FOME EM ABUNDÂNCIA

Robert Kurz

Não só indivíduos, mas também Estados e sistemas sociais tendem a se iludir. O recorde mundial, nesse ponto, foi estabelecido pelo sistema produtor de mercadorias da modernidade, que se tem como o apogeu insuperável da história humana. Não há dúvida de que o desenvolvimento técnico de hoje é inaudito, mas mesmo as maiores -ou mais absurdas- descobertas técnicas não refletem o bem-estar real das pessoas, e isso tanto hoje em dia quanto no tempo das pirâmides.
Há um padrão bem simples para poder avaliar a verdadeira qualidade de uma época: o panorama da alimentação. Comidas e bebidas dão a exata medida do cotidiano das pessoas. Nesse assunto, uma cultura revela a sua capacidade mais elementar de satisfazer suas necessidades. A modernidade, é claro, também se vê no auge do progresso quando se trata de alimentação: em todas as sociedades anteriores, assim diz a lenda, as pessoas teriam vivido de cascas emboloradas de pão, à beira da fome constante; apenas a miraculosa economia de mercado teria solucionado o problema da provisão de alimentos em abundância e de ótima qualidade.
Esse quadro faz pouco da realidade, pois exatamente o contrário é verdadeiro. No fim dos anos 70, o historiador da economia Immanuel Wallerstein e o seu grupo apresentaram no Fernand Braudel Center for the Study of Economics (Centro de Estudos Econômicos Fernand Braudel) alguns estudos sobre a história da produção agrária e da alimentação, cuja principal tese é: "O bem-estar do sistema mundial e do conjunto da força de trabalho diminui a longo prazo; ao contrário de uma suposição muito difundida, ele não cresce". Tal afirmação, que desmente a ideologia de mercado, é exaustivamente documentada. Wallerstein não queria, é claro, glorificar as formas pré-modernas de dominação, como fazem há 200 anos os ideólogos conservadores e românticos.
Em todos os tempos, as pessoas humildes pagaram caro as maravilhas de civilizações repressivas. Como a produtividade era comparativamente baixa e muitos recursos eram sugados pelos exércitos ou para a construção de pirâmides, templos e outras metas estatais, o bem-estar nas culturas antigas era quase sempre inferior (e a alimentação, pior) do que nas comunidades pré-estatais. Se, por um lado, a civilização moderna elevou a produtividade para além de todos os limites imagináveis, por outro, submeteu a uma alimentação miserável ou mesmo aos tormentos da fome um número de pessoas sem precedentes, tanto em termos absolutos quanto relativos.
Tal afirmação só parece totalmente inacreditável à consciência dominante porque a visão oficial limita-se a três parâmetros: primeiro, ao curto intervalo de relativa prosperidade depois da Segunda Guerra Mundial; segundo, aos poucos países industrializados do Ocidente; e, terceiro, à tênue camada social dos respectivos vencedores da economia de mercado. Mas, se observarmos a história dos países e dos grupos sociais desde o século 16, veremos facilmente que a era moderna como um todo provocou o maior surto de escassez de alimentos jamais visto, superando em muito os próprios déspotas orientais. É evidente que a economia de mercado está mais uma vez disposta a agravar dramaticamente, no final do século 20, a contenção de alimentos e abandonar à míngua, de forma constante ou temporária, quase 6 bilhões de pessoas.
Isso não é, absolutamente, um exagero. A melhora da provisão mundial de alimentos, nos anos 60 e 70, foi passageira; desde os anos 80, a fome e a desnutrição se expandem. E não somente o continente africano fornece as imagens aterradoras de crianças em pele e osso e de lactentes que sugam em vão os seios descarnados de suas mães. O mundo do mercado acostumou-se com essas cenas, que agora já deixaram de nos chocar. Mas o fantasma da fome reaparece onde parecia estar banido para sempre.
Mineiros e suas famílias da região da Ucrânia ou da Sibéria, aposentados de Moscou, crianças de rua em todo Leste europeu passam tanta fome quanto boa parte da população da América Latina e do sul da Ásia. Segundo um relatório da Unicef, a cada ano morrem mais de 7 milhões de crianças, vítimas da subnutrição. E o maior "modelo de sucesso" neoliberal consiste na universalização da cozinha dos pobres.
A fome regressou até mesmo nos centros industriais do Ocidente. Ainda que pelo menos um membro da família tenha emprego, 30 milhões de norte-americanos encontram-se hoje, em decorrência dos literais "salários de fome", numa "situação precária de alimentação"; dentre eles, 26 milhões dependem mensalmente de refeições públicas ou doações privadas, mais de 4 milhões de adultos passam fome de modo esporádico ou diário, 11 milhões de crianças estão subnutridas e em quase 1 milhão de lares não há, muitas vezes, o que comer durante dias. Não se trata -fique bem claro- de propaganda de terror, mas de dados do próprio Ministério da Agricultura dos EUA ou de organizações beneficentes como Second Harvest.
O pretenso capitalismo "social" alemão também permite, segundo dados confiáveis da Associação Alemã para Defesa da Criança, que as famílias pobres vejam aumentar cada vez mais o índice de mortalidade ou doenças em seus filhos, graças à alimentação deficiente. Alguns professores de bairros com alta incidência de desemprego relatam que, ao final do mês, não é raro que crianças da pré-escola desmaiem por falta de comida, já que os pais não lhes podem pagar o café da manhã ou o almoço. Em muitas escolas, tornou-se comum estudantes famintos mendigarem um pãozinho a seus colegas mais remediados.
Todas essas atrocidades não remontam ao fato de uma taxa de natalidade muito elevada ter conduzido a um "excesso de população" que, com as atuais possibilidades técnicas, é incapaz de ser alimentada e deve de algum modo ser neutralizada, como prognosticara no início do século 19 o famigerado ideólogo liberal Thomas Malthus. Ao contrário, do século 18 até hoje as forças produtivas cresceram com velocidade infinitamente maior do que a população mundial. Caso se tratasse da potência produtiva, o dobro da população atual poderia facilmente ser alimentada com folga e abundância. O limite social da produção e da distribuição de alimentos não é determinado por rendimentos agrícolas insuficientes em relação ao contingente populacional, mas pela forma econômica do moderno sistema produtor de mercadorias.
A lógica da rentabilidade empresarial exige uma restrição irracional de recursos, que vem à luz de forma mais drástica no plano elementar da alimentação. Em princípio, as pessoas só têm acesso aos alimentos com a ressalva de que a sua força de trabalho seja usada de forma rentável. Se não preencher esse requisito, no caso da produtividade "muito alta" tornar supérflua sua força de trabalho, elas são mantidas a rações de fome, apesar de a capacidade de produção de alimentos ter crescido.
Decisiva não é a necessidade vital, mas o maior preço a ser alcançado. O caráter absurdo desse requisito fica bem claro na produção agrária, pois nela o resultado não depende só de quanto capital foi investido. Se para todas sociedades pré-modernas uma colheita excepcional era celebrada com júbilo e garantia a todos pelo menos um excedente temporário, para o cálculo empresarial do "agribusiness" ela representa uma fatalidade, pois, com o "excedente", os preços são reduzidos. Faz parte do cotidiano dos negócios mercantis, em caso de colheitas recordes, queimar em massa produtos agrícolas ou desnaturá-los por meio de processos industriais, enquanto bem ao lado as pessoas morrem de fome.
A mesma racionalidade empresarial acarreta não apenas a fome em massa, mas também degrada a qualidade dos alimentos a níveis incrivelmente baixos. Nem a "cultura da embalagem" é capaz de nos iludir, com todo seu colorido e sua higiene superficial. Mesmo aqueles que, pelas aparências, têm bastante o que comer, sofrem com a falta de nutrientes vitais. De fato, a lógica da redução de custos faz com que a indústria alimentícia retire ingredientes básicos de seus produtos externamente tão vistosos, a fim de torná-los rentáveis. "Fast food" e comidas instantâneas simulam uma qualidade que não possuem. Um pacote de "sopa de galinha" da empresa alemã Knorr, com rendimento de 4 pratos, contém somente 2 gramas de "galinha desidratada", em bolotinhas.
Dessa maneira, produz-se uma sensação permanente de fome, que enseja o consumo de mais alimentos com baixo teor de proteínas. O resultado são pessoas doentes, inchadas, que não vivem melhor do que os esfaimados. Da mesma maneira perversa que o mercado produz o fenômeno da fome, é ele próprio que reage a essa situação, com sua indústria suplementar de "complementos alimentares", na forma de vitaminas, minerais etc., que deveriam estar contidos numa alimentação balanceada.
As grandes empresas de produtos alimentícios fazem de tudo para maximizar os lucros e iludir os consumidores. Camarões congelados, tão rosáceos, muitas vezes não passam de carne de peixe de segunda, tingida com colorante e comprimida na forma de camarões. Na Itália, achou-se material cancerígeno no macarrão, proveniente da embalagem. Nos transportes de alimentos com refrigeração, foi constatada a temperatura de 25ºC, em vez dos 7ºC permitidos, e muitas vezes os compartimentos não são limpos depois de desembarcados os produtos. A metade dos frangos que é comprada na União Européia está infectada por bactérias. Entre 1985 e 1992, os casos de salmonela quintuplicaram na Alemanha.
Na soma geral, cresce o número de doenças e infecções causadas por alimentos industrializados. A malfadada doença da "vaca louca", transmissível para o homem, surgiu com a pulverização da forragem do gado com restos de ovelhas contaminadas. Tudo isso é economia de mercado.
Mas, mesmo quando os ingredientes da alimentação não são diretamente envenenados ou nocivos à saúde, sua qualidade continuamente cai de patamar e seu sabor é eliminado. A começar pela redução da variedade dos sabores, pois a distribuição continental e transcontinental permite apenas um espectro bem diminuto de produtos básicos, como que cultivados segundo as "normas de acondicionamento". Milhares de frutas e legumes, centenas de espécies de animais comestíveis são deixados de lado, pois, do ponto de vista do cálculo abstrato dos custos, eles são "supérfluos".
Assim, a economia de mercado desperdiça o legado de séculos de cultura agrária. Com aprovação legal, cada vez mais matéria-prima agrícola é decomposta por novas tecnologias, para então ser enriquecida, tingida e conservada industrialmente. A cerveja pode conter cascos de animais pulverizados e o chocolate, sangue desidratado. Com "sabores" sintéticos os produtos têm custo muito menor do que com frutas verdadeiras: biomassas desnaturadas e insípidas são "injetadas" com substâncias aromáticas (assim, a estrutura molecular correspondente a "sabor de galinha" é quase idêntica ao de "morango").
No Japão, cientistas criaram até um "hambúrguer-toalete" que contém como ingredientes papel higiênico e excrementos, submetidos a uma temperatura extremamente elevada e acrescidos de proteínas de soja, obtendo como produto um granulado que há de servir como substituto para a carne. Bom apetite! "Dize-me o que comes e dir-te-ei quem és": nunca esse adágio foi tão atual como nos tempos da produção liberal e globalizada de alimentos. Mas tudo é relativo, retrucaria a ideologia pós-moderna. E por que o homem capitalista não seria privado também de seu paladar? Em testes numa escola alemã, as crianças foram incapazes de identificar o sabor "amargo".
Pouco consola o fato de a própria elite funcional tomar parte na miséria dos hábitos alimentares. Foram os próprios administradores pós-modernos que inventaram o hábito de comer andando ("food on the run") e comer no carro ("food on the ride"). E eles ingerem substâncias que um camponês da Idade Média não daria sequer aos seus porcos. Quem ainda duvida que a economia de mercado nos conduziu ao glorioso "fim da história"?


Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor de, entre outros, "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Vozes); é co-editor da revista "Krisis"; ele escreve uma vez por mês na série "Autores" do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

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