.
Isso vale também para as medidas político-econômicas por ele propostas, as
quais pressupõem economias nacionais relativamente fechadas. Keynes tinha plena
consciência disso e logo fez notar os riscos de uma forte expansão do mercado
mundial. Ora, desde o fim do keynesianismo os economistas padecem de uma perda
de memória coletiva. Em vez de admitir os limites do sistema econômico
moderno, eles criaram um neo-neoliberalismo e voltaram a falar da teoria clássica
há muito refutada, como se a crise econômica mundial e a crise dos anos 70
nunca tivessem ocorrido. Mas quem simplesmente se esquece da história em vez de
suplantá-la criticamente está condenado a senti-la na pele mais uma vez.
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