Entrevista com Robert Kurz
REVISTA CARTA CAPITAL (S. PAULO)
Quando O Colapso da Modernização foi publicado, no início dos anos 90, o sociólogo e ensaísta alemão Robert Kurz foi chamado de catastrofista por seus críticos. Não era para menos. Sua tese central, ainda hoje presente em artigos e livros, afirma que o capitalismo mundial encontra-se em rota de colisão desde o surgimento da microeletrônica. As novas tecnologias aumentaram de forma exponencial a capacidade produtiva das empresas, argumenta Kurz, na mesma medida em que passaram a demandar cada vez menos mão-de-obra. Um movimento inverso, portanto, ao do fordismo, quando a produção crescente puxava o número de empregos e garantia renda para o consumo, em um ciclo virtuoso do capital.
Os tempos são outros, garante Kurz, e hoje o resultado dessa equação não leva a nada de bom: avançando contra seus limites econômicos e ambientais, o capitalismo evolui rumo a um ‘acidente fatal’, cujos indícios são as sucessivas crises financeiras que têm colocado em alerta as economias centrais. “Se a humanidade não encontrar o freio de emergência, este trem poderá descarrilar”, afirma na entrevista a seguir.
CartaCapital:
Os prejuízos dos bancos norte-americanos têm aumentado de modo exponencial. Em
semanas, as estimativas saltaram das dezenas de bilhões de dólares para quase
um trilhão de dólares. Como o sr. avalia esse cenário?
Robert Kurz: A atual crise financeira supera de longe todas as que a antecederam desde os anos 80. Antes de tudo, ela não mais se resume a apenas um país ou a uma região do mundo. Como os EUA formam o centro da arquitetura financeira global, entra em ação um efeito dominó que atinge todo o capital mundial. O efeito sobre a economia real é previsível. Há muito tempo os salários reais diminuíram nos EUA. O “milagre do consumo” se alimentava de financiamentos que foram angariados através de ações e hipotecas. Com o estouro da bolha no mercado de imóveis, as conseqüências da recessão não se farão sentir somente por 6 meses ou 9. Caso a economia americana entre em uma estagnação duradoura ou até mesmo numa depressão, não poderá mais absorver o excesso de produção. Com isso ficará também obstruída a via exportadora de mão única pelo Pacífico e a conjuntura mundial será ainda mais prejudicada do que a maioria dos comentaristas hoje em dia acredita.
CC:
O sr. usa a expressão ‘capitalismo-cassino’ para qualificar o atual estágio
da economia mundial. O sr. acredita que a crise atual abre margem para o fim da
era das bolhas financeiras?
RK: Os bancos centrais têm compensado as crises financeiras até hoje por meio de uma corrida pela redução das taxas de juros. Os mercados foram inundados com liquidez recentemente, como na quebra da “new economy” em 2001. Ben Bernanke, o chefe do Banco Central Americano, também tenta usar a receita simples de seu antecessor Alan Greenspan. Dessa maneira puderam se renovar sucessivamente as bolhas financeiras. Mas ao longo desses anos esse dinheiro “sem substância” levou a um aumento dramático na inflação ao redor do mundo. Depois que o Banco Central norte-americano, em pânico, baixou os juros, a inflação nos EUA subiu para mais do que o dobro da taxa básica de juros; o juro real tornou-se, portanto, negativo. Como o Banco Central Europeu não tem até agora acompanhado a política de redução de juros, há a ameaça de o déficit externo americano deixar de ser financiável e do dólar cair de modo abissal. A velha receita não surte mais efeito. Deste modo inflacionam a economia mundial, o que resultará obrigatoriamente em um colapso.
CC:
Os críticos o consideram um catastrofista, por afirmar que o capitalismo
encontra-se em uma espécie de beco sem saída que levará inexoravelmente à
sua superação, como escreveu Marx. Em sua opinião, o que esses críticos
ignoram?
RK: A terceira Revolução Industrial da Microeletrônica marca uma barreira absoluta intrínseca ao capitalismo. Pela primeira vez na história moderna, o potencial de racionalização é maior do que a expansão de novos mercados. O capital perde assim sua substância de trabalho, o uso de energia humana e abstrata. Essa situação pôde ser disfarçada por um tempo por meio da reciclagem do dinheiro proveniente das bolhas financeiras na economia produtiva. Deste modo simulava-se a acumulação de capital, além de se criar falsos postos de trabalho – como, por exemplo, através da bolha imobiliária nas indústrias de construção ou da conjuntura do déficit nas indústrias exportadoras. Essa substância de trabalho, já na sua origem um simulacro, é no final das contas improdutiva e acaba dissolvida rapidamente quando a economia baseada em bolhas financeiras entre em colapso.
CC:
As economias emergentes, principalmente China e Índia e, em menor medida, também
o Brasil, são apontadas como uma tábua de salvação para a crise. O sr.
concorda com essa avaliação?
RK: Os chamados países de industrialização recente não podem substituir os EUA como locomotiva na conjuntura mundial. O valor nominal de suas taxas de crescimento parte de um ponto inicial muito baixo. Tanto o PIB quanto a renda per capita desses países são absolutamente muito pequenos para livrar o mundo da crise. Assim, o crescimento chinês é em grande parte dependente da exportação unilateral para os EUA, enquanto o mercado interno fica bem atrás. O poder de compra chinês se fortaleceu apenas parcialmente, sobretudo pela ação de uma bolha imobiliária secundária e o decorrente boom na indústria da construção civil. Não se desenvolveu uma verdadeira classe média. Assim que o deficitário “milagre do consumo” nos EUA se apagar, a China e todo o sudeste asiático enfrentarão uma crise ainda mais profunda que a dos tigres asiáticos na década de 90. O mesmo se aplica aos demais países de industrialização recente.
CC:
A sua crítica radical do capitalismo considera que essas economias ditas
emergentes correm atrás de uma miragem, quando buscam um padrão de
desenvolvimento econômico equivalente ao dos países desenvolvidos. Qual seria
a opção para esses países gerarem os milhões de empregos de que necessitam?
RK: Há muito que o velho modelo de desenvolvimento econômico dos países periféricos ao capitalismo entrou em colapso e acabou sendo abandonado. Em seu lugar criaram-se, ao longo do processo de globalização, zonas de economia exportadora que se inserem em cadeias transnacionais de agregação de valor. A profundidade produtiva nestas economias exportadoras pode ser considerada baixa; os componentes mais importantes na produção precisam ser importados na forma de investimentos de grandes empresas ocidentais. Este não é mais um desenvolvimento autônomo, mas sim uma nova forma de dependência. A maioria das pessoas nestes países fica de fora dessa industrialização unilateral voltada para a exportação – que perderá, além do mais, qualquer durabilidade com uma interrupção na conjuntura do déficit global. O moderno modelo mundial de “postos de trabalho” se tornou totalmente obsoleto. O que está em discussão é uma forma de produção e de vida que se funda no “trabalho abstrato” (Marx).
CC:
Nos últimos anos, o governo brasileiro tem investido em programas sociais de
renda mínima, desvinculados do mundo do trabalho. Para Michael Hardt e Antonio
Negri, autores do livro Império, essa seria uma saída razoável. O sr.
concorda?
RK: Com o desaparecimento do capitalismo estatal de inspiração soviética, a esquerda busca por substitutos baratos – todos eles incapazes de alcançar as formas sociais do moderno sistema produtor de mercadorias. Hardt e Negri dizem-se comunistas, mas a visão deles de uma república burguesa mundial de “multidões” com a garantia de um salário mínimo em forma de dinheiro é precária. Sob as atuais circunstâncias do mercado mundial, cimenta-se e legitima-se, no melhor dos casos, uma miséria generalizada. Já que todas as transferências dependem, no fim das contas, do uso real de capitais, acaba-se rompendo por isso mesmo a capacidade de financiá-lo. A velha ilusão de um “primado da política” ante uma economia capitalista ainda não-superada só pode se desmanchar.
CC:
O sr. cunhou a expressão “sujeitos monetários sem dinheiro” para
qualificar as massas de desempregados dos países
RK: A fórmula “sujeitos monetários sem dinheiro” se refere ao dilema das pessoas terem, nos últimos 200 anos, interiorizado as formas capitalistas a ponto de considerá-las como condições de existência quase naturais e ahistóricas. Isto vale também para os pobres e para os desempregados. Por isso ninguém está preparado para o fim de um modo de vida fundado na “santíssima trindade”: a venda da força de trabalho, a produção de mercadorias e a renda monetária. A capacidade de produção de fato é gigante e os estoques estão abarrotados, mas o poder de compra decai. Mesmo nos centros capitalistas há cada vez mais “sujeitos monetários sem dinheiro”, os quais foram sumariamente esquecidos nos últimos anos pelos impulsos simulados da conjuntura do déficit. As reações às evidências regionais de colapso não têm sido até hoje emancipatórias, mas sim bárbaras. A propagação de ideologias irracionais não nos faz esperar por nada de bom.
CC:
A precarização do trabalho para as classes médias é inevitável? As novas
tecnologias não permitirão ganhos de produtividade e a criação de novas
formas de ocupação?
RK:
As novas tecnologias aumentam a capacidade produtiva, mas elas não criam novas
formas duradouras de trabalho em larga escala. Era ilusória a esperança de uma
sociedade de serviços em uma era de capitalismo da informação e do
conhecimento com grande potencial de criação de empregos. A infra-estrutura pública
de educação e de saúde se deterioram ou, piorando a situação, acabam
privatizadas, transformadas
CC:
De que modo a crise mundial de energia poderá afetar a soberania dos países
menos desenvolvidos?
RK: A explosão dos preços de energia tem duas causas. Por um lado, trata-se de uma conseqüência da alta demanda na conjuntura global do déficit. Por outro, declinam também as reservas e a capacidade de exploração a médio prazo. Por causa dos custos crescentes de investimento, o preço da energia não voltará mais, mesmo com um colapso na conjuntura do déficit, aos níveis mais baixos de antigamente. Apesar disso, chega ao fim o boom especulativo para os países produtores de gás e de petróleo, como Rússia, Irã e Venezuela. A dependência unilateral da exportação de energia não pode ser vista como um modelo autônomo de desenvolvimento. Para tanto, falta a base industrial, mesmo para a Rússia, após o fim do capitalismo de estado. Por outro lado, a importação de energia continua a ser um peso constante para a maioria dos países sem reservas significativas. A disputa pela partilha das reservas declinantes de energia fóssil forma uma dimensão “natural” da crise capitalista. Como todos os outros, tampouco este problema pode ser abordado em termos de soberania nacional. Uma nova forma de produção e de vida só pode ser pensada em escala mundial, para além dos conceitos de nação e de estado.
CC:
O filósofo francês Paul Virilio considera que vivemos sob o signo da aceleração.
Podemos esperar uma ‘era da lentidão’, depois de atingirmos a “aceleração
total”?
RK:
Virilio criou uma metáfora precisa para a dinâmica capitalista com a fórmula
de uma “estagnação acelerada”. A reflexão crítica do passado entra em
“ponto-morto”, a mudança cega e descontrolada das estruturas se acelera.
Indivíduos, empresas e instituições se tornam cada vez mais agitados nas suas
atividades autistas, com laptops e telefones celulares. Não percebem mais que
todos eles estão juntos em um trem de grande velocidade, desgovernado, que
acelera cada vez mais. Se a humanidade não encontrar o freio de emergência,
este trem poderá descarrilar. É a única espécie de abrandamento que o
capitalismo conhece.
Links:
1ª
página: http://www.cartacapital.com.br/app/index.jsp
Texto:
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=7&i=857
Original
alemão: INTERVIEW MIT DER BRASILIANISCHEN ZEITSCHRIFT CARTA CAPITAL (SAO PAULO)
http://www.exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=16&posnr=349&backtext1=text1.php