A derradeira
enfermidade
Com o poder esfacelado, o
Estado albanês atinge seu estágio terminal
ROBERT KURZ
Mesmo na Europa, pouquíssimos sabem onde fica exatamente a
Albânia. ''Em algum lugar nos Balcãs.'' O pequeno país (3,2
milhões de habitantes), um dos muitos produtos da fragmentação
do Império Otomano, declarou-se independente em 1912. No ano
seguinte, as suas fronteiras foram demarcadas um tanto
arbitrariamente pelas grandes potências da época, de forma que
hoje grande parte dos albaneses vive fora de seu Estado de
origem, na Macedônia e sobretudo na província de Kosovo,
pertencente ao que restou da Iugoslávia um outro foco de
distúrbios nesta região abalada pela crise. Durante a Segunda
Guerra Mundial, como na Iugoslávia, os partidários da
resistência de orientação comunista lutaram contra a
ocupação alemã no intransitável solo montanhoso albanês e
subiram ao poder depois da paz. E, a exemplo de Tito na
Iugoslávia, o chefe do Partido Comunista e antigo líder da
resistência, Enver Hoxha, estabeleceu na Albânia uma ditadura
estatal e socialista de recuperação.
Apoiado em riquezas naturais, como carvão, minério de ferro,
cromo, petróleo e betume, o regime de Hoxha empreendeu uma
industrialização forçada. Com ajuda soviética e depois
chinesa, surgiram conglomerados de indústria pesada, maquinaria,
produção têxtil etc. Mas, novamente em paralelo com a
Iugoslávia, a partir dos anos 70 a Albânia não pôde mais se
sustentar no mercado mundial. Com a proibição de qualquer
endividamento externo e com o rígido isolamento, o regime buscou
evitar uma crise econômica. A Albânia transformou-se no último
bastião do stalinismo e no exótico país feérico da Europa,
onde até mesmo os automóveis eram proibidos. Inversamente, para
os albaneses o sul da Itália, de que eles estão separados
apenas por uma estreita faixa de 60 km de Mar Adriático, parecia
o terreno feérico do consumo ocidental. Os sinais da televisão
italiana são facilmente captados em toda parte; assim, as
pessoas socialmente cansadas da ditadura partidária, bem como a
população dos demais países do Leste Europeu, voltaram-se para
a cintilante fachada de TV do Ocidente.
Quando Enver Hoxha morreu, em 1985, o regime começou a perder
sua força. Cautelosas tentativas de abertura, sob pressão do
povo insatisfeito, e a crescente oposição tornaram manifesta a
fraqueza econômica. De um lado, muitos jovens albaneses passaram
a gerar divisas com o trabalho temporário na Grécia, Itália e
outros países ocidentais; de outro, a economia albanesa foi
vítima de uma ruptura catastrófica: em 1991, a produção
industrial, incapaz de suster-se internacionalmente, caiu em 60%;
o desemprego subiu a 70% e o país amargou ainda uma grave crise
na balança de pagamento; desde então, as dívidas externas, que
aumentaram vertiginosamente num curto espaço de tempo, fugiram
totalmente ao controle.
O preço para a abertura e para a oportunidade de uma ínfima
minoria ''tentar a sorte'' nos países do Ocidente foi portanto a
perda de toda a reprodução econômica independente. Devido às
dimensões reduzidas do país e à estreita base industrial, o
colapso pareceu muito mais drástico que noutros Estados do Leste
Europeu. Súbito, a população desmoralizada passou a depender
em grande parte das remessas de seus parentes com emprego no
exterior. De setembro de 1991 até março de 1992 foram relatados
protestos da massa oposicionista na capital, Tirana, e revoltas
de esfaimados em diversas regiões do país; alguns depósitos
estatais de alimentos acabaram sendo pilhados.
As ondas de protestos guindaram ao poder o recém-fundado Partido
Democrático, que em fins de março de 1992 ganhou a eleição
com 66% dos votos e fez de seu presidente, Salih Berisha, o novo
chefe da nação. O Partido Socialista, oriundo do PC stalinista,
foi lançado à oposição. Em escala reduzida, a Albânia
parecia percorrer o mesmo processo dos demais países do antigo
bloco do Leste Europeu: enquanto a economia declinava sob a
pressão do mercado mundial e a população era polarizada
socialmente, a elite burocrática dominante do socialismo estatal
agora com códigos ideológicos inversos cindia-se de um lado
numa vertente conservadora e de direita, radicalmente partidária
da economia de mercado, e, de outro, numa vertente
social-democrata, que se dava ares de moderada no tocante a essa
economia.
Dentro destes moldes, em toda a Europa oriental depois da grande
virada desenrola-se um espetáculo socialmente trágico e
politicamente cômico. A grande maioria aspira tão-somente à
prosperidade do mercado e a novos empregos competitivos. Ninguém
nem sequer imagina alternativas sociais e econômicas. E ninguém
quer admitir que a própria miséria é parte de uma crise
universal, que há muito atingiu também os países do núcleo
ocidental. Esperanças irracionais na sociedade de mercado passam
por cima do fato de que nenhum dos ''Estados em reforma'' do
Leste Europeu pode investir capital suficiente para reintegrar a
maioria da população ao sistema industrial competitivo _muito
menos a Albânia. Todo governo, não importa de que tendência,
pode somente executar em seu próprio povo o surdo veredicto do
mercado e, sob a égide do Fundo Monetário Internacional (FMI),
implementar uma impiedosa política de ''austeridade''. O partido
do governo é tomado então como responsável pela gritante
contradição entre esperança e realidade econômica, e a
oposição é erguida ao poder por meio de protestos de massa,
até que as frentes se invertam novamente e o mesmo jogo recomece
do início, agora com sinais trocados. Temos assim em vários
países do Leste Europeu o espetáculo grotesco de periódicas
manifestações de massa, que se dirigem ora contra os
''socialistas'' e ex-stalinistas, ora contra os igualmente
ex-stalinistas ''democratas'' e ''reformadores radicais'' da
economia de mercado.
Na Albânia, as coisas pareciam à primeira vista tomar outro
rumo. O presidente Berisha, um cardiologista que pertencera ao
cerne da "nomenklatura" stalinista a título de médico
pessoal de Enver Hoxha, declarou-se subitamente como
''papa-comunistas'' e fundou um regime unipartidário
autocrático. O presidente dos socialistas, Fatos Nano, foi
lançado à prisão sem processo jurídico; também contra outros
membros proeminentes do partido da oposição foram movidos
processos de grande repercussão pública, bem ao estilo
stalinista, mas sob a bandeira da economia de mercado e da
democracia. Segundo relatos de observadores insuspeitos, as
eleições de maio de 1996 foram massivamente fraudadas em
proveito de Berisha. Nesse clima pouco confiável, o regime tomou
um curso econômico e político de radical privatização e
desregulamentação.
Os países ocidentais de peso, a despeito de sua retórica
democrática, sempre apostaram em sombrias ditaduras nos países
da periferia; para tanto, bastava que elas fossem suficientemente
anticomunistas na política e suficientemente partidárias do
mercado na economia. Nesse sentido, pouco espanta que o Ocidente
favoreça na Europa oriental pós-socialista figuras como Ieltsin
na grande Rússia ou Berisha na pequena Albânia. Há de se
admirar contudo a espécie de ofuscamento ideológico com que as
elites ocidentais continuam a crer que tais figuras quase
irresponsáveis são capazes de administrar, com um misto de
''mão de ferro'' e cura radical pelo mercado, o processo da
derrocada social na enorme região que se estende do centro da
Ásia ao sul europeu.
Berisha, em todo caso, entre as figuras aventureiras da nova
"nomenklatura" capitalista na Europa oriental,
tornou-se a menina dos olhos dos conservadores britânicos e do
partido governista alemão, a União Democrática Cristã (CDU).
Uma parte não desprezível das novas leis reformistas albanesas
foi redigida pelos ''especialistas'' alemães dos grupos de
suporte técnico às sociedades devotas à ortodoxia do mercado.
Em inícios de março de 1995, o presidente alemão conservador,
Roman Herzog, viajou com a sua enorme comitiva para Tirana, a fim
de ''fortalecer o processo de reformas albanês''. A música de
acompanhamento adequada para a ocasião foi concedida por um
dossiê do Deutsche Bank, com um hino ao ''programa estrutural e
de estabilização'' de Berisha, que ''rende cada vez mais
frutos''. Eram festejados o crescimento recorde de 8% do produto
interno bruto no ano de 1994, bem como os progressos na
privatização e no saneamento da administração estatal. E,
como o FMI e o Banco Mundial dignaram-se a contribuir para o
abençoado programa de Berisha com créditos acima de US$ 180
milhões, nada parecia obstar o caminho da ventura reformista
assentada na economia de mercado.
Os relatos daqueles que testemunharam in loco a situação da
Albânia tinham um discurso totalmente diverso. Nele se mostravam
imagens de ruínas industriais decrépitas e estufas destruídas
em que pastavam as ovelhas. A agricultura privatizada, dizia-se,
regrediu a formas de organização muito primitivas e ao cultivo
com arado de madeira. Não apenas uma grande parte da indústria
de manufatura, mas também a construção de maquinário como um
todo foram extintas na esteira da ''privatização''. A parcela
da indústria no PIB caiu de 41% (1989) para menos de 12% (1996).
Apesar disso, o crescimento oficial atingiu 8% em 1995 e subiu a
8,7% em 1996. Ainda que se levasse em conta o ponto de partida
extremamente baixo depois da queda de 1990-92, o ''milagre a
partir do nada'' na Albânia haveria de parecer pouco digno de
crédito a não ser que se tomasse como fundamento o dossiê do
Deutsche Bank, com suas grossas lentes ideológicas.
Houve de fato albaneses que viveram bastante bem durante algum
tempo. Mas de quê? Da produção competitiva é que não. A
solução da charada foram as chamadas pirâmides financeiras
_fundos de investimento criados entre 1992 e 93, que prometiam
também a pequenos investidores taxas miraculosamente altas de
juros. No fundo, tratava-se de um sistema financeiro enganador,
na base da bola de neve, como se pode observar mundialmente desde
o início do ''capitalismo-cassino'' especulativo nos anos 80. Na
Albânia, praticamente toda a agricultura foi atingida por tais
pirâmides levianas.
Isso só foi possível porque, depois do colapso da base
industrial, a atividade econômica concentrou-se principalmente
nas duas frentes de contrabando controlado pela máfia: de um
lado, o sul da Albânia tornou-se o elo entre a Europa oriental e
ocidental para o crime organizado (drogas, armas, prostituição
etc.), por meio do trânsito ilegal de lanchas sobre o
Adriático; de outro, metade do norte albanês passou a viver do
contrabando de combustível e outros bens para a vizinha Sérvia,
sobre que pesava o embargo da ONU. As curiosas pirâmides
financeiras não passavam de grandes máquinas de lavar dinheiro
para essas atividades ilegais. E não há a menor dúvida de que
o partido do governo do presidente Berisha estava mancomunado com
a máfia e os cabecilhas das pirâmides financeiras.
Quando a ONU suspendeu o embargo contra a Sérvia, a máfia fez
explodir as pirâmides. Para tanto, no outono de 1996 produziu-se
novamente uma verdadeira embriaguez monetária, com a promessa de
60% de juros ao mês (!). Praticamente toda a população
investiu suas economias no espaço de três meses, ofuscada pelas
esperanças absurdas de ''dinheiro grosso''. Depois de dilapidar
toda a população até o último centavo, as pirâmides
financeiras decretaram em série a sua falência. A máfia pôde
escapar sem perdas da bola de neve do sistema financeiro, ao
passo que a população se viu de golpe expropriada. Em menos de
uma semana, o cabalístico ''milagre econômico albanês'' foi
arruinado e, com ele, a reputação do dossiê do Deutsche Bank.
Que analistas financeiros profissionais tenham caído neste
conto-do-vigário justifica-se por um motivo bem simples: tanto a
privatização na Europa oriental quanto os próprios mercados
financeiros globalizados do Ocidente, há muito desvinculados da
produção real, baseiam-se em última instância em estruturas
bastante análogas (embora mais complexas) ao primitivo sistema
''bola de neve'' das pirâmides financeiras albanesas. O que
ocorreu em ponto pequeno na Albânia pode acontecer a todo
momento em grande escala global.
A resposta foi o levante popular que cintilou nas telas do mundo.
Câmaras Municipais, delegacias de polícia, casernas,
repartições financeiras etc. foram tomadas de assalto e
incendiadas, lojas e instalações públicas, saqueadas. De modo
fantasmagórico, o aparato estatal dissolveu-se no ar: policiais,
soldados e funcionários se recolheram ou tomaram parte nas
pilhagens. Em meio à crise, a televisão e o rádio podiam
emitir apenas mensagens de emergência, pois uma grande parte dos
empregados não comparecera ao serviço. Enormes quantidades de
armas e munições foram parar nas mãos dos manifestantes e
saqueadores. Não existe mais poder na Albânia _um pesadelo de
todos os dominantes desde o início da civilização humana.
Entretanto não há um objetivo social alternativo. O Ocidente
busca desesperadamente classificar de algum modo a situação
albanesa de acordo com suas categorias habituais. A imprensa dá
a entender que há talvez, segundo o modelo iugoslavo, uma
''guerra civil étnica'' entre os clãs dos ''gheg'' ao norte e
dos ''tosk'' ao sul.
Ora, nem mesmo essa interpretação parece ser correta. Na
verdade, o povo não sabe mais o que fazer. As pessoas não
acreditam mais em nada, nem no capitalismo nem no socialismo, nem
na democracia nem na etnia, nem no Estado nem na família, nem em
Deus nem no mundo _e nem mesmo em si próprias. O que reina na
Albânia é o completo niilismo. Em todas esquinas é possível
comprar por US$ 2 ou US$ 3 uma kalachnikov com munição, mas
não um pedaço de pão. Produz-se quase nada atualmente e todos,
desde a criança até o idoso, estão armados até os dentes e
atiram às cegas para o ar. Os apelos da União Européia caem no
vazio, ainda que visem apenas a reconstruir a fachada de um
''Estado''. Na Albânia, tornou-se realidade o temor que o
filósofo político Thomas Hobbes profetizou para uma sociedade
de concorrência total. A enfermidade albanesa não é uma
epidemia exótica; ela é o estágio terminal que se tornou
visível pela primeira vez da enfermidade capitalista em todo o
mundo.
May 4, 1997)