ENTREVISTA
À REVISTA IHU ON-LINE
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil
Em
que sentido as teorias de Marx são importantes para se compreender o actual
momento de crise no sistema financeiro global?
A
importância da crítica da economia política de Marx para explicar a grande
crise financeira actual evidencia-se desde logo em dois níveis, sendo um
aspecto fundamental a sua derivação da forma do dinheiro [Geldform], no 1º
volume de O Capital, e outro a sua análise
do crédito, principalmente no 3º volume. Aqui somente posso tratar alguns
pontos elementares.
A
economia burguesa clássica e neoclássica parte, contra os factos, de uma pura
economia de bens e de relações naturais de troca entre sujeitos do mercado.
Ela abstrai do dinheiro e fala do “véu do dinheiro” sobre as
“verdadeiras” transacções económicas. O dinheiro aparece aí como mero
signo sem conteúdo próprio, como constructo jurídico baseado numa convenção
social ou num acto estatal. Para que a economia funcione, importa apenas adequar
a quantidade de dinheiro à quantidade de bens (teoria da quantidade). Para
Marx, pelo contrário, o dinheiro não é o “véu” secundário, mas
pressuposto e meio autotélico central da valorização capitalista. Ele é a
forma geral da aparência do valor ou da mais-valia [Mehrwert] incorporado/a nas
mercadorias, que precisa voltar a se transformar na forma do dinheiro, a qual já
constitui o seu ponto de partida. Por isso, o dinheiro não pode ser mero signo,
mas precisa ter ele próprio o carácter de mercadoria, e mesmo de mercadoria
“rainha”. O dinheiro é “mercadoria geral” à parte, ou “equivalente
geral”, cujo “valor de uso [Gebrauchswert]” não consiste em sua utilidade
concreta, mas em sua propriedade de representar o valor abstracto ou mais-valia
de todo o mundo das mercadorias. Para as transacções quotidianas, é verdade
que signos monetários podem tomar o lugar da mercadoria-dinheiro propriamente
dita, mas, em última instância e principalmente nas crises, o real conteúdo
de valor do dinheiro precisa ser resgatado como “mercadoria régia”. Por
isso, para Marx, o dinheiro não pode emancipar-se totalmente dos metais nobres,
enquanto mercadoria dinheiro; isto não por causa do carácter metálico
natural, mas em função do valor social ali representado de forma
“concentrada”.
O
crédito emana da subdivisão do capital em capital de produção ou
capital-mercadoria, por um lado, e capital monetário ou capital que rende
juros, por outro. A duplicação da mercadoria em “mercadoria vulgar” e
dinheiro como “mercadoria régia” repete-se ao nível do capital. Na
economia burguesa, não existe conexão sistemática entre teoria monetária e
teoria do crédito. A noção de dinheiro como “véu” e mero signo
encontra-se em contradição com a noção de capital monetário que rende
juros, como uma espécie de produção sui
generis de mercadorias. Grosso modo,
faz-se de conta que a “indústria financeira” seria uma produção de
mercadorias tão real quanto, por exemplo, a indústria automóvel. O juro
parece ser uma forma independente de mais-valia. Marx, pelo contrário, mostra o
carácter ilusório dessa ideia. Ele mostra que o crédito, ou capital que rende
juros, é apenas uma forma derivada, sem formação própria de valor. O juro é
o preço da função capitalista do crédito, preço este que precisa de ser
subtraído da mais-valia social da produção real de mercadorias. Na estatística
burguesa, pelo contrário, os “produtos” do capital monetário são somados
ao produto social, com o que se distorce as verdadeiras relações de valor.
No
século XX, o dinheiro e todo o sistema monetário aparentemente emanciparam-se
em definitivo do ouro como mercadoria monetária real, processo concluído com o
abandono da convertibilidade do dólar em ouro em 1973. No período subsequente,
em correspondência, o capital monetário também se desacoplou cada vez mais da
produção real de mercadorias. O inflar do crédito não só gerou formidáveis
montanhas de dívidas, que sempre precisavam ser “rodadas”, mas ainda
adquiriu a forma de circulação independente de títulos financeiros (acções,
imobiliário, derivados), onde se criaram valores fictícios de dimensões
astronómicas. Na óptica positivista, tratava-se simplesmente de “factos”
que pareciam fundamentar-se a si próprios. Até mesmo teóricos de esquerda
abandonaram explícita ou implicitamente a teoria de Marx do dinheiro e do crédito,
porque na aparência ela estava refutada empiricamente.
Esse
período de 35 anos desde o fim da convertibilidade do dólar em ouro, que é um
período histórico breve, encerrou-se, entretanto, em 2008. Agora se mostra o
verdadeiro carácter desse desenvolvimento. Num processo secular, o capital, em
função dos crescentes custos prévios da produção cientificizada, ficou cada
vez mais dependente do crédito, como antecipação de mais-valia real futura.
As bolhas financeiras sempre excessivamente infladas nas últimas décadas
rebentaram definitivamente a conexão entre “capital fictício” e produção
real de mais-valia; a antecipação da mais-valia futura jamais poderá ser
resgatada. Essa contradição amadureceu e descarrega-se como crise financeira
global. Isto destrói não só a ilusão de um crescimento “financeiramente
induzido”, mas também a ilusão do dinheiro como mero signo. O ouro já
sofreu uma dramática valorização face a todas as moedas. Mas a remonetarização
do ouro não é possível, porque as potências de produção alcançadas
historicamente já não podem ser representadas como “riqueza abstracta”
(Marx) na forma da mais-valia. A desvalorização do dinheiro corresponde à
desvalorização da massa das mercadorias. Por outras palavras: os recursos
materiais e os agregados técnico-científicos, as capacidades e as necessidades
humanas já não podem ser comprimidas nas formas básicas do capital. Ou, na
expressão de Marx nos Grundrisse, “desaba o modo de produção baseado no valor de
troca”; manifesta-se a “desvalorização do valor” enquanto limite histórico
da valorização do capital.
Nessa
situação, o Estado aparece como lender of last ressort [financiador de último recurso]. Para a
teoria burguesa, o Estado não é o outro lado, o lado político da relação de
capital, mas uma “instância extra-económica”. Também na esquerda, a ilusão
do Estado tem uma longa tradição. Marx não chegou a concluir a formulação
da sua teoria do Estado. Mas já nos escritos da sua fase inicial ele criticou a
ilusão política-estatal como “falsa comunidade”. Em sua teoria do crédito,
no 3º volume de O Capital, o crédito
do Estado é definido como forma especial de “capital fictício”, que
continua dependente da real valorização do capital. Na verdade, há muito
tempo que se envergonhou a ilusão estatal, ilusão esta que esteve em alta após
a grande época de crises na primeira metade do século XX. No Ocidente, a
regulação estatal keynesiana e o crescimento induzido pela expansão do crédito
estatal fracassaram no início dos anos 80, por causa da inflação desmedida.
No Leste, o capitalismo de Estado soviético da “modernização atrasada”
ficou devedor e entrou em colapso no final dos anos 80. Estas já eram formas de
aparência da “desvalorização do valor” histórica. Na viragem neoliberal,
a intervenção do Estado, supostamente “extra-económica”, foi
responsabilizada pelo dilema e substituída por um radicalismo de mercado. Essa
viragem, porém, não suplantou o limite interno da valorização, mas, mediante
uma política de desregulação e de excesso de oferta monetária pelos bancos
centrais, apenas abriu as comportas para uma expansão sem precedentes do crédito
privado e da economia das bolhas financeiras.
Depois
de também esta ilusão ter estourado e de o mercado ter falhado grandiosamente,
pretende-se de repente que o Estado seja de novo o salvador. Só que o problema
não pode mais ser resolvido com novo excesso de oferta monetária dos bancos
centrais estatais através duma redução conjugada da taxa de juros. Pois esse
tipo de excesso de oferta monetária sempre ainda pressupõe a ficção de uma
“cobertura” por processos reais de valorização que já se tornou ilusória.
Os bancos comerciais já só conseguem depositar nos bancos centrais
“garantias” que deixaram de o ser, porque em grande parte são títulos
duvidosos. Isto impede que se inflem novas bolhas financeiras da forma habitual.
O colapso dos créditos hipotecários somente foi o catalisador de um processo
de desvalorização de todo o capital financeiro, que vai muito além. Por isso,
agora, a crise é elevada ao nível da “última instância”, isto é, das próprias
finanças do Estado. Só que o Estado não é um demiurgo independente das leis
da valorização do capital. Já no ano fiscal passado, ainda antes da recente
crise dramática, a dívida pública dos Estados Unidos triplicou; e, no caso de
se invocarem as garantias estatais concedidas em todo o mundo, o resultado
somente pode ser uma grande crise das finanças estatais. O Estado não pode
estancar a desvalorização, mas apenas administrá-la; ou em forma de deflação,
se quiser manter seu próprio endividamento limitado, ou em forma de inflação,
caso comece a imprimir notas sem qualquer “cobertura”. Nesta situação nova
na História, talvez até ocorram processos deflacionários e inflacionários em
paralelo.
O
que representa, na actual crise, a teoria marxista do trabalho abstracto como
substância do capital?
A
economia burguesa clássica baseava-se, ainda, numa teoria do “valor do
trabalho”. O valor devia, em última instância, ser determinado pelo trabalho
humano. Acontece que essa teoria do “valor do trabalho” era acrítica e
inconsequente. A teoria de Marx da determinação do valor e da mais-valia pelo
trabalho abstracto é fundamentalmente diferente. O conceito de trabalho
abstracto é entendido de forma crítica e estritamente negativa, como
“abstracção real” da produção concreta de bens. No processo de produção
e circulação do capital, a actividade produtiva é reduzida, em sua forma
social, à delapidação [Vernutzung] abstracta de energia humana, ou aplicação
[Anwendung] de força de trabalho abstracta como “dispêndio [Verausgabung] de
nervo, músculo, cérebro” (Marx), com total indiferença perante o conteúdo
concreto desse dispêndio. A massa de trabalho abstracto passado surge como
massa de valor social e como “objectividade do valor” [Wertgegenständlichkeit]
dos produtos. Na “valorização do valor”, o que interessa não é a massa
de valor em si, mas apenas a massa de mais-valia, que é distribuída aos
diferentes capitais pelo mecanismo da concorrência. A valorização como fim em
si mesmo transforma em fim em si mesmo também o trabalho abstracto que lhe dá
origem, trabalho esse que, como dispêndio de energia humana abstracta,
constitui a substância do capital.
A
economia neoclássica burguesa abandonou a teoria clássica do “valor do
trabalho”. O valor foi reduzido ao preço, sendo entendido não mais como
substância comum das mercadorias, mas como mera função na inter-relação das
mercadorias. Esta redução corresponde na filosofia burguesa à passagem do
“conceito de substância” para o “conceito de função”. Pretendia-se
eliminar o problema da substância, transformando-o numa relação funcional
vazia. A “matematização” dos “modelos” neoclássicos baseia-se nessa
transformação do valor numa relação estritamente funcional. Com isto, a
teoria do valor foi adaptada à teoria do dinheiro como mero “signo”. Essa
“teoria da circulação” funcional do valor, no espaço da língua alemã,
de certo modo também conseguiu entrar numa assim chamada “nova leitura de
Marx”, na qual a teoria crítica de Marx do “valor do trabalho” era
rejeitada como “naturalista” ou “substancialista”, negando-se o carácter
de mercadoria do dinheiro.
Como
na economia burguesa, assim se exclui, por princípio, um limite interno
absoluto da valorização. A redução do valor a uma relação funcional
torna-o aparentemente atemporal e eternamente regenerável. Marx, pelo contrário,
mostrou que o desenvolvimento capitalista contém uma autocontradição
elementar. Por um lado, a energia humana abstracta constitui a substância real
do capital; por outro lado, a concorrência obriga ao constante desenvolvimento
da força produtiva, a qual torna supérflua a força de trabalho humana e
solapa a substância do valor. Até à segunda revolução industrial do
fordismo, esse processo secular de desvalorização das mercadorias podia ser
compensado por meio do mecanismo da “mais-valia relativa”, analisado por
Marx: pelo desenvolvimento da força produtiva, o valor da mercadoria “força
de trabalho” é reduzido à escala social e a participação relativa da
mais-valia na massa total de valor aumenta. Essa participação relativa
aumentada da mais-valia, porém, está relacionada com a quantidade de força de
trabalho produtivamente utilizável. Marx não chegou a concluir sua teoria da
crise, mas implicitamente ela faz inferir que o desenvolvimento da força
produtiva chega a um ponto em que a quantidade de força de trabalho
produtivamente utilizável se reduz a tal ponto que a massa de mais-valia
absoluta cai. Então, mesmo o aumento da mais-valia relativa por força de
trabalho de nada serve. Esse ponto é atingido com a 3ª revolução industrial
da microeletrónica. O mecanismo histórico de compensação da mais-valia
relativa se extingue, a massa real absoluta de mais-valia cai e a “desvalorização
do valor” leva à “dessubstancialização do capital”.
Este
é o motivo pelo qual, no período anterior, se podia simular mais valorização
somente por meio de bolhas financeiras desprovidas de substância. Quando estas
estouram, entretanto, não se atinge novo “ponto zero”, a partir do qual a
valorização real possa recomeçar. Ao invés, o capitalismo é reduzido às
suas reais condições de valorização, cujo standard de produtividade é
irreversível. Essa teoria substancial da crise, que fala de um limite interno
absoluto do capital, muitas vezes foi criticada como “tecnológica”
justamente pela esquerda. Mas não se trata, no caso, do aspecto técnico, mas
do efeito da tecnologia sobre as condições da valorização. Marx não
formulou uma teoria funcional do valor “atemporal”, mas sim a teoria de um
desenvolvimento historicamente dinâmico do capital, como movimento da substância
real mediado pela crescente aplicação dos potenciais técnico-científicos e
que não pode ser infinitamente prolongado.
Sobre
isto ainda cabe fazer duas observações. Em primeiro lugar, as categorias de
Marx são categorias reais de uma lógica da sociedade como um todo, que está
na base das aparências empíricas, mas não pode ser descrita de forma
directamente empírica. Isto não apenas porque o capital se move empiricamente
em formas de mediação complexas e contraditórias, mas porque a real agregação
da substância de valor social sempre se apresenta apenas em retrospectiva. A
estatística burguesa nunca capta a real massa de valor ou mais-valia, mas
apenas os fluxos superficiais de mercadoria e dinheiro, os quais produzem uma
imagem distorcida. Por isso os crashes também não são previstos, mas
apresentam-se de forma eruptiva, quando a lógica de base irrompe a empiria,
como parece ser agora o caso. Porém, as curvas caóticas e os saltos
descontrolados, por exemplo dos câmbios ou dos índices da bolsa,
necessariamente precisam ser atribuídos à natureza não-empírica do capital e
à sua evolução substancial. Isto não está ao alcance de uma teoria
categorialmente imanente ou afirmativa, que só consegue ficar correndo atrás
dos fenómenos imprevisíveis. Em segundo lugar, o limite da valorização é
estritamente objectivo. Aquilo que “desaba” por entre as curvas é a
capacidade de o capital reproduzir-se socialmente. Mas o que não desaba por si
mesmo são as formas de consciência ou “formas de pensamento objectivas”
constituídas pelo capital (Marx). Ao se alcançar o limite histórico do
capitalismo, surge por isso uma tensão colossal entre a impossibilidade de
continuar uma valorização real e a mentalidade generalizada que interiorizou
as condições capitalistas de vida e não quer nem consegue imaginar outra
coisa senão viver dentro dessas formas. A difícil tarefa está em resolver
essa tensão no processo de resistência contra a administração da crise, sob
pena de o capitalismo desembocar numa catástrofe mundial. Para isto não está
preparada uma esquerda que se adaptou cada vez mais ao desenvolvimento
capitalista.
Quais
as consequências da crise financeira para o emprego global?
Desde
o início da 3ª revolução industrial nos anos 80, os novos potenciais de
racionalização eliminaram a força de trabalho industrial do processo
produtivo numa escala nunca vista antes. Em consequência, de ciclo em ciclo,
aumentou em massa o desemprego e o subemprego à escala global. O reverso da
medalha foi a simulação da valorização pelo inflar do “capital fictício”.
Diferentemente de épocas anteriores do capitalismo, entretanto, não ocorreu
uma desvalorização rápida do capital monetário sem substância, para dar
lugar a uma nova acumulação real. Em vez disso, por falta de novas
possibilidades de valorização real, iniciou-se uma imbricação sem
precedentes históricos entre a economia das bolhas financeiras e a conjuntura.
Os “valores fictícios” não permaneceram no céu financeiro, mas têm sido
transferidos para a aparente economia real há muito tempo e em medida
crescente. Assim surgiu o famoso crescimento “financeiramente induzido”, que
parecia alavancar as leis económicas do capitalismo e permitiu uma onda de
conjunturas em alta baseadas no deficit, que na realidade não tinham base.
Embora o desemprego em massa aumentasse, ele era mantido em limites relativos
porque, no quadro das conjunturas baseadas no deficit, criaram-se em certa
medida “postos de trabalhos fictícios”, que se alimentavam das bolhas
financeiras sem substância.
Para
se compreender essa evolução, é importante a distinção de Marx entre
“trabalho produtivo” e “improdutivo”. Todas as actividades no contexto
da forma capitalista são trabalho abstracto, que é representado em dinheiro.
Mas nem todo trabalho abstracto é produtivo em termos capitalistas, nem
contribui para a massa de mais-valia social real. Certas funções da relação
de capital são em si improdutivas e “custos mortos”. Mas também a
actividade produtiva industrial pode tornar-se improdutiva em sentido
capitalista, quando ela excede a capacidade de produção de mais-valia real
(“capacidades excedentárias”). Todos os resultados do trabalho abstracto
assumem a forma de mercadoria enquanto “objectividades da circulação”
[“Zirkulationsgegenständlichkeit”]. Ao conseguirem um preço, eles assumem
uma parte da massa de mais-valia social, independentemente de a sua produção
ter contribuído ou não para essa massa. Esse carácter social global
[gesamtgesellschaftlich] da produção de valor e de mais-valia não fica muito
claro em Marx, razão pela qual surgiu o famoso problema da transformação do
valor em preço. Entretanto, esse problema se resolve quando a massa de
mais-valia social não se baseia numa soma de valores “individuais” das
mercadorias, mas representa uma massa de substancia social total não subsumível
a nível empresarial; a sua quantidade só é revelada pela concorrência no nível
da circulação. Isto não torna irrelevante o problema da substância, mas nada
tem a ver com uma substância de valor da mercadoria individual.
Que
significa isto para a era da economia das bolhas financeiras? A queda da massa
de mais-valia social real foi aparentemente mascarada pela “mais-valia fictícia”
do sistema de crédito inflado. Dessa forma, gerou-se uma ocupação improdutiva
que ultrapassava em muito a capacidade de produção de mais-valia real. Em
primeiro lugar, junto com o inchar da “indústria financeira”, inchou de
forma desproporcionada o emprego nesse sector, emprego esse que não produz
valor algum, apenas intermedeia transacções financeiras. Em segundo lugar,
criou-se um sector igualmente desproporcionado de serviços pessoais
improdutivos em termos capitalistas, de indústria publicitária, indústria da
informação e dos media, indústria do desporto e da cultura. Justamente nesses
sectores, a ausência de substância fez-se notar, por um lado, como remuneração
astronomicamente excessiva de uma pequena elite de estrelas e, por outro, como
precarização em forma de freelancers, pseudo-autónomos e empresários da miséria.
Em terceiro lugar, a conjuntura do deficit global forçou o emprego de uma
“aristocracia operária” nas indústrias de exportação (produção automóvel,
máquinas), a qual era igualmente improdutiva porque não se baseava em lucros e
salários de produção de mais-valia real, mas era alimentada pelas bolhas
financeiras.
Na
mesma medida em que o estouro das bolhas financeiras reduz o capitalismo às
suas reais condições de valorização, também boa parte do emprego
improdutivo terá de cair. A massa de mais-valia real é muito pequena para que
a “objectividade de circulação [Zirkulationsgegenständlichkeit]” desses
sectores inflados se possa representar como “objectividade de valor
[Wertgegenständlichkeit]”. A depressão global que é de esperar levará de
roldão não só grande parte dos “senhores do universo” do capitalismo
financeiro, mas também boa parte das precárias micro-empresas prestadoras de
serviços, dos freelancers, dos assalariados mal pagos e dos trabalhadores
temporários daqueles dependentes, assim como empregos na indústria de exportação.
O sistema do trabalho abstracto leva a si próprio ao absurdo; e o capitalismo
global minoritário sofre o seu Waterloo, mesmo que ninguém queira tomar
conhecimento, embora todos o saibam intuitivamente.
Em
que consiste o peso do capitalismo na sociedade de hoje, caracterizada por relações
virtuais, trabalho imaterial e autonomia?
Os
conceitos mencionados provêm todos da ideologia pós-moderna, que desde o começo
acompanhou e deu expressão ao capitalismo financeiro neoliberal do “capital
fictício” inflado. Já em fins dos anos 1970, em seu livro A
troca simbólica e a morte, Baudrillard explicitou a relação com a
economia ao estabelecer o “capital fictício” como novo princípio de
realidade. Também Derrida, num texto sobre “dinheiro falso”, afirmou a
virtualidade do capital. A rejeição radical pós-moderna do
“essencialismo” ou “substancialismo” corresponde à tentativa de o
capital iludir o seu próprio problema, de certa maneira “aristotélico”, da
substância. O culto da “virtualidade” contagiou todos os domínios da vida,
até mesmo as relações pessoais. A redução do valor a uma relação
funcional levou à paradoxal “absolutização da relatividade”, que no
entendimento vulgar se manifestou como “arbitrariedade”. Ao virtualismo económico
correspondia o virtualismo tecnológico da internet, que se transformou na
“second life” das vidas individualizadas e abstractas de bloggers, incapazes
de se organizar e de resistir na realidade.
A
esquerda pós-moderna é a órfã desse desenvolvimento. Ela reduziu a luta
social a um nível virtual e simbólico. O “pós-operaismo” de Antonio Negri
exprime o cerne dessa ideologia. O fetichismo objectivo do capital é negado e
dissolvido, crise incluída, em relações subjectivas de vontade. O lugar da crítica
radical do trabalho abstracto e da forma abstracta do valor é tomado pela ilusão
de uma “autovalorização autónoma” [autovalorisazzione] de freelancers de
um “trabalho imaterial”. É um conceito nonsense,
porque todo o trabalho abstracto, mesmo que não se manifeste em produtos
materiais, é “dispêndio de nervo, músculo, cérebro”. Só que o
“trabalho do conhecimento”, improdutivo em termos capitalistas, justamente
nada contribui para a massa de mais-valia social real. A “autonomia” dessa
forma específica de trabalho abstracto é ilusória, porque continua dependente
do mercado mundial. Trata-se da ilusão de uma nova classe média que já não
tem qualquer base. Quando o capitalismo é reconduzido às suas reais condições
de valorização, extingue-se também a “autovalorização” do trabalho
abstracto nos sectores do “conhecimento” e da comunicação mediática. A
vergonha da economia das bolhas financeiras é também a vergonha da esquerda pós-moderna
e do seu “anti-substancialismo” ideológico, que gostaria de declarar
qualquer manifestação da vida como “valorização”. Esta ilusão não tem
base económica, mas sim “existencialista”, recorrendo a Heidegger. Ao
estourar a economia das bolhas financeiras, a “heideggerização” pós-moderna
da esquerda corre o risco de desembocar em sentimentos nacionalistas e
anti-semitas.
Original
Publicado
na REVISTA
IHU ON-LINE nº 278,
20.10.2008, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre,
Brasil, como o título O vexame da
economia da bolha financeira é também o vexame da esquerda pós-moderna