A
ruptura estrutural do capital e o papel da crítica categorial
ENTREVISTA
À REVISTA ONLINE PORTUGUESA “SHIFT”, ZION EDIÇÕES
Como
se enquadra a actual crise financeira no contexto do desenvolvimento da crise
estrutural do capital?
É
teoricamente errado falar de uma crise financeira autónoma, cuja «repercussão»
sobre a chamada economia real seria incerta e possivelmente moderada. Expressa
em termos da teoria de Marx, a crise financeira só pode ser uma manifestação
da falta de condições de valorização real do capital. O sistema financeiro e
de crédito não é um sector autónomo, mas uma componente integrante da
reprodução ampliada do capital total. Aqui surge uma contradição que se
agrava com o desenvolvimento progressivo. A expansão do sistema de crédito em
si não é nova, já percorreu um processo secular. Isso reflecte um mecanismo
descrito por Marx como «aumento da composição orgânica do capital». Com o
aumento da cientificização da produção, cresce a proporção de capital
constante (máquinas, equipamento tecnológico de controlo, comunicações e
infra-estruturas, etc.) em relação ao capital variável (força de trabalho
produtivo de valor). Correspondentemente, crescem os custos prévios para, de
algum modo, poder aplicar de forma rentável a força de trabalho, a única
fonte de mais-valia. Os custos prévios crescentes exigem, para manter em curso
a actual produção de mais-valia, um adiantamento de mais-valia futura na forma
de crédito, cada vez mais adiado no futuro.
Isto
cria uma tensão crescente na conexão interna entre crédito e valorização
real. No passado, esta contradição pôde ser compensada pelo efeito social
colateral da cientificização. O aumento da produtividade embaratece os
alimentos e, portanto, reduz também o valor da força de trabalho, de modo que
os custos da sua reprodução baixam. O mesmo mecanismo que leva a que a proporção
de capital variável (força de trabalho) na composição orgânica do capital
seja relativamente menor leva também a que a força de trabalho tenha de
produzir menos valor para a sua própria conservação. Aumenta a proporção da
mais-valia no total do valor real criado, o que Marx designa como produção de
«mais-valia relativa». Mas isto só se aplica a cada força de trabalho
individual produtiva do ponto de vista capitalista. O pressuposto para que haja
um efeito compensatório em termos de valorização social é, portanto, que
simultaneamente se expanda o capital real total e, assim, cresça em termos
absolutos o número de trabalhadores utilizáveis em condições produtivas do
ponto de vista capitalista – apesar do menor peso relativo do capital variável
na composição de um certo capital monetário avançado. Também só sob esta
condição o adiantamento de mais-valia futura, cada vez mais diferida para o
futuro por meio da expansão do crédito, pode ser pago de volta, pelo menos na
medida em que a conexão entre crédito e valorização real não for
completamente rompida. Enquanto esta conexão funcionar de algum modo, também a
contradição se expressa apenas relativamente, como a famosa queda tendencial
da taxa de lucro social. A taxa de lucro médio refere-se a um capital monetário
de qualquer ordem de grandeza. Essa taxa vai caindo, num processo secular,
devido à crescente quota de custos prévios do capital constante, que não
produz qualquer novo valor, mas apenas transfere valor já criado. Mas, se a
massa social total do capital monetário avançada na aplicação produtiva de
valor crescer suficientemente, pode, apesar de diminuir a taxa de lucro por
capital monetário aplicado, continuar simultaneamente a subir a massa de
mais-valia real absoluta e a massa de lucro do capital total. Marx analisou esta
conexão, em que o resultado histórico permanece em aberto, no Primeiro Volume
(produção de mais-valia relativa) e no Terceiro Volume (tendência para a
queda da taxa de lucro) de O Capital. No nível elementar de «substância
de valor» como «substância de trabalho», Marx, por outro lado, fala nos Grundrisse
no facto de a concorrência, forçada pelo aumento permanente de produtividade,
dever levar finalmente a uma redução absoluta da força de trabalho produtivo
de valor e, assim, a um limite histórico absoluto da valorização. Este
aspecto, no entanto, ficou por desenvolver teoricamente em Marx.
A
fase fordista foi a época alta da mais-valia relativa, com a expansão simultânea
do capital real total. O permanente adiantamento do crédito parecia realizável.
A teoria de um limite interno absoluto da valorização foi considerada
ultrapassada, mesmo na esquerda. A contradição entre o sistema de crédito e a
produção de mais-valia real atingiu, porém, um ponto culminante no contexto
da Terceira Revolução Industrial, a da microelectrónica, assumindo uma nova
qualidade. A expansão do capital real total atinge os seus limites históricos,
enquanto, simultaneamente, a «substância trabalho» produtiva de valor se
derrete numa escala sem precedentes, com a nova qualidade da cientificização.
O aumento de mais-valia relativa por força de trabalho singular começa a
perder o seu carácter de mecanismo histórico de compensação. Isto transforma
a apenas relativa queda tendencial da taxa de lucro por capital monetário
aplicado em queda absoluta da massa de mais-valia social real e, portanto, da
massa de lucro. A conexão entre o adiantamento amplamente antecipado da
mais-valia futura na forma do crédito e a produção de mais-valia real é
irrevogavelmente rasgada. O que surge como uma devastadora crise financeira é
apenas a manifestação empírica da contradição amadurecida no nível
empiricamente intangível das relações reais de valor.
Estamos,
portanto, perante uma «ruptura estrutural» de ordem superior. Se até agora se
falava de uma «crise estrutural» do capital, por exemplo no contexto da «teoria
das ondas longas», era apenas em relação à «transição» para um novo «modelo
de acumulação». A crise devia ter apenas a função de «limpeza», a fim de
abrir caminho para o próximo surto histórico de valorização numa nova base
tecnológica. Esse foi o famoso conceito do economista Joseph Schumpeter da potência
do capital como «destruição criativa». Mas o final da era fordista não
trouxe qualquer ruptura estrutural «criativa», no sentido de um novo «modelo
de acumulação». A muito invocada transição para o chamado «pós-fordismo»
não passava de uma fórmula vazia. O que então aconteceu não foi senão a
transição para a era historicamente breve da famigerada «economia das bolhas
financeiras», em que o sistema de crédito foi inflado, muito para lá da
capacidade minguante de produção real de valor, de maneira historicamente sem
precedentes.
Aqui
surgiu, para uma percepção positivista que não consegue reconhecer a conexão
interna das relações de valor, a ilusão óptica de um «modelo de acumulação»
de facto novo. Por um lado, o «pós-fordismo» consistiria na deslocalização
da produção industrial de mais-valia para a periferia, para os chamados países
emergentes (mais recentemente, na forma do alegado «milagre do crescimento»
asiático). Na realidade, o ponto de partida e força motriz desta deslocalização
não consistia em receitas monetárias de criação real de valor, mas em «capital
fictício» de bolhas financeiras sem substância, desde há muito desligadas da
aplicação produtiva de força de trabalho humana. Desta forma se pôs em
movimento uma conjuntura global de deficit, agora na iminência de queda
brusca. Por outro lado, o «pós-fordismo» criaria nos centros capitalistas uma
chamada «sociedade de prestação de serviços», imaginada como novo campo
independente de valorização. Na realidade, tratava-se em grande parte de
sectores improdutivos do ponto de vista capitalista, como «prestação de serviços
pessoais» privada, que também não tinham o seu ponto de partida e o seu
sustento na criação real de valor e nos rendimentos daí obtidos, mas no inflacionamento
do «capital fictício» e na mera simulação de processos de valorização. Daí
que a pretensa transição para uma «economia de serviços» também não tenha
ocorrido como expansão das infra-estruturas estatais, por exemplo na saúde e
na educação, que já nos anos 1970 tinham fracassado, mas sim na forma de
prestação de serviços precarizada, em pequenas empresas privadas de baixos
salários, e na forma de «falso trabalho autónomo», agora por igual ameaçados
de extinção.
Sobre
isto, é necessária ainda uma observação relativamente à evolução teórica
na esquerda. A ideologia pós-moderna da «virtualização» levou também a uma
adaptação da crítica social de esquerda ao capitalismo de crise e simulativo.
Começaram, sem mais, a falar de um crescimento apenas «financeiramente
induzido», a que pretendiam adaptar-se «simbolicamente». As categorias básicas
da crítica da economia política de Marx foram não apenas positivisticamente
incompreendidas, como no marxismo tradicional, mas feitas desaparecer de todo. E
o problema da potência de crise não só foi reduzido a uma «função» de «limpeza»,
mas também reinterpretado subjectivamente e simplesmente dissolvido em «relações
de vontade políticas». Paradigmático no caso é o pós-operaismo de Antonio
Negri. Na medida em que há «crises», elas são entendidas apenas como reacção
«politicamente querida» consciente dos capitalistas e das suas fracções às
gloriosas «lutas» da chamada multitude. Mas, se a actual dinâmica da queda
global deve ser um acto político deliberado do Empire capitalista, então
há-de ser mais como «reacção» ao espírito da minha avó do que às «lutas»
há muito tempo apenas simbólicas de um capital variável desmoralizado, sem
poder de intervenção real nos centros capitalistas. Mas, como se explica na
teoria de Marx de forma insuperável, o verdadeiro limite da valorização é
estritamente objectivo e ergueu-se «por detrás das costas» dos agentes. A
emancipação social da lógica capitalista, pelo contrário, não pode de modo
algum ser «objectiva»; e por isso mesmo ela exige a crítica radical das
categorias fundamentais do capitalismo, que foram «interiorizadas» pela
humanidade e amplamente recalcadas pela esquerda. Quando a esquerda tem agora de
digerir a objectividade negativa da crise, confronta-se também consigo própria
e com as suas ilusões pós-modernistas.
Na
sua opinião, este é um bom momento para se generalizar uma crítica radical do
sistema do capital? Ou, considerando que as condições materiais básicas de
milhões de seres humanos estão cada vez mais degradadas, não será possível
ir além do keynesianismo e da nostalgia do Estado-providência?
Aparentemente,
verifica-se uma deslegitimação geral do capitalismo, até na classe política
e nas páginas culturais. O conceito de capitalismo em si tornou-se pejorativo
do dia para a noite, como se ele não tivesse sido sempre proclamado «vencedor
da história». Mas esta «viragem» súbita e não mediada não pode deixar de
parecer indigna de crédito e suspeita. O neoliberalismo penetrou profundamente
na consciência das massas nas últimas décadas como tendência básica para o
«radicalismo de mercado», como individualização abstracta e dessolidarização
de «átomos sociais» autistas. A relação individual directa com o mercado
universal e a concorrência universal tornaram-se condição de vida, e já não
são filtradas socialmente. Estas formas de vida numa sociedade desintegrada são
agora atingidas com toda a força pela nova qualidade do surto de crise global e
abaladas nos seus fundamentos.
Trata-se,
em primeiro lugar, de um abalo da função legitimatória. O «espírito
dominante» da viragem neoliberal descredibilizou-se completamente de forma
vergonhosa. Até agora, porém, o desabamento devastador tem sido percebido de
modo perfeitamente fantasmático, apenas como espectáculo nos mercados
financeiros e nos media globais. Uma notícia catastrófica atrás da
outra, enquanto a crise ainda não chegou à reprodução «real» e à vida
quotidiana. Os primeiros prenúncios são as perdas dramáticas nas vendas da
indústria automóvel e dos seus fornecedores. Porém, a dinâmica da crise vai
atingir sucessivamente não só todos os sectores da produção de mercadorias
(indústria, meios de comunicação e serviços), mas todas as áreas da vida,
que durante décadas se tornaram dependentes do inflacionamento
do crédito, porque já não podiam ser alimentadas pela produção real de
mais-valia e pela sua redistribuição social; desde a educação, a cultura e a
saúde, passando pelas infra-estruturas locais, até aos cuidados prestados aos
idosos, etc. Os programas de medidas onerosas para combater as alterações climáticas
ou para seguros de saúde, que continuam a ser discutidos como se nada tivesse
acontecido, já não passam realmente de lixo.
Esta
dinâmica de «desintegração da desintegração» não pode ser adequadamente
digerida pelos indivíduos sociais atomizados; e muito menos ao ritmo a que ela
avança. Os seres humanos individualizados são em todos os aspectos «criaturas
a crédito», não importando em que medida têm consciência desse facto. O
mesmo se aplica também à «religião do quotidiano» (Marx) do consumo de
mercadorias; o sistema de cartões de crédito será provavelmente o próximo
colapso do sector financeiro. Todo o discurso fútil sobre os «excessos
especulativos», que finalmente teriam de ser impedidos, não pode esconder o
facto de que a dependência em relação ao «castelo de cartas mundial» da
superestrutura financeira autonomizada também está bem ancorada na consciência
das massas, como condição de vida. Portanto, a deslegitimação superficial do
«capitalismo» também não chega à crítica radical do modo de produção e
de vida dominante. Apenas as formas do capital financeiro privado, a banca de
investimento, os hedge funds, etc., são sentidos como «capitalistas».
À medida que se desmorona a economia das bolhas financeiras, ainda há pouco
idolatrada, os «seres humanos a crédito» individualizados invocam o Estado
para salvarem a sua «pele a crédito» e poderem continuar a viver a sua vida
capitalista precarizada. O sistema de crédito privado esgotado deve ser
substituído pelo crédito estatal, que se gostaria de imaginar como inesgotável.
Naturalmente
que isto é um volte-face perigoso. Pois já fora exactamente a crença
na capacidade ilimitada do financiamento estatal que o discurso neoliberal
dominante nas últimas décadas tinha denunciado como uma grande aberração. E
não foi só por razões ideológicas. Quando nos anos 1970 o crescimento
fordista se tinha esgotado e a conexão entre o sistema de crédito antecipado e
a produção de mais-valia real tinha começado a romper-se, foi então em
primeiro lugar o crédito estatal que foi esticado para lá da capacidade de
criação de valor social, para manter a conjuntura em funcionamento através da
antecipação do futuro. O endividamento estatal keynesiano sem solução
constituiu já uma bolha financeira de tipo próprio. Como resultado, a inflação
ficou cada vez mais fora de controlo em todo o mundo. O neoliberalismo reagiu a
este desenvolvimento, mas sem compreender a sua causa profunda. Ele imaginou que
o problema consistia apenas numa expansão demasiado forte da actividade estatal
e que poderia ser remediado pela desregulamentação radical do mercado.
Contudo, uma vez que, na realidade, o aumento da composição orgânica do
capital começou a transformar-se numa queda histórica da massa de mais-valia
real e da massa do lucro, o inflacionamento do crédito já sem solução foi
apenas deslocado pela viragem neoliberal do Estado para as bolhas financeiras do
endividamento e da especulação do capital privado. Uma vez que esta deslocação
já não ocorreu no plano estritamente limitado do Estado, mas no contexto da
globalização transnacional, pôde ser simulado durante mais de trinta anos,
com esta nova modalidade de crédito sem cobertura na criação de valor real,
um crescimento cujo carácter deficitário só agora se revela. Quando agora as
elites, tal como a consciência das massas, subitamente pretendem regressar ao
financiamento estatal como âncora de salvação, parecem estar a sofrer de amnésia.
O Estado, até há pouco tempo diabolizado, é mais uma vez elevado, com a
melhor das boas vontades, ao estatuto do deus que deve eternizar o fluxo de crédito,
porque seria «todo-poderoso», para lá dos interesses individuais.
Ora,
o Estado não é, de facto, a agência independente de uma «classe dominante»
ou de certos grupos económicos, mas a instância do poder geral sobrejacente à
sociedade, que constitui o enquadramento exterior da valorização do capital e
de todas as suas «máscaras de carácter» (Marx). Mas, precisamente por isso,
o Estado não está «acima» das leis objectivas do movimento do capital e não
pode querer controlá-las ou modificá-las arbitrariamente; pelo contrário, ele
não lhes está menos sujeito do que o capital individual, está apenas num nível
social mais elevado. Tudo o que o Estado faz tem de ser financiado, tal como
tudo o que é feito pelo capital singular ou pelos indivíduos; e a fonte deste
financiamento só pode ser a produção de mais-valia real. O Estado obtém
rendimentos em dinheiro a partir desta fonte original, quer directamente através
de impostos quer adquirindo dinheiro nos mercados financeiros através da emissão
de dívida. No segundo caso, ele próprio é um actor ao nível do capital
financeiro e está vinculado às suas condições. O que significa isto na crise
histórica do crédito e do crescimento «financeiramente induzido» dele
dependente que hoje sofremos? Os «pacotes de salvamento» do sistema financeiro
até agora lançados pelos Estados e os programas estatais de apoio à
conjuntura em perspectiva mas ainda não concretizados por todo o mundo já
ascendem a vários biliões de euros. Onde vai o Estado obter financiamento para
tudo isso, se a crise está precisamente no facto de que a fonte de criação de
valor real secou e o crédito, como adiantamento de mais-valia futura, se
esgotou? Um aumento drástico de impostos deprimiria ainda mais a produção de
mais-valia real já minguante. Uma grande massa de emissão de dívida pública
nos mercados financeiros teria o mesmo efeito, porque o Estado estaria então a
concorrer com as empresas e as famílias para o crédito disponível e, assim, a
puxar para cima as taxas de juro reais.
Seja
no que for que é gasto o dinheiro dos impostos cobrados pelo Estado e dos empréstimos
por ele obtidos nos mercados financeiros, do ponto de vista da lógica da
valorização não há qualquer produção, mas apenas consumo. Com efeito,
mesmo no caso em que, por exemplo, se financia a construção de estradas ou de
escolas, não terá lugar, desta forma, qualquer nova criação de valor, mas
será sangrada a produção de mais-valia real do passado (impostos) ou do
futuro (crédito). Isto é verdade, naturalmente, por maioria de razão, se o
Estado com esse dinheiro, na forma de «pacotes de salvamento», apenas tapar os
buracos do sistema financeiro, comprar créditos malparados dos bancos, etc. Após
a cessação definitiva da economia das bolhas financeiras e da conjuntura de
simulação, a responsabilidade das finanças estatais ascende a valores muitas
vezes superiores aos da anterior, que já antes soçobrou. Uma vez que não é
possível um aumento de impostos nem uma expansão da dívida pública na medida
do necessário, resta apenas, como ultima ratio, a impressão de notas,
criando dinheiro do nada, e a sua transferência directamente para o Estado, sem
garantias nem contrapartidas. Mas a competência dos bancos centrais para criar
moeda é meramente formal, «expressando» apenas o processo de criação de
valor capitalista real, sem o poder substituir. O recurso directo à emissão de
notas seria a maior bolha financeira de todas, e só poderia acabar na completa
desvalorização do dinheiro e de todos os créditos, títulos, etc. (hiperinflação,
bancarrota estatal, reforma monetária).
A
deslocação do problema do crédito do Estado para o capital financeiro e o
actual regresso novamente ao Estado completam uma volta sem saída. Certamente
que agora o fracasso social mundial do sistema capitalista e da sua legitimação
neoliberal constitui um campo no qual se pode fazer valer a crítica radical das
formas capitalistas básicas de uma maneira diferente do passado. Mas isso ainda
não significa, de modo algum, que essa crítica radical já se torne assim
susceptível de adesão pela consciência das massas, que ainda se move
inteiramente nas categorias do fetichismo moderno. É preciso, em primeiro
lugar, tomar consciência do paradoxo de que as condições materiais de existência
em todas as áreas da vida estão dependentes da virtualidade do crédito em
dissolução. Deste ponto de vista, os obstáculos a uma negação da totalidade
capitalista não se tornaram menores, mas sim maiores. Se a própria vida está
ameaçada, as pessoas agarram-se com tanto mais força às condições
dominantes. Isso equivale a dizer, hoje, que todos projectos de salvamento
estatal do sistema de crédito, por mais ilusórios que sejam, têm auditório,
mesmo ao preço de desembocar em ideologias assassinas (anti-semitismo ou
proto-anti-semitismo). Por maioria de razão, a crítica radical tem de
contrapor-se ao mainstream do espírito do tempo, em vez de se deixar
arrastar por ele.
Como
vê a apropriação pelo sistema de conceitos clássicos de esquerda, como a «nacionalização»
ou a «regulação dos mercados financeiros»?
O
programa da ala radical do marxismo tradicional assumiu uma fórmula marcial, a
«ditadura do proletariado». Ainda assim, sempre era a organização social que
estava no centro das atenções, embora ligada a uma falsa ontologia do trabalho
abstracto. Na verdade, o programa transformou-se nesta base ideológica numa
mera nacionalização das categorias capitalistas, ou seja, o oposto da emancipação
social. O próprio Marx, na Crítica do Programa Gotha, polemizou contra
este fetichismo do Estado, embora ele próprio, em algumas formulações
anteriores, não estivesse totalmente livre dele. Na prática histórica dos
sistemas de «modernização atrasada» (União Soviética, China, etc.), o
conceito de «Estado dos trabalhadores» tinha apenas uma função legitimadora
para a reprodução do capitalismo de Estado. A maioria dos partidos socialistas
e comunistas no Ocidente transformou este requisito num programa de «nacionalização»
dos bancos e das principais indústrias do capitalismo. A orientação estatal
era apenas vagamente ligada ao paradigma esgotado da «classe trabalhadora». Em
vez disso, o conceito de «nação» passou para o centro e a «questão social»
foi transformada numa «questão nacional». Este «socialismo de cores
nacionais» assumiu um carácter verdadeiramente reaccionário face à «socialização
mundial» negativa do capital. Ele já pertencia à história da dissolução do
marxismo tradicional.
Na
economia burguesa fez-se notar, em reacção à crise económica mundial dos
anos 1930, uma orientação estatal «moderada», amortecida, sob a forma do
keynesianismo. Esta doutrina nunca teve nada a ver com esperanças «socialistas»
difusas; pelo contrário, entendia-se a si mesma expressamente como programa de
salvação do capitalismo com a ajuda de intervenções estatais, cuja base
residia na expansão continuada do crédito estatal. O «keynesianismo de
esquerda» tentou transformar esta doutrina num sentido quase «socialista».
Mas tratou-se apenas da velha orientação para o capitalismo de Estado,
novamente diluída e aligeirada, dos antigos «partidos operários» há muito
integrados na classe política do capitalismo. A referência à crítica da
economia política de Marx ficou definitivamente perdida. O discurso do
keynesianismo de esquerda já não se refere fundamentalmente à análise
categorial da «valorização do valor» e da dinâmica do contexto da forma
capitalista de mais-valia relativa, aumento da composição orgânica, queda da
taxa de lucro, nem a uma teoria da crise nesta base. Para este pensamento, a
possibilidade de uma «crise categorial» com a queda da massa de mais-valia foi
totalmente excluída. Com isto, também a «crítica categorial» das formas básicas
do sistema do fetiche capitalista se tornou ainda menos viável do que no
marxismo tradicional do antigo movimento operário. Em vez disso, a «crítica»
caiu num «tratamento da contradição» no quadro do capitalismo não mais
explicitamente contestado, assim numa forma de «política económica» burguesa
vulgar, que tinha de assentar cegamente na expansão do crédito estatal, a fim
de supostamente daí sugar o mel social. Quando a ciência económica e a política
económica dominantes, na esteira da «revolução neoliberal», oficialmente
afastaram a doutrina keynesiana, a esquerda política teoricamente desarmada
ficou com o keynesianismo por sua conta, sem perceber que se estava a casar com
um cadáver histórico. O keynesianismo surgia agora como oposição fundamental
ao neoliberalismo de modo puramente formal, embora ele nunca o tenha sido no seu
conteúdo.
A
recente viragem desesperada das elites económicas e políticas para o crédito
estatal revelou os pés de barro dos partidos de esquerda, tal como de organizações
do movimento como a ATTAC. Aparentemente, elementos centrais do keynesianismo
por si consistentemente representado (estatização ou «nacionalização» dos
bancos e eventualmente de indústrias-chave, regulação dos mercados
financeiros) são repentinamente objecto de novas honras. Contudo, já não se
trata de um Estado-providência keynesiano, como no período final da
prosperidade fordista na década de 1970, mas de um keynesianismo de emergência
do capital financeiro, que vem de par com o agravamento da administração
estatal anti-social do trabalho e das pessoas. É o paradoxo do prolongamento do
neoliberalismo com meios quase-keynesianos, porque no limite interno tornado
historicamente manifesto da valorização já não há qualquer terceira opção.
O crédito estatal não está fluindo para programas sociais, educação e
cuidados de saúde, etc., mas é lançado no buraco negro dos balanços
debilitados. A esquerda keynesiana fica desamparada perante a nova qualidade da
crise, porque não tem qualquer noção da mesma. Enquanto ela acredita
pressentir a brisa matinal keynesiana, na realidade é-lhe apresentada a conta
pela sua auto-entrega ao modo de produção e de vida capitalista. Se ela quer
«envolver-se» na nova expansão do crédito estatal portadora de inflação,
ela própria corre o risco de tornar-se parte integrante da administração da
crise capitalista. Indícios disso já existem por toda a Europa. Caso a
esquerda de partido e do movimento se torne neste sentido «politicamente capaz»
e para as elites do capital «socialmente capaz», a sua «social-democratização»
poderia desembocar numa carreira na base do estado de excepção.
Que
formas de mediação podem ser estabelecidas entre as lutas imanentes por condições
básicas de sobrevivência e a crítica das categorias de base do sistema do
capital (mercadoria, valor, dinheiro, trabalho abstracto, Estado, política)?
Não
há dúvida de que a luta social organizada extraparlamentarmente pelas
necessidades materiais e culturais da vida, em resistência contra a brutal redução
do nível de civilização, é a única alternativa à colaboração parlamentar
«política» de «esquerda» com a administração estatal da crise.
Inevitavelmente, surgirá também um contramovimento social constituído de
novo, inicialmente como «tratamento da contradição» imanente, que já não
delega as necessidades no Estado, mas apresenta exigências autónomas, ainda
que estas tenham de ser erguidas contra o Estado. É o caso, por exemplo, de um
salário mínimo legal suficientemente elevado, da resistência contra novos
cortes nas transferências sociais e contra a chicana repressiva das medidas
coercivas da administração do trabalho, contra a privatização ou
encerramento de infra-estruturas públicas vitais (por exemplo, de cuidados médicos).
Mas também estão na ordem do dia o debate sobre o orçamento da educação e
as críticas da rígida ligação dos conteúdos do ensino e da investigação
às necessidades de valorização do capital que se tornaram obsoletas.
Existe
um momento importante na mediação da «crítica categorial» que consiste em
aprender como se pode distinguir entre formas de «tratamento da contradição»
que fazem avançar e formas afirmativas. Isto inclui, em primeiro lugar, o
reconhecimento de que a defesa das necessidades vitais pela via oficial da política
se tornou totalmente ilusória. Têm de ser evidenciados os conteúdos
alternativos de reivindicações sociais directas, por um lado, e a esperança fútil
em programas estatais de conjuntura para novos investimentos de capital, por
outro. Estes últimos amarram à partida as necessidades sociais ao «sucesso»
da valorização do capital, na base arruinada do trabalho abstracto, e à «financiabilidade»
daí derivada, segundo critérios capitalistas. Os primeiros, pelo contrário,
podem abrir caminho para a negação do «terror da financiabilidade» e para se
aproximar da suplantação da forma-valor e do dinheiro. Esta alternativa, a ser
tornada efectiva nas novas condições de crise, também se pode colocar entre
os elementos «de esquerda» da classe política, aí conduzindo a polarizações;
desde que, no entanto, se constitua um contramovimento social. No antigo
movimento operário já havia elementos desta alternativa, ainda que sob o fundo
ideológico de uma ontologia do trabalho abstracto. Precisamente por isso é que
os contramovimentos sociais (também em correspondência com a sua própria
consciência baseada na ontologia do trabalho), sempre foram transformados em
orientação estatal e, como «marxismo de partido», vinculados a uma intervenção
política; pois o Estado é precisamente a instância social de síntese na base
do trabalho abstracto. Nos limites históricos do trabalho abstracto e da
valorização real do capital, a alternativa entre contramovimento social e
estatismo coloca-se agora em formas completamente novas e deve ser formulada
consequentemente, quando a esperança no crédito do Estado apenas pode
envergonhar-se com o desencadeamento da inflação e já não contém qualquer
potencial social.
Um
segundo momento da mediação é a crítica de todas as formas de exclusão
social, sejam elas articuladas abertamente ou indirecta e subliminarmente.
Enquanto os movimentos sociais operarem no plano do «tratamento da contradição»
imanente, haverá sempre essas tendências. Já no antigo movimento operário
havia fortes sentimentos negativos contra as camadas inferiores desqualificadas.
Hoje podem também observar-se posturas semelhantes da parte de uma «aristocracia
operária» globalizada, entretanto já em dissolução, contra os «caídos
fora», ou contra os trabalhadores dos sectores de baixos salários; e até
mesmo nas camadas inferiores da «cultura dominante», contra os migrantes.
Acima de tudo, porém, são as classes médias académicas e sub-académicas,
sob a ameaça de queda nos centros capitalistas, que pretendem salvar a própria
pele e estilizar como ideal de emancipação geral os seus interesses específicos
enquanto «capital humano», quando na realidade a vida dos «outros» lhes é
indiferente. À medida que se constituir um contramovimento social, a tarefa da
«crítica categorial» é precisamente identificar analiticamente os diversos
potenciais de exclusão social complexamente sobrepostos e enfrentá-los.
Isso
só pode ter sucesso se a crítica também transmitir que, além das categorias
capitalistas, facilmente será possível satisfazer as necessidades da vida «para
todos». Neste contexto, a tarefa é a de tornar os contramovimentos sociais
(contando que surjam) conscientes da enorme discrepância entre os potenciais de
riqueza material e a impossibilidade de continuar a captá-los na forma
capitalista. Embora a reflexão teórica sobre as categorias reais do capital,
forma-valor e mercadoria, mais-valia, trabalho abstracto, etc., e a sua modulação
político-estatal, não esteja presente na consciência de massas, pode ainda
assim ser mobilizada a experiência prática de que existem, do ponto de vista técnico-prático
e material, as capacidades para satisfazer as necessidades materiais, sociais e
culturais, mas são paralisadas pelo capitalismo, porque já não pode ser
satisfeito o absurdo fim em si mesmo da transformação de «trabalho» em «mais
trabalho» e de «dinheiro» em «mais dinheiro». Se cada vez mais pessoas
ficam sem abrigo, enquanto simultaneamente há habitação vazia em massa, ou se
cada vez mais doentes e com necessidade de cuidados de saúde já não são
adequadamente tratados, enquanto, ao mesmo tempo, a administração fecha
hospitais, médicos e pessoal de saúde ficam sob pressão ou «desempregados»,
então essa experiência pode ser fundamentalmente transformada em crítica
radical da forma da mercadoria e do dinheiro, enriquecendo a experiência com a
reflexão teórica.
Essa
abordagem também é correcta quando se invoca o chamado problema «ecológico»
(degradação do clima, culturas exaustivas, erosão dos fundamentos naturais da
vida, etc.). Neste aspecto, a mediação da «crítica categorial» tem de
tornar conscientes a conexão interna entre os poderes destrutivos do modo
capitalista de produção de riqueza material, por um lado, e a forma
capitalista das relações sociais, por outro. Não é a produção de uma
quantidade suficiente de alimentos e bens culturais em si que leva à destruição
da «biosfera», mas a racionalidade da lógica de valorização da economia
empresarial, que cria pobreza enquanto destrói as suas próprias bases e arruína
a natureza. O poder destrutivo de certas formas capitalistas de riqueza material
(transporte automóvel individual, indústrias de defesa, agro-indústria
enquanto disseminadora de venenos, etc.) não pode ser jogado contra a socialização
das necessidades da vida social. A alternativa à «automobilização» não é
a eliminação da mobilidade em si, mas a expansão do transporte público, sob
controlo social, na resistência contra a privatização. É particularmente pérfido
responsabilizar as pessoas, condenadas a indignas rações de miséria e
capitalisticamente empobrecidas, por supostamente «consumirem demais» e destruírem
o clima. Enquanto a «catástrofe climática» ainda recentemente, em tempos de
conjuntura de deficit, causava sensação mediática, agora, na crise, os
objectivos oficiais de redução dos poluentes são novamente cortados, porque
tem de ser mantida a forma capitalista de produção a qualquer preço. É
perfeitamente possível que a administração da crise procure flanquear mais
restrições sociais com uma legitimação «ecológica». Nesta contradição,
move-se também a ideologia «ecológica» apoiada por uma parte das classes médias,
que pretende falar dos «limites do capitalismo» apenas no sentido de um «limite
exterior» de recursos naturais, enquanto o «limite interno» do trabalho
abstracto e da «valorização do valor» é percebido apenas de forma truncada
(«limites do crescimento») ou completamente esquecido, porque cada um gostaria
de se envolver «ecologicamente» na administração de crise. Do ponto de vista
de um maior desenvolvimento da crítica da economia política, este «reducionismo
ecológico» é tão criticável como a orientação económica afirmativa para
um «keynesianismo de crise».
Outro
passo na mediação da «crítica categorial» seria a reabertura de um debate
sobre planeamento social, não mais baseado no trabalho abstracto, na
forma-valor e no Estado. Como herança da época passada, o «socialismo»
actual é mais do que nunca equiparado com a «nacionalização», o que
continua a levar apenas a frases paradoxais, como «socialismo do mercado
financeiro», em que se exprime, no entanto, o paradoxo real das novas condições
de crise. Para uma verdadeira transformação para lá do capitalismo, a tarefa
é organizar em novos moldes o fluxo social mundial dos recursos materiais e
sociais como tais e deixar de os representar nas categorias do «valor» e da
sua «substância trabalho», que historicamente se tornaram obsoletas. Isso
inclui o problema dos momentos da reprodução social que nunca bateram certo
com o trabalho abstracto e a valorização, e historicamente foram delegados às
mulheres (tomar conta das crianças, enfermagem, trabalho doméstico, «trabalho
do amor», etc.). Nos limites da valorização do capital também este «cimento
social» se esboroa. Uma transformação social também tem de reorganizar estes
momentos, libertá-los das sua atribuição sexual e criar para eles um fundo
social de tempo livre que há muito é possível.
Seria
preciso desencadear um amplo debate social sobre isto, em que entrem as múltiplas
experiências e competências, não se limitando a um enfoque estritamente teórico.
A crítica teórica só pode tentar encorajar esse debate de acordo com o
desenvolvimento da crise e tornar consciente de novo o problema do planeamento
social.
Precisamente
porque a «crítica categorial», no contexto da forma capitalista, apesar da
histórica crise desta, é insusceptível de transmissão sem rupturas e, nos
limites das «formas de pensamento objectivas» (Marx), esbarra na consciência
social, ela não pode limitar-se à direcção estrita da argumentação político-económica
«objectiva» em sentido burguês. Um momento essencial da mediação é também
a crítica radical da ideologia. Toda a digestão afirmativa da crise na consciência
é produção de ideologia, e não apenas na orientação estatal ou no
reducionismo ecológico. Também as ideologias básicas modernas do
nacionalismo, anti-semitismo, racismo, anticiganismo (o ressentimento contra os
sinti e os roma como «párias» da modernidade) e sexismo são mais fortemente
invocadas e reconfiguradas na crise. Como pano de fundo, está sempre a
agressiva defesa de determinadas vidas capitalistas específicas por classes
sociais em luta de concorrência. Fulcral a este respeito, hoje, é a ideologia
da «nova classe média» perante os processos de crise, na luta pelo poder de
interpretação e pela hegemonia. Os vários elementos da produção de
ideologia formam amálgamas, ainda que indirecta e subliminarmente. A tarefa da
«crítica categorial» é, portanto, analisar os «dispositivos» modulados
pela elaboração ideológica e penetrar profundamente o conceito de ideologia,
para lá do marxismo tradicional, a fim de combinar um programa de transformação
social com um programa de intervenção da crítica da ideologia. A actual
esquerda do movimento, com a sua orientação teoricamente desarmada para «lutas»
meramente simbólicas, está muito longe de tudo isto. Por isso se observa, por
todo o lado, uma nada santa conversão entre posições de «esquerda» e de «direita»
na crítica truncada do capitalismo.
Que
papel pode ter hoje a luta de classes para difundir a consciência de classe, no
sentido de Lukács?
O
entendimento tradicional da «luta de classes» já não é susceptível de
mobilização na nova situação de limite interno absoluto da valorização.
Historicamente, a representação sindical e política do «proletariado» nada
mais era que a representação do «capital variável» auto-afirmativo e,
portanto, a representação do trabalho abstracto. Construiu-se aqui uma oposição
meramente relativa entre o princípio do «trabalho» alegadamente trans-histórico
e antropológico e a forma da propriedade privada capitalista entendida
juridicamente, quando, na realidade, trabalho abstracto e propriedade privada
jurídica dos meios de produção representam apenas diferentes determinações
no sistema de referência comum sobrejacente da «valorização do valor». Marx
designou este contexto sobrejacente como «sujeito automático» da sociedade
moderna fetichista, em que todas as posições sociais estão cativas como «funções»
da lógica da valorização. Não existe qualquer «princípio» ontológico
susceptível de ser invocado para a emancipação social, pelo contrário, o
capitalismo só pode ser suplantado através duma crítica histórica concreta
das suas formas básicas. A «luta de classes» foi essencialmente um movimento
de «luta pelo reconhecimento» no terreno das categorias capitalistas. Por
isso, o antigo movimento operário adoptou do protestantismo e da ideologia
burguesa do Iluminismo não só a ontologia do trabalho abstracto, mas também a
ontologia da relação capitalista de género, ou seja, das atribuições históricas
à «masculinidade e à feminilidade». O que saiu da «luta pelo reconhecimento»
(direito à greve, liberdade de associação, liberdade de reunião, direito de
voto, etc.) acabou sempre apenas na nacionalização das categorias capitalistas
não suplantadas. O entendimento socialista de «luta de classes» esgotou-se
nisso.
Na
nova situação histórica, o «reconhecimento» há muito alcançado pelos
assalariados, como sujeitos económicos e cidadãos estatais da sociedade
fetichista, torna-se uma cadeia e uma armadilha. As pessoas estão, para o
melhor e para o pior, amarradas à coerção da valorização. Não é apenas
uma questão de consciência. Mesmo objectivamente, a base social da velha «luta
de classes» desfaz-se. Sob as condições da Terceira Revolução Industrial, o
capital já não pode organizar exércitos «produtivos» de trabalho abstracto.
Uma vez que o processo de individualização, como fenómeno de crise, destrói
os filtros sociais, os sujeitos socialmente atomizados referem-se directamente
à relação de valor global, que simultaneamente se torna virtualizada sob a
forma do crédito já insusceptível de cumprimento, e assim obsoleta. Na aparência,
surgiu uma «multiplicidade» de situações sociais difusas que já não podem
ser integradas na base das categorias capitalistas. Pessoal
permanente e eventual, trabalhadores a prazo e
subcontratados, desempregados com subsídio como objectos da administração de
crise, falsos autónomos e empresários de miséria, etc., já não representam
qualquer massa homogénea de um «proletariado criador de mais-valia». A
ideologia do movimento, desde a década de 1990, limitou-se a assumir
afirmativamente esta «multiplicidade» e a reuni-la sem a conceptualizar, sob a
capa da «multitude», não a suplantando. Para uma nova organização das lutas
sociais, o objectivo já não é o «reconhecimento» como ser criador de
mais-valia, mas apenas a crítica e transformação da própria categoria valor
e da relação de género que lhe está associada. A base não pode ser uma
organização capitalista do «trabalho» encontrada, que está dissolvida e
desmoralizada, mas apenas a auto-organização consciente da crítica histórica
concreta das categorias dominantes, a partir do «tratamento da contradição»
imanente e para lá dele. Não é uma questão de constituição «objectiva»
da classe como representação do «capital variável», mas uma questão de
consciência. Não, porém, qualquer consciência «idealista», em termos, por
exemplo, de uma «ética» da filosofia moral, mas uma consciência que se
confronta com o limite histórico da valorização e com a queda do nível de
civilização.
Neste
ponto, é necessário voltar mais uma vez ao problema da «nova classe média»
ameaçada pela queda. A desorganização dos «exércitos do trabalho»
industriais e a decadência do antigo movimento operário veio de mãos dadas
com a ascensão dessa classe média qualificada, na fase de prosperidade
fordista. A base económica não era a produção de mais-valia real imediata,
mas a expansão do crédito estatal. A autoconsciência social que a acompanhava
não estava tanto na ontologia do «trabalho», mas muito mais no estatuto de «capital
humano» com «formação superior». Já a nova esquerda, a partir de 1968, era
essencialmente um movimento de classe média, ainda que continuasse a procurar,
ideológica e abstractamente, a partir do fundo marxista, a inútil mediação
com a esgotada «luta de classes» do «proletariado». Na era da economia das
bolhas financeiras, não em último lugar as «novas classes médias» ficaram
dependentes da expansão do crédito privado e cada vez mais precarizadas. Foi
precisamente neste processo que a «visão do mundo» da consciência de classe
média ganhou uma posição dominante também na esquerda. Os revivalismos da
velha retórica da «luta de classes», e sobretudo dos seus derivados, por
exemplo na figura da «multitude» pós-operaista, são todos implicitamente (e
por vezes explicitamente) formulados a partir da perspectiva da consciência
categorialmente afirmativa da classe média. Hoje não é tanto a ontologia do
«trabalho», há muito corroída, que bloqueia a transição do marxismo do
movimento operário para a «crítica categorial», mas a ideologia da classe média,
teimosa com o seu «capital humano», que se esconde sob a «multiplicidade»
das abordagens do movimento. Uma vez que as classes médias estão
inevitavelmente envolvidas num grande contramovimento social, a ruptura com essa
ideologia é de uma importância decisiva.
O
problema da organização da luta social, que tem de integrar de maneira
diferente a desesperada «multiplicidade» de situações sociais para lá do
paradigma da «luta de classes», não parte teoricamente do zero. A transição
para a «crítica categorial» encontra-se em abordagens de grandes teóricos
nas fronteiras do marxismo tradicional, como Lukács (e, de outra forma,
Adorno). Lukács forneceu as primeiras indicações no livro publicado em 1923, História
e consciência de classe, especialmente no grande ensaio central sobre a «reificação».
Como era de esperar, dada a situação de então, ele combina pela primeira vez
a ontologia do trabalho implícita e a tradicional «posição de classe» daí
derivada, com a discussão da constituição fetichista moderna socialmente
sobrejacente. Lukács deixou-se dissuadir pelo marxismo de partido dos seus
pontos de vista inovadores, apresentados como alegadamente «idealistas», e
mais tarde voltou a uma explícita e bastante aborrecida ontologia do trabalho
abstracto. O seu trabalho de 1923 também foi aproveitado pelas novas abordagens
da «crítica categorial», desde os anos 1980, em especial sob o ponto de vista
da consciência de classe «atribuída» e do proletariado como suposto «sujeito-objecto
da história». Mas o seu anterior ensaio teórico não se resume a isso. Uma
leitura renovada nas actuais condições retira conhecimentos surpreendentes. O
que ele refere com o conceito de «reificação» já representa uma crítica
das formas básicas do capitalismo, durante muito tempo sem paralelo; para
alguns, é lida como uma crítica antecipada do pensamento pós-moderno.
Decisivo é o postulado de um «tornar-consciente» pela crítica a forma da
mercadoria como forma geral de vida no capitalismo, incluindo a mercadoria força
de trabalho. Com isto, Lukács reaproximou-se da definição de Marx das
categorias capitalistas, como «condições reais de vida» e, simultaneamente,
«formas objectivas de pensamento», definição que tinha sido escondida pelo
movimento operário.
Se
despirmos esta abordagem teórica da sua «atribuição» a um «ponto de vista»
do «trabalho», muito dela pode ser assumido para uma nova «crítica
categorial» sob as condições da individualização e da relação de valor em
decadência. Essencial é, em primeiro lugar, incluir no plano categorial a
moderna relação de género, ainda não abordada por Lukács. Em segundo lugar,
as relativizações críticas da «consciência de classe proletária»
formuladas no ensaio sobre a reificação são hoje sobretudo relacionáveis com
a consciência de classe média (também para isso já se encontram abordagens
neste ensaio). Coloca-se, portanto, a tarefa de reformular a visão de Lukács
nesta situação histórica fundamentalmente diferente, a fim de tornar fecundo
o «tornar-consciente» criticamente a forma da mercadoria, para uma reintegração
da luta social para lá da falsa objectividade capitalista.
Como
definiria um conceito de revolução para o tempo presente que pudesse romper
com o fetichismo e com uma vida quotidiana totalmente subordinada à reprodução
do capital?
O
conceito de «revolução» foi historicamente ocupado pelo paradigma da grande
Revolução Francesa, das subsequentes revoluções burguesas do século XIX e
das revoluções de «modernização atrasada» na periferia do mercado mundial
no século XX (Rússia, China, «Terceiro Mundo»). Nesse contexto, a «revolução»
limitou-se à forma política da «tomada do poder» e, no século XX, à
nacionalização das categorias capitalistas. Nessa medida, este conceito
pertence à história da imposição do trabalho abstracto, da lógica da
valorização e da relação de género moderna. Parece, portanto, que a sua
carreira terminou. No marxismo residual e na ideologia do movimento, a «revolução»
como acto político de subversão já não desempenha qualquer papel. Mas estão
a deitar fora o bebé com a água do banho. Uma vez que a esquerda arquivou o
conceito de revolução sem o actualizar, ela limitou-se a ratificar a sua
auto-entrega à forma capitalista de vida, na base social da classe média.
Marx
criticou o conceito de revolução limitado à política
logo nos primeiros escritos. Para ele, a «revolução
social» apresenta uma qualidade diferente que suprime também o estatismo da
forma-política, juntamente com a relação de valor e a forma-mercadoria. Tal
como depois no caso de Lukács, este revolucionamento, no entanto, também ainda
figurava em Marx como «revolução proletária». Foi precisamente este
paradigma, no entanto, que se manteve na fase do conceito de revolução
reduzido à política. Além da ontologia do trabalho, no limite interno da
valorização, coloca-se de forma nova e diferente a questão da «revolução
social», ou seja, como rompimento da síntese social dominante nas formas do
valor e da relação capitalista de género. «Síntese social» mais não
significa que a forma específica de socialização, no sentido de uma «totalidade
negativa», que também só pode ser suplantada por um revolucionamento do
conjunto da sociedade.
Precisamente
por isso, é preciso um movimento social em grande escala, e agora à escala
transnacional, para se chegar à síntese social em geral. Não bastam, por
exemplo, ocupações de empresas pelo pessoal que, em seguida, apenas se torna
sujeito colectivo do capital e continua entregue à síntese feita através do
mercado e da concorrência. Daí que até ao momento todas essas tentativas
falharam (como durante a grande crise na Argentina). Não é possível uma
transformação ao nível de cada capital, ou mesmo de uma reprodução
particular, mas a questão da síntese e, assim, do planeamento social para lá
da forma-mercadoria já constitui sempre o ponto de partida (e não um qualquer
ponto final) da ruptura prática com o capitalismo. Neste contexto, o conceito
de «revolução» não é simplesmente irrelevante, apesar de ele já não ter
nada a ver com o antigo entendimento «politicista». A teoria crítica como «crítica
categorial» tem de persistir neste ponto de vista da síntese social, mesmo
contra a consciência do movimento meramente «simbólica», que não se coloca
esta questão decisiva.
A
esquerda do movimento pós-operaista gosta de falar hoje em Mudar o mundo sem
tomar o poder (John Holloway). A síntese social é substituída por um
difuso conceito de «vida quotidiana» que tem feito carreira já desde o
movimento de 1968. O que muitas vezes se designa como «revolução» cultural
«da vida quotidiana» é sempre, de uma maneira ou de outra, a música de fundo
da mudança social; mas, reduzida a este ponto de vista, também pode tratar-se
de uma adaptação cultural à dinâmica capitalista. Tais conceitos de 1968 e
da esquerda pós-moderna foram há muito adoptados pelo management de
crise do capitalismo, por exemplo, sob a forma da propaganda neoliberal da «auto-responsabilização»
individual. O tema da «vida quotidiana» não pode substituir a verdadeira
intervenção ao nível da síntese social; tal como não pode dispensar a
necessária força de intervenção (por exemplo, através de greves, bloqueios,
paralisação das vias nevrálgicas capitalistas). A «questão do poder» não
se limita ao paradigma «politicista» do poder de Estado, mas, por maioria de
razão, coloca-se como questão de um «contrapoder» social, em resistência
contra a administração de crise. Na realidade, a «vida quotidiana» por si só
não é um refúgio de «resistência», cujo conceito desta forma se torna oco.
A resistência, pelo contrário, começa quando os indivíduos se levantam
contra o seu «quotidiano», determinado pelo capitalismo em todos os poros, e
se tornam em geral capazes de organização.
A metafísica do quotidiano da esquerda também se refere, em parte, na continuação do fracassado movimento da alternativa dos anos 1980, a tentativas de «outro» modo de vida e de produção na pequena escala de «comunidades» particulares, que se legitimam neo-utópica ou pragmaticamente. Estas tentativas, por exemplo, na forma da chamada «economia local» ou do movimento digital open-source, tal como a ocupação de empresas, também não podem alcançar o nível da síntese social. Como alternativa aparente a um movimento de resistência social a partir da imanência capitalista correm o risco de se transformar numa «auto-administração da pobreza». Se aí ainda aparecer a ideia de uma «crítica da forma-mercadoria», será rebaixada para um formato em que tal crítica não é possível sem perder o seu conteúdo decisivo e sem se envolver em contradições sem saída. As supostas alternativas permanecem amarradas a relações contratuais burguesas, e não só; elas também dizem respeito apenas a pequenos segmentos da reprodução, que permanece no seu conjunto determinada à maneira capitalista. Por isso, os «projectos de práxis» particulares normalmente estão de olho num financiamento externo do Estado, seja na forma de uma «renda básica» seja na forma de um patrocínio autárquico. Estatismo keynesiano e ideologia da alternativa são apenas duas faces da mesma moeda; o denominador comum é a orientação directa ou indirecta para o crédito estatal. Aqui se expressa, mais uma vez, a inconfessada dominância da consciência de classe média, que sempre quer lavar a pele sem a molhar. As esquerdas keynesiana e da ideologia da alternativa têm, portanto, de recalcar e negar igualmente a nova qualidade da crise, porque as suas ilusões não podem sobreviver ao fim do sistema de crédito global e da economia das bolhas financeiras. Elas serão confrontadas com o verdadeiro limite da síntese social dominante, o mais tardar quando o grave desabamento da economia mundial atingir também a «vida quotidiana» nos centros capitalistas.
Original
INTERVIEW MIT DER PORTUGIESISCHEN INTERNET-ZEITSCHRIFT „ZION EDIÇÕES” em www.exit-online.org.
(30.11.2008)
Pré-publicação
de entrevista a sair em “SHIFT”, ZION EDIÇÕES, Fev. 2009. Título da
SHIFT. http://www.zionedicoes.org/