Robert Kurz em entrevista a Sónia Montano

Revista IHU On-Line (S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil), nº 136, 24.10.2005

1. Como podem as novas tecnologias, o copyleft e a vida on-line, que servem para obras colectivas, contribuir para construir a utopia na forma como o senhor a entende?

Neste tema receio haver grandes mal-entendidos. Em primeiro lugar, não se trata de uma "utopia". As utopias são sempre modelos abstractos para serem realizados. Mas uma revolução social é algo completamente diferente. O ponto de partida não é um modelo positivo, mas sim a "força da negação". A partir da análise das contradições reais e da crítica a elas ligada pode formar-se um movimento social que ingressa num processo prático de revolução. A teoria crítica pode desenvolver critérios para isso. O resultado, porém, não existe como modelo estabelecido a priori, e por isso um pensamento realmente transcendente não pode ser utópico. O mundo capitalista que nós criticamos não é, ele próprio, o resultado da realização de um modelo, mas o resultado de um processo histórico de complexas mediações. Para sair para fora deste mundo, é necessária uma "contramediação" igualmente complexa, um processo histórico de transformação. Aí um pensamento por modelos positivos tem de fracassar. Em segundo lugar, novas relações sociais não podem ser criadas por novas tecnologias. As novas tecnologias da microeletrónica conduzem de modo imanente aos limites do capitalismo, porque tornam o trabalho amplamente supérfluo, com isso impossibilitando a ulterior expansão da mais-valia. São tecnologias da crise. Porém, junto com isso não está nenhum automatismo tecnológico, como postulado de uma outra sociedade, mas apenas a crise da sociedade vigente. A emancipação social não pode orientar-se por tecnologias, pois isso seria a continuação da coisificação capitalista. Pois trata-se precisamente de libertar as relações sociais da submissão às coisas mortas e torná-las soberanas das tecnologias.

2. Como se relaciona o "trabalho abstracto" na visão de Marx com o trabalho imaterial da actualidade?

O "trabalho abstracto" não é imaterial em Marx. O conceito designa sim a indiferença quanto ao conteúdo, porque ele visa unicamente o irracional fim em si mesmo da valorização do capital, o reacoplamento de um "sujeito automático" (Marx) a si próprio. Por isso, o trabalho neste sentido é per se um fim em si mesmo, que consiste precisamente no "desgaste de nervo, músculo, cérebro" (Marx) em abstracto. Esta é, pois, uma abstracção real, totalmente material, que pretende a redução social do processo de produção ao consumo abstracto de energia humana por si mesmo, sem levar em consideração o conteúdo nem as necessidades. Só por esta redução de energia humana abstracta à materialidade, aliás, é que o "trabalho abstracto" pode ser a "substância do capital" (Marx). A terceira revolução industrial da microeletrónica não torna o "trabalho abstracto" imaterial, mas rigorosamente supérfluo. Os mais avançados sectores das tecnologias da informação, mídia, analítica simbólica etc. não podem mobilizar novas massas de "trabalho abstracto". O resultado é a crise, não só da valorização do capital, mas também do conceito marxista positivo de trabalho. A tradicional "ontologia do trabalho" marxista tem de ser criticada radicalmente. Antonio Negri e Michael Hardt só criaram o não-conceito de "trabalho imaterial" para contornar esta crítica necessária e salvar a velha "ontologia do trabalho". Também na ideologia do "free software" este novo conceito de "trabalho imaterial" é determinado positivamente, como pretensa nova base da velha ontologia, em vez de se criticar a própria abstracção real "trabalho", como forma capitalista de reprodução.

3. As novas tecnologias exigem cada vez o mais trabalho colectivo compartilhado, o "general intellect" em Marx, mas, no sistema privado capitalista individualista, parece ser muito difícil ter isso em conta. Existe uma contradição entre o sistema em que vivemos e a necessidade da socialização exigida pelas novas tecnologias? Como se pode solucionar esta contradição?

O conceito de "general intellect" em Marx não se relaciona com uma forma imediata de organização, mas com uma modificação da relação geral entre ciência e produção: os homens colocam-se cada vez mais ao lado e à frente do processo de produção. Esta é precisamente a crise do "trabalho abstracto" e, com isso, da forma do valor e do dinheiro. Marx quer suplantar o indivíduo abstracto do capitalismo, que só se relaciona com outros indivíduos por meio da abstracção do dinheiro. Para Marx, porém, não se trata da negação, antes pelo contrário, trata-se da libertação da individualidade dessa forma abstracta. Marx não substitui o individualismo abstracto por um colectivismo igualmente abstracto. "Socialização" significa uma "associação de indivíduos livres", e não um "apático colectivo coercivo". Um colectivismo mediado apenas tecnologicamente é sempre coercivo. Historicamente, o colectivismo não foi a superação da individualidade capitalista abstracta, mas o modo da sua imposição nas ditaduras da "modernização recuperadora" na periferia do mercado mundial. Um colectivismo electrónico anónimo alargado é uma ideia horrorosa, o contrário da emancipação social e um simples prolongamento do "trabalho abstracto". Não é por acaso que os Internet-freaks, que promovem tais ideias, são em geral homens dos mais jovens; pois a génese histórica do "trabalho abstracto" está estruturalmente conotada como machista e ligada ao surgimento do patriarcado moderno. Além disso, esta ideia de uma produção imediatamente colectiva, supostamente exigida pelas novas tecnologias, vive do facto de o carácter específico do software ser bem unilateralmente tornado absoluto e tomado como modelo para todos os outros objectos. Isso é impossível, não se podem criar objectos das necessidades materiais, nem produtos culturais (por exemplo, textos teóricos ou literários), seguindo o esquema dum software amador (colectivizado).

4. As obras construídas colectivamente, como por exemplo a Wikipédia, abrem mão dos direitos de autor. Que sentido e que força atribui o capitalismo a esses direitos de autor nos diferentes campos do saber e da produção? Em que sentido eles são uma forma de poder?

A forma do direito universal na modernidade é a forma jurídica da propriedade privada. Mas esta forma é apenas a expressão jurídica das relações capitalistas de produção, que se baseiam no "trabalho abstracto". A ilusão do marxismo tradicional consistia em que ele queria superar apenas exteriormente a forma jurídica da propriedade privada, ontologizando porém a base do "trabalho abstracto". Isso significa "enfrear o cavalo pelo rabo". Somente com a suplantação do próprio "trabalho abstracto" a respectiva forma jurídica fica sem objecto. O procedimento inverso, pelo contrário, só pode conduzir a um aparelho burocrático abstracto do "trabalho abstracto" não ultrapassado. A ideologia do "free software" contorna o problema, porque está restrita à Internet e não possui nenhum conceito crítico da reprodução social global. Contudo, mesmo no caso da Wikipédia não é possível de modo nenhum cada qual colocar "livremente" as suas obras. Há um código e um controle não transparente do acesso. Um outro problema é o estatuto dos produtores individuais. Eles precisam vender seus produtos a empresas como Microsoft ou Bertelsmann para poderem viver. Esta dependência, no entanto, só pode ser suplantada por uma revolução das relações sociais de produção, e não por uma "renúncia aos direitos de autor" isolada e exterior. A ideologia do "free software", que entrementes vem sendo alargada a textos teóricos e literários, dirige-se menos contra as empresas e mais contra os próprios produtores. Quem abre mão de seus "direitos de autor" tem de ser um simples amador e obter dinheiro de outras fontes, porque caso contrário não pode viver no capitalismo. É desleal esconder este facto.

5. Que tipo de compreensão da sociedade e do trabalho existe por trás de um trabalho colectivo "sem direitos de autor", que pode ser apropriado e modificado à vontade, uma vez que se realiza sem a mediação do dinheiro?

Trata-se de um utopismo neo-pequeno-burguês, que se restringe à esfera da circulação. O que aqui é designado como "produção", não é mais do que um prolongamento da circulação e do consumo. A Internet é essencialmente um meio de circulação. Por isso, esse utopismo também pretende suplantar o dinheiro puramente na circulação, enquanto "dar e receber" sem custos e sem controle, enquanto o "trabalho" é mantido como ilusão, ao invés de criticá-lo. O propagado carácter "imaterial" se refere aí a um manuseamento meramente combinatório de módulos pré-fabricados. Uma vez que continuam pressupostas as condições sociais do capitalismo, só podem ser sujeitos da concorrência os que exercem a pretensa "livre apropriação". A "disponibilidade abstracta" de textos e de outros produtos, separada do conteúdo da "apropriação", é apenas o prolongamento do formalismo jurídico vazio, mas sem "direitos de autor" individuais. Os produtores intelectuais são transformados em caça livre; cada galo concorrente pode copiar sem receio e apresentar os produtos como seus. A crise do "trabalho abstracto" é também uma crise da identidade masculina; por isso esta ideologia se dirige não por último contra as autoras, que devem ser intelectualmente despojadas por homens precarizados. Isso não é emancipação, mas sim falta de vergonha. Ao mesmo tempo, é uma pretensão de poder formal. A força repressiva das empresas só é substituída pelo poder igualmente repressivo de um colectivo coercivo de sujeitos da concorrência desenfreada. Não existe uma mudança emancipatória através dum princípio formal geral e abstracto. Coisa diferente seria um acordo livre de indivíduos, que se unissem numa associação, em que determinadas regras capitalistas seriam desactivadas (por exemplo, o livre aproveitamento de recursos de uma biblioteca administrada colectivamente). Tais elementos de uma concreta contracultura não têm, no entanto, nada a ver com um formalismo abstracto como o princípio do "copyleft".

6. Em que sentido as novas tecnologias podem contribuir para que o trabalho ganhe sentido inclusivo e não continue crescendo o desemprego?

"Trabalho", como abstracção sem conteúdo, é em si sem sentido, o fim si do capital. Trabalho significativo seria uma contradição em si mesmo. As novas tecnologias não dão nenhum sentido a este "trabalho abstracto", mas tornam-no supérfluo. Só na forma do capital é que isso aparece como "desemprego". Para lá do trabalho como fim em si mesmo também já não há mais "desemprego".

7. Como surgem os actuais workaholics? Que consequências sociais tem tal modo de vida?

Workaholics são pessoas que levam ao extremo sua sujeição ao fim em si mesmo do "trabalho abstracto". Podem ser administradores, tal como assalariados ou "empreendedores autónomos". Eles se transformam em "máquinas funcionais" humanas, que se entregam até ao esgotamento a um fim alienado. Assim se compensa a falta da vivência pessoal e a atrofia das relações sociais. É a total auto-entrega ao "sujeito automático" da valorização do capital. Na new economy esta síndrome foi elevada a modelo. Desde 2001 a new economy naufragou miseravelmente, mas este modelo destrutivo foi entrementes estendido a todos os sectores. Isso tem algo a ver com o facto de que a relação do capital, na crise da valorização, retorna da prioridade da "mais-valia relativa" à prioridade da "mais-valia absoluta", ao prolongamento do tempo de trabalho e à intensificação do trabalho. Quanto menos a força de trabalho humana pode ser empregada de maneira ainda rentável, tanto mais este resto deve ser explorado, até a auto-exploração do trabalho formalmente "autónomo". Socialmente, surge uma atmosfera de pressa febril sem perspectiva e de falta de consideração consigo mesmo e com os outros. São sinais típicos de um colapso. Esta síndrome dos workaholics não deveria, no entanto, ser confundida com o esforço por fins autodeterminados, por exemplo, na produção literária ou teórica no sentido da crítica social. Penetrar criticamente um objecto é sempre uma ocupação intensiva. Contrariamente à auto-entrega sem conteúdo ao "sujeito automático", também pode haver uma erótica do conteúdo, que conduz a uma espécie completamente diferente de ocupação intensiva. Numa sociedade liberta poderia ser normal que períodos do mais intenso esforço por objectos pessoalmente escolhidos se alternem com períodos de ócio cheio de prazer. Uma "preguiça abstracta" seria apenas a imagem especular do "trabalho abstracto".

8. No Brasil pode-se observar agora uma profunda decepção política. As promessas de um governo de esquerda foram tão pouco satisfeitas como as dos governos anteriores, seja com respeito ao mundo do trabalho, seja em relação à corrupção política ou aos problemas ecológicos. Como vê esta situação?

No futuro só haverá decepções políticas, porque a esfera política do capitalismo se tornou incapaz de regular a sociedade na globalização e na crise da terceira revolução industrial. Estado e política constituem apenas a outra face da valorização do capital e do mercado. A falha do mercado é também a falha da política. Não é uma falha de pessoas, mas uma barreira interna da relação social. Por isso, não adianta substituir as pessoas ou fundar novos partidos políticos. O que actualmente é vivenciado no Brasil é uma experiência universal em todo o mundo, também na Europa. De resto, a política é estruturalmente tão "masculamente" determinada como o "trabalho abstracto". Um movimento social emancipador deve direccionar-se tanto contra a política como contra o "trabalho abstracto". O marxismo tradicional estava enredado não apenas numa ontologia do "trabalho, mas também numa ontologia da política e do patriarcado moderno. Para escapar desta prisão o movimento social deve constituir-se de maneira autónoma. A resistência contra os desaforos da administração da crise já não pode apoiar-se nas instituições patriarcais da modernidade. Um movimento social autoconsciente contra o "trabalho abstracto" e contra a moderna relação entre os sexos talvez faça alianças parciais com forças políticas, no processo da crise, mas ele não mais se deixará estrangular pelas coacções estruturais do sistema político.

Original ROBERT KURZ IM INTERVIEW MIT SONIA MONTANO/REVISTA IHU ON-LINE (BRASILIEN)

Revista IHU On-Line (S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil), nº 136, 24.10.2005

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