O iene forte é o
responsável pela atrofia do mercado interno japonês
ROBERT KURZ
O presente continua a operar milagres: assim imaginam os
célebres otimistas de plantão da economia de mercado, que em
geral são mais bem pagos do que os analistas rigorosos. De
tempos em tempos, tais animadores do bom humor econômico
atribuem a esse ou àquele país que aparenta estar em franca
ascensão o papel de criança prodígio da economia um exemplo
pelo qual deveria se pautar o restante do mundo capitalista. Com
quase a mesma constância, essa vocação termina de forma
ruinosa ou dramática, a exemplo do México tempos atrás.
Por ora, não se ousa mais dizer palavra sobre o Japão. Ainda
nos anos 80, hordas de empresários-filósofos peregrinavam rumo
àquele país para espreitar as sutilezas administrativas da
"produção enxuta" da terra prometida. Na Alemanha, o
diretor da Volkswagen, um afamado ditador da redução de custos,
conclamou seus trabalhadores, em tom nitidamente racista, contra
o "perigo amarelo" da concorrência japonesa que aos
poucos inundava o mercado europeu. Alguns teóricos do
desenvolvimento enalteceram o Japão como modelo para uma
política de recuperação bem-sucedida a ser emulada pelo
Terceiro Mundo.
Tais mensagens eram tão simplistas como anúncios comerciais e,
como toda simplificação, não correspondiam à verdade. No caso
do Japão, não se pode falar de uma bem-sucedida política de
recuperação de um país subdesenvolvido. Quem discordar, que
volte ao século 19. Já nessa época o Japão era o único país
oriental a integrar a segunda onda de modernização capitalista,
de forma praticamente concomitante à Alemanha.
Não por acaso as histórias da modernização japonesa e alemã
demonstram um constante paralelismo. A chamada Revolução Meiji,
de 1867, conduziu o Japão a uma rápida industrialização,
análoga à do Estado militar germânico-prussiano, com a
indústria armamentista à frente. A base industrial japonesa,
como a alemã, foi portanto lançada à custa dos últimos anos
do século 19; esse surto de modernização não é de modo algum
comparável ao atual problema do Terceiro Mundo, que, nas
condições impostas pelo final do século 20, se vê na
contingência de pagar um preço muito mais elevado para promover
sua industrialização do que a maioria dos países é capaz de
custear.
Após o término da Segunda Guerra, o Japão concentrou esforços
na ofensiva civil das exportações. De início, não se cogitou
da famosa "família empresarial" ou de qualquer
filosofia econômica milagrosa. Pelo contrário, à época que se
seguiu ao boom ocidental na década de 50, o Japão foi palco das
mais renhidas lutas trabalhistas e distúrbios sociais do mundo
industrializado. A "pacificação" social impôs-se
apenas gradualmente, por meio de um estratagema de distribuição
social mais pérfido do que milagroso: de um lado, na extremidade
da cadeia produtiva do valor, as empresas de exportação
organizaram-se em prol de um pessoal reduzido, calcado em
"famílias empresariais" com princípios paternalistas,
como a garantia de cargo vitalício e o escalonamento salarial e
hierárquico conforme o tempo de serviço.
De outro lado, porém, milhões de empregos "de segunda
classe" foram deslocados para microempresas fornecedoras com
importe de capital antediluviano, nas quais se disseminaram
relações próximas à escravidão, graças a salários
extremamente baixos e a condições de trabalho
pré-capitalistas.
Entretanto, também os operários privilegiados tiveram de pagar
caro pelas gratificações da "família empresarial"
pseudoconfuciana. Até hoje, as incontáveis horas extras não
remuneradas, as infindáveis horas gastas no trajeto
casa-trabalho e a famigerada "morte súbita" por
esgotamento no desempenho das funções não são incomuns.
Vários operários e funcionários públicos só retornam ao lar
nos finais de semana e vêem-se obrigados a pernoitar, nos dias
de trabalho, em verdadeiros "guarda-volumes para
homens".
De maneira igualmente inconsiderada, a logística sofreu um novo
remanejamento. Granjeou fama internacional o sistema denominado
"just in time", uma espécie de armazém sobre rodas
que, de resto, em breve conduzirá ao caos devido ao total
engarrafamento do próprio trânsito. A bem da verdade, os
projetos de uma simples exploração da infra-estrutura e das
relações sociais não bastaram para operar o
"milagre". Em fins da década de 70, o Japão ainda
não ascendera aos primeiros postos do mercado mundial e amargava
o cargo de "guarnição secundária" entre as
potências econômicas.
Enquanto os administradores ocidentais começavam a festejar a
brutalização japonesa da economia empresarial, a fim de
superá-las o quanto possível em seus países, o verdadeiro
"milagre" da economia nipônica nos anos 80 produziu-se
de forma inteiramente diversa, ao soprar-se a maior bolha de
sabão da história financeira. O Japão tomou a dianteira do
capitalismo-cassino global que florescia nessa época graças à
saturação estrutural do crescimento industrial em todo o
planeta.
As próprias relações informais e paternalistas no interior das
elites e as estruturas muitas vezes obscuras dos clãs na
economia contribuíram para que o boom especulativo no Japão
surtisse efeitos particularmente fortes. A alta no preço de
ações e imóveis não se cansava de bater novos recordes.
A diferença do capital especulativo do Ocidente, que em grande
parte adejava nos céus financeiros, sem ser efetivamente
investido na economia, as indústrias japonesas sangraram a fonte
monetária aparentemente inesgotável, no intuito de se
aprovisionarem para a disputa mundial das exportações.
A alta fictícia e puramente especulativa dos títulos de
propriedade serviu de alavanca para financiar os vultosos
investimentos nos setores de alta tecnologia; os custos,
portanto, foram praticamente nulos, pois bastava aguardar o surto
seguinte no preço das ações e dos imóveis para "ficar
rico" e vender ou empenhar os títulos para financiar
investimentos de porte.
Embora a infra-estrutura em muitos aspectos permanecesse
subdesenvolvida _até hoje, bairros inteiros de Tóquio ainda
não possuem canalização_, floresceu assim no Japão uma
automatização eletrônica da linha de montagem com a qual os
demais países industrializados foram incapazes de competir.
Da mesma maneira, os bancos refinanciavam a si próprios
aparentemente sem custos. Eis por que eles puderam conceder
créditos a taxas módicas aos especuladores e se contentaram com
hipotecas de imóveis avaliados muito acima de seu preço real
como garantia. Em muitos casos, a máfia japonesa (Yakuza) estava
mancomunada. Apenas com os fogos de artifício dessa expansão
financeira sem real substância econômica o Japão sagrou-se em
tempo recorde o suposto campeão da concorrência global e
converteu-se no credor do mundo nos anos 80.
Com efeito, o desenvolvimento nipônico foi somente um caso
particularmente clamoroso em meio à autonomização generalizada
dos mercados financeiros, a qual não deve ser compreendida a
partir da psique dos especuladores, mas sim da baixa
rentabilidade da própria produção industrial do globo.
Na quebra da Bolsa em 1987, quando pela primeira vez estourou a
bolha financeira global e por toda parte despencaram os valores
imobiliários, o capital especulativo no Ocidente não tardou a
tomar o pulso da situação, uma vez que se tratava em boa parte
somente de perdas de caixa, logo compensadas com novos aumentos
do volume negociado.
Caso diverso foi o enfrentado pelo Japão em 1990, quando o país
foi testemunha da queda no curso das ações e dos preços
imobiliários. No espaço entre janeiro de 1990 e agosto de 1992,
a Bolsa de Tóquio viu suas ações perderem quase 2/3 do valor
de face, o que representou uma perda de patrimônio de mais de
US$ 3 trilhões. Tanto piores foram os prejuízos acarretados
pela queda de preços dos imóveis. Com a mesma rapidez feérica
que o Japão "tornara-se rico", sua riqueza fictícia
voltou a dissipar-se no ar.
Esta aniquilação virulenta do capital monetário, à diferença
dos mercados especulativos do Ocidente, não pôde mais ser
compensada com novas bolhas de sabão. No país do Sol Nascente,
a brincadeira chegara ao fim.
Uma parcela considerável da alta precedente nos valores
fictícios fora de fato consumida pela economia, e pelo menos
outro tanto fora concedido, a título de aventura, como
empréstimo a estouvados apostadores da grande loteria. Eis por
que o Japão foi rondado por uma iminente catástrofe financeira.
De súbito, quantias enormes de crédito aparentemente seguro
tornaram-se podres.
Estima-se que o capital monetário, já desvalorizado com base na
taxa de juros, monte à impensável soma de US$ 2 trilhões; isso
significaria, se as estimativas estão corretas, mais de 30% do
produto interno bruto japonês. Como os empresários não possuem
meios com que amortizar suas dívidas, o endividamento total da
economia privada, até meados de 1995, subiu a 218% do PIB.
Em qualquer outro país, tal ônus com dívidas desvalorizadas
há muito teria conduzido ao colapso do sistema financeiro. Os
japoneses foram capazes de evitar tal resultado sobretudo porque
o "Japão S/A", sob a direção do Banco Central e do
Ministério das Finanças, logrou a todo custo colocar panos
quentes na crise do endividamento, valendo-se para tanto da rede
de subordinação informal e das estruturas de fidelidade.
Foram constituídas assim várias sociedades de fachada, nas
quais os bancos podiam "despejar" seus créditos
podres. Apesar dos protestos da opinião pública, o governo
subsidiou com a renda de impostos, tanto direta quanto
indiretamente, as instituições que andavam mal de saúde.
Em 1995 e no início de 1996, prejuízos bilionários oriundos da
falência de bancos-cooperativas como o Cosmo Shinyo Kumiai e o
Osaka Shinyo Kumiai tiveram de ser acobertados. Todo o setor das
cooperativas de construção converteu-se nesse meio tempo num
saco sem fundo.
Alguns bancos redimensionaram os chamados créditos
"instáveis" a uma taxa de juros praticamente nula, no
fito de torná-los invisíveis. A cada balanço trimestral, os
grandes institutos monetários japoneses anunciavam novos
descontos de créditos em apuros, que no entanto até agora
serviram apenas para maquiar a contabilidade ("window
dressing"). Todas estas práticas levianas, produtos do
desespero, são capazes apenas de postergar, mas não de impedir
o colapso financeiro.
Hoje o Japão se vê na contingência de alcançar por todos os
meios o superávit na balança comercial, a fim de manter o
equilíbrio instável da enorme massa de crédito podre. A
elevada taxa de câmbio do iene, sobretudo em relação ao
dólar, e uma legítima reação dos mercados de divisas face ao
contínuo déficit norte-americano no comércio com o Japão
(cerca de US$ 50 bilhões por ano) já deixaram contudo uma
fumegante marca de freada nas exportações nipônicas.
O iene forte é ao mesmo tempo o responsável pelo atrofiamento
do mercado interno japonês, já que um número cada vez maior de
empresas, por motivos de custo, transfere seus investimentos para
o exterior (sobretudo para os países vizinhos do Sudeste
asiático, onde o nível salarial é baixo) e lá passa também a
negociar com fornecedores. Na esteira da globalização, hoje o
mercado japonês já é abastecido com produtos de firmas
japonesas sediadas no exterior. Várias das pequenas empresas de
fornecimento nipônicas estão ameaçadas pela concorrência.
Encurralado pela crise do endividamento e pela globalização, o
"Japão S/A" é compelido a lançar por terra seus
lastros sociais. Pouco a pouco, a "família
empresarial" é dissolvida por ordem superior. Os chamados
"empregos ociosos" de funcionários improdutivos que
todavia não podem ser demitidos (mais de 6% da população
ativa) têm de desaparecer.
Trabalhadores e funcionários públicos, por meio de uma tática
psicológica de desgaste, são instigados a pedir a própria
demissão "por livre e espontânea vontade". Ao mesmo
tempo, milhões de empregos "de segunda classe" e nas
empresas de fornecimento são suprimidos. Progressivamente,
impõe-se também no Japão o mesmo desemprego estrutural de
outras nações industrializadas. Isso significa, por sua vez,
que o mercado interno nipônico é preterido pela própria queda
no poder de compra da população.
No entanto, a recessão tem de ser evitada a todo custo, senão
vai pelos ares a bomba financeira. Desesperado, o governo
japonês implementou, desde o início dos anos 90, cinco planos
conjunturais (obviamente financiados a crédito) com volumes
unitários de mais de US$ 100 bilhões.
Mas, apesar dos auspiciosos investimentos estatais, da redução
dos impostos e de uma taxa de juros quase negativa (0,5%), a
conjuntura padeceu seriamente até o fim de 1995. Os juros reais
permaneceram sensivelmente mais altos que os nominais, e os
bancos são incapazes de emprestar moeda nova a taxas vantajosas,
pois eles próprios têm a corda no pescoço.
Espera-se porém que os programas governamentais surtam algum
efeito, uma vez que no primeiro trimestre de 1996 foi comemorado
um crescimento de 3% (12% ao ano, numa estimativa otimista), o
maior em 25 anos. Ora, esse fogo de palha somente foi aceso após
o Estado aspergir-lhe combustível. Os investimentos do governo
nesse trimestre, só para dar um exemplo, foram três vezes maior
do que as despesas privadas.
A fatura de tais gastos não tardará a chegar e não será menor
do que a fatura das antigas manipulações. À crise de
endividamento privado soma-se a crise pública. O Estado japonês
é forçado a despender 30% de sua receita no pagamento de juros,
quase o dobro dos endividadíssimos EUA. Assim como nos EUA (e de
resto também na Alemanha), os fundos de seguridade social são
pilhados.
O "milagre" japonês, à primeira vista tão simples,
está desmistificado. Mais cedo ou mais tarde, explodirá a bomba
financeira. O fato de os mesmos milagreiros, que ainda há pouco
buscavam o Graal na filosofia administrativa japonesa, falarem
hoje em tom de escárnio da "Itália asiática" é
prova de que sua miopia permanece intocada. De fato, com o Japão
ameaça desmoronar uma pilastra do sistema financeiro global e de
todas as relações comerciais do planeta.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, publicou no
Brasil, entre outros, "O Colapso da Modernização" e
"A Volta do Potenkim" (Paz e Terra) e é co-editor da
revista "Krisis". Ele escreve mensalmente na seção
"Autores" da Folha. 04/08/96
Tradução de José Marcos Macedo