À espera dos escravos globais
Está prestes
a se concretizar a união das duas formas decadentes de sociedade
capitalista
Em que mundo vivemos? A resposta dos ideólogos é sempre a
mesma: num mundo de economia de mercado e democracia, no qual a
economia de mercado e a democracia nunca são suficientes. Quanto
mais as catástrofes se acumulam nessa ordem mundial, mais
incisivos, a cada novo colapso, são os pedidos estereotipados
feitos pela ignorância asinina da consciência oficial por
"mais economia de mercado" e "mais
democracia". Esses dois conceitos tornaram-se uma espécie
de mantra que, à força da repetição exaustiva, se diluiu numa
cantilena sem sentido.
Nesse poço dos desejos oculta-se uma contradição elementar. De
um lado, ergue-se a pretensão de que a sociedade é capaz de
deliberar conscientemente sobre assuntos de interesse comum e
tomar as devidas decisões racionais ("democracia"). De
outro, no entanto, trata-se expressamente da auto-regulação
mecânica de um nexo sistêmico autônomo, cujas leis surdas se
sedimentaram em fatos naturais ("economia de mercado",
vulgo capitalismo).
Na verdade, a vida social não é norteada pela discussão e pela
consciente decisão comum dos membros da sociedade. Isso porque o
procedimento democrático não se acha anteposto aos efeitos
galvanizadores da "física social" de mercados
anônimos, mas posposto. Todas as decisões de instituições
democráticas não representam assim um emprego autônomo do
cabedal simbólico dos recursos, mas são antes plasmadas de
antemão pelo automatismo do sistema econômico, que, como tal,
não se presta a debates.
Por trás dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, da
forma como os concebeu Montesquieu, há um "quarto
poder" -o poder estrutural do sistema total de mercado.
Desde Rousseau, esse ídolo econômico, que zomba de todo
procedimento democrático, atende na teoria política pelo nome
abstrato de "bem comum". Ao jogo democrático
sujeitam-se, portanto, somente alternativas predeterminadas (algo
como a livre escolha entre a cruz e a caldeirinha), do modo como
as concebem os cegos "processos naturais" da física
social.
A construção social da democracia de mercado ou do mercado
democrático contém assim um inconfessado aspecto ditatorial e
totalitário, que se exprime no conceito de soberania estatal.
Esse princípio do Estado moderno foi formulado, em seus
primórdios, pelo jurista francês Jean Bodin (1529-1596).
Segundo Bodin, o conceito de soberania implica "o poder
absoluto e perpétuo de um Estado para promulgar ou revogar
leis" e também fazê-las cumprir, se necessário com uso da
força. Com toda paz de espírito, prossegue Bodin: "Já o
conceito de "felicidade" não é exigível. Isso porque
um Estado, embora bem governado, pode não obstante se ver
castigado pela pobreza. Não temos o conceito de
"felicidade" como essencial para a definição do
Estado". Não se poderia dizer com mais clareza que se trata
aqui de um fim situado além das necessidades humanas.
Em vista da soberania, contudo, a diferença entre o príncipe
absoluto de Bodin e o Estado democrático moderno é um tanto
irrelevante. O problema não foi resolvido, antes
"reificou-se" num grau superior. À medida que os
monarcas soberanos foram substituídos pelo procedimento
democrático, a lei sistêmica surda, impassível de discussão,
tornou-se ao mesmo tempo cada vez mais insofismável. No contexto
interno, a soberania nada mais faz do que pôr em prática o
"terror estrutural da economia". No contexto externo,
esse terror se prolonga nos interesses concorrentes dos Estados
nacionais capitalistas. Desde as "guerras de formação dos
Estados" nos séculos 16 e 17, como as chamou o historiador
suíço Carl Jakob Burckhardt, até as guerras mundiais do
século 20, estivemos sempre às voltas com o rearranjo de
forças da soberania estatal, nunca com anseios da população.
Só depois de 1945 as instituições características da
história capitalista renunciariam a tal padrão imutável em
favor do sistema mundial futuro: Estados nacionais soberanos,
reunidos na "comunidade de Estados civilizados" da ONU,
ligados pelo direito das gentes e (ao menos em perspectiva) pelos
procedimentos democráticos, bem como pela noção de Estado de
Direito, cuja base é o sistema produtor de mercadorias e sua
forma político-econômica de conceber o sujeito.
Desde o final dos anos 70, porém, essa aprazível nova ordem
mundial é abalada por uma crise de raiz causada pelo
"quarto poder" das coações econômicas estruturais:
como todos sabem, a revolução microeletrônica substitui em
proporções crescentes, na vasta gama das atividades rotineiras,
a força de trabalho humana pela tecnologia informática e
robotizada. Do ponto de vista dos mercados, as pessoas -e sua
força de trabalho- tornam-se "supérfluas". Hoje é de
toda urgência que a soberania estatal não interfira no
"quarto poder" do mecanismo de mercado. O cidadão do
Estado democrático é pressuposto como "força de
trabalho"; fora dessa definição, seu próprio status
político e jurídico desaparece.
Para restringir a "superfluidade" em massa das pessoas
não há instrumental democrático que baste, a não ser um
cinismo entranhado. Quem se mostra incapaz da reprodução
burguesa de sua vida tem de aceitar o "destino" que lhe
cabe e se apegar às regras do jogo. A miséria causada pela
economia de mercado é encarada, à maneira pós-moderna, como
"pluralidade de projetos de vida" ou como uma espécie
de folclore da diferença. Que aos "supérfluos" seja
negado de facto o direito à vida marca, por assim dizer, o
triunfo das regras jurídicas procedimentais da democracia
liberal.
É ilustrativo que essa interpretação democrática do mundo
não seja mais sustentável tão logo a "superfluidade"
transgrida uma certa medida crítica. Quando a concorrência
deixa de ter substância econômica, ela só pode levar à
selvageria: por trás do sujeito jurídico burguês que firma
contratos, sobressai a careta original do desbragado poder
capitalista -agora, sem dúvida, não mais o poder constituinte
da história de ascensão burguesa em oposição aos produtores
pré-modernos, mas o poder de destruição recíproca do material
humano amansado pelo capitalismo, numa história de declínio e
decadência.
Porém o desenvolvimento da crise é escalonado, em seus efeitos,
por regiões do globo. Tal como as diversas sociedades foram
inseridas com um "descompasso" histórico no moderno
sistema produtor de mercadorias, assim também o grau e a
extensão da crise apresentam-se com o respectivo descompasso, de
modo que a periferia relativamente subdesenvolvida, ao contrário
da perspectiva de Marx para o século 19, prefigura o futuro dos
centros capitalistas desenvolvidos. Todo o Terceiro Mundo, mas
também grande parte do sul da Europa, é ameaçado por uma
constante ruína do desenvolvimento econômico nacional, que já
ocorreu em diversos países: a moeda nacional entra em colapso e
torna-se moeda de indigentes; o estoque de capital converte-se
irremediavelmente em "indústrias fantasmas" não
rentáveis, que atrasam ou não pagam salários; a
infra-estrutura reduz-se a frangalhos, água e energia só fluem
esporadicamente, interrompe-se o serviço de coleta de lixo, os
órgãos públicos de saúde fecham as portas, seguindo o exemplo
dos correios. O Estado retira-se de cena, e o que resta de sua
política econômica é gerido pelo FMI.
Se tal situação persistir por muito tempo, chega-se à luta
armada pela sobrevivência em todos os níveis da sociedade. A
soberania estatal esfacela-se e as antigas elites burocráticas
lutam com unhas e dentes para apropriar o restante dos despojos
econômicos. Em países como o Afeganistão ou a Somália,
praticamente não existe mais Estado. A fé na livre
concorrência não se externa como "jovial dissenso"
pós-moderno nas regiões que se desintegram, mas em graus
diversos de guerra civil, cujo desfecho nunca levará ao
surgimento de formações estatais de sopro renovado. Na opinião
de Martin van Creveld, historiador militar israelense, a guerra
do século 21 não será mais travada entre Estados, mas entre
"organizações não-estatais" dos mais diversos tipos.
Esse processo não é apreendido pelo Ocidente como o rematado
fracasso de seu sistema social, mas como simples "problema
de segurança" externo. O capitalismo democrático ocidental
em crise aumenta sua petulância, já demonstrada em relação a
seus próprios "supérfluos", ao lidar com países e
continentes inteiros que se revelam inaptos à reprodução de
mercado. Ora, eles que se conformem pacificamente a seu
inevitável destino! Se preciso for, a "segurança" há
de ser restabelecida com intervenções militares de âmbito
mundial (as chamadas "missões de paz").
Mas as guerras desse novo imperialismo de segurança não são
mais movidas em busca de uma nova repartição da soberania sobre
determinados territórios. Num espaço econômico globalizado, de
cunho empresarial, toda política expansionista tradicional perde
o sentido. Em vez disso, trata-se de proteger os poucos segmentos
capitalistas ainda capazes de se reproduzir contra os ímpetos de
violência enfurecida dos marginalizados e contra sua luta
encarniçada pela sobrevivência. As ilhas de produção e
fornecimento de serviços para o mercado mundial devem ser
mantidas a salvo da falta de civilidade dessas populações
empobrecidas, verdadeiras vagas oceânicas, devem ser preservadas
em sua atividade desordenada, até que elas também se tornem
"supérfluas".
Não se visa à conquista ou à incorporação para ganhar certos
recursos (não-humanos, é claro). Ao contrário, a orientação
estratégica é manter bem longe do sistema o enorme contingente
de "supérfluos" da periferia, vistos com toda
desconfiança. As catástrofes produzidas pela própria economia
universal de mercado devem ser isoladas o máximo possível.
Desse ponto de vista, as correntes de refugiados devem ser
barradas nas fronteiras ocidentais, e as regiões em conflito,
"contentar-se" com o nível de pobreza. O imperialismo
de segurança, nesse sentido, é ao mesmo tempo um imperialismo
de exclusão em nome na "Fortaleza Europa" e da
"Fortaleza América do Norte". O objetivo implícito
só pode ser uma hierarquia da exclusão escalonada por
continentes, a qual se estende, na Europa, de alguns poucos
Estados diretamente associados à Otan e à UE (algo como a
Hungria), passando por um leque de Estados-operetas só
parcialmente vinculados (algo como a Croácia), até protetorados
ou homelands de todo dependentes, geridos por organizações
internacionais (algo como Kosovo).
Se, desde 1945, a concorrência entre os blocos capitalistas dos
Estados Unidos e da UE era atenuada pelo interesse comum da
concorrência com o bloco oriental e seu capitalismo de Estado,
depois do fim da Guerra Fria a lógica do imperialismo de
exclusão e segurança globais constitui um novo metainteresse
comum, cujo móbil é a crise velada do sistema global produtor
de mercadorias. A Otan transforma-se, de um instrumento da Guerra
Fria num mundo bipolar, em polícia mundial num mundo unipolar,
sob a batuta dos Estados Unidos, última potência planetária
com seu incontrastável poderio bélico. Mas essa polícia
mundial só pode funcionar se a Otan exigir uma espécie de
monopólio global da força. Isso significaria que o aparato
militar de todos os Estados que não podem ou não querem se
integrar à Otan teria de ser forçosamente eliminado. Agindo
assim, o próprio Ocidente põe em dúvida o princípio da
soberania estatal e torna a ONU obsoleta: o capitalismo não é
mais capaz de reconhecer sua própria ordem jurídica
internacional.
É muito improvável, no entanto, que o imperialismo ocidental de
segurança se instaure efetivamente. Os gigantescos gastos
necessários para manter sob controle militar um mundo que se
esboroa não é mais economicamente viável nem mesmo para a
aliança ocidental. Os resultados obtidos até agora por tal
polícia planetária já deixam a desejar. Antes, é de supor que
Estados-pesadelos, dotados de mísseis e arsenais atômicos como
a Rússia, a China, a Índia ou o Paquistão, que há muito se
acham na berlinda da dinâmica global de crise, liberem forças
destrutivas no momento do colapso interno de sua soberania,
forças essas que botarão no chinelo a polícia mundial. Aliás,
Milosevic será fichinha perto do que se arma no horizonte.
Simultaneamente, a própria soberania dos Estados ocidentais se
esfarela. Mesmo a última potência mundial, com seu aparato
militar, depende hoje em dia do movimento autônomo do capital
financeiro transnacional, que solapa qualquer soberania
política. Burocracias militares e político-econômicas
supranacionais, com processos de decisão obscuros como a Otan e
a UE, o Banco Mundial e o FMI, ganham dinâmica própria em
relação às instituições politicamente legitimadas. Por fim,
acontecimentos como o massacre dos colegiais em Littleton, os
pogroms racistas de jovens alemães ou as bombas-relógios do
"Combat 18" e dos "Lobos Brancos" em Londres
mostram que a soberania estatal interna dos centros ocidentais se
encontra tão ameaçada quanto no resto do mundo.
Em toda parte a concorrência econômica e social desenfreada
destrói o domínio estatal, sem criar outra forma de vínculo
comunitário. Para o século 21, portanto, delineia-se a
tendência de uma "desestatização negativa": um
número crescente de funções estatais será absorvido por
organizações paraestatais sem controle algum. A atual soberania
será substituída, de um lado, pelo império dos cartéis
transnacionais, pelos fundos de capital financeiro e por
rudimentos de uma polícia global, e, de outro, pelo império da
máfia, dos warlords e dos grupos terroristas armados. É somente
questão de tempo até que essas duas formas decadentes da
sociedade capitalista unam esforços para, a ferro e fogo,
sujeitar os 5 bilhões de pessoas desta Terra a uma ordem mundial
que já está nos estertores.
Folha de São Paulo, 1999
Tradução de José Marcos Macedo
Original Alemão - http://www.exit-online.org/.