Líderes social-democratas da Europa valem-se de um populismo marqueteiro e representam a derrocada histórica da política
Ditadores democráticos
ROBERT KURZ
Fevereiro de 1999
É como se o fim do "século social-democrata" (Ralf
Dahrendorf) tivesse sido proclamado antes da hora. Será que o
socialismo moderado vive uma segunda primavera no limiar do
sistema produtor de mercadorias? Quase 20 anos depois do início
da revolução neoliberal capitaneada por Ronald Reagan, antigo
ator de Hollywood, e dez anos depois do suposto triunfo
derradeiro da filosofia vulgar do mercado radical, o
"turbocapitalismo" (Edward Luttwak) caiu mundialmente
em descrédito. Até mesmo o financista norte-americano George
Soros, um estrategista de mão-cheia no cassino dos mercados
globais, expõe novamente à execração pública o
fundamentalismo do mercado liberal.
A Europa acompanha desde meados dos anos 90 uma ressurreição
política dos socialistas. Em abril de 1996, pela primeira vez
depois da Segunda Guerra Mundial, a esquerda assumiu o poder na
Itália sob a forma da "Aliança Oliveira". De lá para
cá, ela logrou assentar no trono da política (imaginem só) um
ex-comunista, Massimo D'Alema. Em maio de 1997, o "New
Labour" de Tony Blair levou de vencida os conservadores da
"dama de ferro" Margaret Thatcher, de quem um líder
sindical dissera certa vez que ela tinha o hábito de
"caminhar sobre cadáveres com seu salto agulha".
Poucas semanas mais tarde, com a vitória nas urnas do socialismo
francês, Lionel Jospin tornou-se primeiro-ministro. Em outubro
de 1998, por fim, a própria coalizão conservadora e liberal do
chanceler alemão Helmut Kohl foi desalojada para dar lugar a uma
coalizão "verde-vermelha", com o social-democrata
Gerhard Schroeder à frente.
Fecha-se assim, num círculo perfeito, a campanha da esquerda
pela Europa. Pelo sufrágio ela obteve a hegemonia nos principais
países europeus. Já se fala até de um "retorno da
economia política". É espantoso o número de pessoas que
nutrem a esperança de que os piores abusos da
desregulamentação neoliberal possam ser corrigidos pelo primado
da política ressurrecta.
De outro lado, os liberais encarniçados e sua ideologia
linha-dura praguejam sobre a "insurgência dos freios
políticos", como exprimiu-se a revista alemã
"Wirtschaftswoche", seguindo à risca o seu radicalismo
de mercado. E em tablóides conservadores britânicos de vasta
circulação, como o "Sun", o ministro das Finanças
alemão Oskar Lafontaine já foi pintado de espectro vermelho da
distribuição keynesiana e do dirigismo global do Estado.
Tamanha viravolta nos faz esfregar os olhos: os antigos campos
políticos e as antigas frentes do conflito social na sociedade
burguesa parecem reconstituídos, como se não tivesse havido uma
solução de continuidade, uma ruptura de época.
Se fixarmos melhor a vista, porém, ganha nitidez uma imagem bem
diversa por trás do véu ideológico. É verdade que a política
neoliberal de desregulamentação e de oferta fracassou na mesma
medida que, outrora, a política keynesiana de regulamentação e
demanda. O problema, porém, é que a economia burguesa moderna
não vislumbrou uma saída. Ao que tudo leva a crer, a situação
do sistema de coordenadas global parece ter chegado a um impasse,
ainda que a ciência e a política oficiais não queiram
admiti-lo. Não pode haver, simplesmente, um retorno do que já
foi sepultado.
O Novo Trabalhismo e os vermelhos-verdes sabem tão bem quanto os
seus colegas franceses e italianos que o "deficit
spending" não tem mais poder de fogo. Uma demanda
monetária crescente não pode mais ser conjurada pela mágica de
um crescente endividamento do Estado. Tal endividamento já
alcançou o seu zênite em todos os países, e a
internacionalização do capital monetário inviabilizou o
keynesianismo clássico, por sua própria natureza restrito à
economia nacional.
Também não existe, entretanto, a possibilidade de um novo
euro-keynesianismo, de feição supranacional. A União Européia
não é nem uma economia nacional ampliada e coerente nem um
Estado supranacional capaz de impor suas medidas,
caracterizando-se antes por uma queda constante da produtividade
e da força de capital, do nível de emprego e do padrão de
vida, assim como por formas políticas e jurídicas divergentes.
O teto da moeda comum foi fixado no interesse e sob a pressão
dos cartéis transnacionais num patamar ilusório. Inevitável,
portanto, que o saldo seja o "dumping" recíproco entre
as regiões, uma "guerra de posições" no interior da
Europa. Os expurgos sociais e econômicos a ser provocados pelo
euro podem levar somente a restrições ainda mais agudas, em vez
de desaguar numa demanda keynesiana milagrosamente estendida às
massas.
Não há, igualmente, fundamento algum para uma nova primavera no
mundo capitalista. Por trás da fachada keynesiana e sob a
aparência de uma reciclagem nostálgica dos anos 70, os novos
governos europeus de esquerda não puderam senão tingir com um
rosa desbotado a dinâmica desenfreada da política de oferta
neoliberal e a decorrente crise instalada na sociedade. Não
admira, portanto, que o lema adotado por Tony Blair seja
"não fazer diferente, mas fazer melhor" do que os
conservadores do thatcherismo. Na Alemanha, Gerhard Schroeder
apressou-se em fazer eco a essa palavra de ordem. E não é por
acaso que Bodo Hombach, chefe de gabinete do primeiro-ministro
Schroeder, tenha inventado a fórmula de uma "política de
oferta de esquerda". Isso significa, quando muito, uma nova
concepção social-democrata que não se opõe ao projeto
neoliberal para conter a crise, mas somente o aparelha de forma
diversa e o remata com outros traços ideológicos.
Essa tendência não se verifica apenas nas condições objetivas
da economia capitalista global, mas lança também profundas
raízes na ideologia social-democrata. A política de reformas
sociais de esquerda sempre se limitou aos períodos de bonança.
Para poder implementar a política de demanda keynesiana na
época de prosperidade, a esquerda foi obrigada, todavia, a
abdicar dos últimos vestígios de uma crítica radical ao
sistema. Na crise, logicamente, sua conduta é pautada pelo
imperativo de manter a todo custo a ordem reinante das coisas.
O pretenso pragmatismo dessa esquerda há muito desfibrada, que
hoje só quer ser o "novo centro", elege na verdade o
dogmatismo das chamadas leis de mercado como a única regra de
ouro. A existência da forma social dominante não é avaliada
segundo sua capacidade funcional de promover o bem-estar das
pessoas, mas justamente o contrário, o bem-estar e a existência
social das pessoas são avaliados em sua compatibilidade com o
fluxo de capital. Se os novos governos de esquerda prometeram um
aumento do poder de compra das massas, essa dádiva tão esperada
viu-se condicionada a priori por uma "reserva
financeira". Com essa fórmula genérica, o keynesianismo
desmoralizado em seu conteúdo (mas de volta ao poder) concedeu a
si próprio o atestado de boa conduta e a anistia geral para toda
crueldade social imaginável no estilo do neoliberalismo.
Por trás do conceito do pragmatismo da nova esquerda não se
oculta nada mais do que o vazio hiante de uma falta de conceitos
que, de maneira tão febril quanto eclética, procura mesclar
elementos neoliberais e keynesianos. Não há mais idéias
luminosas, não há mais entusiasmo arrebatador. Do tão
propalado "enlevo político" nada mais restou, após
todas as vitórias eleitorais da esquerda, senão a vivacidade
própria a um necrotério. Os programas políticos, inclusive nos
partidos social-democratas, ex-comunistas e verdes, foram
substituídos há muito por uma "política de
encenação" sem conteúdo, incapaz de mobilizar interesses
sociais, construída apenas sobre a figura proeminente de
estrelas da mídia. Também nesse sentido os partidos de esquerda
não divergem mais dos de direita.
A antiga discussão cultural intrapartidária, característica da
esquerda, foi igualmente extinta, pois agora já não há mais
nada de substancial a discutir. Tal como Halder na Áustria ou
Berlusconi na Itália, Blair na Inglaterra e Schroeder ou Fischer
na Alemanha representam o novo tipo do "líder"
democrático da mídia, com a única diferença que aqueles são
de direita, estes de esquerda. Tais "ditadores
democráticos" mantêm seus partidos sob as garras de um
populismo marqueteiro. Eles não personificam, porém, uma
ditadura política modernizadora no velho estilo, sendo eles
próprios meras criaturas da mídia comercial, simples marionetes
dos mercados financeiros que há tempos se tornaram autônomos. O
que eles representam é a derrocada histórica da política em
geral.
Existe, é claro, um conteúdo social da nova política
governamental de esquerda, que no entanto não resulta de algum
"programa político" de diretrizes estritas, mas apenas
das injunções cegas da dinâmica capitalista globalizada. O
conteúdo do pragmatismo pós-neoliberal de D'Alema, Jospin e
Schroeder é o apartheid social que hoje ingressa na própria
Europa continental, depois de ter feito longa carreira no
Terceiro Mundo e nos países anglo-saxões, no caso britânico,
reformulado pelo Novo Trabalhismo. Sob o pretexto de sua defesa
ou de sua renovação "realista", as redes sociais e
estatais são liquidadas com empenho tanto maior.
E são molas absolutamente keynesianas que dão impulso a essa
"política de oferta de esquerda". Na verdade, a
própria política original de demanda keynesiana dos anos 70
não era definida pelo bem-estar social comum, mas por uma
combinação de projetos estatais com uma burocracia social
autoritária. De um lado, os novos governos de esquerda forçam a
construção subvencionada de pirâmides no âmbito, por exemplo,
da indústria espacial e de armamentos, à qual, aliás, as
administrações neoliberais nunca foram avessas; essa forma de
política de demanda é guarnecida pelo favorecimento de um grupo
restrito de empregados privilegiados, setores de alta tecnologia
e cartéis transnacionais. De outro lado, para grande parcela da
sociedade trata-se da implantação de uma política de arrocho
salarial, evitada até agora pelo Estado social europeu. Nesse
sentido, o aspecto keynesiano é puro verniz, pois a (parcial)
subvenção do arrocho salarial pelo Estado é acompanhada de uma
drástica redução das receitas e das medidas de amparo social.
Entre os feitos heróicos de Tony Blair estão por exemplo a
reintrodução das taxas de ensino público e a abreviação do
auxílio social para mães solteiras, de acordo com o exemplo da
administração Clinton nos Estados Unidos, também ela tida como
relativamente "esquerdizante". Além disso, o Novo
Trabalhismo oferece aos jovens desempregados a escolha entre
trabalho "beneficente" em troca de salários de fome e
o desconto sumário do seguro-desemprego.
Os descalabros sociais da era Thatcher são suplantados com
orgulho. Já na Alemanha as "medidas de criação de
emprego" visam não apenas a manter os desempregados
terapeuticamente ocupados no vaivém absurdo das repartições
públicas, mas servem também como suporte para a tendência de
eliminar o "elemento histórico e moral no valor da força
de trabalho" (Marx) e rebaixar as pretensões de uma classe
de párias serviçais a um mínimo de sobrevivência, se
possível, em jornadas de trabalho em turnos ininterruptos de
revezamento. Só assim poderá Oskar Lafontaine, o ministro das
Finanças alemão, alcançar o objetivo supostamente sublime de
reduzir em um milhão o número de desempregados.
Essa política neo-esquerdista do apartheid social pretende
claramente obter uma espécie de estofo legitimador explorando de
forma ideológica a história da esquerda. É com tal propósito
que se instrumentaliza de maneira francamente pérfida o antigo
lema da "democratização". Tal como já é praticado
nas escolas públicas e em algumas instituições sociais, os
envolvidos são chamados a "gerenciar por si próprios"
a drástica redução de seus recursos. Essa
"democratização da crise" e esse
"autogerenciamento da pobreza", vistos em perspectiva,
procuram utilizar de forma política a tendência a deslocar as
contradições sistêmicas do capitalismo para o interior dos
indivíduos. Isso é tudo o que restou, literalmente, dos antigos
sonhos de emancipação social da esquerda.
Embora a perversidade desse propósito possa ser facilmente
constatada, entre os nostálgicos socialistas mais pressurosos
estão novamente os grandes intelectuais acadêmicos de esquerda,
que por um instante quase saíram fora de si de tão irritados.
Agora, subitamente, eles agem como se o antigo universo da
esquerda estivesse de novo em ordem. Na Inglaterra, o sociólogo
Anthony Giddens deixou-se guindar a estrela intelectual do Novo
Trabalhismo. E na Alemanha um representante de 68, Oskar Negt,
escreveu um livro para justificar a social-democracia de
Schroeder. Em toda a Europa, a intelectualidade acadêmica de
esquerda encontra-se inesperadamente "próxima ao
governo", embora a política governamental conduza ao exato
contrário de tudo aquilo que essa intelectualidade sonhou um
dia.
Uma das poucas exceções é o sociólogo francês Pierre
Bourdieu, que, com grande integridade pessoal e observações
argutas, oferece resistência polêmica à cumplicidade
intelectual com as políticas de esquerda. Mas o próprio
Bourdieu não reivindica nada mais do que o bom e velho Estado
social europeu, em detrimento da "invasão neoliberal";
no fundo, ele não faz mais que recusar colaboração a um mero
simulacro desse Estado. Contra a destruição da
"civilização (keynesiana) do serviço público", ele
deseja mobilizar mais uma vez a ênfase rousseauniana do cidadão
do burgo contra o puro burguês, ou seja, mobilizar a cidadania
moderna como direito social "republicano". Isso pode
ser muito plausível na França; mas Bourdieu é incapaz de
erguer um único argumento convincente para explicar como
surgirá de novo, no solo do sistema global produtor de
mercadorias, um campo de ação para essa escolha republicana.
Com isso tornam-se evidentes, com embaraçosa clareza, as tristes
limitações intelectuais da intelectualidade acadêmica de
esquerda. Embora o socialismo de Estado, inclusive em sua
comedida versão keynesiana, nunca tenha sido um passo rumo à
emancipação, tal intelectualidade regressa por instinto à
ideologia da política social de Estado e se recusa a tomar em
conhecimento seu malogro histórico. Com um temor quase
supersticioso, ela arrepia-se toda só de pensar na alternativa
de uma "associação livre", para além do mercado e do
Estado, e se recusa a dar uma passo adiante, rumo ao
desconhecido. Essa esquerda não é mais do que o seu próprio
espectro.