A
HORA DA VERDADE
Contornos
de um programa social de emergência após as eleições federais
Uma ordem social nunca expira antes de ter consumido as últimas reservas de optimismo oficial. Embora a crise seja agora geralmente considerada "histórica", continua a ser tida como uma mera crise cíclica, que em breve poderá ser vencida. É este cenário que apresenta também o Banco Central Europeu (BCE), que espera uma recuperação a partir de meados de 2010, embora Trichet, Presidente do BCE, tenha sublinhado que não se deveria "teimar em previsões”. O optimismo, de facto, tem pés de barro: baseia-se unicamente na esperança de que os programas nacionais de apoio à conjuntura desencadeiem um novo crescimento auto-sustentado. Mas é muito mais provável que a reacção em cadeia global da crise só agora tenha começado. Especialmente o fim do circuito de deficit do Pacífico, entre os E.U.A. e a Ásia, ainda não se repercutiu plenamente na economia mundial. Se os programas nacionais de apoio à conjuntura não fizerem arrancar nada, mas tiverem de tapar buracos cada vez maiores por um tempo indeterminado, tanto mais amarga será a hora da verdade. O capitalismo ainda será financiável? Tornou-se possível o paradoxal fracasso desta sociedade segundo os seus próprios critérios.
Mesmo na melhor hipótese, de passagem da queda para a estagnação no prazo de um ano, as consequências sociais terão de ser processadas e pagas. Todos sabem que as estatísticas do desemprego são manipuladas. Actualmente, fica fora das estatísticas na RFA quem como desempregado tenha sido abrangido por medidas de apoio à reconversão profissional, quem seja acompanhado por agências de mediação comercial, ou simplesmente tenha sido registado como doente. Os 3,4 milhões de desempregados estatisticamente registados ascendem realmente a cinco ou seis milhões. Mesmo que a queda da conjuntura não se agrave ainda mais, esperam-se pelo menos cinco milhões de desempregados para meados de 2010 pelos métodos de contagem actuais, ou seja, em termos reais, mais de sete milhões. Tal como não se pode pentear um careca, também aqui não há manipulação possível. Um aumento do desemprego assim tão rápido abala as bases da segurança social já combalidas. A quebra de receitas para subsídios de desemprego, pensões de reforma e seguros de saúde nos próximos meses ameaça fazer explodir todos os limites do deficit. Também isto é “histórico”.
Se os vários pacotes de salvamento e operações de socorro, bem como os programas de apoio à conjuntura, provavelmente ainda insuficientes, já se repercutem negativamente nas contas, as quebras de receitas nos cofres da segurança social arrastarão o deficit numa avalanche, cujas dimensões ultrapassarão de longe os custos, ainda não pagos, da reunificação alemã. Em contraste com esses tempos da conjuntura das bolhas financeiras, agora a quebra das receitas fiscais acontece ao mesmo tempo que os custos da crise explodem; também esta quebra está em grande parte ainda por vir. O “travão ao endividamento” ancorado na Lei Fundamental, que em breve será aprovado pela Câmara Alta do Parlamento Federal, não passa de uma fantasia de política financeira, que já pressupõe ingenuamente o sucesso das actuais medidas de administração da crise. Mas é também um sinal para a posterior progressão da catástrofe. Na classe política, persiste de momento a unidade em torno de que a emissão monetária só possa ser aplicada na medida em que de algum modo seja a possível, sem ruptura sistémica, dominar a inflação, como consequência inevitável da estatização da crise. Portanto, está programado um dramático agravamento da administração social de emergência, para adiar o colapso das finanças públicas. A hora da verdade, porém, só soará após as eleições do Outono; e até lá é uma corrida contra o tempo de sondagens eleitorais.
O programa de emergência que aí vem já estará certamente a ser cerzido nas burocracias ministeriais sob a chancela de "muito secreto". Os contornos são fáceis de adivinhar. Basta fazer uma projecção das medidas até aqui adoptadas para a nova dimensão da crise. O primeiro cenário poderia consistir num aumento drástico do IVA, sem excepções; talvez numa acção concertada dos governos à escala europeia. Este é o método menos ruidoso de uma pressão sobre os rendimentos inferiores, ainda que só com isso as finanças não sejam saneáveis e a conjuntura interna continue paralisada. Mas trata-se apenas de tácticas dilatórias, para ganhar tempo, que têm de se mover em contradições. O segundo cenário poderia consistir num drástico corte conjunto de todas as transferências sociais, para aliviar os cofres da segurança social e manter os subsídios estatais num quadro que possa de algum modo ser gerido. Ou seja, redução das pensões, do subsídio de desemprego, do rendimento mínimo e (muito mais drasticamente do que até aqui) do serviço público de saúde. Com ambos os cenários, que são complementares, será redefinido o mínimo de subsistência para baixo, num grau nunca antes imaginável.
O protesto que se espera poderá não ser abafado apenas pelo aparelho da violência, não obstante este estar pronto, como último recurso. Há necessidade de uma legitimação ideológica, com cuja ajuda possam ser traçadas novas linhas de diferenciação social na sequência das orgias de cortes, pelo menos para manter em equilíbrio a classe média empobrecida. Assim pode pensar-se, em função de um “imperativo de diferença”, em reduzir um pouco menos o subsídio de desemprego do que o rendimento mínimo e simultaneamente prolongá-lo algum tempo. Do mesmo modo, as pensões que com a redução caíssem abaixo de um montante mínimo poderiam ser deslocadas para o rendimento mínimo, por sua vez revisto em baixa. Depois da fusão do subsídio de desemprego com o rendimento mínimo seria esse o último passo para uma criar uma camada unificada de párias, como a mais baixa categoria social, que será colocada ao nível dos sem abrigo, sendo tais condições precárias já meio caminho andado para a manter razoavelmente administrável.
O
novo "socialismo financeiro" poderia então ligar-se da melhor maneira
a um novo socialismo de sopa dos pobres, que impedisse os párias sem nada de
seu de morrer à fome e, quanto ao resto, os entregasse aos cuidados não
remunerados das boas pessoas que ainda restam. O programa de emergência será
provavelmente vendido em campanhas profissionais, como uma espécie de
solidariedade social para catástrofes de natureza social. Tomar tais condições
como fatalidade do destino aceitável, no entanto, pressupõe a concorrência
entre a pobreza e a miséria. Quem por enquanto apenas se tornou pobre deve ter
de dizer com o olho na nova camada de Lázaros: "A coisa para mim ainda não
está assim tão mal, nem nunca chegarei tão longe”. A questão é saber se o
programa de emergência do próximo governo ainda tem margem suficiente para
cavalgar a crise das finanças públicas, no melhor dos casos inevitável, e
esperar por melhores tempos. Isto também é válido para a parte da classe média
empobrecida, que espera poder aguentar temporariamente com a poupança e as
heranças. Se a crise for realmente mais profunda do que até agora se quis
acreditar, essas reservas em breve se esgotarão. A segunda grande questão,
naturalmente, é saber em que grau o masoquismo social dos indigentes objectos
da administração de emergência, na Alemanha e na Europa, se vai deixar
exaurir sem resistência maciça. Também a este respeito no próximo ano soará
a hora da verdade.
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