Porque
se coloca a indústria automóvel no centro da crise
Enquanto o negócio da quadra de Natal ainda decorre mais uma vez, como uma espécie de última refeição do condenado, e em muitas empresas são processadas as últimas carteiras de encomendas, o colapso da economia mundial já atingiu em cheio a indústria automóvel. Por todo o mundo, os grandes conglomerados do automóvel estão a enviar os empregados de férias prolongadas forçadas até depois dos feriados. A paz dos cemitérios invadiu Sindelfingen, Munique, Eisenach e não só. Juntamente com as linhas de montagem, pára toda a logística just-in-time. Nos E.U.A., na Europa e na Ásia a quebra das vendas das várias marcas nos últimos dois meses é de 10 a 50 por cento. Operações de salvamento, como no sector bancário, que continuam a ser objecto de acesas discussões, já não podem absorver o desaire das vendas; na melhor das hipóteses poderão adiar o colapso dos balanços para o médio prazo.
Antes festejavam-se as horas extraordinárias do boom passado; mas já para o primeiro trimestre de 2009 se anunciam reduções de horários. Ao concordar com a prorrogação das prestações de desemprego, o governo federal sinalizou a sua disponibilidade para subsidiar a indústria automóvel. Poderia ser o primeiro passo para uma nacionalização parcial, como no sector financeiro; o presidente Sarkozy já assumiu publicamente essa possibilidade em França.
Isto significaria, em termos optimistas, que se deve diferenciar, pois os problemas na indústria automóvel seriam em parte também caseiros. Aqui estão em primeiro lugar os “big tree [três grandes]” (General Motors, Ford e Chrysler) na área metropolitana de Detroit, que se atrasaram na passagem para modelos economizadores de combustível e agora caíram num buraco negro. As filiais europeias da GM, Opel, Saab e Volvo, correm o risco de serem também atingidas. Espera-se uma mudança estrutural perfeitamente normal, no sentido de carros com menores emissões com efeito de estufa, mudança da qual seriam talvez vítimas algumas capacidades excedentárias do velho tipo devorador de combustível. Deste ponto de vista, a ajuda estatal selectiva aos grandes conglomerados automóveis dos E.U.A., que ainda não se adaptaram, surge como uma “distorção da concorrência”.
Na Europa, trata-se das marcas alemãs de prestígio, Porsche, BMW e Daimler, a quem se censura uma insistência em potentes viaturas de prestígio, que de repente deixaram de ser encomendadas pelos novos-ricos de todo o mundo, eles próprios entrados em apertos. Daí que haja na União Europeia uma desavença entre nações quanto aos objectivos climáticos e às ajudas nacionais, entre a aristocracia alemã dos automóveis potentes e os produtores de veículos mais pequenos na Europa Ocidental e do Sul. Mas a referência a uma mudança estrutural na indústria automóvel não é sequer metade da verdade. Pois até a Fiat e a Renault decretaram férias obrigatórias, e os fabricantes japoneses estão trabalhando a meio tempo.
A quebra das vendas afecta todas as marcas e modelos, embora em graus diferentes. O carro é um bem de consumo particularmente importante, cuja aquisição implica uma decisão de investimento privado. Não se compram carros como quem compra sanduíches, calças ou leitores de MP3. Portanto, perante a crise económica global emergente, a quebra da procura faz-se notar em primeiro lugar neste sector. Se os rendimentos se desfazem, não só os pequenos mas também os médios e grandes, então em primeiro lugar os carros antigos vão continuar a andar, ou recorre-se ao mercado de automóveis em segunda mão, que há muito sofre de excesso de oferta.
Ao mesmo tempo, porém, a indústria automóvel constitui um ponto nevrálgico central do sistema global da economia real em rede. Dele dependem não apenas numerosos fornecedores, mas também partes significativas das indústrias básicas, como o aço e produtos químicos; sem esquecer os fornecedores secundários de todos os tipos nos respectivos locais de produção. A procura de automóveis no mercado europeu tem vindo a diminuir desde há anos e não tem vivido senão do boom da exportação para os E.U.A. e para os países emergentes. Na medida em que a procura agora pára por todo o mundo, estabelece-se inevitavelmente uma reacção em cadeia em toda a gama da produção de componentes.
Verifica-se que a indústria automóvel continua a ocupar uma posição-chave e agora se torna o catalisador da crise que atinge todos os sectores. O discurso sobre um capitalismo “pós-industrial” tinha-se alimentado principalmente do boom de crédito e bolhas financeiras das últimas décadas, a que já não correspondia qualquer criação de valor real. Assim se criou uma procura artificial, de que a indústria automóvel pôde beneficiar particularmente. As vendas foram promovidas com crédito aos clientes e contratos de leasing cada vez mais facilitados. A partir dos “Financial Services” das empresas do sector automóvel surgiram verdadeiros bancos do sector automóvel, alguns com balanços de banco universal para o negócio creditício geral, e junto dos quais possivelmente também haverá alguns esqueletos da especulação no armário. Em todo o caso, o refinanciamento dos bancos do sector automóvel encareceu tanto por causa da crise financeira que a promoção das vendas, mesmo nos segmentos médio e baixo, tornou-se um modelo descontinuado. Muitos são já os vendedores de automóveis à beira da ruína.
A mesma é a imagem do lado oposto, no financiamento dos custos de investimentos e de desenvolvimento. No espaço de um ano, o prémio de risco para a transferência de créditos dos bancos comerciais sobre os conglomerados automóveis subiu dez vezes. O aumento na produtividade de até dez por cento ao ano por via da racionalização de investimentos dispendiosos faz agora bumerangue. As vendas teriam de subir na mesma ordem de grandeza para poder manter a capacidade e o emprego. Com o desaparecimento da procura não está apenas programado o encerramento de instalações. Também paralisa a continuada inovação de modelos. A retirada da Honda de Fórmula 1 e o estrangulamento financeiro da divisão de corridas indicam os limites da capacidade de desenvolvimento, que se repercutem também no projecto de construção de automóveis eléctricos.
A
Volkswagen já requereu as garantias estatais do fundo de salvamento para o seu
banco do sector automóvel. Seguir-se-ão não apenas os outros construtores
automóveis, mas também os bancos dos outros conglomerados industriais e das
grandes cadeias comerciais, logo que se desencadeie o efeito dominó da crise.
Tanto mais se coloca a questão de saber onde irá o Estado buscar o dinheiro
para isso, se as vendas não ficam salvas com a mera ajuda no saneamento dos
balanços. A indústria automóvel está no centro de uma crise sistémica, que
já não segue nenhum clássico ciclo económico e também já não pode ser
descrita como mudança estrutural
“normal”.
Original
ALLE BÄNDER STEHEN STILL in www.exit-online.org.
Publicado em Freitag
19.12.2008.