OS
MISTÉRIOS DO CAPITAL FINANCEIRO
Quando
rebentará a bolha do dinheiro irregular?
Há
quase 15 anos floresce o capitalismo de casino. A relação entre produção
real e finanças inverteu-se. Não é mais o crescimento dos mercados de consumo
e de bens de investimento que determina o crescimento dos mercados financeiros,
mas justamente o contrário: a pujança tornada autônoma do capital
especulativo dita a conjuntura de indústria e serviços. Enquanto a economia
mundial cresce por volta de 2% a 3%, a cotação das ações sobe de 10 a 20
vezes mais e isso numa progressão permanente.
É
claro que já tinha havido ondas de especulação, mas jamais numa tal magnitude
e durante um período tão extenso. A bolha especulativamente inflada do capital
financeiro sem lastro real na economia sempre estourava depois de alguns anos,
com um grande crash financeiro; a grotesca "especulação das
tulipas", em 1634-37 na Holanda, terminou com um desastre semelhante ao da
alta das ações no surto industrial da "unificação alemã", de
1870-73, e ao do boom especulativo dos roaring twenties de 1924-29, cuja
"sexta-feira negra", marcada por uma queda vertiginosa das ações de
Wall Street, desencadeou, como se sabe, a maior crise econômica mundial até
então. Desta vez, porém, o grande crash financeiro parece tardar a vir.
A quebra das bolsas, em 1987, foi tão incapaz de conter a alta global das ações
quanto a contração do mercado de ações japonês em quase 50%, no início dos
anos 90, e inúmeros mini-crashes, desde então. O crescimento do
dinheiro superou em muito o crescimento industrial, sem que se seguisse,
imediatamente, a pena da inflação. Essa constelação histórica única não
se acha em nenhum manual. Uma alta "eterna", sem tendência inflacionária
e com baixas taxas de juros, zomba de toda a lógica econômica, mas parece
ter-se tornado realidade.
Os
analistas prudentes não se fiam nos novos mistérios promissores do capital
financeiro. O próprio A. Kostolany, "velho mestre" da especulação tão
célebre quanto experiente, manteve-se de pé atrás. Mas, em meio ao estouro de
otimismo, os prudentes deixam de ser levados a sério. A duração excessiva da
alta elimina qualquer escrúpulo teórico. Não é só nas principais bolsas dos
Estados Unidos e da Europa que uma "alta recorde" segue-se a outra.
Desde meados dos anos 90, os índices das Bolsas de Nova York e Frankfurt
duplicaram; o Dow Jones explodiu de 4.000 a quase 8.000 pontos, e o Dax, de
2.000 a mais de 4.000 pontos. Aumento igualmente vertiginoso foi aferido no
patrimônio nominal dos acionistas. Uma sumidade como o administrador de fundos
Heiko Thieme, entertainer da grande
festa que é a bolsa, já estima, para os próximos cem anos, um aumento
deslumbrante de dinheiro: no abençoado ano de 2097, ele vê o Dow Jones atingir
os 750 mil pontos, e o Dax, 400 mil pontos.
Os
eufóricos da cocaína do capitalismo financeiro nas alturas perdem todas as
medidas: com a inesgotável cornucópia da máquina utópica de dinheiro,
rejubilam eles, resolvem-se todos os problemas do futuro. As aposentadorias nos
países industriais, por exemplo, que, em razão da pirâmide etária, ameaçam
tornar-se inviáveis, não precisam mais ser alimentadas com as contribuições
securitárias, descontadas a duras penas do salário, mas serão financiadas,
com mais desafogo, pelos ganhos na cotação das ações obviamente,
apenas em benefício daqueles que são capazes de investir em ações para sua
previdência privada. Mas, seja como for, o acionista será o único homem
verdadeiro do século 21, ao passo que o restante da humanidade será
transformado numa mera sombra estatística. A este ponto chega a aprazível ficção
científica dos novos gurus, muitos dos quais já fizeram nome no mundo do comércio,
embora mal tenham largado a fralda.
A
boa nova da redenção pelo casino do jogo capitalista difundiu-se pelo mundo
mais rápido do que a doutrina cristã. Na própria periferia do mercado
mundial, no meio dos oceanos da pobreza, floresce a aposta com títulos. Apesar
da quebra do México, o fresh money continuou a afluir às bolsas
latino-americanas. Mesmo onde, em termos de economia real, não cresce mais
grama, vicejam os "mercados emergentes" do capitalismo financeiro, que
são servidos por todo o mundo com capital monetário em busca de aplicação. Há
muito, as próprias dívidas do Terceiro Mundo tornaram-se, na figura dos Brady
bonds, um objeto frívolo da comunidade internacional de jogadores do
dinheiro. No fim do mundo, em Ulan Bator, a Bolsa da Mongólia vende
certificados surreais de privatização de uma economia improdutiva. Na Ucrânia,
na Bulgária ou na Romênia, não raro títulos duvidosos são investidos com êxito
em bancos de fundo de quintal igualmente duvidosos. Mesmo as bolsas oficiais do
Leste Europeu têm altas astronômicas com fundos obscuros e levianos cupões de
privatização, sem relação alguma com a capacidade industrial. Se a bolsa de
Varsóvia, já em 1994, bateu o recorde mundial com a alta de mais de 1.300% no
índice de suas ações, o índice de Moscou, por sua vez, no verão de 1997,
apesar da queda livre do produto interno bruto, produziu um aumento de 180%.
Nada
é impossível: no próprio continente africano, assolado pela fome e pela
guerra, uma bolsa surge atrás da outra. Numa reportagem sobre o mercado de títulos
na Zâmbia, cuja "ordem liberal seduz", o jornal econômico alemão Handelsblatt
relatou, em agosto de 1997: "A discreta entrada da Bolsa de Zâmbia, a
Lusaka Stock Exchange (LuSE), acha-se, significativamente, entre uma loja de
gravatas e uma capelista. Atrás de uma porta e uma escada, o visitante chega a
um aposento com algumas mesas, uma máquina xerográfica e alguns computadores.
Quem pergunta pelo pregão é olhado com espanto. Ora, o visitante se acha nele!
Apesar da brevidade do espaço, não há razão para sobranceria. Em 1996, o
movimento da LuSE aumentou quase dez vezes. Desde o início do ano, a capitalização
do mercado mais que duplicou".
Seja
no pólo Norte, seja no Equador, o jogo de risco com o dinheiro tornou-se um
fascínio universal, embora em parâmetros totalmente diversos. E, além dos
grandes fundos internacionais, soma-se ainda o restante da desmoralizada classe
média, momentos antes que ela, como ultima ratio, passe a vender café e
cachorro-quente nas ruas. Enquanto sobrarem alguns trocados, ela será lançada,
com a mentalidade dos viciados em drogas, às fauces do pulsante capitalismo de
casino. No final do século 19, o "rei das ferrovias", Bethel Henry
Strousberg, que logo após abriria falência, escreveu em suas memórias, a
respeito do desvario especulativo depois de 1870: "Meus próprios
empregados que, com os anos, haviam economizado alguns táleres, não se
contiveram, apesar de minhas advertências. E, curiosamente, os mais pobres
quase sempre tomavam parte nas empresas mais insolventes". Hoje, essa
tolice tornou-se planetária. A esperança de sucesso no jogo transformou-se em
espírito predominante da época. Mesmo os socialmente excluídos estão
infectados. Quem não pode especular na bolsa toma parte em jogos de todo tipo.
Não só em São Paulo pode-se notar como faxineiras e diaristas apostam o seu
suado dinheiro em joguinhos de prestidigitação barata, do tipo "cadê a
bolinha?". Em todo o mundo, a febre na loteria aumenta na mesma medida em
que decresce a solidariedade.
A
expressão ''febre'', na bolsa e nas cabeças das massas, tomadas pela paixão
da jogatina, revela, involuntariamente, que os corpos social e econômico da
sociedade padecem de uma grave doença. Todos ainda capazes de pensamento lógico
podem ver que o novo capitalismo financeiro não possui mais chão sob os pés.
A longo prazo, será impossível que somente o ''trabalho'', como fator social,
conviva sozinho com a crise, enquanto o capital segue intrépido em sua acumulação.
Pois o que o capital pode acumular nada mais é, em última instância, que
''trabalho'' transformado em dinheiro. Uma alta exagerada dos mercados de ações
só se justifica, substancialmente, quando antecede um grande surto histórico
da economia real. Quando a cotação das ações na Alemanha, no início dos
anos 50, decuplicou num breve espaço de tempo, essa expansão foi preenchida
pelo ''milagre econômico'' que logo se seguiu. Mesmo as grandes ondas históricas
de especulação não careciam totalmente de fundamento real; as quebras
financeiras só ocorreram quando a alta das ações antecipou-se em muito, de
forma irreal, à expansão real.
Hoje,
porém, uma grande expansão histórica da economia real está longe de se
vislumbrar no horizonte. A economia mundial tem um nível de crescimento
inferior a 3%, e o desemprego estrutural lança raízes profundas.
Principalmente os países industriais, inclusive o Japão, acham-se, a longo
prazo, à beira da estagnação. A globalização industrial e a fuga universal
para as exportações paralisam, com as aquisições transnacionais, mais
capacidade produtiva do que podem criar. É precisamente a escassa rentabilidade
de investimentos adicionais que faz afluir somas cada vez maiores de capital ao
casino do mercado financeiro. O capitalismo não pisou em ''terreno
desconhecido'', como supõem economistas inseguros, mas, de um certo modo,
atirou-se do andar mais alto de sua torre de Babel. A questão decisiva é por
que ele ainda não se estatelou no chão duro dos fatos.
Essa
demora é plenamente explicável. Um motivo relevante consiste em que o
dinheiro, ao longo do século 20, perdeu a sua própria substância de valor. Até
à Primeira Guerra Mundial, todas as moedas eram lastreadas no ouro, que era o
verdadeiro dinheiro mundial. Com esse vínculo no valor objetivo do dinheiro,
criou-se uma espécie de ''freio automático'' contra a ampliação sem limites
do volume monetário no sistema financeiro. Toda bolha especulativa que
ultrapassasse as perspectivas realistas do crescimento real não tardava, com
isso, a ser estourada. As economias de guerra dos primeiros anos do século
obrigaram os Estados, porém, a desvincular suas moedas do ouro, a fim de poder
financiar os custos imensos da indústria bélica. Quando o deficit spending
estatal teve de guiar a conjuntura também nos tempos de paz, logo ficou claro
que não podia mais haver volta para o ouro. Keynes, que legitimou teoricamente
esse desenvolvimento, chamou-o de ''metal bárbaro''. Enquanto o dólar, como a
nova moeda mundial, ainda era passível de conversão em ouro, o sistema
financeiro global permaneceu lastreado, ao menos de forma indireta, no ouro. Porém
desde que, em 1973, esse último freio foi eliminado, não só o endividamento
estatal, mas também a especulação, puderam desvincular-se da economia real,
uma dimensão antes inconcebível.
Com
isso, porém, não se elimina a lógica fundamental do sistema, que liga o
crescimento do capital à substância do trabalho (produtor de capital). A queda
da acumulação aparentemente autônoma de capital ocorre, justamente, de uma
altura ainda maior (hoje quase que estratosférica) e com consequências tanto
piores. O carrossel das bolsas só consegue girar enquanto afluir mais e mais
liquidez. Tão logo caia o fluxo de liquidez adicional, sobrevém o grande crash
e evapora-se criação irreal de dinheiro. A liquidez, no entanto, não pode ser
ilimitada; fosse assim, o Estado emitiria dinheiro e o distribuiria entre seus
cidadãos.
De
onde vem a gigantesca liquidez que alimenta, atualmente, os mercados acionários?
No essencial, ela consiste do excedente histórico dos patrimônios monetários
do período do ''milagre econômico'' nos países ocidentais, após a Segunda
Guerra Mundial. Avaliado pela dívida privada e estatal, este capital há muito
estaria socialmente depreciado, mas, ao que tudo indica, trata-se da grandeza
positiva de saldos reais. São as gerações de 30 a 50 anos, ofuscadas pelas
altas da bolsa, que, como ''novos herdeiros'' desse dinheiro, alteram as formas
conservadoras de investimento de seus pais e avós (poupança, títulos públicos
etc.) nos mercados de risco da especulação das ações. Na Alemanha, só no
primeiro semestre de 1997, os pequenos investidores foram responsáveis por mais
de 15 bilhões de marcos em fundos de ações; segundo estimativas, o total
subiria a 2 trilhões de marcos. Nos Estados Unidos, nos primeiros sete meses de
1997, afluíram quase US$ 140 bilhões para os fundos de ações. Estes são os
mais importantes propulsores da bolha especulativa global, de Wall Street aos
duvidosos balcões de aposta nos confins do mundo. Inconscientemente, os ''novos
herdeiros'' impelem, desse modo, o capital dos patrimônios privados para o
forno, onde podem ser queimados com maior rapidez. Pois a depreciação dos títulos
públicos e da poupança seria uma política temerária, ao passo que a depreciação
de ações especulativas ocorre ''como por si mesma'', e ninguém poderá acusar
o Estado por esse fato.
Nos
últimos 15 anos, os Estados buscaram, com uma política neoliberal, responder
à crise emergente do sistema. Justamente por meio dessa política uma
combinação de medidas drásticas de contenção de despesas estatais, redução
da taxa de juros e desregulamentação dos mercados financeiros eles
acabaram por contribuir para a atual situação paradoxal e irregular. Se, com a
poupança permanente, a tendência estagnante e deflacionária da economia real
foi fortalecida, a desregulamentação, por sua vez, abriu todas as comportas à
especulação, que, com as baixas taxas de juros (em termos históricos) nos países
industriais do Ocidente, ganhou novo impulso. Como a inflação é calculada
apenas com base nos preços da economia real, ela parece ter repentinamente
desaparecido. Na verdade, o potencial inflacionário está ''estacionado'' nos
mercados financeiros inflados como bolhas gigantes, e ali não se manifesta como
um dado real.
Os
Estados não podem, todavia, repousar eternamente nas atuais baixas taxas de
juros. À medida que precisarem, com urgência, de mais fresh money, eles
próprios terão de subir os juros. Com isso, eles necessariamente entram em
concorrência com os mercados acionários, a alavanca para o incremento da
especulação com dinheiro barato se parte e o enorme volume de créditos podres
não pode mais ser coberto. É previsível, de resto, onde terá início o
inevitável desastre, a saber, nas economias desencantadas do leste da Ásia.
Quando, a começar por lá, o nível geral das taxas de juros for elevado, ruirá
de cima a baixo o castelo de cartas global.
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