Entrevista
à revista brasileira “IHU online” (20.03.2009)
Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre
As
actuais crises financeira e ecológica estão relacionadas com o que o senhor
chama o “colapso da modernização”?
O
termo colapso é um chavão provocatório, geralmente usado em sentido
pejorativo, para desqualificar os representantes da teoria radical da crise como
“apocalípticos”, que não devem ser levados a sério. Não são só as
elites capitalistas a quererem acreditar que o capitalismo pode renovar-se
eternamente, são também os representantes da esquerda. É claro que um sistema
social global não se vai abaixo repentinamente, como um indivíduo que sofre um
enfarte. Mas a era do capitalismo acabou. Afinal de contas, a modernização não
foi outra coisa senão a imposição e desenvolvimento deste sistema, com os
mecanismos quer do capitalismo privado quer do capitalismo de Estado.
Apesar
de todas as diferenças externas, o fundamento comum consiste na “valorização
do valor”, isto é, na transformação de “trabalho abstracto" em
“mais-valia”. No entanto, esta não é uma finalidade subjectiva, mas um fim
em si mesmo autonomizado. Tanto os capitalistas quanto os assalariados, assim
como os agentes estatais, não passam de funcionários desse fim em si mesmo,
solto e incontrolável, que Marx chamou “sujeito automático”. No caso, a
concorrência universal força a uma dinâmica cega de desenvolvimento das forças
produtivas que gera constantemente novas condições de valorização e acaba
por esbarrar numa barreira histórica absoluta.
A
barreira económica interna consiste no facto de o desenvolvimento das forças
produtivas levar a um ponto em que o “trabalho abstracto”, enquanto “substância”
da “mais-valia”, é tão reduzido pela racionalização do processo
produtivo que já não é possível qualquer nova valorização real. Essa
“dessubstancialização do capital” ou “desvalorização do valor”
significa que os produtos em si deixaram de ser mercadorias que se possam
representar na forma monetária, como forma genérica do valor, sendo agora
meros bens de consumo. A finalidade da produção capitalista, porém, não é a
fabricação de bens de consumo para satisfazer necessidades, mas sim o fim em
si mesmo da valorização. Por isso, segundo os critérios capitalistas, ao ser
alcançada a barreira económica interna é preciso parar a produção e,
portanto, o processo vital da sociedade, mesmo que todos os meios estejam disponíveis.
Esta
situação já tinha surgido realmente em meados dos anos 80, com a terceira
revolução industrial. O capitalismo prolongou a vida de forma
“virtualizada”, por um lado, mediante um endividamento historicamente sem
precedentes (antecipação de mais-valia futura, que na realidade jamais poderá
ser resgatada); por outro lado, pelo inflar, igualmente nunca visto, das
chamadas bolhas financeiras (acções e imóveis). Esta pseudo-acumulação de
capital monetário “sem substância” foi usada também para alimentar a
produção real de mercadorias. Resultou daí uma conjuntura de deficit global,
com fluxos de exportação de sentido único, principalmente para os Estados
Unidos. As zonas económicas de exportação da China e da Índia, porém, não
representam uma expansão real do “trabalho abstracto”, porque o seu ponto
de partida não foi poder de compra real, mas sim o capital monetário “sem
substância” do endividamento e das bolhas financeiras. Durante mais de duas décadas
alimentou-se a ilusão de que poderia haver um puro crescimento
“financeiramente induzido”. O fim dessa ilusão não consiste de modo algum
numa mera crise financeira. A muito invocada “economia real”, na verdade, há
muito que já não é real, mas tem sido alimentada artificialmente com bolhas
financeiras “sem substância”. Agora o capitalismo é reduzido aos seus
reais fundamentos de valorização. A consequência é uma nova crise da
economia mundial, sem que se vislumbrem novos potenciais de valorização real.
Simultaneamente,
o capitalismo esbarra em seus limites externos naturais. Na mesma medida em que
ficou supérfluo o “trabalho abstracto”, enquanto transformação de energia
humana em “mais-valia”, acelerou-se a expansão da aplicação tecnológica
das energias fósseis (petróleo, gás). A dinâmica cega do desenvolvimento das
forças produtivas não controlada socialmente levou, por um lado, ao previsível
esgotamento dos recursos de energia fóssil e, por outro, à destruição do
clima global e do meio ambiente natural, em grau igualmente previsível. A
barreira natural externa e a barreira económica interna apresentam horizontes
temporais diversos. Enquanto o fim da “valorização do valor” real já se
encontra no passado e a economia capitalista atravessa agora a sua crise histórica
no espaço de poucos anos (grosso modo no decurso da próxima década), a
barreira natural absoluta ainda se encontra no futuro (num período de no máximo
duas ou três décadas). A crise económica e o concomitante encerramento de
capacidades de produção travam o esgotamento dos recursos energéticos, em
todo o caso à custa da crescente miséria social global na forma capitalista.
Simultaneamente, porém, os processos de destruição das bases naturais e do
clima apresentam tamanho avanço que não chegam a ser detidos pela crise económica
e a barreira natural externa será atingida, apesar de tudo.
O
fim da modernização significa, portanto, que não só a forma capitalista da
reprodução tem de ser suplantada, mas também que, durante muito tempo, uma
sociedade mundial pós-capitalista terá de sofrer e lidar com as consequências
da destruição capitalista da natureza. Para a análise e crítica da teoria da
crise, é essencial ver a interconexão interna das duas barreiras históricas
do capitalismo. Existe, porém, o perigo de jogar um contra o outro esses dois
aspectos da crise histórica; isto tanto da parte das elites capitalistas como
dos representantes de um “reducionismo ecológico”, que só querem admitir a
barreira natural externa. A administração capitalista da crise e o
reducionismo ecológico podem entrar numa aliança perversa, que acabe por negar
a barreira económica e, em nome da crise ecológica, pregar às massas
depauperadas e miseráveis uma ideologia de “renúncia social”. Contra isso,
é preciso defender que seja dada prioridade à crise, à crítica e à suplantação
do contexto da forma capitalista, porque a destruição da natureza é a consequência
e não a causa da barreira interna deste sistema.
Por que
diz o senhor que a vergonha da crise é também a vergonha da esquerda pós-moderna?
A
crise não é nenhuma vergonha, mas um processo objectivo, resultante da dinâmica
cega da concorrência e do desenvolvimento descontrolado das forças produtivas.
No que toca à esquerda pós-moderna, pode-se falar de vergonha na medida em que
deitou borda fora a maior parte da crítica da economia política. O
“economismo” dos marxistas de partido tradicionais só foi criticado para
eliminar de vez a objectividade negativa das categorias capitalistas de
“trabalho abstracto” e “valorização do valor”. A dinâmica de crise
inerente ao capitalismo foi completamente ignorada e reinterpretada como
“possibilidades ilimitadas”. Tal como as elites neoliberais, a esquerda pós-moderna
acreditava no crescimento “financeiramente induzido” e transformou-se na
expressão ideológica do capital fictício. O virtualismo económico foi
complementado pelo virtualismo tecnológico da Internet. A Second
Life no espaço virtual transformou-se na forma de vida “autêntica”, e
o suposto “trabalho imaterial” (Antonio Negri), na continuação da
ontologia do trabalho capitalista.
O
problema da substância real do “trabalho abstracto” foi negado e, em
contradição com Marx, denunciado por um “anti-substancialismo” (ou
“anti-essencialismo”) ideológico como mera metafísica de um pensamento
ultrapassado, em vez de nele reconhecer uma “metafísica real” do
capitalismo, a qual não deixa de ser bem material. Concomitantemente, ocorreu
uma orientação pela esfera da circulação. A ilusão do capitalismo
financeiro de que actos de compra e venda também poderiam gerar crescimento,
tal como a produção real de mercadorias, também constituiu o pressuposto implícito
do pensamento pós-moderno. O endividado sujeito do mercado e do consumo surgia
como portador da reprodução e de uma possível emancipação, sendo que já não
se podia dizer em que haveria esta de consistir.
O
ilusório virtualismo económico e tecnológico repercutia-se filosoficamente
numa epistemologia que já não pretendia criticar e suplantar a “aparência
real” fetichista da relação de capital, mas seduzia para a crença de a
pessoa poder “realizar-se a si própria” nessas condições. Segundo as ilusões
virtualistas, a “jaula de ferro” (Max Weber) do sistema produtor de
mercadorias foi redefinida como “ambivalência” e “contingência” sempre
aberta para todos, que parecia poder ser percorrida à vontade. A verdade, mesmo
a verdade negativa da crítica, já não teria qualquer base objectiva nas condições
existentes, mas poderia ser “produzida” e “negociada”. Para a esquerda pós-moderna,
a essência negativa do capital dissolvia-se numa indefinível “pluralidade”
de fenómenos, a qual se apresentava como desconexa “pluralidade” de
movimentos sociais, sem focalizar o núcleo duro do capital.
Em termos sociais, a esquerda pós-moderna foi a criadora da moda da individualização e da flexibilização capitalistas. O flexi-indivíduo abstracto não foi reconhecido como forma do sujeito burguês em crise, mas declarado antecipação da individualidade libertada já no seio do capitalismo. A individualização, em vez de aparecer como forma última de existência do mercado totalitário e como ameaçadora “guerra de todos contra todos” na concorrência universal da crise, aparecia como forma atomizada da “auto-realização”; e o “ser humano flexível” (Richard Sennet) apresentava-se não como objecto indefeso ao sabor das coerções capitalistas, mas como “soberano” de si mesmo, que poderia conquistar novos espaços e transformar-se no que quisesse. A proximidade do pensamento pós-moderno com a ideologia neoliberal sempre foi inquestionável, apesar das oposições externas. Agora a esquerda pós-moderna depara-se com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade da crise histórica que desde o início não quis admitir e para a qual, por isso, não está preparada.
A
esquerda de hoje passa por uma crise existencial? Antes de sugerir soluções
alternativas para as crises actuais, a esquerda mundial teria de resolver os
seus próprios impasses? Para o senhor, há actualmente um vazio teórico das
esquerdas ou um “desencontro metodológico” na busca de bases comuns para
uma teoria?
A
crise existencial da esquerda de hoje consiste justamente no facto de ela não
ter conseguido transformar o marxismo e reformular ao nível do século XXI a crítica
da economia política. Pois naturalmente não haverá qualquer regresso aos
paradigmas de uma época passada. O rótulo de “pós-modernidade” era
enganador, pois a real transformação social do capitalismo não abria novos
espaços sociais, mas limitava-se a marcar a transição para a sua ruína histórica.
Nem o fim do antigo movimento operário nem o naufrágio do “socialismo
real” foram digeridos criticamente. A transição pós-moderna não
ultrapassou o marxismo tradicional, apenas lhe deu continuidade numa forma
tornada irreal. Enquanto desaparecia totalmente de vista o objectivo socialista,
que se dissolvia naquela falsa “pluralidade” de aspirações meramente
particulares, o paradigma da “classe operária” transformava-se numa
insustentável pluralidade de sujeitos sociais substitutos; no caso de Negri, no
conceito totalmente vazio de “multitude”, que significa tudo e nada. Ao
esvaziamento do sujeito corresponde uma virtualização das lutas sociais, que
em grande parte já só têm carácter meramente simbólico e cada vez menos
conseguem desenvolver poder de intervenção real.
Caracterizar
essa situação como “impasses” da esquerda é um eufemismo. O “ser de
esquerda” acabou, tanto o antigo como o pós-moderno. Não há mais qualquer
sujeito ontológico do “trabalho”, porque o “trabalho” revelou-se como a
substância histórica do capital e tornou-se a si mesmo obsoleto. Com isto,
também o paradoxal conceito marxista de “sujeito objectivo” em si, que
apenas precisaria de chegar “a si”, está liquidado em termos históricos e
não pode ser continuado em sucedâneos. Neste aspecto, o “vazio teórico”
da esquerda é idêntico ao “desencontro metodológico”. A esquerda nunca
conseguiu chegar a conceptualizar a dialéctica sujeito-objecto do fetichismo
moderno. A consequência foi cair num objectivismo tosco ou num subjectivismo
igualmente tosco. A oscilação entre esses dois pólos do fetichismo perfaz boa
parte das discussões de esquerda, que não conseguiram ir além dessa
polaridade.
Para
um novo movimento social emancipatório o que importa agora já não é
despertar com um beijo um “sujeito objectivo”, mas fazer a crítica da forma
sujeito em geral, sem resseguro ontológico, e interpretá-la como forma de
existência capitalista. A forma “sujeito” só pode ser sempre um agente do
“sujeito automático” da valorização do capital e não pode ser confundida
com a vontade de acção emancipatória, que precisa de se constituir a si própria
e não pode ter qualquer fundamento ontológico. Isto é difícil de pensar,
precisamente porque a esquerda pós-moderna desistiu da crítica do sujeito (o
Foucault tardio voltou a apelar para o sujeito particularizado). Essa crítica
fracassou principalmente por não estar mediada com a crítica da economia política.
Com
este problema se liga também a crítica da moderna relação de género. É
verdade que a esquerda tradicional e também a esquerda pós-moderna fizeram
suas mesuras obrigatórias ao feminismo, mas a temática nunca foi realmente
levada a sério. Também o próprio feminismo, apesar de análises meritórias,
em grande parte limitou-se a definir as mulheres como um “sujeito objectivo”
tão paradoxal como a “classe operária”. O postulado de uma "formação
de sujeito" feminina, por isso, leva ao mesmo beco sem saída. Também o
feminismo sofreu a transição pós-moderna e dissolveu a forma de existência
feminina “dissociada” no capitalismo numa “diversidade” de aspirações
emancipatórias particulares que não atingem o problema central. Também aqui
seria importante mediar a crítica do patriarcado moderno com a crítica da
economia política, e não tratá-la como questão “derivada”, secundária.
No caso, é fundamental a noção de que as categorias aparentemente neutras do
capital e a respectiva forma “sujeito” em si já são “masculinas”, e
que a “razão” capitalista é à partida androcêntrica. A dissolução da
família tradicional e dos respectivos papéis de género nada altera no caso,
porque o carácter androcêntrico do capitalismo continua de outra maneira. A crítica
dessas formas sociais e a crítica da relação capitalista de género
condicionam-se mutuamente e precisam de ser pensadas em conjunto.
A
crítica do “sujeito objectivo” do “trabalho” e da vida feminina
“dissociada” não é um jogo de palavras, mas tem consequências práticas
enormes para a suplantação do capitalismo. Desse modo também ficou liquidada
a noção do antigo marxismo de emancipação social e de socialismo
“dentro” das categorias capitalistas, que apenas teriam que ser reguladas e
moderadas de outro modo. No limite histórico do capitalismo, coloca-se a tarefa
da “crítica categorial” tanto do contexto de “trabalho abstracto”,
forma de mercadoria e “valorização do valor” como da relação de género
que lhe está associada. Isto também é difícil de pensar, porque essas condições
de vida estão interiorizadas, tendo sido inclusive firmadas ainda mais pelo
pensamento pós-moderno. Só a formulação de um novo objectivo socialista na
base de uma “crítica categorial” pode levar ao desenvolvimento de
reivindicações transitórias imanentes que também sejam adequadas no processo
da crise histórica, assim ganhando real poder de se impor. Sem o foco
abrangente no cerne do capitalismo, os movimentos sociais permanecem
desamparadamente particularizados. Entretanto, é de temer que a esquerda,
“apanhada de surpresa” pela crise, acabe por confiar em concepções
demasiado tacanhas de suposta “salvação”, ratificando assim apenas a sua
impotência histórica.
Em que
sentido a conjuntura actual tem contribuído para que a política se torne um
modelo em extinção? Podemos dizer que a economia “colonizou” a política?
A política está a ser repensada a partir do que acontece actualmente?
A
política centrada no Estado, como instância sintetizadora do capitalismo, está
saindo de linha não por ter sido colonizada pela economia, mas por ter
fracassado há muito nos seus próprios pressupostos. O problema não tem a ver
apenas com a condição externa da globalização do capital, que rompeu os espaços
de economia nacional. A força reguladora do Estado extingue-se principalmente
pelo facto de substancialmente não haver mais nada para regular. A valorização
capitalista nas formas de “trabalho abstracto” e dinheiro constitui desde
sempre o pressuposto do Estado, que ele não consegue contornar. Quando o
capital se desvaloriza pelo seu próprio desenvolvimento das forças produtivas,
o Estado apenas consegue reagir a isso com emissão inflacionária de dinheiro
pelo banco central. Isto não supera a falta de substância do capital
virtualizado, mas exacerba-a, como desvalorização do meio de fim em si mesmo
que é o dinheiro. É que a competência do banco central é puramente formal; a
sua criação de dinheiro só pode dar expressão à produção substancial de
mais-valia pelo “trabalho abstracto”, mas não consegue substituí-la.
Os
limites do crédito estatal já tinham sido alcançados no final dos anos 70.
Naquela época, a expansão do crédito estatal sem substância foi punida por
surtos inflacionistas. A ilusão do neoliberalismo consistiu no facto de
atribuir a inflação exclusivamente à actividade do Estado. A desregulamentação
neoliberal limitou-se a transferir o problema do crédito estatal para os
mercados financeiros. A punição da inflação foi protelada graças ao carácter
transnacional da economia de bolhas financeiras, mas o potencial inflacionário
começou a manifestar-se na conjuntura de deficit global existente até 2008.
Esse processo foi interrompido em primeiro lugar porque desde então o capital
virtual e com ele a conjuntura mundial estão a dar o último suspiro. Mas se
agora o Estado é novamente invocado como “última instância” e deus
ex machina, seus pacotes de salvação e de apoio à conjuntura novamente
terão que provocar a desvalorização do próprio dinheiro; só que isso
acontecerá numa fase de desenvolvimento mais elevada e em proporção muito
maior do que há trinta anos atrás.
Perante
este cenário, a esperança no “renascimento da política” é a maior de
todas as bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos danos ainda
serão maiores que a crise actual. O Estado já só consegue regulamentar a
morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está
desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do
sistema. Na mesma medida em que a suposta “autonomia” dos movimentos sociais
particulares e simbólicos se desfaz em fumo na barreira interna da valorização,
é de temer que a esquerda regrida ao seu tradicional estatismo, porque nada
mais lhe ocorre. Já agora a maior parte daquilo que pretende ser crítica
social de esquerda praticamente não passa de um pouquinho de nostalgia
keynesiana. Se a esquerda espera poder lançar suas “reformas sociais”
aproveitando o comboio da administração estatista da crise, ela acabará por
descarrilar com ele e, depois do seu carnaval no virtualismo, tornar-se a
promotora da política inflacionista. Seria um destino bem merecido.
Que
outras forças de esquerda podem agora surgir?
Se
fracassar a esquerda global presa nas categorias capitalistas, a questão
naturalmente é onde estão outras forças de emancipação social. Com certeza
haverá rebeliões e conflitos sociais quando as pessoas ficarem privadas de
suas condições básicas de vida, por mais precárias que sejam. Mas essas erupções
também podem tomar o rumo da direita, manifestando-se como sexismo, racismo,
anti-semitismo e nacionalismo, embora isso não tenha a menor possibilidade de
superação reaccionária da crise. Também ocorrem levantamentos sociais espontâneos
que se entendem vagamente como de esquerda, como se pode observar na Grécia
desde há uns meses. Esta balbúrdia juvenil a reagir visceralmente contra a
opressão das necessidades vitais já está a ser mitificada por certas
esquerdas e jogada contra a necessária transformação teórica.
Mas
o culto da espontaneidade sempre fez triste figura. As revoltas espontâneas da
juventude, por mais organizadas que sejam, darão em nada, se não puderem
adquirir uma noção crítica da situação, à altura do tempo. Por isso não há
alternativa senão desenvolver uma nova meta socialista por meio de uma crítica
categorial que não pode ficar vinculada à “falsa imediatidade” da práxis
espontânea. É preciso aguentar essa tensão para que a resistência social
emergente não morra sufocada no palavreado da “filosofia da vida”.
O
senhor diz que a sociedade mundial precisa se libertar do jogo do economismo
real e reorganizar os seus recursos, para além do mercado e do Estado. Nesse
sentido, como pode a esquerda desenvolver um trabalho revolucionário e
modificar a actual situação? Quais seriam, neste caso, as propostas da
esquerda para fazer face à crise financeira internacional?
É
preciso salientar que é justamente a sociedade que precisa de ser libertada
globalmente do economismo real do capital. É verdade que um novo modo de
reprodução somente pode ter êxito para além do mercado e do Estado. Ora, nos
últimos anos, essa fórmula foi cada vez mais usada no sentido de ser apenas
uma economia alternativa cooperativista, por assim dizer “ao lado” da síntese
social do capital, e a qual haveria de se ampliar aos poucos de alguma maneira.
Isto apenas dá continuidade ao particularismo “multicolor” pós-moderno.
Mas a socialização negativa do capitalismo só pode ser suplantada por
inteiro, ou não será suplantada. A economia alternativa cooperativista já tem
uma longa história e sempre fracassou, da última vez nos anos 80.
Esta
crise histórica não melhora as condições para semelhantes ideias, muito pelo
contrário. Isto porque uma reprodução “alternativa” restrita a um espaço
pequeno não só está vinculada a imposições sociais inconfessadas, mas também
fica na dependência das funções do mercado e do Estado, uma vez que só
consegue satisfazer poucas necessidades vitais por
conta própria. E a reprodução real dos indivíduos fica inserida num
encadeamento que Marx, sob condições capitalistas, chamou de “trabalho
social total”. Essa estrutura só pode ser transformada por inteiro; não se
pode começar com as batatas ou o software e achar que se criou um “modelo”
à escala reduzida, que só teria de ser aplicado a toda a sociedade. O
“platonismo do modelo” é produto da teoria económica burguesa, não da crítica
radical.
Quando,
em plena crise, por falta de “financiabilidade”, se desligam água e luz,
quando entram em colapso a assistência médica e a distribuição capitalista
de géneros alimentícios, então o que está em pauta não é o gradual
“entrar em rede” de comunas que pretendem reformar a vida, ou o “entrar em
rede” da troca virtual, mas sim a transformação social total do modo
capitalista de “formação de rede”. Para tanto, é necessária uma resistência
organizada de toda a sociedade contra a administração da crise, que estabeleça
metas próprias ao nível da síntese social. É disso que fogem os substitutos
particularistas tipo “economia solidária”, que geralmente consistem numa
mixórdia de economia de subsistência, “reformas monetárias” ilusórias e
abstracta ideologia comunitária. Querem fazer da miséria uma virtude. É
apenas consequente que essas propostas também fiquem a namorar “soluções
para a crise financeira” e se aliem à nostalgia keynesiana. Não existe mais
solução para a crise financeira; deve-se atacar o próprio critério de
“financiabilidade”, se é que se pretende levar a sério um novo modo de
reprodução, que vá para além do mercado e do Estado.
Considerando
que estamos na era da informação e vivendo a crise do capital, como se vai
isso repercutir no mundo do trabalho no que respeita à relação entre capital
e trabalho? Considerando a inserção de novas tecnologias na sociedade actual,
mas também as actuais crises, é possível pensar em desglobalização na era
da informatização? Podemos pensar assim numa nova economia mundial?
Foi
precisamente a informática, enquanto base da terceira revolução industrial,
que gerou o desenvolvimento das forças produtivas que tinha que levar à
barreira interna do capitalismo. Sob condições capitalistas, trata-se de pura
“tecnologia de crise”, que só poderia desenvolver potenciais positivos para
além da valorização. A ilusão pós-moderna e do capitalismo financeiro
consistia em que a informática implicaria novas formas do “trabalho
imaterial”, numa chamada sociedade da informação, bem como novas relações
entre capital e trabalho, com maior “autodeterminação” dos trabalhadores.
Na verdade, a “era da informação” já no passado levou ao desemprego em
massa, ao subemprego e à precarização, e a suposta autodeterminação levou a
uma compulsiva “auto-responsabilização” dos indivíduos pelo processo de
valorização. Antonio Negri pretendia estilizar essa evolução negativa como
opção para uma “autovalorização autónoma” (autovalorisazzione). Esta
acabou por se tornar um slogan para a administração repressiva do trabalho, que a
transformou na concepção que define os indivíduos como “auto-empresários
da sua força de trabalho” e como “gestores do seu próprio capital
humano”, a fim de deixá-los totalmente à mercê das condições do
capitalismo de crise. O novo desabamento da crise exacerbaria dramaticamente
essas tendências e desmentiria de uma vez por todas as tentativas de enxergar
na forma capitalista da sociedade da informação uma “ambivalência” com
potencial emancipatório. A metafísica pós-moderna da ambivalência está
esgotada.
A
globalização não pode ser reduzida à tecnologia da informação. Sob condições
capitalistas ela só podia ser uma globalização do capital, sob cujo comando
se encontra também a informação. É de esperar que, com a política
inflacionista do Estado, o processo da crise leve a uma “desglobalização”,
na medida em que se ensaie a retirada para o egoísmo proteccionista das
economias nacionais já meramente formais; tudo isso acompanhado de ideologias
neonacionalistas. Com isso a crise não será vencida, mas sim agravada. Também
é de questionar se a Internet é sustentável – não por causa de um possível
colapso tecnológico (embora também aí haja indícios de esgotamento da
capacidade) –, mas porque ela depende de uma formidável infra-estrutura, cuja
“financiabilidade” está tão em dúvida como todo o resto. Uma globalização
meramente virtual não é sustentável se não estiver ligada a uma reprodução
material transnacional para além do capitalismo. Também os limitados freaks
da Internet e tagarelas da blogosfera ainda podem apanhar um grande susto.
Como se
pode falar em ética nas actuais condições da sociedade capitalista?
Em
todas as formações fetichistas históricas, a ética não passou de uma
tentativa de conviver socialmente com as condições de reprodução dadas,
cegamente pressupostas, sem as suplantar. Também a ética burguesa moderna
pretende resolver contradições e crises sem tocar nas causas constitutivas. No
lugar da crítica radical deve entrar um cânon de normas de conduta moral para
os indivíduos, para que possam ficar “bem uns com os outros” dentro das
formas dominantes. O que pode falhar não é o sistema, mas apenas a moral dos
indivíduos. Também a crise actual, aliás, tem sido atribuída aos deficits éticos
dos banqueiros e dos gestores. Não é por acaso que o “pacote de
salvamento” de maior volume está na ética, que mais uma vez está em alta.
Infelizmente esse pacote é totalmente oco. O “sujeito automático” não é
acessível a quaisquer imperativos éticos; daí que também não faz sentido
importunar os seus agentes com isso. Ética, portanto, é mais ou menos a última
coisa com que a teoria crítica deveria ocupar-se.
Original
INTERVIEW MIT DER BRASILIANISCHEN ZEITSCHRIFT „IHU ON-LINE“ em www.exit-online.org.
Publicado na Edição 287 de 30.03.2009 da revista IHU
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