Robert Kurz

Entrevista à revista brasileira “IHU online” (20.03.2009)

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre

 

As actuais crises financeira e ecológica estão relacionadas com o que o senhor chama o “colapso da modernização”?

O termo colapso é um chavão provocatório, geralmente usado em sentido pejorativo, para desqualificar os representantes da teoria radical da crise como “apocalípticos”, que não devem ser levados a sério. Não são só as elites capitalistas a quererem acreditar que o capitalismo pode renovar-se eternamente, são também os representantes da esquerda. É claro que um sistema social global não se vai abaixo repentinamente, como um indivíduo que sofre um enfarte. Mas a era do capitalismo acabou. Afinal de contas, a modernização não foi outra coisa senão a imposição e desenvolvimento deste sistema, com os mecanismos quer do capitalismo privado quer do capitalismo de Estado.

Apesar de todas as diferenças externas, o fundamento comum consiste na “valorização do valor”, isto é, na transformação de “trabalho abstracto" em “mais-valia”. No entanto, esta não é uma finalidade subjectiva, mas um fim em si mesmo autonomizado. Tanto os capitalistas quanto os assalariados, assim como os agentes estatais, não passam de funcionários desse fim em si mesmo, solto e incontrolável, que Marx chamou “sujeito automático”. No caso, a concorrência universal força a uma dinâmica cega de desenvolvimento das forças produtivas que gera constantemente novas condições de valorização e acaba por esbarrar numa barreira histórica absoluta.

A barreira económica interna consiste no facto de o desenvolvimento das forças produtivas levar a um ponto em que o “trabalho abstracto”, enquanto “substância” da “mais-valia”, é tão reduzido pela racionalização do processo produtivo que já não é possível qualquer nova valorização real. Essa “dessubstancialização do capital” ou “desvalorização do valor” significa que os produtos em si deixaram de ser mercadorias que se possam representar na forma monetária, como forma genérica do valor, sendo agora meros bens de consumo. A finalidade da produção capitalista, porém, não é a fabricação de bens de consumo para satisfazer necessidades, mas sim o fim em si mesmo da valorização. Por isso, segundo os critérios capitalistas, ao ser alcançada a barreira económica interna é preciso parar a produção e, portanto, o processo vital da sociedade, mesmo que todos os meios estejam disponíveis.

Esta situação já tinha surgido realmente em meados dos anos 80, com a terceira revolução industrial. O capitalismo prolongou a vida de forma “virtualizada”, por um lado, mediante um endividamento historicamente sem precedentes (antecipação de mais-valia futura, que na realidade jamais poderá ser resgatada); por outro lado, pelo inflar, igualmente nunca visto, das chamadas bolhas financeiras (acções e imóveis). Esta pseudo-acumulação de capital monetário “sem substância” foi usada também para alimentar a produção real de mercadorias. Resultou daí uma conjuntura de deficit global, com fluxos de exportação de sentido único, principalmente para os Estados Unidos. As zonas económicas de exportação da China e da Índia, porém, não representam uma expansão real do “trabalho abstracto”, porque o seu ponto de partida não foi poder de compra real, mas sim o capital monetário “sem substância” do endividamento e das bolhas financeiras. Durante mais de duas décadas alimentou-se a ilusão de que poderia haver um puro crescimento “financeiramente induzido”. O fim dessa ilusão não consiste de modo algum numa mera crise financeira. A muito invocada “economia real”, na verdade, há muito que já não é real, mas tem sido alimentada artificialmente com bolhas financeiras “sem substância”. Agora o capitalismo é reduzido aos seus reais fundamentos de valorização. A consequência é uma nova crise da economia mundial, sem que se vislumbrem novos potenciais de valorização real.

Simultaneamente, o capitalismo esbarra em seus limites externos naturais. Na mesma medida em que ficou supérfluo o “trabalho abstracto”, enquanto transformação de energia humana em “mais-valia”, acelerou-se a expansão da aplicação tecnológica das energias fósseis (petróleo, gás). A dinâmica cega do desenvolvimento das forças produtivas não controlada socialmente levou, por um lado, ao previsível esgotamento dos recursos de energia fóssil e, por outro, à destruição do clima global e do meio ambiente natural, em grau igualmente previsível. A barreira natural externa e a barreira económica interna apresentam horizontes temporais diversos. Enquanto o fim da “valorização do valor” real já se encontra no passado e a economia capitalista atravessa agora a sua crise histórica no espaço de poucos anos (grosso modo no decurso da próxima década), a barreira natural absoluta ainda se encontra no futuro (num período de no máximo duas ou três décadas). A crise económica e o concomitante encerramento de capacidades de produção travam o esgotamento dos recursos energéticos, em todo o caso à custa da crescente miséria social global na forma capitalista. Simultaneamente, porém, os processos de destruição das bases naturais e do clima apresentam tamanho avanço que não chegam a ser detidos pela crise económica e a barreira natural externa será atingida, apesar de tudo.

O fim da modernização significa, portanto, que não só a forma capitalista da reprodução tem de ser suplantada, mas também que, durante muito tempo, uma sociedade mundial pós-capitalista terá de sofrer e lidar com as consequências da destruição capitalista da natureza. Para a análise e crítica da teoria da crise, é essencial ver a interconexão interna das duas barreiras históricas do capitalismo. Existe, porém, o perigo de jogar um contra o outro esses dois aspectos da crise histórica; isto tanto da parte das elites capitalistas como dos representantes de um “reducionismo ecológico”, que só querem admitir a barreira natural externa. A administração capitalista da crise e o reducionismo ecológico podem entrar numa aliança perversa, que acabe por negar a barreira económica e, em nome da crise ecológica, pregar às massas depauperadas e miseráveis uma ideologia de “renúncia social”. Contra isso, é preciso defender que seja dada prioridade à crise, à crítica e à suplantação do contexto da forma capitalista, porque a destruição da natureza é a consequência e não a causa da barreira interna deste sistema.

 

Por que diz o senhor que a vergonha da crise é também a vergonha da esquerda pós-moderna?

A crise não é nenhuma vergonha, mas um processo objectivo, resultante da dinâmica cega da concorrência e do desenvolvimento descontrolado das forças produtivas. No que toca à esquerda pós-moderna, pode-se falar de vergonha na medida em que deitou borda fora a maior parte da crítica da economia política. O “economismo” dos marxistas de partido tradicionais só foi criticado para eliminar de vez a objectividade negativa das categorias capitalistas de “trabalho abstracto” e “valorização do valor”. A dinâmica de crise inerente ao capitalismo foi completamente ignorada e reinterpretada como “possibilidades ilimitadas”. Tal como as elites neoliberais, a esquerda pós-moderna acreditava no crescimento “financeiramente induzido” e transformou-se na expressão ideológica do capital fictício. O virtualismo económico foi complementado pelo virtualismo tecnológico da Internet. A Second Life no espaço virtual transformou-se na forma de vida “autêntica”, e o suposto “trabalho imaterial” (Antonio Negri), na continuação da ontologia do trabalho capitalista.

O problema da substância real do “trabalho abstracto” foi negado e, em contradição com Marx, denunciado por um “anti-substancialismo” (ou “anti-essencialismo”) ideológico como mera metafísica de um pensamento ultrapassado, em vez de nele reconhecer uma “metafísica real” do capitalismo, a qual não deixa de ser bem material. Concomitantemente, ocorreu uma orientação pela esfera da circulação. A ilusão do capitalismo financeiro de que actos de compra e venda também poderiam gerar crescimento, tal como a produção real de mercadorias, também constituiu o pressuposto implícito do pensamento pós-moderno. O endividado sujeito do mercado e do consumo surgia como portador da reprodução e de uma possível emancipação, sendo que já não se podia dizer em que haveria esta de consistir.

O ilusório virtualismo económico e tecnológico repercutia-se filosoficamente numa epistemologia que já não pretendia criticar e suplantar a “aparência real” fetichista da relação de capital, mas seduzia para a crença de a pessoa poder “realizar-se a si própria” nessas condições. Segundo as ilusões virtualistas, a “jaula de ferro” (Max Weber) do sistema produtor de mercadorias foi redefinida como “ambivalência” e “contingência” sempre aberta para todos, que parecia poder ser percorrida à vontade. A verdade, mesmo a verdade negativa da crítica, já não teria qualquer base objectiva nas condições existentes, mas poderia ser “produzida” e “negociada”. Para a esquerda pós-moderna, a essência negativa do capital dissolvia-se numa indefinível “pluralidade” de fenómenos, a qual se apresentava como desconexa “pluralidade” de movimentos sociais, sem focalizar o núcleo duro do capital.

Em termos sociais, a esquerda pós-moderna foi a criadora da moda da individualização e da flexibilização capitalistas. O flexi-indivíduo abstracto não foi reconhecido como forma do sujeito burguês em crise, mas declarado antecipação da individualidade libertada já no seio do capitalismo. A individualização, em vez de aparecer como forma última de existência do mercado totalitário e como ameaçadora “guerra de todos contra todos” na concorrência universal da crise, aparecia como forma atomizada da “auto-realização”; e o “ser humano flexível” (Richard Sennet) apresentava-se não como objecto indefeso ao sabor das coerções capitalistas, mas como “soberano” de si mesmo, que poderia conquistar novos espaços e transformar-se no que quisesse. A proximidade do pensamento pós-moderno com a ideologia neoliberal sempre foi inquestionável, apesar das oposições externas. Agora a esquerda pós-moderna depara-se com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade da crise histórica que desde o início não quis admitir e para a qual, por isso, não está preparada.

A esquerda de hoje passa por uma crise existencial? Antes de sugerir soluções alternativas para as crises actuais, a esquerda mundial teria de resolver os seus próprios impasses? Para o senhor, há actualmente um vazio teórico das esquerdas ou um “desencontro metodológico” na busca de bases comuns para uma teoria?

A crise existencial da esquerda de hoje consiste justamente no facto de ela não ter conseguido transformar o marxismo e reformular ao nível do século XXI a crítica da economia política. Pois naturalmente não haverá qualquer regresso aos paradigmas de uma época passada. O rótulo de “pós-modernidade” era enganador, pois a real transformação social do capitalismo não abria novos espaços sociais, mas limitava-se a marcar a transição para a sua ruína histórica. Nem o fim do antigo movimento operário nem o naufrágio do “socialismo real” foram digeridos criticamente. A transição pós-moderna não ultrapassou o marxismo tradicional, apenas lhe deu continuidade numa forma tornada irreal. Enquanto desaparecia totalmente de vista o objectivo socialista, que se dissolvia naquela falsa “pluralidade” de aspirações meramente particulares, o paradigma da “classe operária” transformava-se numa insustentável pluralidade de sujeitos sociais substitutos; no caso de Negri, no conceito totalmente vazio de “multitude”, que significa tudo e nada. Ao esvaziamento do sujeito corresponde uma virtualização das lutas sociais, que em grande parte já só têm carácter meramente simbólico e cada vez menos conseguem desenvolver poder de intervenção real.

Caracterizar essa situação como “impasses” da esquerda é um eufemismo. O “ser de esquerda” acabou, tanto o antigo como o pós-moderno. Não há mais qualquer sujeito ontológico do “trabalho”, porque o “trabalho” revelou-se como a substância histórica do capital e tornou-se a si mesmo obsoleto. Com isto, também o paradoxal conceito marxista de “sujeito objectivo” em si, que apenas precisaria de chegar “a si”, está liquidado em termos históricos e não pode ser continuado em sucedâneos. Neste aspecto, o “vazio teórico” da esquerda é idêntico ao “desencontro metodológico”. A esquerda nunca conseguiu chegar a conceptualizar a dialéctica sujeito-objecto do fetichismo moderno. A consequência foi cair num objectivismo tosco ou num subjectivismo igualmente tosco. A oscilação entre esses dois pólos do fetichismo perfaz boa parte das discussões de esquerda, que não conseguiram ir além dessa polaridade.

Para um novo movimento social emancipatório o que importa agora já não é despertar com um beijo um “sujeito objectivo”, mas fazer a crítica da forma sujeito em geral, sem resseguro ontológico, e interpretá-la como forma de existência capitalista. A forma “sujeito” só pode ser sempre um agente do “sujeito automático” da valorização do capital e não pode ser confundida com a vontade de acção emancipatória, que precisa de se constituir a si própria e não pode ter qualquer fundamento ontológico. Isto é difícil de pensar, precisamente porque a esquerda pós-moderna desistiu da crítica do sujeito (o Foucault tardio voltou a apelar para o sujeito particularizado). Essa crítica fracassou principalmente por não estar mediada com a crítica da economia política.

Com este problema se liga também a crítica da moderna relação de género. É verdade que a esquerda tradicional e também a esquerda pós-moderna fizeram suas mesuras obrigatórias ao feminismo, mas a temática nunca foi realmente levada a sério. Também o próprio feminismo, apesar de análises meritórias, em grande parte limitou-se a definir as mulheres como um “sujeito objectivo” tão paradoxal como a “classe operária”. O postulado de uma "formação de sujeito" feminina, por isso, leva ao mesmo beco sem saída. Também o feminismo sofreu a transição pós-moderna e dissolveu a forma de existência feminina “dissociada” no capitalismo numa “diversidade” de aspirações emancipatórias particulares que não atingem o problema central. Também aqui seria importante mediar a crítica do patriarcado moderno com a crítica da economia política, e não tratá-la como questão “derivada”, secundária. No caso, é fundamental a noção de que as categorias aparentemente neutras do capital e a respectiva forma “sujeito” em si já são “masculinas”, e que a “razão” capitalista é à partida androcêntrica. A dissolução da família tradicional e dos respectivos papéis de género nada altera no caso, porque o carácter androcêntrico do capitalismo continua de outra maneira. A crítica dessas formas sociais e a crítica da relação capitalista de género condicionam-se mutuamente e precisam de ser pensadas em conjunto.

A crítica do “sujeito objectivo” do “trabalho” e da vida feminina “dissociada” não é um jogo de palavras, mas tem consequências práticas enormes para a suplantação do capitalismo. Desse modo também ficou liquidada a noção do antigo marxismo de emancipação social e de socialismo “dentro” das categorias capitalistas, que apenas teriam que ser reguladas e moderadas de outro modo. No limite histórico do capitalismo, coloca-se a tarefa da “crítica categorial” tanto do contexto de “trabalho abstracto”, forma de mercadoria e “valorização do valor” como da relação de género que lhe está associada. Isto também é difícil de pensar, porque essas condições de vida estão interiorizadas, tendo sido inclusive firmadas ainda mais pelo pensamento pós-moderno. Só a formulação de um novo objectivo socialista na base de uma “crítica categorial” pode levar ao desenvolvimento de reivindicações transitórias imanentes que também sejam adequadas no processo da crise histórica, assim ganhando real poder de se impor. Sem o foco abrangente no cerne do capitalismo, os movimentos sociais permanecem desamparadamente particularizados. Entretanto, é de temer que a esquerda, “apanhada de surpresa” pela crise, acabe por confiar em concepções demasiado tacanhas de suposta “salvação”, ratificando assim apenas a sua impotência histórica.

 

Em que sentido a conjuntura actual tem contribuído para que a política se torne um modelo em extinção? Podemos dizer que a economia “colonizou” a política? A política está a ser repensada a partir do que acontece actualmente?

A política centrada no Estado, como instância sintetizadora do capitalismo, está saindo de linha não por ter sido colonizada pela economia, mas por ter fracassado há muito nos seus próprios pressupostos. O problema não tem a ver apenas com a condição externa da globalização do capital, que rompeu os espaços de economia nacional. A força reguladora do Estado extingue-se principalmente pelo facto de substancialmente não haver mais nada para regular. A valorização capitalista nas formas de “trabalho abstracto” e dinheiro constitui desde sempre o pressuposto do Estado, que ele não consegue contornar. Quando o capital se desvaloriza pelo seu próprio desenvolvimento das forças produtivas, o Estado apenas consegue reagir a isso com emissão inflacionária de dinheiro pelo banco central. Isto não supera a falta de substância do capital virtualizado, mas exacerba-a, como desvalorização do meio de fim em si mesmo que é o dinheiro. É que a competência do banco central é puramente formal; a sua criação de dinheiro só pode dar expressão à produção substancial de mais-valia pelo “trabalho abstracto”, mas não consegue substituí-la.

Os limites do crédito estatal já tinham sido alcançados no final dos anos 70. Naquela época, a expansão do crédito estatal sem substância foi punida por surtos inflacionistas. A ilusão do neoliberalismo consistiu no facto de atribuir a inflação exclusivamente à actividade do Estado. A desregulamentação neoliberal limitou-se a transferir o problema do crédito estatal para os mercados financeiros. A punição da inflação foi protelada graças ao carácter transnacional da economia de bolhas financeiras, mas o potencial inflacionário começou a manifestar-se na conjuntura de deficit global existente até 2008. Esse processo foi interrompido em primeiro lugar porque desde então o capital virtual e com ele a conjuntura mundial estão a dar o último suspiro. Mas se agora o Estado é novamente invocado como “última instância” e deus ex machina, seus pacotes de salvação e de apoio à conjuntura novamente terão que provocar a desvalorização do próprio dinheiro; só que isso acontecerá numa fase de desenvolvimento mais elevada e em proporção muito maior do que há trinta anos atrás.

Perante este cenário, a esperança no “renascimento da política” é a maior de todas as bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos danos ainda serão maiores que a crise actual. O Estado já só consegue regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do sistema. Na mesma medida em que a suposta “autonomia” dos movimentos sociais particulares e simbólicos se desfaz em fumo na barreira interna da valorização, é de temer que a esquerda regrida ao seu tradicional estatismo, porque nada mais lhe ocorre. Já agora a maior parte daquilo que pretende ser crítica social de esquerda praticamente não passa de um pouquinho de nostalgia keynesiana. Se a esquerda espera poder lançar suas “reformas sociais” aproveitando o comboio da administração estatista da crise, ela acabará por descarrilar com ele e, depois do seu carnaval no virtualismo, tornar-se a promotora da política inflacionista. Seria um destino bem merecido.

 

Que outras forças de esquerda podem agora surgir?

Se fracassar a esquerda global presa nas categorias capitalistas, a questão naturalmente é onde estão outras forças de emancipação social. Com certeza haverá rebeliões e conflitos sociais quando as pessoas ficarem privadas de suas condições básicas de vida, por mais precárias que sejam. Mas essas erupções também podem tomar o rumo da direita, manifestando-se como sexismo, racismo, anti-semitismo e nacionalismo, embora isso não tenha a menor possibilidade de superação reaccionária da crise. Também ocorrem levantamentos sociais espontâneos que se entendem vagamente como de esquerda, como se pode observar na Grécia desde há uns meses. Esta balbúrdia juvenil a reagir visceralmente contra a opressão das necessidades vitais já está a ser mitificada por certas esquerdas e jogada contra a necessária transformação teórica.

Mas o culto da espontaneidade sempre fez triste figura. As revoltas espontâneas da juventude, por mais organizadas que sejam, darão em nada, se não puderem adquirir uma noção crítica da situação, à altura do tempo. Por isso não há alternativa senão desenvolver uma nova meta socialista por meio de uma crítica categorial que não pode ficar vinculada à “falsa imediatidade” da práxis espontânea. É preciso aguentar essa tensão para que a resistência social emergente não morra sufocada no palavreado da “filosofia da vida”.

 

O senhor diz que a sociedade mundial precisa se libertar do jogo do economismo real e reorganizar os seus recursos, para além do mercado e do Estado. Nesse sentido, como pode a esquerda desenvolver um trabalho revolucionário e modificar a actual situação? Quais seriam, neste caso, as propostas da esquerda para fazer face à crise financeira internacional?

É preciso salientar que é justamente a sociedade que precisa de ser libertada globalmente do economismo real do capital. É verdade que um novo modo de reprodução somente pode ter êxito para além do mercado e do Estado. Ora, nos últimos anos, essa fórmula foi cada vez mais usada no sentido de ser apenas uma economia alternativa cooperativista, por assim dizer “ao lado” da síntese social do capital, e a qual haveria de se ampliar aos poucos de alguma maneira. Isto apenas dá continuidade ao particularismo “multicolor” pós-moderno. Mas a socialização negativa do capitalismo só pode ser suplantada por inteiro, ou não será suplantada. A economia alternativa cooperativista já tem uma longa história e sempre fracassou, da última vez nos anos 80.

Esta crise histórica não melhora as condições para semelhantes ideias, muito pelo contrário. Isto porque uma reprodução “alternativa” restrita a um espaço pequeno não só está vinculada a imposições sociais inconfessadas, mas também fica na dependência das funções do mercado e do Estado, uma vez que só consegue satisfazer poucas necessidades vitais por conta própria. E a reprodução real dos indivíduos fica inserida num encadeamento que Marx, sob condições capitalistas, chamou de “trabalho social total”. Essa estrutura só pode ser transformada por inteiro; não se pode começar com as batatas ou o software e achar que se criou um “modelo” à escala reduzida, que só teria de ser aplicado a toda a sociedade. O “platonismo do modelo” é produto da teoria económica burguesa, não da crítica radical.

Quando, em plena crise, por falta de “financiabilidade”, se desligam água e luz, quando entram em colapso a assistência médica e a distribuição capitalista de géneros alimentícios, então o que está em pauta não é o gradual “entrar em rede” de comunas que pretendem reformar a vida, ou o “entrar em rede” da troca virtual, mas sim a transformação social total do modo capitalista de “formação de rede”. Para tanto, é necessária uma resistência organizada de toda a sociedade contra a administração da crise, que estabeleça metas próprias ao nível da síntese social. É disso que fogem os substitutos particularistas tipo “economia solidária”, que geralmente consistem numa mixórdia de economia de subsistência, “reformas monetárias” ilusórias e abstracta ideologia comunitária. Querem fazer da miséria uma virtude. É apenas consequente que essas propostas também fiquem a namorar “soluções para a crise financeira” e se aliem à nostalgia keynesiana. Não existe mais solução para a crise financeira; deve-se atacar o próprio critério de “financiabilidade”, se é que se pretende levar a sério um novo modo de reprodução, que vá para além do mercado e do Estado.

 

Considerando que estamos na era da informação e vivendo a crise do capital, como se vai isso repercutir no mundo do trabalho no que respeita à relação entre capital e trabalho? Considerando a inserção de novas tecnologias na sociedade actual, mas também as actuais crises, é possível pensar em desglobalização na era da informatização? Podemos pensar assim numa nova economia mundial?

Foi precisamente a informática, enquanto base da terceira revolução industrial, que gerou o desenvolvimento das forças produtivas que tinha que levar à barreira interna do capitalismo. Sob condições capitalistas, trata-se de pura “tecnologia de crise”, que só poderia desenvolver potenciais positivos para além da valorização. A ilusão pós-moderna e do capitalismo financeiro consistia em que a informática implicaria novas formas do “trabalho imaterial”, numa chamada sociedade da informação, bem como novas relações entre capital e trabalho, com maior “autodeterminação” dos trabalhadores. Na verdade, a “era da informação” já no passado levou ao desemprego em massa, ao subemprego e à precarização, e a suposta autodeterminação levou a uma compulsiva “auto-responsabilização” dos indivíduos pelo processo de valorização. Antonio Negri pretendia estilizar essa evolução negativa como opção para uma “autovalorização autónoma” (autovalorisazzione). Esta acabou por se tornar um slogan para a administração repressiva do trabalho, que a transformou na concepção que define os indivíduos como “auto-empresários da sua força de trabalho” e como “gestores do seu próprio capital humano”, a fim de deixá-los totalmente à mercê das condições do capitalismo de crise. O novo desabamento da crise exacerbaria dramaticamente essas tendências e desmentiria de uma vez por todas as tentativas de enxergar na forma capitalista da sociedade da informação uma “ambivalência” com potencial emancipatório. A metafísica pós-moderna da ambivalência está esgotada.

A globalização não pode ser reduzida à tecnologia da informação. Sob condições capitalistas ela só podia ser uma globalização do capital, sob cujo comando se encontra também a informação. É de esperar que, com a política inflacionista do Estado, o processo da crise leve a uma “desglobalização”, na medida em que se ensaie a retirada para o egoísmo proteccionista das economias nacionais já meramente formais; tudo isso acompanhado de ideologias neonacionalistas. Com isso a crise não será vencida, mas sim agravada. Também é de questionar se a Internet é sustentável – não por causa de um possível colapso tecnológico (embora também aí haja indícios de esgotamento da capacidade) –, mas porque ela depende de uma formidável infra-estrutura, cuja “financiabilidade” está tão em dúvida como todo o resto. Uma globalização meramente virtual não é sustentável se não estiver ligada a uma reprodução material transnacional para além do capitalismo. Também os limitados freaks da Internet e tagarelas da blogosfera ainda podem apanhar um grande susto.

 

Como se pode falar em ética nas actuais condições da sociedade capitalista?

Em todas as formações fetichistas históricas, a ética não passou de uma tentativa de conviver socialmente com as condições de reprodução dadas, cegamente pressupostas, sem as suplantar. Também a ética burguesa moderna pretende resolver contradições e crises sem tocar nas causas constitutivas. No lugar da crítica radical deve entrar um cânon de normas de conduta moral para os indivíduos, para que possam ficar “bem uns com os outros” dentro das formas dominantes. O que pode falhar não é o sistema, mas apenas a moral dos indivíduos. Também a crise actual, aliás, tem sido atribuída aos deficits éticos dos banqueiros e dos gestores. Não é por acaso que o “pacote de salvamento” de maior volume está na ética, que mais uma vez está em alta. Infelizmente esse pacote é totalmente oco. O “sujeito automático” não é acessível a quaisquer imperativos éticos; daí que também não faz sentido importunar os seus agentes com isso. Ética, portanto, é mais ou menos a última coisa com que a teoria crítica deveria ocupar-se.

Original INTERVIEW MIT DER BRASILIANISCHEN ZEITSCHRIFT „IHU ON-LINE“ em www.exit-online.org. Publicado na Edição 287 de 30.03.2009 da revista IHU online , Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil, com o título A esquerda e a dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno, edição de Patricia Fachin e Márcia Junges, tradução de Benno Dischinger e Walter O. Schlupp.

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