NO FIO DA NAVALHA
Carta aberta às pessoas interessadas na EXIT! na passagem de ano 2009/2010
Imagina que é a crise económica mundial e ninguém vai nisso. Esta era uma espécie de senha sentida dos ignorantes unidos há um ano exactamente. "Hurra, ainda estamos vivos!", titulava a "Spiegel" doze meses depois. Uma maneira indirecta de conceder que a queda fora maior do que se tinha então admitido; mas também um grito de triunfo prematuro, porque novamente se julga ter escapado. Não é preciso ter muita imaginação, perspicácia e capacidade de previsão para perceber que a próxima onda-tsunami do terramoto económico global virá com certeza. Após a longa série de desastres financeiros de vários tipos desde a década de 1980, o processo de crise global da 3ª revolução industrial assumiu em 2008 uma nova qualidade, que tem suas formas próprias de evolução. Notável é o novo encurtamento do horizonte da percepção positivista. Os instrumentos "científicos" têm falhado e muito: "Navegamos à vista”, diz o novo Ministro das Finanças alemão, Schäuble. E um gestor de topo da Daimler foi autorizado a anunciar que as perspectivas de planeamento em política de modelos, marketing e estratégias de vendas encolheram de 12 anos para 12 meses.
Apesar de os mega-empréstimos estatais e a nova inundação forçada de dinheiro dos bancos centrais, após o rebentamento das bolhas financeiras, terem substituído apenas parcialmente a falta de substância de valorização real e terem travado o descalabro económico global quando muito para um crescimento de facto zero, especula-se sobre uma estratégia estatal de “saída” logo que tenha tido êxito a putativa “retoma” e os processos autónomos de mercado tenham gerado um novo crescimento. Essa expectativa é totalmente infundada. A propaganda do optimismo institucional, um ano depois do grande crash financeiro, agarra-se aos sucessivos dados trimestrais, cujas percentagens de crescimento se referem ao nível de partida após a queda e encobrem a real situação da valorização do capital global. Daí que exista também na ciência económica e entre os analistas financeiros uma fracção de pessimistas, que não é assim tão pequena, a qual naturalmente partilha os pressupostos burgueses fundamentais, mas regista fortes dúvidas empíricas em relação à gestão da crise alegadamente já bem sucedida. Assim, os cépticos burgueses revelam mais consciência da realidade do que uma determinada parte da esquerda, que recuperou depressa a confiança básica no capitalismo após o primeiro choque, exactamente como os estrategas oficiais do fim de alarme, e gostaria de acreditar que pode regressar à sua agenda habitual.
Na verdade, ou se corta o combustível às finanças públicas e o abandono do endividamento e da política monetária irresponsáveis dá início à próxima queda, ou, inversamente, a tentativa feita pelo Estado de continuar esta substituição da valorização real desencadeia tendências inflacionistas incontroláveis; o que é bem conhecido por todos, mesmo que ninguém queira saber. Isto é especialmente verdadeiro para a China, que em 2009 lançou uma ponte sobre o colapso da sua industrialização para exportação apoiada no investimento ocidental, através da construção financiada a crédito de novas capacidades industriais e de infra-estruturas. Esta expansão mecânica pressupõe que a conjuntura de deficit do Pacífico se reerga dentro de um ano, para que as capacidades adicionais não se transformem em investimentos ruinosos, provocando um crash financeiro especificamente chinês. Mas não se descortina donde poderá surgir, do outro lado do Pacífico, a correspondente nova capacidade de aquisição dos E. U. A. para a corrente de importação unilateral, uma vez que a sua alimentação com poder de compra sem substância obtido das bolhas financeiras está cada vez mais paralisada. É totalmente ilusório pensar que os chineses pudessem agora consumir eles próprios os seus produtos excedentes, ou mesmo absorver os do resto do mundo, como faziam antes os E.U.A. O poder de compra interno da China teve de permanecer estruturalmente muito aquém da capacidade de produção, tal como do outro lado a produção industrial própria dos E.U.A. teve de permanecer aquém do consumo. Essa foi a base de negócios para a interdependência recíproca da economia das bolhas financeiras e da conjuntura global de deficit, que não pode ser revertida no seu contrário por édito estatal.
Mesmo que a simulação da valorização real do capital, agora patrocinada pelo Estado, possa ser sustentada ainda mais algum tempo, ela não irá atingir os níveis observados antes do crash financeiro global, mas apenas gerir a estagnação. Portanto, é inevitável que as consequências sociais do crescimento extremamente reduzido após a primeira onda da nova crise cheguem também à Alemanha em tempo diferido; não apenas sob a forma de um forte aumento do desemprego em massa em 2010 e 2011, mas também como nova extensão do sector de baixos salários e como desmontagem social agravada pela administração de crise. Os planos de redução de impostos do governo preto-amarelo, determinados pela sua política clientelar, baseiam-se unicamente na crença no milagre de um panorama de crescimento auto-sustentado, situação em que tal política deveria ser financiada automaticamente. Quer essa política fiscal aventureira seja agora implementada, quer se desmorone na balbúrdia da coligação, em qualquer caso é de esperar que os serviços estaduais e municipais, o mais tardar depois das eleições regionais na Renânia do Norte-Vestefália, sejam dramaticamente reduzidos ou encarecidos, para esconder por algum tempo a crise crescente das finanças estatais. Devido à dimensão já atingida pela dívida pública, no entanto, as tradicionais medidas de poupança há muito deixaram de ser suficientes; para já não dizer que elas iriam estrangular ainda mais o esperado crescimento.
Em todo o mundo os Estados, de repente invocados de novo como deus ex machina, encontram-se perante o mesmo dilema, ainda que a situação de cada um nas relações de mercado global seja completamente diferente, tendo em conta a enorme diferença no nível histórico de acumulação. A reprodução económica e social do capital mundial está mesmo no fio da navalha e, no contexto de encadeamento global, nenhuma região do mundo está livre do ulterior desenvolvimento da crise.
A teoria radical da crise representada pelo contexto EXIT! vai acompanhar este desenvolvimento, como até agora, com análises e comentários; além disso, é importante levar a cabo projectos relevantes de teorização da crítica da economia política e de debate da teoria da crise. Porém, não se pode tratar apenas do limite interno objectivo do capital. Desde a sua fundação, o contexto EXIT! tem tentado suplantar algumas deficiências da antiga crítica do valor. Trata-se, por um lado, da relação entre a crítica radical das modernas formas de fetiche e a análise social. Esta última só pode ser denunciada como "sociologismo" se for jogada contra a crítica da forma. Inversamente, a crítica do contexto da forma basilar permanece pobremente abstracta, se não for mediada por uma análise concreta, quer das posições sociais constituídas pela relação de capital, quer do seu desenvolvimento histórico. A situação não é de modo nenhum que sejamos todos imediatamente iguais, perante o valor como perante a morte, e que o limite interno objectivo da valorização se tenha erguido frente a uma massa indiferenciada de átomos sociais completamente iguais. A individualidade geral e abstracta significa apenas um nível de relações e da sua reflexão; mas a dissociação sexual, a estratificação social no contexto funcional capitalista em processo e as exclusões permanentes de vários tipos apontam para outro nível não negligenciável, não menos relevante precisamente na situação agravada de crise e de decadência. Ambos os momentos devem ser considerados em conjunto, como aspectos diferentes da mesma realidade, em vez de fazê-los expressar interpretações superficialmente opostas e unilaterais.
Por outro lado, entretanto, os indivíduos abstractos na sua posição social específica, ou vice-versa, as diferentes posições sociais na sua individualidade abstracta, não executam apenas passivamente a dinâmica objectivada. Pelo contrário, em reacção a esta constituem-se simultaneamente focos de processos de digestão ideológica, pelos quais as formas de desenvolvimento social são activamente influenciadas. Nessa medida, a teoria crítica só pode consistir numa unidade de penetração conceptual da objectividade negativa do fetiche, análise económica do limite interno da crise, análise social das diferentes posições e crítica abrangente da ideologia. Só assim será possível aproximarmo-nos dum entendimento da "totalidade concreta". Este contexto, progressivamente trazido à baila desde há alguns anos pela crítica mais desenvolvida do valor e da dissociação, torna-se arrebatadoramente virulento no decurso da actual crise mundial e da sua percepção. Por isso, na elaboração teórica da EXIT!, além da crítica categorial e da teoria radical da crise, entrou-se na análise crítica não só das formas de consciência e dos paradigmas ideológicos autónomos, mas também das estruturas sociológicas da administração de crise e dos modos de ser e de pensar das chamadas novas classes médias.
O processo histórico de crescente socialização e cientificização da reprodução capitalista tem um conteúdo duplo. Por um lado, ocorre na 3ª revolução industrial um culminar, em que se derrete a substância produtiva do trabalho abstracto e é alcançado o limite interno histórico da valorização; com o resultado daquela economia de bolhas financeiras que vieram inflando por mais de duas décadas, economia que agora foi ao ar e está sendo temporariamente transferida para o crédito público. Por outro lado, entretanto, o mesmo processo já no período fordista (e em estágios iniciais desde o início do século XX) foi acompanhado em termos sociais por uma expansão igualmente maciça de novas e diversificadas classes médias. Essa expansão dos sectores de pesquisa e desenvolvimento, formação e educação, cultura e saúde, comunicações, administração e trabalho social, bem como do aparelho legal da juridificação, tornou-se objectivamente necessária; no entanto, tais sectores não geram, na sua maioria, qualquer valorização real, tendo de ser alimentados, pelo contrário, a partir desta (ou a partir do crédito, como antecipação de mais-valia futura). Estas áreas representam um grau de socialização que o capitalismo agora, na altura da 3ª revolução industrial, já não pode integrar na sua lógica de valorização. Mas os seus portadores estão tão submetidos às formas do trabalho abstracto e da individualidade abstracta como a massa remanescente de trabalho produtivo de capital e as novas classes inferiores caídas fora. Sua posição social de classe média não resulta de meios de produção próprios, mas do "capital humano" das elevadas qualificações académicas ou outras.
Mesmo antes do colapso da conjuntura económica mundial artificialmente alimentada, o dilema da falta de capacidade de financiamento dos "agregados de conhecimento" infra-estruturais já se tinha manifestado na tentativa de privatizar e economificar os sectores em causa, renegando notoriamente o seu carácter, a fim de forçar a sua exploração como potenciais de valorização directa. Esta reacção sistémica levou a processos de precarização, onde o capital humano qualificado foi sendo sucessivamente tão desvalorizado como a mercadoria força de trabalho no seu conjunto. Esta tendência agrava-se nas formas qualitativamente novas de desenvolvimento da crise. A auto-estilização culturalista da intelligentsia das tecnologias de comunicação e da análise de sistemas, e não só, como uma espécie de "boémia" descontraída, assume os traços desagradáveis de um declínio social real. Decisivo é como este processo é digerido na consciência. A teoria crítica vive do facto de que a experiência negativa pode levar fundamentalmente a consequências de crítica social radical. Ninguém é obrigado, na crise, a reduzir-se auto-afirmativamente à sua forma capitalista de existência, e a deixar o "capital cultural" de burguesia cultural, em todo o caso ilusório, cair logo abaixo das condições de precarização das posições sociais "inferiores", em vez de pôr fundamentalmente em questão a forma social dominante. No entanto, a gravidade da situação impulsiona as correspondentes ideologias de crise das novas classes médias ameaçadas de queda.
O pensamento do empreendimento científico conforme ao mercado, sugerindo cosmopolitismo com o seu inglês macarrónico e degradando ou asfixiando completamente qualquer reflexão conceptual, assume traços crassamente social-darwinistas e racistas, desde a China (onde o desemprego dos universitários aumenta sem cessar, apesar das taxas de crescimento subsidiado com os pacotes de estímulo económico na ordem dos 13 por cento do PIB) até à Europa. Os casos Sloterdijk, Bolz ou Sarrazin na Alemanha constituem apenas a ponta de um iceberg de ódio acumulado contra a teoria crítica. Esta auto-ilusão intelectual de uma ideologia de elite agarra-se à ideia economicamente insustentável de que a valorização desgastada do capital industrial poderia realmente ser substituída e ultrapassada por uma “valorização do conhecimento”, em que gostaria de preparar-se para uma auto-realização altamente remunerada, como nova classe suporte do capital com potenciais de “autonomia”, mediante a aceitação da pobreza em massa dos “outros”. A negação ingénua da crise e a dominação esperada da crise a favor de posições supostamente privilegiadas combinam com uma consciência clientelar que garantiu o sucesso eleitoral do FDP na Alemanha.
Este desejo de auto-afirmação burguesa dos adeptos precários da chamada "sociedade do conhecimento" com ânsia de reputação bonsai vai até bem dentro da ideologia do movimento e do resto do marxismo académico. Uma vez que o paradigma do “ponto de vista de classe proletário”, perdido o seu potencial histórico de referência, se desvaneceu até à irreconhecibilidade, os segmentos precarizados do capital humano qualificado afirmam-se como sendo a própria base social. Em vez de reflectirem sobre a íntima relação entre a diminuição do trabalho assalariado produtivo de capital, a barreira histórica da crise, a ascensão e a queda das novas classes médias, também partes crescentes da esquerda tendem para uma atitude neopequeno-burguesa. Por isso a crise, apesar da sua nova dimensão, de modo nenhum leva linearmente à passagem do marxismo do movimento operário para a crítica radical do contexto da forma basilar socialmente abrangente. Não é só a reprodução político-económica do capital mundial que está no fio da navalha, mas também a orientação da crítica social emancipatória, cuja mutação numa ideologia de classe média de esquerda habitualmente “flexível” começa a esboçar-se.
Assim, o foco da atenção desvia-se da resistência social contra a administração de crise para concepções alternativas neopequeno-burguesas, que em pouco tempo ganharam espaço em todo o espectro da esquerda complementarmente ao neokeynesianismo. Termos económico-sociais destilados da análise histórica de elementos da reprodução pré-moderna e protomoderna (“economia da dádiva”, “baldio”) são ideologicamente transformados, amalgamados com formas de trabalho social burguês (“voluntariado”, “ajuda de bairro”) e feitos passar pela perspectiva pós-capitalista de “economia solidária”. É uma mistura de ideias que já grassava no século XIX, que Marx designou com razão como "socialismo reaccionário" e "socialismo burguês". Esta concepção passa ao lado da essência da socialização capitalista e obstina-se nos chamados "modelos" de um modo de vida "diferente", que fogem sistematicamente ao problema da síntese social. Epistemicamente trata-se de uma variante do "individualismo metodológico" burguês. A socialização não é percebida na sua qualidade própria, que só enquanto tal pode ser transformada, mas rebaixada a condições especiais de relacionamento supostamente solidárias, em que a individualidade abstracta não tem de ser suplantada, mas apenas "experimentalmente redefinida”, sem atacar as grandes estruturas reais.
Esta pseudo-perspectiva de bons sentimentos para uma consciência de classe média em queda não tem qualquer efeito prático sobre a relação de capital; mas funciona como construtora de identidade, em termos de uma canção de embalar pequeno-burguesa de fuga ao conflito, que implica o controle social no nível de precarização. Filosoficamente, esta síndrome manifesta-se no facto de a ontologia ser favorecida contra a dialéctica. A ontologia do trabalho abstracto do marxismo do movimento operário não é suplantada, mas afirmada como ideologia do "trabalho imaterial" na forma do valor, ou do “trabalho geral" supostamente fora da forma do valor. Isto é acompanhado por um revivalismo de hipóteses antropológicas fundamentais. A propaganda da "vida boa" é na realidade a apoteose da existência quotidiana burguesa de crise, tanto da masculinidade branca ocidental de classe média “transformada em dona de casa” como da correspondente feminilidade pós-feminista.
O sujeito pequeno-burguês pós-moderno considera-se mais uma vez como “o ser humano” e carrega-se com uma ideologia vitalista da sensibilidade, à semelhança, de resto, com o modo como já preparou o pensamento fascista no fim do século XIX.
A praxeologicamente abunda neste contexto um “pensamento da imediatidade" cujos ressentimentos contra a teoria são óbvios. Neste campo também encontram terreno fértil adicional as bem conhecidas críticas reduzidas ao capital financeiro, com traços de anti-semitismo estrutural, e um “reducionismo ecológico", que reduz a crise à relação imediata com a natureza ou ao esgotamento dos recursos (e, precisamente por isso, já não consegue formular a necessária crítica da destruição da natureza na perspectiva de uma transformação do conjunto da sociedade). A exclusão das cada vez maiores novas classes inferiores é um tema meramente paternalista; na verdade, elas são consideradas como objecto de uma pedagogia de crise ecológica e “da sociedade do conhecimento”, que gostaria de desabituá-las de todas as suas reivindicações. A crítica da dissociação e do valor, se está bem longe de idealizar os pobres como "pessoas melhores" e como sujeitos-em-si, muito menos pode fazer causa comum com o paternalismo de tais ideologias de classe média.
É óbvio que uma “crítica do valor” truncada e aplanada, diluída e enfraquecida, com pendor para o existencialismo e para a ideologia de alternativa, trouxe elementos essenciais a esta síndrome. Portanto, está também no fio da navalha a questão de saber se a crítica do valor e da dissociação representada pela EXIT! consegue afirmar-se como contra-esfera pública teórica, ou se a “falsa imediatidade” de uma filosofia da vida pseudo-crítica do valor e inimiga da teoria consegue usurpar o novo paradigma e injectá-lo impunemente na ideologia do movimento de esquerda. Não se trata de ofertas no supermercado de opiniões. A “virtude da desorientação" ficou finalmente fora de serviço; mais do que nunca são as próprias circunstâncias que exigem uma tomada de posição na área de conflito. Pedimos a todas as pessoas que consideram indispensável uma teorização da crítica da dissociação e do valor para apoiarem este ano a EXIT! nos conteúdos, material e organizativamente.
Robert Kurz pela redacção da EXIT!, Janeiro de 2010
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Original AUF MESSERS SCHNEIDE in www.exit-online.org.