CONTOS DE FADAS PARA A CRISE
A autobiografia de Frank Capra como grande bobo da corte
Hollywood,
todos sabem, é kitsch, glamour,
perfeição técnica, sentimentalismo, lágrimas falsas, dentes falsos e...
enorme sucesso há mais de 80 anos. A grandiosa máquina de sonhos do
capitalismo funciona como um relógio e produz na linha de montagem ilusões
para todo o mundo; não com a rígida coerção da propaganda e suas mentiras,
mas com o poder sedutor da oferta e suas mentiras. Mas não pode ser só o
dinheiro a grande realização de Hollywood. E não podem ser só os truques técnicos
que fazem constantemente derreter o coração dos espectadores. O poder de
Hollywood tampouco está no fato de as pessoas sucumbirem a uma refinada
manipulação, mas antes no fato de elas reconhecerem tal manipulação,
divertirem-se enormemente com ela e, ainda por cima, pagarem para tanto. O poder
de Hollywood é a arte talvez mais antiga do conto de fadas, traduzida na forma
da “reprodutibilidade técnica” (Walter Benjamin). Também nessa configuração
moderna e tecnológica, contudo, não existe conto de fadas sem um contador.
Muitos
livros foram escritos sobre Hollywood, mas apenas uns poucos sobre seus próprios
grandes contadores de histórias. Frank Capra foi uma exceção, e sua
autobiografia, como disse John Ford, “não é só o melhor, mas o único livro
que jamais foi escrito sobre Hollywood”. Essa opinião não é exagerada.
Quando Capra, com mais de 70 anos de idade, redigiu as quase mil páginas desse opus
magnum publicado em 1971, ele não relatou apenas sua vida, mas a própria
história de Hollywood como um grande conto de fadas: “Tudo o que nós, gente
do cinema, somos, temos e fazemos advém do filme, do tapete voador! Eu pude
agarrar a franja desse tapete voador, alçar-me aos ares e ir ao encontro da
aventura”. Este livro contém todas as virtudes e fraquezas dos filmes de
Capra e pode mesmo ser considerado um “filme” que tem de passar na prova da
credibilidade.
Do
começo ao fim, Capra revela todos vícios e vergonhas de Hollywood. Matraqueia
com orgulho, dá-se ares de felizardo e super-homem, assume poses exageradas
como um jovem pubescente de gueto. Capra como Napoleão nas guerras da indústria
cinematográfica, Capra cumulado de prêmios, Capra, o Grande! Ao mesmo tempo,
ele é sentimental até as lágrimas (ou para além delas) e derrama aos borbotões
a famosa “pieguice à Capra” (Capracorns),
pateticamente como um pregador itinerante e de forma católico-romana até os
ossos: “Alguém deveria recordar ao homem mediano”, moraliza o ungido Capra
de cima de seu púlpito erguido por si próprio, “que ele é um filho de Deus
e um herdeiro legítimo das ricas dádivas divinas e que a bondade significa
riqueza, a amizade significa poder e a liberdade significa fama”.
Se
fosse só isso e nada mais, os filmes de Capra teriam sido simplesmente insossos
e a sua alentada biografia-calhamaço, ilegível. Mas, tanto nos filmes quanto
no livro, o ritmo é de tirar o fôlego e “o pecado capital, o tédio” não
tem vez. Como isso é possível? Talvez por meio de uma única e grande virtude
de que precisa o contador de histórias: uma ingenuidade de cair os queixos!
Apesar de toda manha e esperteza, apesar de toda malícia e vivacidade, Capra, o
moleque de riso maroto dos campos da Sicília, guarda sempre algo de um
Simplicius Simplicissimus. Capra continua ingênuo e, por isso, ele é capaz de
permanecer honrado também como um camponês simplório. Mal tocara as trombetas
de sua própria fama, ele se vê “com toda a serenidade de um homem que pela
primeira vez anda de patins” e, logo após o triunfo, vem sempre a sobriedade:
“A realidade desabava sobre mim como um saco de areia”. A honestidade lhe
deve ser creditada, mesmo que ela sirva só para dar melhor vazão às sentenças
grandiosas.
A
autêntica ingenuidade de Capra permaneceria unidimensional se não fosse
superada de modo bizarro pelas virtudes quase contrárias do humor e da
auto-ironia, cujas técnicas cênicas ele aprendera como gag-man
no estúdio de Mack Sennet, onde se cultivava o pastelão e onde foram
inventadas as tortas voadoras. Em suas comédias sociais, Capra, como ele mesmo
diz, fundiu os personagens clássicos do drama e “os heróis brincalhões numa
única pessoa”. O fato de ele e seus heróis cumprirem uma função análoga
aos “bobos da corte de sempre” lhe era plenamente consciente: “Tais bobos
eram em geral anões ou grotescos pobres-diabos que, para indicar sua posição
privilegiada vestiam trajes de palhaços... empunhavam delgadas bengalas de
palhaços (slapsticks) ou portavam balões
cheios de ar. A fala sarcástica dos bobos serviria, assim esperavam os reis,
como válvula de escape e evitaria a explosão da fervilhante chaleira da miséria
popular”. E, no entanto, Capra acredita no poder libertador do riso: “No
tocante às relações entre os homens, a comédia cumpre a perfeita tarefa da
defesa própria... Quando alguém age com altivez ou quando impõe medo – aí
se colocam os espinhos. Não se rirá – nem com ele nem sobre ele... Ditadores
não podem rir. Hitler e Stálin não se achavam a si mesmos nem aos outros
engraçados”. Se algo resta de Capra e de seus contos de fadas, esse algo é a
risada. Na Alemanha, “Este Mundo É um Hospício” (“Arsenic and Old
Lace”, 1944), uma genial obra de ocasião, tornou-se o seu filme mais
conhecido, com o selo do “humor negro”.
O
terceiro grande trunfo de Capra é algo que se poderia descrever como exatidão
ou como olho para o detalhe. Obviamente, esse amor pelo detalhe tem uma dimensão
técnica. Não por acaso Capra era um cientista qualificado e engenheiro
graduado, amigo do astrônomo Edwin P. Hubble (o descobridor do desvio para o
vermelho das galáxias e da expansão do universo), detentor de algumas patentes
e inventor de diversas máquinas; capacidades que sempre lhe ajudaram no
trabalho como diretor. Mas, para além do aspecto técnico, é o faro para o
colorido de uma situação, no sentido literal e figurado, que Capra destaca em
sua autobiografia – quando, por exemplo, ao viajar para Moscou na condição
de membro de uma delegação cinematográfica, ele descreve a gigantesca
manifestação na Praça Vermelha no 1º de maio de 1937: “Caminhávamos entre
fileiras intermináveis de soldados, entre verdadeiros vales de bandeiras
vermelhas e por entre ruas bloqueadas pela polícia secreta que controlava o
passo, carimbava e revistava... A cor colérica espelhava-se nos olhos e nos
rostos dos homens e incendiava as baionetas. Vermelha a cidade, vermelha a
atmosfera... Além, nos arrabaldes da cidade, terminava a corrente ininterrupta
dos soldados. O sol se pôs. Diante de nós, ergueu-se uma nuvem de poeira num
campo aberto. Os que marchavam à nossa frente saíram de formação e correram
em direção à nuvem... E lá, sob o abrigo dessa escura nuvem de poeira, teve
lugar a maior mijada em massa de todos os tempos”. Uma cena digna de Capra!
Aqui
a ironia do artista volta-se contra a forma da propaganda, contra o olhar geral
e abstrato dirigido à humanidade, contra as grandes maquinações de uma
transformação social. Seu olhar tem em mira somente o indivíduo, não só no
sentido do ideal político norte-americano, mas ainda como método de sua própria
arte. Para Capra, isto é um alvo programático: “A massa é um conceito próprio
ao rebanho – inaceitável, ofensivo, humilhante. Quando vejo um ajuntamento de
pessoas, vejo um conjunto de indivíduos livres: cada qual uma pessoa única,
cada qual, em sua dignidade humana, uma ilha para si. Outros que façam filmes
sobre as grandes tempestades da história, eu gostaria de fazer o meu sobre
aquele garoto que é levado pela tempestade. E se esse tipo é um especial feixe
de contradições… pois eu creio poder compreender seu problema”.
Capra
toma o partido do sujeito artístico individual contra a filosofia crítica, da
experiência contra a teoria: “Meus filmes penetrarão o coração não com lógica,
mas com compaixão”. Se se quiser, pode-se reconhecer aqui um eco da crítica
de Adorno à “lógica da identidade”, uma insistência no “não-idêntico”
nos homens, que não se resolve nas determinações da estrutura social e de
suas “coerções objetivas”. Contudo, quando essa posição permanece
unilateral e irrefletida, logo não se vê mais a floresta por trás das enormes
árvores. Para Capra só existiam as árvores isoladas, e nisto ele é
rigorosamente liberal. Justamente por isso, todavia, o contexto social à sua
volta só pode ser salvo com seu carregado sentimentalismo, e as soluções têm
de vir diretamente de um milagre, como que pela “mão de Deus”. O contador
de histórias sente o chão vacilar sob os pés e a “pieguice à la Capra”
ameaça tornar-se rançosa.
O
que mantém Capra entre os grandes é, entretanto, sua posição histórica. Por
mais que os seus contos de fadas transfigurem-se sentimentalmente, eles
preservam a credibilidade como filme a título de registro da realidade: como
contos de fadas do New Deal e do
antifascismo. Com a sua “mensagem de encorajamento”, ele pôde cantar o
elogio do capitalismo e, ao mesmo tempo, “o elogio do homem que trabalha duro,
do enganado, dos que nasceram pobres, dos golpeados”, pois na crise econômica
mundial parecia haver uma espécie de auto-reconhecimento capitalista e, na
figura de Franklin Delano Roosevelt, a esperança de uma renovação social. Se
Capra viveu na pele o “sonho americano” de tornar-se um milionário depois
de uma infância pobre como imigrante e o espelhou em seus heróis ingênuos,
isso é porque ele queria justamente representar não o triunfo do dinheiro e do
mercado sem peias, mas antes a contenção social da máquina capitalista. O New Deal inaugurou a época do keynesianismo e do deficit
spending; e somente nesse clima político foi possível a Capra, em filmes
como “O Galante Mr. Deeds” (1936) ou “A Mulher Faz o Homem” (1939),
conduzir seu Parsifal vindo da província pelo mais profundo desespero até o
final feliz de uma vitória sobre a maldade e a corrupção. A ingenuidade de
seus contos de fadas estava marcada por uma campanha social de peso, com base na
qual o filósofo alemão Jürgen Habermas, 30 anos depois, ainda podia acreditar
que o capitalismo seria então fundamentalmente civilizado pelo Welfare
State.
O
caráter antifascista em Capra também era real e autêntico. Nesse sentido, ele
pôde, da mesma forma, mobilizar com crédito a ingenuidade de suas afirmações
críticas ou de suas críticas afirmativas, pois o capitalismo ocidental
travava, de fato, uma luta ferrenha contra o pior rebento de sua própria lógica
e queria evitar sua consequência última. Capra voltou as costas a Hollywood e
alistou-se voluntariamente no exército americano para pôr seu potencial a
serviço da coalizão anti-Hitler. Quando assistiu ao “Triunfo da Vontade”,
de Leni Riefensthal, ele reconheceu nesse “filme horripilante” um “rasgo
genial” de propaganda com uma mensagem “tão nua e brutal como um cano de
chumbo”, no qual se anunciava o holocausto. Como contrapropaganda, o
“coronel Capra” criou a série “Why We Fight (1942-45)”, cujo objetivo
era utilizar como documento “o filme dos inimigos a fim de pôr em evidência
suas metas escravistas. Os nossos jovens precisam de ouvir como os nazis e os
japoneses anunciam aos berros as suas parvoíces sobre o domínio da raça – e
os nossos combatentes perceberiam porque estão de uniforme”.
O
fato de que, após a guerra, a carreira de Capra tenha brilhado apenas
parcamente é algo que lhe permanece incompreensível, mesmo décadas mais
tarde. É curioso como sua autobiografia torna-se mais fraca em termos literários
e intelectuais à medida que ele se aproxima da descrição daquele tempo, como
se a voz tivesse sido roubada ao contador de histórias. Súbito, a ingenuidade
torna-se insípida e o ímpeto se paralisa. Parsifal perdeu a sua inocência.
Contra a revolta da juventude nos anos 60 ele não faz senão esbravejar como um
idoso conservador e vê “jovenzinhos parasitas e fumadores de haxixe”,
difama os “invertidos e onanistas”, lança mão da linguagem preconceituosa
contra “homossexuais, lésbicas e viciados” e pragueja contra os
“protestos infantis com cartazes pueris” de “hordas sem coluna
vertebral”. Mas Capra leva também a si mesmo a julgamento ao descrever o
fracasso de seu último filme, “Dama por um Dia” (“Pocketful of
Miracles”, 1961): “Para mim, a verdadeira causa foi profundamente pessoal e
moral: alguém que possui o inacreditável poder de falar durante duas horas a
centenas de milhares de seus compatriotas, e isso no escuro, não pode dizer
mentiras. O que ele fala tem de sair diretamente de seu coração, e não de sua
carteira”.
Na
verdade, a época da moral capitalista havia passado, já que os recursos históricos
do keynesianismo estavam esgotados. O mito de Kennedy já não tinha mais nenhum
equivalente na sociedade real. O show de Clinton não pode hoje ser tomado
sequer como caricatura do New Deal. Não
foram as pessoas que se tornaram mais fracas, foi o desenvolvimento do
capitalismo que fez os heróis perderem seu propósito. A crítica social
desapareceu por completo de toda a arte pós-moderna, e as lágrimas do
sentimentalismo só podem brotar para animais ou seres extraterrestres.
Inversamente, o mal também não se deixa mais individualizar. “O malandro”,
reclama o velho Frank Capra, “começou a transformar-se de pessoa em idéia,
de estado de espírito em condição de vida”. Ou, igualmente, num ser
extraterrestre. O estruturalismo alcançou Capra. Mas isso não é motivo para júbilo.
Ele próprio já o pressentira: quando o kitsch social da crença hollywoodiana na bondade pessoal
degradar-se definitivamente em ridículo e tornar-se tedioso, ou uma simples
cena histórica de costumes, “as máscaras de canibais que as crianças põem
no dia das bruxas irão revelar a realidade”. Tão tolos e malignos quanto o
capitalismo ilimitado serão seus últimos contos de fadas.
Original
Märchen für die Krise em www.exit-online.org.
Publicado na Folha de S. Paulo de 18.05.1997 com o título
O liberal e as fadas e tradução de José Marcos Macedo.