Moeda sem força

O euro irá fracassar porque não possui o lastro de um grande poderio militar


ROBERT KURZ

Somente alguns meses nos separam do maior experimento político-monetário da história econômica: em 1º de janeiro de 1999 será introduzido o euro nos onze Estados-membros da União Econômica e Monetária Européia. Planeja-se implantar a nova moeda unificada, em várias etapas, até o ano 2002, como meio circulante geral. Embora esse arriscado projeto seja economicamente imaturo e repleto de contradições, ele conta com o aberto apoio político dos governos envolvidos. Quase se tem a impressão de que a política, apesar de toda a globalização do capital, reconquistou a sua pretensão hegemônica diante da economia. Mas as aparências enganam. É justamente o processo da globalização, incontrolável pela política, que impeliu os governos da União Européia a semelhante aventura.
A própria globalização não é um projeto, mas a forma cambiante de uma crise secular: os potenciais da terceira revolução industrial superam as fronteiras do moderno sistema de mercado. As consequências são conhecidas: em todo o mundo, o poder de compra da economia interna decai, já que cresce o arrocho salarial, o desemprego estrutural de massas aumenta e a classe média é degradada. Esse processo de crise leva à aniquilação e concentração do capital (onda de fusões). As grandes empresas buscam refúgio nos mercados globais e são obrigadas a diversificar os seus produtos e o seu marketing. Os Estados perdem grande parte de sua receita fiscal e lançam-se, por sua vez, no mercado financeiro internacional para fazer frente ao refluxo de capital monetário.
Mas tal processo de globalização como fuga da crise tem seus limites. Como não há mais uma correlação entre o sistema político e o econômico nos mercados internacionais autônomos, a batida em retirada dos "global players" corre o risco de fracassar: irrupções econômicas, como a atual crise asiática, e instabilidades sociais e políticas fora de suas esferas de influência podem, da noite para o dia, transformar em perda os ganhos da globalização. É natural, por isso, criar novos espaços político-econômicos de "relativa soberania", no plano supranacional, para conter os riscos da globalização. Foram criados, assim, em diversas regiões, "mercados comuns", blocos político-econômicos e outras formas de cooperação entre os Estados, com diferentes graus de integração.
A exemplo das empresas, também os Estados têm de se associar em grupos, mesmo que a integração política fique muito a dever à integração econômica. Essas coligações, no entanto, não suprimem a concorrência no mercado mundial já esgotado; antes, são o seu resultado e, em última instância, só fazem por agravá-la. No plano do empresariado e dos poderes estatais, reproduz-se o mesmo mecanismo do plano dos indivíduos nas regiões em crise: quem insiste em ficar sozinho e é incapaz de associar-se a um partido da guerra civil acaba por sucumbir. A face da globalização se transforma; no sistema de coordenadas universal, os combatentes individuais sejam do Estado ou das empresas são substituídos por bandos razoavelmente organizados.
Um problema da globalização, porém, não foi até agora solucionado pelas novas formas de cooperação interestatal nas diversas regiões do mundo: o risco das taxas de câmbio. Como o sistema monetário internacional não tem mais lastro objetivo no ouro e não existem mais taxas de câmbio fixas, os valores relativos de cada moeda oscilam numa faixa de grande amplitude. Essa instabilidade das relações cambiais representa uma séria ameaça para os "global players". A única exceção são os Estados Unidos, que se acham numa posição privilegiada pelo fato de o dólar ser a moeda de comércio e de reservas predominante no mundo. Eles assumem dívidas em sua própria moeda no exterior e, com sua política monetária, são capazes de conduzir o sistema financeiro de acordo com os seus interesses.
Obviamente, tanto o capitalismo europeu quanto o asiático vêem com dissabor o concorrente norte-americano (apesar do relativo recuo de seu peso econômico) poder atuar em grande parte de forma hegemônica com o dólar. Mas a prevalência político-cambial dos Estados Unidos tinha de ser aceita em silêncio, com o rilhar dos dentes, pois o comércio recíproco ruiria de imediato sem uma "moeda universal": um sistema de compensação com mais de cem moedas, cujas taxas de câmbio oscilam freneticamente, seria impossível sem uma terceira moeda como parâmetro para as transações. E, depois do fim do "gold standard", o dólar assumiu em grande parte essa função; nenhuma moeda era forte o bastante para lhe contestar a posição de destaque.
O experimento político-cambial do euro, assim como a globalização do capital (e a título de reação às pressões dela advindas), é uma fuga para além das formas atuais de cooperação entre os Estados: com a união monetária européia nascerão o primeiro banco central supranacional e a primeira moeda transnacional do mundo. Com o fim das barreiras monetárias no interior de boa parte da atual União Européia (UE), será criado não só um espaço econômico internacional mais seguro para os "global players" europeus, mas também uma base mais sólida para a concorrência no resto do mercado mundial. Mas, uma vez lançada essa aposta de alto risco nos mercados cambial e financeiro, é fácil supor que, caso tenha êxito, o euro romperá, de um único golpe, a hegemonia dos Estados Unidos. Se o euro disputasse seriamente com o dólar o papel de moeda universal e de meio global de reserva, logo cairia por terra a supremacia econômica dos Estados Unidos.
Mas será que o euro é capaz de desafiar o dólar para um duelo? Será que a Europa, com a sua moeda unificada, é capaz de assumir a liderança na disputa da tríade (Estados Unidos, Japão e União Européia) no mercado mundial ou no sistema financeiro global? Alguns economistas de renome, como Fred Bergsten (Instituto de Economia Internacional de Washington), dizem que sim, ao comparar importantes variáveis econômicas do novo âmbito monetário europeu com as dos Estados Unidos e as do Japão. Na região do euro, esta é a conclusão: tanto o PIB quanto a parcela de mercado global são superiores. Assim, calcula-se que, na pior das hipóteses, o euro estará em pé de igualdade com o dólar. Em vez de uma, haveria duas moedas-guia, e, portanto, um sistema monetário bipolar. Os Estados Unidos seriam incapazes, nas mesmas proporções, de se endividar em sua própria moeda. Isso poderia aliviar a crise na Europa, em detrimento dos Estados Unidos, e fazer com que a única potência do mundo, como diz Zbigniew Brzezinski, fosse supliciada na grelha dos vetos políticos e econômicos dos europeus.
Tais estimativas são obviamente precipitadas, produto típico de um pensamento inseguro, numa época de crise e transformações. É totalmente irrealista que o euro possa destronar o dólar. Pois o papel hegemônico dos Estados Unidos há muito não é mais determinado pela economia, mas sim pela supremacia militar. Isso é contraditório, não há dúvida, e mostra que o mundo capitalista saiu dos trilhos. Mas é justamente nessa desordem que o poder de fogo da máquina militar norte-americana torna-se um fator pseudo-econômico; e é justamente porque não há mais, para o capital globalizado, uma forma obrigatória de regulação política que ele tem de se fiar, afinal de contas, no poder militar dos Estados Unidos.
Ninguém mais é capaz de garantir o livre trânsito do capital, apesar de crises sociais e políticas; ninguém mais é capaz de assegurar as reservas estratégicas de matéria-prima (principalmente o petróleo no Oriente Médio) para o Ocidente; ninguém mais pode sobrepor-se a regimes como o de Saddam Hussein ou pacificar conflitos como o da Iugoslávia, no interesse de todo o sistema capitalista. Quanto mais avança a crise global, mais os Estados Unidos se tornam o ditador militar do mundo.
Os europeus não possuem nem o poderio militar nem uma vontade política uniforme para poder questionar a hegemonia dos Estados Unidos. Por isso, o euro não poderá ameaçar mais que o atual marco alemão o papel internacional do dólar; de fato, a função de moeda-guia (sobretudo nessa situação de hoje) prende-se não a uma relativa supremacia econômica, mas a uma absoluta força militar. Que esses dois parâmetros não estejam mais de acordo é uma prova da instabilidade do sistema global, mas isso não muda em nada a posição hegemônica do dólar. Os europeus, além do mais, não carecem somente do poderio militar ou da capacidade de decisão na política externa; por trás do euro não há nem mesmo uma unidade estatal! O projeto apresenta o paradoxo de um banco central que tem de se reportar a onze instâncias diversas de soberania política. Para pôr fim aos problemas institucionais que inevitavelmente surgirão não foi elaborada, até agora, nenhuma solução. Assim, a representação internacional do euro está dividida: de um lado, um banco central que paira no ar; de outro, os membros cindidos em Estados nacionais.
Em vez de fazer concorrência ao dólar como "moeda mundial", o euro talvez tenha antes de se bater por sua própria existência. A nova moeda, com parcialidade extremada, tende para os interesses dos "global players" corporações, bancos, empresas de seguro. Isso implica aniquilar os interesses tanto dos assalariados quanto do pequeno empresariado, devastar regiões econômicas inteiras e acelerar drasticamente a degradação social. Nos países-membros mais importantes há, em razão disso, um veemente repúdio ao projeto do euro. Na França, a resistência vem sobretudo da intelectualidade de esquerda, de forte tendência keynesiana, e dos sindicatos. Na Alemanha, a crítica é formulada principalmente por pequenos empresários e por forças políticas ou publicistas; mais de cem professores de economia, num manifesto público, advertiram sobre as consequências negativas da união monetária, e o "Effecten-Spiegel", a maior revista de Bolsa européia, grita em página inteira contra o projeto da unificação.
Com o advento das consequências negativas, as forças centrífugas no interior dos países-membros terão livre curso. É de se prever que os governos nacionais, sob incriminações mútuas, acabarão por inflacionar o euro ou serão confrontados com provações sociais e políticas. Nos dois casos, o resultado será o mesmo: a fuga dos investimentos externos em relação ao euro. Isso não serviria nem mesmo aos Estados Unidos, pois um abalo econômico mundial causado pelo colapso do euro levaria de roldão também a potência mundial. Os Estados Unidos acham-se, assim, numa situação paradoxal: têm de desejar que o euro funcione e, ao mesmo tempo, que não funcione. A política, portanto, com o euro, não reconquistou a iniciativa em face do sistema autonomizado da economia, mas, pelo contrário, afundou-se ainda mais na lama. É até mesmo provável que, nos próximos dois anos, a crise asiática e a crise do euro mesclem-se numa crise universal do sistema financeiro e monetário. 1998


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