QUEM
É QUE É TOTALITÁRIO?
Os abismos
de um conceito ideológico para todo o serviço
O
termo "totalitarismo" tornou-se uma espécie de bicho-papão para a
filosofia política ocidental. Totalitário é sempre aquilo que não passa por
economia de mercado ou democracia: a pretensão exclusiva de um partido ao
controle político; um aparato burocrático centralista; a repressão a qualquer
movimento de oposição; um sistema de poder ilimitado, que galvaniza todas as
esferas da vida e penetra até mesmo na intimidade. A democracia, ao contrário,
assim dizem, traz a todos a felicidade sem ferir idiossincrasias: ela é
sequiosa de oposição; o pluralismo das idéias e dos projetos de vida é
respeitado; a esfera privada é tabu para o poder social, permitindo-se que as
pessoas sejam diferentes em paz. A história do século 20, dessa maneira, pode
ser entendida como um conflito básico entre a democracia liberal e a ditadura
totalitária. Ao menos isso é o que consta dos manuais ocidentais. Dessa
perspectiva, as ditaduras de Hitler e Stálin no passado foram totalitárias, e
hoje o são talvez os "Estados religiosos" do fundamentalismo islâmico.
Seja como for, o totalitarismo é tido como um pensamento alheio e antagônico
à liberdade ocidental, um ideário cuja existência sombria pode ser a todo
momento invocada como perigo iminente.
Salta
à vista que, nessa "teoria do totalitarismo", das duas esferas
polares da sociedade moderna somente a esfera político-estatal é mencionada,
enquanto a econômica permanece de todo ofuscada. Nesse sentido, só pode
existir um Estado totalitário, mas aparentemente não uma economia totalitária,
um modo de produção totalitário, um mercado totalitário. O axioma dessa
consideração unilateral é que apenas o Estado e a política integram o âmbito
social, enquanto a economia – como já postulavam, no século 18, os
fisiocratas e Adam Smith – pertence supostamente à "natureza" e,
com isso, cai fora da teoria social em sentido estrito. Ora, "leis
naturais" não podem ser totalitárias nem ameaçar a liberdade; é preciso
aceitá-las como ao tempo. Com esse truque grosseiro o liberalismo buscou desde
o princípio tornar o centro econômico da modernidade inacessível à reflexão
crítica, silenciando, ao mesmo tempo, o fato de que as ditaduras totalitárias
do período entre guerras possuíam ao menos uma coisa em comum com a
democracia: as formas econômicas do moderno sistema produtor de mercadorias.
O
conceito de totalidade é oriundo da filosofia do século 19. Em Hegel,
sobretudo, ele se vincula à tentativa de subsumir o mundo num único
"conceito total", concebendo-o, portanto, em sua plenitude. Não é
difícil reconhecer o pano de fundo social desse pensamento no fato de o ser
humano e a natureza deverem se submeter "totalmente" à máquina
social capitalista, a fim de transformar idealmente cada átomo, cada idéia e
cada sentimento em material do processo de valorização. Na verdade é a própria
lógica econômica do capitalismo, portanto, que suscita a vocação totalitária;
e, com a transfiguração ideológica dessa vocação em "lei
natural", o liberalismo busca apenas camuflar seu próprio âmago
ditatorial. Dizia Henry Ford que os compradores de seu "Modelo T"
poderiam adquiri-lo em qualquer cor que desejassem, contanto que ela fosse
preta; do mesmo modo, o pluralismo liberal dá crédito a todas as idéias e a
todos os objetos, desde que possam ser comercializados.
Até
meados do século 20, esse totalitarismo econômico esteve longe da perfeição.
Ainda havia elementos dos velhos modos de produção agrários, familiares e
cooperativos, como também esferas culturais da vida que se furtavam ao espaço-tempo
abstrato do capitalismo. Para tornar de todo os indivíduos material humano da máquina
capitalista era necessário primeiro uma mobilização política das massas: a
esfera política ganhou nessa época um momento "de excesso", servindo
como uma espécie de esquentador que se carregava, por assim dizer, a fim de pôr
em funcionamento o totalitarismo econômico.
Nesse
sentido, agiu como poderoso propulsor a implementação da política de massas
por intermédio da mobilização militar. Foi nas trincheiras da Primeira Guerra
Mundial que se criou o protótipo democrático. Em seu famoso romance de guerra
"A Oeste Nada de Novo", escreve o autor alemão Erich Maria Remarque:
"As diferenças que a educação e a cultura criaram estão quase apagadas
e mal são reconhecidas. É como se antes tivéssemos sido moedas de diversos países;
passamos por um processo de fundição e agora todos têm a mesma
cunhagem". A igualdade democrática perante a moeda, que até então só
fora posta em prática de maneira insatisfatória, não pôde ser preparada senão
na forma de uma igualdade da morte e da mutilação nos "moinhos de
sangue" da Guerra Mundial. Essa forma arquetípica de democracia no século
20 brindou finalmente os indivíduos com a igualdade de exemplares isolados.
Sob
determinadas condições históricas, como na Rússia e na Alemanha, o avanço
desse processo social assumiu a forma do movimento totalitário de massas e da
ditadura; mas também nos Estados Unidos a mobilização do "New Deal"
foi acompanhada de paradas militares, cortejos de mísseis e shows
de propaganda política. Tratava-se de abarcar a sociedade "como um
todo" e de lhe "dar uma sacudida", para muito além dos objetivos
políticos e militares imediatos. O escritor alemão Ernst Jünger cunhou para
tanto, em 1934, o conceito de "mobilização total". A "mobilização
parcial" prendia-se à "essência da monarquia", que, como dizia
ele, "ultrapassa seus limites à medida que é obrigada a participar nas
formas abstratas do espírito, do dinheiro, do "povo", em suma, das
forças da crescente democracia, no contexto armamentista". Jünger
divisava por isso na democracia ocidental sobretudo uma forma mais elevada de
exaurir todas as reservas sociais: "Foi assim que a mobilização nos
Estados Unidos, um país de constituição muito democrática, pôde ser
efetuada com medidas de uma virulência que teriam sido impossíveis no Estado
militar prussiano (...). Já nessa guerra não se tratava de saber se um Estado
era militarizado ou não, mas de saber se era capaz da mobilização
total".
Que
esse processo transcendia em muito os propósitos puramente militares não
escapou também ao general alemão Ernst Ludendorff, que em 1935 escreveu num
tratado sobre a "guerra total": "A guerra total, que não é
assunto apenas das forças beligerantes, mas fala de perto também à vida e à
alma (!) de cada membro isolado dos povos em pé de guerra, aqui teve seu início
(...). Desde então a guerra total ganhou em profundidade com a melhoria e a
multiplicação das aeronaves, das bombas de toda espécie, mas também das
folhas volantes e dos demais materiais de propaganda despejados sobre o povo, e
com a melhoria e a multiplicação da aparelhagem de radiodifusão voltada
contra o inimigo".
Mas,
se o propósito secreto dessa "mobilização total" consistia, em última
análise, em pôr em prática a vocação totalitária da economia capitalista,
então o "movimento" político-militar na primeira metade do século
20 pode ser facilmente decifrado como um estágio preparatório para desencadear
o "mercado total", coisa que se deu a partir de 1950. Nas democracias
comerciais do pós-guerra, as "bombas de toda espécie, as folhas volantes
e os demais materiais de propaganda" de Ludendorff transformaram-se na
metralha giratória da publicidade e na tagarelice da mídia, que como apelo
visual e acústico preenche todo o espaço público, assumindo traços
francamente terroristas: eis que ninguém é capaz de esquivar-se a esse
lero-lero infindo e a sua despudorada impertinência. O que aqui "volta-se
contra o inimigo" (e o "inimigo" são tudo e todos na guerra
permanente pela clientela, por postos de trabalho, carreiras, prestígio etc.
num mundo capitalizado até a medula) excede em todos os aspectos os primórdios
militares da "guerra total" entre 1914 e 1945.
Lemos
assim o conceito de totalitarismo a contrapelo da ideologia legitimadora
ocidental. Isso é tanto mais evidente num clássico da "teoria do
totalitarismo", o livro da filósofa norte-americana Hannah Arendt sobre as
"Origens do Totalitarismo". Nele podemos ler: "Nada é mais
característico dos movimentos totalitários em geral, e da natureza da glória
de seus líderes, do que a espantosa rapidez com que eles podem ser esquecidos e
a espantosa facilidade com que podem ser substituídos (...). Essa instabilidade
tem certamente algo a ver (...) com a avidez de mobilidade dos movimentos
totalitários, que só conseguem subsistir enquanto se mantiverem em movimento e
puserem em movimento tudo a seu redor (...); é justamente essa capacidade
extraordinária de adaptação e essa falta de continuidade que constituem sem dúvida
seu marco distintivo, se é que existe mesmo algo como um caráter totalitário
ou uma mentalidade totalitária…".
Hannah
Arendt tem em vista aqui somente o lado político-estatal do totalitarismo, isto
é, as ditaduras do período entre guerras. Mas só na aparência a massa anônima,
mobilizada política e militarmente pelas ditaduras ou pelos regimes de transição
democráticos, opõe-se ao culto comercial do indivíduo igualmente anônimo, do
"consumidor" das democracias do pós-guerra. Na verdade, a primeira, a
massa mobilizada nas paradas militares, pode ser entendida como um embrião do
segundo, o indivíduo como consumidor isolado. O indivíduo democrático
"livre" do pós-guerra nada mais é senão o "exemplar"
originalmente moldado e regulado pela máquina político-militar, exemplar este
que somente foi libertado para se ajustar à marcha comercial da máquina
capitalista no mundo.
Atendo-se
às ditaduras totalitárias de Estado (algo compreensível em 1951), Hannah
Arendt ignora completamente quanto suas formulações sobre a essência do
totalitarismo aplicam-se com exatidão ao caráter de um mercado cada vez mais
totalitário e, portanto, à própria democracia ocidental. Que outro enunciado,
senão a "espantosa rapidez do esquecimento", caracterizaria melhor as
conjunturas capitalistas, que não se caracterizam mais como evolução humana,
sendo antes um processo de conteúdos indiferentes, cujo combustível é o
dinheiro? E "facilidade da substituição", que descrição seria mais
precisa da personalidade rebaixada a objeto do ser humano universalmente
intercambiável? E o que poderia ser mais "ávido de mobilidade" do
que o próprio capitalismo, o qual, na condição de sistema econômico do tipo
"bola de neve", de fato "só consegue subsistir enquanto se
mantiver em movimento e puser em movimento tudo a seu redor"? Onde a
"extraordinária capacidade de adaptação" seria uma virtude mais
excelsa senão nas economias democráticas de mercado, da forma como ela voltou
a ser apregoada hoje pelos paladinos da "adaptação permanente" a uma
cega "mudança estrutural"? E o que, finalmente, poderia representar
uma "falta de continuidade" mais radical do que o mercado universal
sem história, que realiza seu movimento sempre idêntico numa espécie de
nirvana atemporal?
Essa
correspondência torna-se ainda mais nítida quando Hannah Arendt tenta esmiuçar
a "lei de movimento" do totalitarismo: "Por trás da pretensão
de dominar o mundo, típica de todos os movimentos totalitários, existe sempre
a pretensão de criar um ser humano que corporifique ativamente as leis que, de
outro modo, ele só suportaria passivamente, cheio de resistência e jamais em
sua plenitude... A paz sepulcral que, segundo a teoria clássica, a tirania
instala no país... permanece tão vedada ao país de regime totalitário quanto
a paz em geral. É verdade que seus habitantes são despojados de toda ação
que nasce da livre espontaneidade; mas eles são mantidos em permanente
movimento como exponentes do gigantesco processo sobre-humano da natureza ou da
história, que passa zunindo por eles... O terror, nesse sentido, é como a
"lei" que não pode mais ser transgredida…".
O
que nessa passagem é denunciado, porém, como essência do totalitarismo nada
mais é do que a própria essência do liberalismo. Isso porque não foi ninguém
mais senão a nata da economia política burguesa e da filosofia iluminista que,
desde o princípio, fez sua a pretensão de executar nos homens "as leis da
natureza e da história". E é o capitalismo totalizado que, no espaço
social em que impera, despoja seus habitantes "de toda ação que nasce da
livre espontaneidade", uma vez que toda atividade nesse espaço é
axiomaticamente modelada pelo imperativo econômico. Bem mais implacável do que
as ditaduras dos Estados totalitários, os indivíduos economizados pelo livre
mercado mundial são "mantidos em permanente movimento como exponentes do
gigantesco processo sobre-humano" de uma cega dinâmica de crescimento
marcada por falhas estruturais, dinâmica essa que "passa zunindo por
eles" e é proclamada pelos ideólogos neoliberais como "processo
objetivo da natureza e da história".
Na
verdade, estamos às voltas com uma patente continuidade da história
capitalista, na qual as ditaduras dos Estados totalitários e a "mobilização
total" das guerras mundiais não são um modelo fundamentalmente oposto,
antes representam um determinado continuum histórico e uma forma de imposição
da própria "economia de mercado" e da "democracia": a
sociedade como um todo foi posta em movimento acelerado em todos seus níveis e
esferas, a fim de poder suportar a acumulação acelerada e concentrada do
capital. No final do século 20, a transformação do totalitarismo capitalista
(que de Estado total passou a mercado total) conduziu a um inusitado
"terror da economia" -a uma "lei" que, como nos dizem
sarcasticamente, "não pode mais ser transgredida". E o controle
da realidade imposto pela mídia capitalista só pode falar
ininterruptamente de liberdade porque há muito deixamos "1984" para trás.
Original
Wer ist totalitär? em www.exit-online.org.
Publicado na Folha de São Paulo
de 22/08/99 com o título Totalitarismo
económico e tradução de José Marcos Macedo