O OLHAR FIXADO NO OCIDENTE: CAINDO DO FOGO NA BRASA

Robert Kurz

A ilusão dos "modelos"

Compreende-se muito bem que o triste colapso das economias de comando baseadas na economia de guerra provoca o grito por uma "autêntica" economia de mercado. As velhas e gastas roupas ideológicas que ninguém quer mais ver já estão se esfarrapando. E uma vez que o conflito histórico com o Ocidente sempre se passou dentro do sistema produtor de mercadorias da modernidade, essa exigência tem certa justificação imanente. Para voltar ao ponto de partida: parece que o Ocidente venceu; e sobre o fundamento do sistema produtor de mercadorias não apenas parece ser assim. O único problema é que esse fundamento não é mais firme.

Sem dúvida, o princípio da concorrência e o revezamento flexível de estatismo e monetarismo "funcionaram" de fato melhor, na época pós-guerra, do que o socialismo de caserna que foi se paralisando até a imobilidade; garantiram melhor tanto o valor de uso quanto a produtividade, criaram de acordo com isto mais necessidades e maior gozo de vida e liberaram maiores potenciais emancipatórios. Seria inútil não querer reconhecer esses fatos e insistir numa constelação irrecuperavelmente passada, uma concepção do socialismo dos "mercados planejados", com aquela obstinação incompreensiva que estão demonstrando atualmente os restos de uma esquerda pseudo-radical do Ocidente, que adotam frente ao colapso da RDA e do antigo "bloco socialista" uma atitude puramente negativa e defensiva, culpando o Ocidente de uma estratégia de incorporação "imperialista" e remexendo as cinzas à procura de alguma coisa que mereça ser conservada, em vez de ver nesse colapso aquela libertação negativa que ele na verdade representa.

No entanto, é apenas a libertação da ilusão de um socialismo concebido na base da sociedade de trabalho e imanente ao capital, concepção que, por razões históricas, nada mais gerou que um ramo lateral da modernização burguesa que agora se extingue como o homem de Neanderthal. Ainda não surgiu nenhuma perspectiva social nova, que transcenda o sistema produtor de mercadorias; assim, aqueles que realmente se despediram das velhas ilusões trocaram-nas por ilusões novas. A consciência social ainda não compreendeu que o princípio da concorrência funciona bem demais, e o que realmente significa isso. O instantâneo histórico mostra a imagem de uma vitória grandiosa da forma ocidental, autêntica, baseada na concorrência, do sistema produtor de mercadorias, ainda que o brilho resulte apenas da comparação com o colapso do socialismo real. A circünstância de que se trata apenas de uma comparação de duas ruínas da modernidade decaídas em graus diferentes não pode ser percebida do ponto de vista imanente da alma entregue à mercadoria.

Assim, o grito por uma "autêntica" economia de mercado mobiliza a esperança das massas quanto a uma elevação rápida do nível de vida. Tudo, mas tudo mesmo, parece ser melhor do que o status quo; ninguém quer outra coisa além de finalmente poder comprar algo com seu dinheiro e finalmente sair da economia de escassez desgastante, da monotonia cotidiana da socialização de caserna e da caça cansativa a negócios de troca em espécie e de mercado negro. A esquerda ocidental, enquanto não tem nenhuma nova perspectiva para apresentar, não tem nenhum direito de torcer o nariz ou de indignar-se com os economistas desesperados do Leste, que, como gatos escaldados, passam de vento em popa para a ideologia ocidental mais militante da economia de mercado, de matiz monetarista, agarrando-se às idéias de um Milton Friedman, que defende de forma mais radical os benefícios da invisible hand do mercado contra toda regulamentação estatal da procura e dos investimentos, e recuando até das moderadas intervenções estatais keynesianas da social-democracia ocidental.

Mas por mais compreensível que seja essa reação, somente pode fazer com que se caia do fogo na brasa. O erro de pensamento fundamental consiste em considerar a própria miséria um simples "erro" que se imputa aos socialistas estatais ou até àquele Karl Marx a quem se atribui agora a sentença irreverente-satírica: "Sinto muito, rapazes, foi apenas uma idéia minha". Atrás disso oculta-se uma concepção de formações sociais que procura a origem destas em "modelos" certos ou errados: mais uma vez o velho pensamento iluminista indestrutível, desta vez vindo da direita. Mas não foram "realizados" modelos deste ou daquele tipo, tal como sempre supõe a ideologia subjetivista burguesa; ao contrário, fez-se valer um processo histórico cego, em que o "socialismo estatal" das economias de comando, baseadas na economia de guerra, somente era um elemento objetivamente suscitado. E por outro lado, também o mercado mundial ocidental não é nenhum modelo excogitado por cabeças pensantes, mas sim apenas um elemento do mesmo processo histórico da modernidade,

Por isso, não está sendo substituído agora um modelo social e econômico errado por um modelo correto, o que poderia conduzir à paz e ao bem-estar, mas sim está se impondo de forma abrangente a lógica de crise do sistema produtor de mercadorias. O colapso dos "mercados planejados" é apenas uma parte dessa crise global. Se nos lembrarmos da exposição de Kritzman da inversão lógica e prática que distingue a economia de guerra estatista da economia de concorrência, sobre a mesma base do trabalho abstrato, poderemos facilmente imaginar no que resultará de fato a suposta troca de modelo. Será um "fenômeno essencialmente igual", isto é, a simples substituição da forma oriental da crise pela forma ocidental.

Enquanto nas sociedades da economia de comando as massas nada podiam comprar, apesar de sua capacidade aquisitiva formal, agora, ao contrário, nada podem comprar porque, apesar da abundância nas lojas, não têm mais dinheiro.(1) O "serviço folgado" nas empresas da economia de escassez, subvencionadas pelo Estado, está sendo substituído pelo óbvio desemprego em massa; o congelamento estagnante da crise, pela dinamização desta. Se a monotonia da sociedade de caserna parecia insuportável, a monotonia do dinheiro e de seu automovimento libertado não trará nenhuma melhoria. Tanto aqui quanto ali, a penúria não está condicionada pela escassez de recursos naturais, materiais e humanos, mas unicamente pelo fetichismo social do valor abstrato, mudando para as massas apenas a sua forma. Enquanto antes as empresas, com sua pmdutividade inferior ao nível social mundial, produziam valores de uso duvidosos, ficam hoje em proporção crescente definitivamente paralisadas, em aplicação rigorosa das leis do mercado. O negativo pouco nítido da relação capitalista está sendo substituído por um positivo perfeitamente nítido, cujo aspecto apenas pode inspirar horror.

O novo darwinismo social

De certo modo, essa simples troca de forma da miséria manifesta-se também na consciência como onda de maus pressentimentos, os quais, no entanto, por falta de uma alternativa com alguma perspectiva, não encontram nenhum apoio. Ao mesmo tempo continuam florescendo as ilusões porque o olhar à realidade é ofuscado pelo brilho aparente dos vencedores ocidentais no mercado mundial, com a RFA à frente de todos. Esse olhar fixo evita propositadamente os fenômenos de crise do Ocidente, que parecem insignificantes em comparação aos seus próprios. Os males do desemprego em massa e da nova pobreza, tais como estão se espalhando pelo Ocidente desde os anos 70, não são desconhecidos, porem não são levados a sério nessa perspectiva distorcida.

Pois, em primeiro lugar, a pobreza em massa do Ocidente não é tão claramente perceptível quanto a da economia de escassez, onde pode ser verificada todo dia nos supermercados vazios. Os paraísos de consumo nas áreas de pedestres, ao contrário, e os hipermercados na periferia, a ideologia de luxo dos anos 80, tão onipresente quanto desvairada, que no início dos anos 90 parece definitivamente passar dos limites, o teatro absurdo das "Compras Emocionantes", humilhante para um Samuel Beckett, e o oufit das massas ocidentais, com seu chique fantasmagórico, têm que ofuscar uma consciência cuja cobiça, acumulada em décadas de abastecimento precário, não quer nem ver outras coisas.

Do mesmo modo que um faminto até praticaria canibalismo, os homens do Leste estão programados para a necrofagia do fetiche de consumo ocidental, que nada mais é que uma manifestação invertida de sua existência faminta.(2) Por isso, não podem e nem querem compreender que a pobreza material, espiritual e anímica se manifesta no Ocidente de forma mais silenciosa e imperceptível ou, por assim dizer, com maior naturalidade. Essa pobreza quase poderia ser tomada por um mero produto de propaganda do regime fracassado, com sua economia de guerra, apesar de os fatos dizerem outra coisa. No outono de 1989, ao mesmo tempo em que o colapso dramático da RDA dominava as manchetes, apareceu numa das últimas páginas a seguinte notícia modesta:

Mais de 6 milhões de pessoas na República Federal, 10% da população, são pobres. A esse resultado chega um "relatório de pobreza" da Associação Alemã Paritária de Bem-Estar (DPWV), apresentado em Bonn, na quinta-feira, por seu presidente Dieter Sengling. A DPWV é uma organização de cúpula de mais de 6 mil organizações de utilidade pública. O relatório define a pobreza não apenas como renda que se encontra em 50% abaixo da média da RFA, mas inclui também o trabalho, a moradia, a saúde, a educação e o ambiente social. Pobres são muitos desempregados permanentes, aposentados, mulheres que educam sozinhas seus filhos, famílias com muitos filhos, estrangeiros, refugiados, deficientes físicos e psíquicos, desabrigados e estudantes. Aluguéis altos e dívidas tornam pobres até famílias da classe média. Sengling fez o apelo de não se fechar os olhos, nas comemorações do quadragésimo aniversario da fundação da RFA, a determinados recordes de crescimento. Desde 1980, o número de beneficiados pela assistência social teria aumentado em mais de 46%, ultrapassando os 3 milhões. Mas das pessoas que tinham direito a essa assistência, apenas 48% a teriam solicitado, de modo que muitos idosos fariam parte dos "pobres envergonhados". O desemprego permanente teria aumentado, desde 1980, em mais de 500%, atingindo mais de 680 mil pessoas. Apenas 39% dos desempregados estariam recebendo o auxílio-desemprego, o resto teria sido excluído desse círculo, recebendo apenas assistência social. Sengling acusou os políticos de negarem a pobreza. Dessa maneira seria possível fechar os olhos ao fato de haver pessoas vivendo à margem da sociedade. E essa atitude, por sua vez, possibilitaria a rigidez da reforma do setor de saúde em relação aos enfermos crônicos e deficientes, o fim do apoio às iniciativas de desempregados após a nona modificação da lei sobre o incentivo ao trabalho e o aumento da assistência social muito abaixo das necessidades. Sengling exigiu do governo federal relatórios de pobreza nacionais, como base do combate à miséia social. Seriam recenseadas árvores frutíferas, galinhas e quantidades de lixo, mas não existiria nenhuma estatística da pobreza, porque esta poderia estragar as estatísticas de sucessos. [FrankfürterRundschau, 10.11.1989]

A "margem da sociedade", aqui timidamente mencionada, deve ser bem larga, pois já tornou-se habitual a designação de "sociedade de dois terços" para a RFA, campeã mundial de exportação. Não obstante, as massas empobrecidas, bem como os "novos economistas" do Leste, adotaram aquele ponto de vista dos políticos, porque não podem e nem querem ver a realidade ocidental em sua complexidade, seguindo uma percepção seletiva que apenas pode ser explicada a partir de sua situação histórica.

Acrescenta-se ainda que aquele olhar seletivo é turvado pela esperança irracional de uma situação de mudança radical, em que cada um por si pode recomeçar do zero e construir uma posição social nova Essa esperança provocou uma nova tendência social-darwinista, muito forte e com efeito embrutecedor. Pois os homens, mais do que fartos do bivaque permanente de uma prussianização estruturalmente militarizante, não apenas querem escapar à economia de escassez, mas também, ao mesmo tempo, às relações de comando que penetram até a esfera íntima e nas quais a individualidade abstrata das mônadas-mercadoria-dinheiro, que se formara por um lado, era sujeita todo dia, por outro lado, a exercícios intelectuais e culturais a passo de ganso. Mas a libertação da uniformidade opressora faz surgir imediatamente o lema "cada um por si, e Deus contra todos", pois não é a libertação do sistema de trabalho abstrato, mas sim, ao contrário, o ultimo desencadeamento desse sistema.

Dessa forma, acaba-se também. com aquela idílica "solidariedade", tantas vezes citada, que fora cultivada nos cantinhos privados, para enfrentar os desafios da economia de guerra; esta revela-se agora como a solidariedade forçada de uma vida social num acampamento cercado de arame farpado, que se desfaz no mesmo momento em que desaparece sua base de referência negativa. Euquanto dessa maneira se impõe a cobiça há muito tempo acumulada daqueles que se imaginam defraudados do consumo fordista, as pessoas estão se entregando sem escrúpulos, em face dos paraísos de consumo, de repente aparentemente acessíveis, àquela ideologia privada de eficiência e rendimento que, sem piedade para com as perdedores, faz depender a sorte e a desgraça de cada um unicamente dele próprio, em sua individualidade abstrata.(3)

Essa ideologia do sucesso self-made, reativada incessantemente na economia de mercadorias e degenerada há muito tempo, no Ocidente, a uma pose histérica, encontra em toda a sua ingenuidade novos adeptos no Leste. A crença na própria força de se impor e de ter sucesso, que em nosso país apenas pode ser inspirada a muito custo, mediante psieoginástica e psicofármacos, está de volta no otimismo individual oriental, sobretudo de certos jovens e infernais pais de família, que têm menos motivos para tê-la. A esperança obstinada de poder impor-se contra os próximos universalmente concorrentes, mediante disposição ao trabalho, conhecimentos e empurrões, não apenas é animicamnente perversa (que se queixem disto os moralistas profissionais das igrejas, que eles próprios contribuem para apoiar o sistema), mas completamente ilusória do ponto de vista sócio-econômico, porque o sistema produtor de mercadorias, em seu atual nível de desenvolvimento, tem que produzir perdedores em massa.

Massas de novos concorrentes, dispostos ao rendimento máximo, podem apenas fazer subir o nível de rendimento; assim, tratar-se á de perder num alto nível do dispêndio absurdo de "nervo, músculo, cérebro" (Marx).

A pirâmide do mercado mundial

Mas além de ideologias de rendimento individualistas e das ilusões social-darwinistas daí resultantes, o que distorce a perspectiva das massas do Leste — e este é o fator mais importante — é a concentração do olhar naquelas economias ocidentais de concorrência que, por enquanto, se apresentam com sua economia nacional como vencedoras. No fundo restaram destas apenas a RFA e o Japão. Do mesmo modo, portanto, que não se quer ver as massas de pobres e perdedores na RFA, vencedora no mercado mundial (e naturalmente, toda a Europa oriental, a oeste do Ural, crava os olhos "neste nosso país"), deixa-se assim também de perceber a grande maioria das economias nacionais ocidentais dentro da OCDE que, em comparação à RFA, são perdedoras, apesar de todas elas possuírem também o "modelo certo" da economia de mercado, isto é, participarem realmente no processo cego do mercado mundial.

De fato já existem hoje, mesmo nas sete "grandes" nações da OCDE (além do Japão e da RFA, estas são os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a França, a Itália e o Canadá), o supra-sumo das economias de concorrência ocidentais, vastas regiões e parcelas crescentes da população que estão em grande parte excluídas da produção de riqueza abstrata, e isto em grau muito mais alto do que o terço de pobres da RFA.(4) É conhecida a agonia dos antigos centros industriais do norte da Inglaterra, do mesmo modo que os cortiços dos Estados Unidos, verdadeiros infernos dantescos de completa depravação humana. Em algumas partes de Nova York, metrópole simbólica da liberdade e da economia de concorrência ocidentais, o nível e a expectativa de vida encontram-se abaixo do nível de Bangladesh. E a "chance" de acabar em cortiços já é muito maior nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha do que na RFA, porque aquelas ex-potências mundiais já se tornaram países de segunda categoria.

Isso se aplica muito mais à periferia européia, sobretudo a do sul. O nível de vida no sul da Itália, na Espanha, em Portugal, na Turquia e na Grécia, todos eles partes da economia de mercado ocidental, encontra-se para a maioria da população, sem dúvida, muito abaixo do nível da RDA da era Honecker. E nem é preciso falar da grande maioria dos países do Terceiro Mundo, de orientação ocidental, com sua depauperação inegável. O mercado mundial das economias de concorrência, do qual as economias de guerra do socialismo real se isolaram apenas externamente, do ponto de vista político e militar, durante um espaço histórico limitado, não se apresenta globalmente, portanto, de forma positiva, o mundo "mais certo", melhor e feliz; ao contrário, o melhor funcionamento do sistema produtor de mercadorias gerou, mesmo tempo, de acordo com sua natureza, relações de pobreza e potenciais de destruição, como reverso da medalha, e isto acompanhado por um escalonamento de vencedores e perdedores.

O Japão e a RFA encontram-se hoje em primeiro lugar; mesmo assim, produziram sua própria pobreza de massas interna. A essas economias nacionais vencedoras segue a segunda categoria dos sete "grandes" países, onde a pobreza e a destruição não apenas se apresentam em maior escala, como também se dividem de forma muito mais acentuada em vencedores e perdedores as regiões do país, os bairros das cidades etc. Ainda maior é a distância à periferia capitalista, cujas economias nacionais, abstraindo-se das regiões favorecidas pelo turismo, se aproximaram durante os anos 80 cada vez mais das condições do Terceiro Mundo. Formam a base da pirâmide, por fim, os "casos sociais mundiais" da África, da América Latina e de outras regiões de miséria do Terceiro Mundo, cuja situação piorou dramaticamente e onde já fazem parte da vida cotidiana aquelas catástrofes de fome que na imprensa soviética são apenas profecia fatídica.

Essa observação superficial do mercado mundial e de sua hierarquia, na qual agora estão sendo encaixadas forçosamente as economias de comando em dissolução, já mostra claramente que o melhor funcionamento da economia de concorrência ocidental, para a grande maioria dos homens que vivem nela, já faz parte do passado. Atrás do véu da ideologia de "mudança" e dos penduricalhos de luxo dos anos 80, essa capacidade de funcionamento se afastou das necessidades das massas como jamais antes em sua ascensão histórica.

Mas precisamente esse aspecto do mercado é tratado unanimemente como tabu, tanto pela direita quanto pela esquerda, tanto pelos neomonetaristas católicos da Polônia quanto pelos camaleões da RDA, pelas mártires e figuras simbólicas dos movimentos orientais pelos direitos civis e pelos restos da esquerda radical do Ocidente, pois chamaria a atenção para a crise global de todo o sistema produtor de mercadorias, ao qual estão sujeitos todos eles, só que com acentuações diferentes. Deixa-se de considerar a relatividade da diferença entre os imperativos do sistema que são de proveniência estatista e aqueles de proveniência monetarista. Crise e colapso são apenas atribuídos às economias orientais de comando, enquanto os fenômenos análogos nas demais economias do mercado mundial são definidos, segundo a base ideológica, ou como preço social lamentável que se tem que pagar pela "preponderância do capital" ou como pequenos defeitos estéticos no triunfo louvável do segundo melhor de todos os mundos (já que pareceria impossível encontrar o melhor). Assim, a esquerda exercita-se a choramingar e a direita, com retórica de sucesso, enquanto a história já começou a tirar-lhes o fundamento comum por baixo dos pés.

O segundo momento de susto histórico do colapso da socialismo real produziu, portanto, um clima ideológico muito peculiar em que o contraste desvanescente entre o Leste e o Oeste, sempre apenas relativo, apresenta-se como absoluto, enquanto os fatos sociais e econômicos mais óbvios são sistematicamente reprimidos ou percebidos de forma totalmente distorcida. A obstinação com que também no Ocidente todos os ideólogos idolatram, defendem e conjuram as categorias da economia de mercado, como se tivesse alguém, além daquele "outro" e obscuro Marx, que jamais as tivesse fundamentalmente atacado, apenas pode sinalizar seu fim iminente. Somente assim explica-se a apologética histérica e quase ladrante do dinheiro que atravessa todas as posições políticas e ideológicas — justamente no momento de seu suposto triunfo supremo.

Nessa névoa de uma iniciada transição histórica, que conduz a um terreno desconhecido, as antigas idéias estão correndo desconcertadas de lá para cá, para lembrar-se por fim, apesar de terem sido até agora inimigas mortais, de sua base comum, a sociedade de trabalho, e implorar aos ídolos de sucesso da economia de mercado a conservação do status quo. Essa idolatria já anacrônica manifesta-se como incitamento recíproco ao otimismo e a pôr mãos à obra, para colocar, na última hora, um estimulador cardíaco no antigo mundo da caça ao dinheiro, já em estado de coma. Mas o imaginado status quo ocidental de prosperidade nem precisaria ser conjurado, se ainda existisse. Tanto os ideólogos quanto massas do Leste, Oeste e Sul estão se enganando uns aos outros e a si mesmos, fingindo uns que ainda se encontram nesse estado, e os outros, que somente aguardam o momento de alcançá-lo.

Um único olhar perspicaz à situação mundial efetiva deveria revelar que o Leste somente pode esperar agora uma única coisa, a saber, ser encaixado no penúltimo segmento, ou em parte até no último e inferior, da pirâmide do mercado mundial. Por mais inequívoca que se apresente essa opção, é impossível que seja aceita por aqueles cuja noção está marcada, com toda razão, por ódio e repugnância das estruturas experimentadas das economias de comando. Pelas razões já mencionadas, somente podem perceber de forma seletiva a realidade do mercado mundial ocidental. Mas mesmo que a vivência de pobreza e sofrimento crescentes, em vez de reduzidos, provoque um dia algo como uma lembrança nostálgica do socialismo estatal desaparecido, com seus cantinhos e suas dachas, todos sabem que não pode haver nenhuma volta. O socialismo real tinha que fracassar em sua própria irracionalidade interna, na forma-mecadoria levada ao extremo do absurdo e na relação insustentável com o exterior, na qual esta se realizava de forma negativa. Acabou-se o tempo da modernização recuperadora, e não pode ser jamais chamado de volta. (5)

Crise da reforma em vez de adaptação ao mercado

A despeito de todas as promessas e ilusões ideológicas e de todo auto-engano, a decadência real torna-se cada vez mais clara, e isto, por um lado, como galopante processo de colapso sócio-econômico e político que ainda está muito longe de passar por todas as suas formas, e, por outro, como impossibilidade de adaptar-se ao "modelo" ocidental ardentemente almejado, apesar dos esforços mais desesperados, à maneira da figura de um Lázaro cada vez mais decaído. Seria plausível pensar que o processo de colapso que está se intensificando de mês para mês, de semana para semana, implicasse a adoção imediata e incondicional do modelo ocidental, desde que se trate mesmo de um modelo. Mas os governos "virados" e os "novos economistas", bem como a maior parte dos "reformadores", desmentem-se a si mesmos ao hesitarem apreensivamente e recuarem de ações conseqüentes, atitude incompreensível do ponto de vista de sua própria ideologia.

Em todos os Estados das economias de comando moribundas, a produção industrial já estava caindo durante o ano de 1989, e desde então está em queda abrupta. Em 1990, caiu na Tchecoslováquia em aproximadamente 4%, na União Soviética (onde a estatística está falhando cada vez mais), em aproximadamente 10%, na RDA (no período anterior à reunificação), em 30 a 40%, na Bulgária, em aproximadamente 10%, na Iugoslávia, em aproximadamente 20%, e na Polônia, adepta radical da economia de mercado, em pelo menos 30%. As taxas de crescimento também estão diminuindo, conforme se ouve, na Hungria, na Roménia e — no âmbito extra-europeu — na China, no Vietnã e particularmente em Cuba. Os balanços negativos continuam irrefreados no primeiro trimestre de 1991: na Polônia, a produção industrial caiu em outros 25%, na Alemanha Oriental, em mais de 50% (iniciando-se com isto a crise da reunificação alemã), na Tchecoslováquia, em 12%. Incluindo-se ainda a parte potemkiana, também crescida, da produção que aparece na estatística, todas as ex-economias de comando e as ainda existentes encontram-se numa profunda depressão, acompanhada de surtos de hiperinflação e colapsos do sistema monetário. Tanto na União Soviética quanto em todo o Leste europeu, o marco ocidental e o dólar tornaram-se há muito tempo a moeda verdadeira, existindo ao lado deles, em algumas regiões, a moeda-cigarro e outros objetos que substituem o dinheiro na troca em espécie.

Esse processo está acompanhado de um desemprego em massa que vai crescendo de semana para semana e quase já de dia para dia, desemprego que em alguns países nem aparece na estatística e apenas pode ser estimado aproximadamente, chegando uma parte dos prognósticos para os próximos dois a dez anos a números apavorantes. Até o fim do século, o "reformador" soviético Abalkin prevê 12 a 15 milhões de desempregados; para o mesmo período, estimativas oficiais chinesas falam de 240 a 260 milhões (!) de desocupados. Precisamente na China está se iniciando, quase despercebida pelo público ocidental, mais interessado no Leste europeu, uma gigantesca catástrofe sócio-econômica com conseqüências incontroláveis. As condições atuais já são desesperadoras:

Dos 10 milhões de pessoas que em 1989 procuravam um emprego, mal a metade encontrou uma vaga. Especialistas consideram retocados os números oficiais e estimam a taxa de desemprego em 10% no mínimo. Nos grandes centros urbanos está ainda mais alta. Em Xian, no noroeste da China, por exemplo, estavam, em novembro, até 20 a 30% da população sem emprego e sem pão. O desemprego rural nem aparece na estatística — milhões de camponeses têm apenas ocasionalmente um emprego; chega a 60 milhões o número de chineses que estão percorrendo o país à procura de alguma ocupação. [Der Spiegel, 25.12.1989]

De fato iniciou-se uma onda de movimentos migratórios que leva a população do Norte ao Sul mais, desenvolvido e favorecido pelo planejamento perspectivo, com suas zonas econômicas especiais, onda da qual o Sul não pode dar conta e que pesa insuportavelmente sobre as cidades: "Nas praças públicas áreas verdes e nos parques estão acampando centenas de milhares de pessoas." (Die Welt, 10.5.1989)

Nada melhor é a situação nos pafses reformadores do Leste europeu. Na Tchecoslováquia esperava-se até o final de 1990, o mais tardar no decorrer do ano de 1991, 750 mil a 1 milhão de desempregados devido à diminuição da produção e às paralisações de empresas. Na Bulgária, segundo as informações da Associação Industrial, "setores industriais inteiros estão à beira do colapso". A Polônia, que desde 12 de janeiro de 1990 introduziu oficialmente, com a bênção do Banco Mundial, a "livre" economia de mercado, perseguindo nesse processo o ministro da Fazenda Balcerowicz — com a assistência do monetarista Sachs, formado em Harvard — um rigoroso curso de austerity, conseguiu em poucos meses aumentar seu desemprego oficial de zero a meio milhão; até o meio do ano, já alcançou quase 1 milhão, e até o final de 1991, a expectativa é de pelo menos 2 milhões.

A transição à queda livre, e esta é a graça, deve-se tanto às reformas no sentido da "economia de mercado" quanto ao colapso do sistema antigo, e também, em parte, às reações sociais às conseqüências das reformas (greves, tumultos e revoltas). Aqui o absurdo mundo ideal monetarista, isto já se pode dizer agora, terá muito menos a ver com a realidade sócio-econômica do que no Ocidente. Todo o ex-bloco oriental revela seu caráter capitalista precisamente pelo fato de cair no conflito entre a abstrata lógica de produtividade do dinheiro e a necessidade de reprodução social. A crise oriental confunde-se de forma diabólica com a crise ocidental, e nesse dilema entre a cruz e a espada revela-se o sistema produtor de mercadorias) de forma exemplar, como beco sem saída. A cada dia progride o colapso das antigas estruturas da economia de comando, torna-se a situação mais insuportável e clama por mudança; mas cada passo de mudança em direção à "liberdade" do dinheiro traz, por sua vez, novos fenômenos de crise, novas catástrofes e condições insuportáveis.

Assim, é de admirar que os "reformadores", e até os monetaristas recém-convertidos, não parem de pôr as mãos à obra, realizando mudanças no sentido da economia de mercado, para logo em seguida retirarem as mãos queimadas. Na China, as reformas de Ding (particularmente aquelas do sistema de preços), elevadas com grande pompa ideológica ao grau de uma doutrina nova, foram em grande parte revogadas. De modo algum isto aconteceu apenas para salvar a pretensão de poder do Partido, conforme afirmam os meios de comunicação ocidentais desde o massacre na Praça da Paz Celestial, mas também porque as conseqüências sócio-econômicas das reformas no sentido da economia de mercado estavam em perigo de escapar ao controle. Mas essa retirada apenas fez avançar a forma oriental da crise, o que poderia provocar uma nova reviravolta, e assim por diante, até também movimento espiral chegar ao seu final.

Nada diferente é a situação na União Soviética: uma onda de concepções e programas, leis e projetos de leis, medidas e a revogação das mesmas criou condições que apenas podem ser chamadas de caóticas. Os primeiros passos para liberar a propriedade privada no sentido ocidental apenas conduziram à fundação de "cooperativas" de especuladores e negocistas que a população odeia e cujos membros ocasionalmente já foram linchados. A duplicação dos preços dos alimentos, anunciada pelo primeiro-ministro Ryshkov em meados de 1990 e que se pretendia moderar por um sistema pouco claro de pagamentos sociais compensatórios, sucumbiu imediatamente à pressão das compras feitas em pânico. A segunda tentativa, em abril de 1991 (um terço dos rublos foi desvalorizado da noite para o dia), somente pôde ser imposta à custa de greves e tumultos violentos e contínuos em quase todas as regiões do país. Depois das ondas de compras feitas em pânico, os cidadãos enfrentaram chorando padarias vazias, e o Komsomolskaia Prawda comentou com ironia sardônica: "O fantasma do comunismo está deixando hoje nosso país, junto com os restos dos alimentos e bens de consumo cotidianos".

Enquanto os parlamentos das repúblicas parciais, bem como o Supremo Soviete, anunciam solenemente a introdução da economia de mercado, toda tentativa de realizar medidas concretas revela-se como bumerangue. E ainda que também aqui os meios de comunicação ocidentais responsabilizem pela hesitação o aparato antigo e seus interesses, deve-se essa atitude na verdade, do mesmo modo que na China, às conseqüências insuportáveis que resultam de todo passo de reforma prática. A "decadência contínua da disciplina de contrato" (Handelsblatt, 4.4.1990) nas empresas sempre pode apenas ser combatida por medidas que resultam em desemprego, encolhimento de ramos inteiros e novas formas de depauperação. (6)

A Hungria, outrora o país exemplar na realização de reformas, figurando agora entre os Estados com maior dívida externa, está se perdendo também numa infinita discussão político-econômica, na qual todos os novos "partidos democráticos", desde o Fórum Democrático, por intermédio da União dos Democratas Liberais, até o Partido dos Pequenos Burgueses, estão fazendo o possível para não se queimar: "O aumento do desemprego é considerado inevitável. Mas ressalta-se ao mesmo tempo que as empresas, operando continuamente no vermelho, somente podem ser fechadas gradualmente. Qualquer terapia de choque deveria ser evitada". (Handelsblatt, 19.4.1990)

Mas até na Polônia, onde Balcerowicz parece impor de fato uma terapia de choque, não se abriram realmente, por bons motivos, as comportas do mercado. As subvenções dos preços não foram abolidas, mas sim cortadas pela metade; a convertibilidade do zloty permanece fortemente restrita para as empresas; 80% indústrias permaneceram propriedade do Estado, e a lei de privatização, promulgada com atraso depois de debates violentos, nem foi posta em prática. Das 7 mil empresas pretende-se vender quarenta até meados de 1991, além de arrendar duzentas a trezentas das indústrias menores. Assim, não é de admirar que a maioria das empresas estatais tem que ser mantida a muito custo, sem qualquer perspectiva de solução. As empresas estatais em parte protelam a crise, de forma semelbante à ex-RDA, mediante trabalho reduzido e férias compulsórias não pagas, em parte continuam pagando os salários a partir de uma reserva antiga de divisas, originalmente previstas para investimentos urgentes.

O novo paradoxo, explicável apenas pela situação anterior, um "movimento operário monetarista", tal como se manifestou no Solidariedade, desmorona-se no avanço das contradições novas. As opções reciprocamente irreconciliáveis de "liberdade de mercado privada" e reprodução social no nível de um país industrializado, que apenas podiam ser ideologicamente unidas sob o teto de ilusões católicas, começam a transformar-se em confrontações hostis (7) — sem que transpareça alguma perspectiva que possa trazer mais do que a tentativa dos lideres de se virarem enquanto isto for possível:

Os empregados das empresas no Leste europeu pós-comunista não estão nada entusiasmados com a privatização anunciada das indústrias estatais. Conforme mostra o exemplo de algumas empresas polonesas, querem permanecer o maior tempo possível no setor estatal. Em Varsóvia houve recentemente protestos quando os empregados da conhecida fábrica de doces E. Wenzel souberam que a direção está negociando com um grupo empresarial suíço: o conselho local do Solidariedade não quis nenhuma modernização que levasse à perda de empregos. [...] Sem dúvida, Lech Walesa é teoricamente adepto da privatização, mas, no papel de político e líder operário, depende fortemente dos sindicatos e conselhos de trabalhadores. A velocidade da privatização depende, portanto, de muitos fatores, por enquanto desconhecidos. [Handelsb1att, 16.10.1990]

As ilusões de reforma neocapitalistas estouraram como bolhas de sabão: segundo as informações dos consultores de Walesa, a renda real dos poloneses encontra-se em 30% abaixo da renda obtida sob o antigo governo comunista; de cada três húngaros, segundo as informações do Ministério Social, um está vivendo hoje "em extrema pobreza"; o número de desabrigados vai aumentando, bem como nos grandes centros urbanos do Oeste, enquanto cada vez mais apartamentos impagáveis estão ficando vazios:

Em alguns bairros de Budapeste, 20 a 30% dos habitantes já não podem pagar o aluguel. Pessoas fidedignas afirmam que um terço da população húngara está vivendo abaixo do mínimo de subsistência, como quer que se defina este sob as condições modestas da Hungria. Em todos os cantos da capital foram instaladas cantinas populares: a Caritas, a Assistência Maltesa, a Cruz Vermelha, freiras indianas da ordem da Madre Teresa [!] estão distribuindo, ao meio-dia, centenas de refeições gratuitas. [FrankfurterAllgemeine, 20.3.1991]

O mesmo romantismo de cantinas populares está se espalhando pela Polônia, sob a orientação da Igreja Católica, que evidentemente passa a criar ela própria, no pior caso, a miséria a ser caritativamente atendida. Sobretudo muitos idosos literalmente têm que passar fome e morrer por não poderem mais pagar os preços dos alimentos básicos e remédios depois da supressão das subvenções estatais. O antigo sistema quebrou, manifestando-se o novo com brutalidade tanto maior, apesar de não poder ousar revelar todo o seu rigor. Mas também na constelação nova agarram-se todos os envolvidos com obstinação na lógica insustentável da sociedade do trabalho abstrato: os trabalhadores nada mais querem que assegurar, a todo custo, seu emprego e pão, e os governos e as direções de empresas nada mais querem que "rentabilidade". Ninguém pode nem quer meter-se numa outra perspectiva, de mudança radical, e os tons cada vez mais demagógicos de populistas como Ieltsin e Walesa não prometem nada de bom para o manejo futuro da matéria de conflito explosiva.

Apesar de não haver evidentemente nenhuma saída (e precisamente por isso), precisa-se continuar sem cessar na construção de um castelo ideológico no ar, que apenas mudou de nome. As antigas notícias inacreditáveis de sucesso e os apelos de perseverança do aparato de comando da economia de guerra estão sendo substituídos pelos produtos da imaginação, igualmente inspirados por Orwell, do novo elenco de políticos e economistas que defende a economia de mercado. Todo aspecto parcial insignificante é abalofado, tornando-se notícia de sucesso; assim, por exemplo, o abafamento talvez temporário da hiperinflação na Polônia, ainda que esse "sucesso" nada mais represente que o reverso do desemprego em massa assim produzido.

Sobretudo, porém é naturalmente o futuro mais ou menos distante que é pintado todo cor-de-rosa. (8) Do mesmo modo que os antigos regimes odiados, só que com sinal inverso, também os novos propagandeiam sacrifícios insuportáveis no presente em benefício de um futuro tão paradisíaco quanto imaginário, que agora passou a ser um próspero futuro neocapitalista. E do mesmo modo que os obscurantistas do stalinismo, também os novos profetas da economia de mercado atribuem todos os fenômenos de crise atuais, que na verdade são expressão da crescente incapacidade de reprodução do sistema produtor de mercadorias, à carga hereditária lamentavelmente pesada das estruturas "pré-revolucionárias": "Estão chorando, mas agüentando firme". (Der Spiegel, 9.4.1990)" (9) Esse estado de espírito dos católicos poloneses, evidentemente masoquistas, é também aquele que mais convém aos novos senhores.

O consenso ideológico fundamental é, portanto, por enquanto o seguinte: na transição ao modelo "certo" da economia de mercado, baseado na economia de concorrência, teria que haver, infelizmente, processos de adaptação dolorosos na marcha através de um vale de lágrimas, ao qual seguiria um dia, porém, como recompensa, a normalidade capitalista (que, por sua vez, é ingenuamente equiparada à normalidade até agora mantida dos "melhores" dois terços da RFA, vencedora no mercado mundial). Essa relação é estabelecida como curto-circuito, permanecendo as condições e estruturas da suposta "transição" uma caixa preta. Não se tem nenhuma idéia de como efetuar essa "transição".

Pois o mercado ocidental não é nenhum "modelo" estrutural abstrato, mas sim o mercado mundial altamente concreto. Como podem jamais fazer-se valer nesse mercado as economias em colapso do socialismo real? Por seu reconhecimento miserável de freedom e democracy ninguém vai lhes dar, a longo prazo, nenhum pfennig, nenhum cent e nenhuma máquina. As simpatias ideológicas das elites de mercado ocidentais não trazem nenhum apoio financeiro duradouro. Num nível de desenvolvimento entrementes muito mais alto do mercado mundial, os países do Leste enfrentam economicamente, na verdade, quase o mesmo problema que depois da Revolução de Outubro. Sem dúvida, trata-se agora em parte de populações ocupadas na indústria, mas suas indústrias foram derrotadas pela concorrência por não serem suficientemente "produtivas" e, conseqüentemente, ficarem cada vez mais atrás em sua capacidade de participar no mercado. O circuito lógico, porém, de que este atraso tem sua razão precisamente naquelas estruturas que, por outro lado, possibilitaram a industrialização recuperadora, esse circuito será rompido hoje muito menos do que antes.

Pois o que se exige não é aquele reconhecimento, mas sim esta produtividade. O problema tem dois aspectos. Primeiro, a ilusão dos modelos faz uma má figura no mercado mundial real, concreto, porque este exige a capacidade de exportação, como requisito básico. O "modelo" estabelece apenas a estrutura da economia de concorrência, mas a realidade exige que essa estrutura se imponha dentro do mercado mundial. De outro modo, não tem valor algum. Um país incapaz de competir no mercado mundial, com ou sem estrutura de mercado baseada na concorrência, permanecerá paupérrimo e será derrotado pela concorrência com violência tanto maior. A simples liberação dos mercados internos produziria apenas o caos, o que em parte já aconteceu. A abertura desses mercados ao exterior, porém, somente pode conduzir à depenação das próprias indústrias indefesas por concorrentes e intrusos ocidentais.

Em segundo lugar, uma vez reconhecido esse fato, a própria capacidade de exportação requer o nível de produtividade do mercado mundial real. Este, porém, não pode ser alcançado nem por esforço nem por medidas políticas reguladoras no sentido ocidental, mas unicamente por enormes investimentos de capital, e precisamente estes deixou-se de fazer durante várias décadas, em virtude de uma estrutura interna que somente era apropriada para as formas grosseiras e extensivas da produção de mais-valia. Não se necessita de investimentos como tais ou de invesimentos "mais adequados", mas sim de investimentos que possibilitem uma produção em "nível mundial". Isso significa hoje uma produção de capital intensivo e amplo emprego de máquinas, grandes despesas para pesquisa e desenvolvimento, uma enorme logística infra-estrutural, e tudo isso acompanhado de um desgaste moral (10) cada vez mais rápido dos agregados de equipamento. É exigida, portanto, uma reação em cadeia de investimentos tão enormes que os economistas logo pôr-se-ão a chorar.

Os amigos recém-convertidos da economia de mercado teriam que arrancar de seus povos, de repente, meios de investimento simplesmente inimagináveis, e isto durante anos e décadas. E mesmo então não estaria absolutamente garantido, em face do nível atual de produtividade que também no Ocidente já empurrou para o lado dos perdedores relativos a maioria dos países, o estabelecimento de uma relação satisfatória com o mercado mundial. Mesmo que estagnassem os mercados mundiais, os adeptos orientais da concorrência, cheios de esperança, não apenas teriam que derrotar os concorrentes ocidentais, mas também os newcomers asiáticos.

Pensemos no que isso significa. Enquanto as massas do Leste exigem como próximo passo, mas como o próximo mesmo, a estimulação do consumo, dirigindo unicamente por isso seu olhar ao Ocidente, a orientação no mercado mundial conduzirá exatamente ao contrário. Os animados amigos do povo e moralistas magnânimos neodemocratas, que, todos eles, não têm noção alguma de economia, teriam que se transformar em figuras três vezes piores do que Stalin; e mesmo nesse caso seria o empreendimento impraticável porque a população quase teria que morrer de fome para se poder conseguir os meios de investimnento atualmente exigidos. Pois a estrutura ditatorial e terrorista do regime stalinista não se explica pelos defeitos morais de alguns indivíduos ou de uma casta dominante, mas sim precisamente por esse dilema que se apresenta hoje mais do que nunca e de forma muito mais grave.

Daí pode-se avaliar como são infundadas as esperanças de que a prosperidade ocidental da época pós-guerra possa repetir-se milagrosamente no Leste. De fato completa e consolida-se a ilusão estrutural de uma troca de modelo pela ilusão histórica de uma repetição do milagre econômico. Mas a história não se repete nem nesse nível. As causas verdadeiras da prosperidade da época pós-guerra não se encontram na escolha do modelo "certo", tal como o sugere a ilusão iluminista referente ao sujeito, mas sim nos processos de evolução, independentes de sujeitos, do sistema produtor de mercadorias, processos que não podem repetir-se porque representam os estágios de uma progressão irreversível. (11) O mercado mundial está hoje muito mais desenvolvido do que nos anos após a Segunda Guerra Mundial, e com ele sua lógica global de produtividade, não podendo haver jamais uma volta àquele ponto de partida.

Isso começa a ser compreendido, aos poucos, também pelos especialistas ocidentais, que ainda nos meses das mudanças dramáticas dos anos 1989-90 foram levados a fazer promessas irrealizáveis, das quais hoje já estão sentindo vergonha. A euforia quanto às mudanças políticas começa a transformar-se em pânico por causa das conseqüentes despesas incalculáveis para o sistema mundial. Assim, já é declarado francamente, por exemplo, por cientistas do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IAW) em Berlim, que a União Soviética "não poderia ser integrada’ no sistema de mercado ocidental. Para os países reformadores do Leste europeu, uma nova pesquisa do Banco Mundial (de abril de 1991) desfez todas as ilusões, prognosticando sua volta ao nível de vida de 1989, no melhor caso, para o ano 2000; uma integração nos mercados mundiais teria que ser medida "em décadas e não em anos". Mas até esse prognóstico é duvidoso, porque aposta em futuras condições de crescimento do mercado mundial que também no Ocidente já se tornaram frágeis. As esperadas normalidade e prosperidade capitalistas não se aproximam pelas reformas, mas sim afastam-se para um futuro cada vez mais nebuloso.

 

NOTAS

(1) A esse respeito, os cidadãos da RDA receberam com a troca de suas economias na relação de 1:1 algo como uma última refeição no consumo ocidental, que ao mesmo tempo proporciona às indústrias de bens de consumo da RFA uns últimos dias de verão na conjuntura mundial já regressiva por outra parte. Mas, sem dúvida, o pior ainda está por vir.

(2) O fetiche do consumo corresponde ao fetiche do trabalho, sendo seu lado oposto; portanto, a sua crítica não pode consistir na atitude contrária de renunciar ao consumos tal como a prega a crítica esquerdista e romântica do consumo desde fins dos anos 60. A exigência ridícula de deixar de usar batedeiras, televisores e geladeiras, como reação à vaidade da vida fordista, não reconhece absolutamente o caráter do problema do fetiche: isto já revela a circunstância de que se responsabilizam diretamente as coisas, assim como são, pela miséria social O consumo torna-se necrofagia porque o fetichismo se oculta na forma social, isto é, porque lhe corresponde uma produção baseada no "trabalho morto". As coisas não podem ser objetos de gozo enquanto estão sujeitas à coação do trabalho morto, a qual se reflete no consumo e em suas formas até a incapacidade de gozar. O mandamento de sensibilidade, por parte do consumo, já é a priori desmentido pela obrigação à insensibilidade da produção do trabalho abstrato. É essa relação básica que tanto produz uma nova pobreza material, até no meio dos centros mundiais da riqueza, quanto impõe, ao mesmo tempo, ao consumo aquele caráter cadavérico. E somente na perspectiva de uma crítica radical dessa relação básica podem ser reconhecidos, em sua idealidade interna, e superados, tanto a pobreza material quanto o fetichismo do consumo, em vez de constituirem um antagonismo absurdo e de gerarem perspectivas da crítica que se excluem uma à outra. O crítico da miséria social que permanece dentro do horizonte do capital e está ele próprio sujeito ao fetiche sempre apenas clamará por mais dinheiro para os pobres; o crítico superficial da mania de consumo, ao contrário, pela renúncia e pela vida simples, sem que jamais cheguem a enfocar a contradição fundamental.

(3) Como se sabe, a governanta britânica do monetarismo, a (ex-) primeira ministra Margaret Thatcher, até chegou a negar a existência de uma sociedade humana que passasse da mera reação recíproca entre os indivíduos. Como ironia do destino, as conseqüências mortíferas dessa ideologia são hoje executadas na própria carne pelas vítimas da socialização do mercado mundial; isto ocorre, no entanto, menos à maneira de sujeitos individuais refletidos do que, ao contrário, àquela dos lemningues [pequemios roedores do hemisfério norte que, ao atravessarem braços de mar durante migrações à procura de alimentos, morrem em grande número, o que deu origem a lenda nórdica segundo a qual tais animais cometeriam suicídio em massa].

(4) A esse respeito, o Japão distingue-se em todo caso das condições ocidentais, porque nunca chegou a superar efetivamente em suas estruturas internas as condições do Terceiro Mundo. A pobreza dos idosos é em parte de uma brutalidade desconhecida na Europa, os salários e o nível de vida das massas de trabalhadores ocupados nas indústrias fornecedoras das empresas multinacionais são muitas vezes indignos de seres humanos, e a infra-estrutura encontra-se ao nível europeu dos anos 50: apartamentos sem banheiro e com latrina no pátio constituem antes a regra do que a exceção, e as estruturas de dependência, de pensamento e culturais, ainda de tom feudalista, com sua qualidade negativa, incompatível com a individualidade abstrata da sociedade de mercadorias, podem facilmente competir com o coletivismo militarista da economia de guerra do Leste europeu e da União Soviética, situação que se reflete em patotogias sociais e perturbações psíquicas. Essa sociedade completamente obsoleta em sua estrutura interna será a última a sobreviver a uma derrocada do mercado mundial e a primeira a fracassar em sua extrema orientação na exportação.

(5) Parece que cabe ressaltar especialmente esse fato, em face daqueles esquerdistas incorrigíveis que ainda acreditam poder fazer uma contabilidade eclética dos lados "bons" e "ruins" de um sistema social e falam com indignação, por exemplo, da supressão de uma "função protetora" dos sistemas nonetários internos do Leste, como se a convertibilização forçosa dessas moedas e os fenômenos de crise correspondentes (paralisação de empresas, desemprego em massa) não fossem um produto específico desses próprios sistemas monetários. Aqui manifesta-se uma vez mais uma visão distorcida, cujos problemas de percepção se originam em sua restrição às categorias da mercadoria, dentro das quais pretendem, mas já não podem, resolver os problemas.

(6) Entrementes, a paralisia na União Soviética avançou até o ponto de circularem cada vez mais novos boatos sobre um golpe militar iminente. Mas o dilema não será mesmo resolvido à maneira das repúblicas das bananas, o que já deveria ter demonstrado o exemplo polonês. O governo militar do general Jaruzelski durou apenas pouco tempo, porque a lógica económica não se deixa impressionar nem um pouco pela força das armas. Por outro lado, nem o mais recente plano de reforma de Ryshkov (originalmente considerado radical, agora rejeitado por Ieltsin e outros por sua falta de conseqüência), nem o chamado plano dos quinhentos dias de Chatalin, de caráter "radicalmente reformista", trarão uma adaptação ao modelo ocidental que se possa levar a cabo.

(7) O mesmo processo de divisão da oposição do antigo sistema, que agora chegou ao poder, realiza-se na Tchecoslováquia, onde o Fórum Burguês está se desunindo em confrontações hostis. Também o pregador de moral e amigo da paz e liberdade Václav Havel sentou-se como presidente num barril de pólvora cheio de explosivos antagonismos de interesses, confrontos irracionais e conflitos sociais sem saída, cuja superação, além de sermões, ele não possui nem o mínimo sinal de um programa.

(8) Isto acontece tanto por parte dos próprios novos ideólogos quanto por parte de seus aplaudidores e propagandistas. Assim, para citar um exemplo de muitos, o professor sueco Aslund não teve vergonha de prognosticar que a Polônia logo se tornaria um ‘tigre econômico’ europeu, bem como a Coréia do Sul na Ásia. Um caricaturista acrescentou à citação do professor a observação: ‘A cauda já está à vista’, desenhando em cima a cobra que se encontra na frente do consulado americano em Varsóvia. (FrankfurterAllgemeine Zeitung, 2.4.1990)

(9) Por mais estranho que pareça, nem as antigas teorias stalinistas de conspirações podem faltar, desta vez em sentido contrário. A vergonhosa falta de sucesso da perestróika e de seu herói Gorbachev é seriamente atribuida à "sabotagem do antigo aparato stalinista".

(10) A expressão "desgaste moral" é um termo da análise econômica do capital de Marx e significa a "perda de validez", na economia de concorrência, de parques de maquinaria e equipamentos, que do ponto de vista técnico podem ser absolutamente perfeitos, mas têm que ser afastados por não corresponderemn mais ao nível de produtividade mais recente, sujeito a mudanças aceleradas que o mercado impõe sob pena da diminuição da participação no mercado e, por fim, da falência. Assim acelera-se também a intensidade do capital na reprodução, isto é, aumenta cada vez mais o ritmo em que se tornam necessários novos investimentos no capital fixo constante (máquinas, robôs, sistemas operacionais), o que deixa também no Ocidente cada vez mais empresas sem fôlego.

(11) Falha nesse caso completamente a analogia à experiência das ciências naturais, cuja veracidade é confirmada pela repetibilidade ilimitada. As "leis" da "segunda natureza", economias de fetiche, cujo caráter de processos tem outra dimensão que a história natural, são essencialmente diferentes. Pois nesse caso estão mudando os fundamentos no decorrer do processo e chegam por fim a suprimir-se a si mesmos. A ilusão referente ao sujeito, que domina o pensamento iluminista, ao contrário, equipara de forma irrefletida a "primeira" e a "segunda natureza". Mas dentro da socialização na forma-mercadoria não existe nenhum modelo certo a ser verificado por experiências empíricas, pois a própria estrutura, em oposição à "primeira natureza", está sujeita ao processo histórico, não podendo ser restringida a seguir suas leis internas.

 

In. Robert Kurz, O Colapso da Modernização, 1991

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