A
TEORIA DE MARX, A CRISE E A ABOLIÇÃO DO CAPITALISMO
Perguntas
e respostas sobre a situação histórica da crítica social radical
Nota:
A entrevista que se segue constitui a introdução a uma colectânea de análises
e ensaios do autor a publicar em França.
O que torna esta crise diferente das anteriores?
O
capitalismo não é o eterno retorno cíclico do mesmo, mas um processo histórico
dinâmico. Cada grande crise se encontra num nível de acumulação e de
produtividade superior aos do passado. Portanto, a questão da dominação ou não
dominação da crise coloca-se de forma sempre nova. Os mecanismos anteriores de
solução perderam a validade. As crises do século XIX foram superadas porque o
capitalismo ainda não tinha coberto toda a reprodução social. Havia ainda um
espaço interno de desenvolvimento industrial. A crise económica mundial dos
anos de 1930 foi uma ruptura estrutural num nível muito mais elevado de
industrialização. Ela foi dominada através de novas indústrias fordistas e
da regulação keynesiana, cujo protótipo foram as economias de guerra da II
Guerra Mundial. Quando a acumulação fordista esbarrou nos seus limites, na década
de 1970, o keynesianismo desembocou numa política inflacionista, com base no crédito
público. A chamada revolução neo-liberal, no entanto, apenas deslocou o
problema do crédito público para os mercados financeiros. O pano de fundo era
uma nova ruptura estrutural do desenvolvimento capitalista, marcado pela
terceira revolução industrial da microeletrónica. Neste nível
qualitativamente diferente de produtividade já não foi possível desenvolver
qualquer terreno de acumulação real. Por isso se desenvolveu durante mais de
duas décadas, com base no endividamento e em bolhas financeiras sem substância,
uma conjuntura económica global baseada no deficit, que não poderia ser
duradouramente sustentável. Toda a era neo-liberal da desregulamentação foi
acompanhada por uma cadeia sem precedentes históricos de crises financeiras e
de endividamento. Enquanto essas crises estiveram limitadas a certas regiões
mundiais ou sectores elas puderam ser contidas por uma enxurrada de dinheiro dos
bancos centrais. Mas isso só criou as bases para o culminar do processo de
crise. Desde o Outono de 2008, a crise da terceira revolução industrial
assumiu uma dimensão global. O estouro das bolhas financeiras agora traz à
tona a falta de acumulação real. O novo keynesianismo de crise, entretanto,
apenas deslocou o problema do mercado financeiro novamente para o crédito público,
mas num nível muito mais elevado do que na década de 1970. O Estado tem tão
pouca competência agora como tinha então para subsidiar a falta de acumulação
real a longo prazo. A crise dos mercados financeiros é substituída pela crise
das finanças públicas; a Grécia é apenas a ponta do iceberg, como caso de
actualidade. O deslocamento forçado e sem imaginação do problema de volta ao
Estado mostra que não existem actualmente novos mecanismos de solução da
crise no nível de produtividade alcançado.
Você acha que o capitalismo está chegando ao fim. Estamos, pela primeira vez na história, perante a possibilidade de ir além do capitalismo? O capitalismo teve de desenvolver as suas contradições internas até este ponto para isso ser possível? Antes era impossível?
A
dinâmica cega do capitalismo se desdobra de acordo com suas próprias leis
internas. Este processo, no entanto, apenas é "necessário" e, até
certo ponto, determinado, na medida em que as categorias de base e os critérios
deste modo histórico de produção e de vida não são postos em questão na prática.
Com uma intervenção adequada, o capitalismo poderia ter sido interrompido em
qualquer das fases do seu desenvolvimento. Então a socialização da produção
teria tomado um rumo diferente, sobre o qual não podemos dizer nada porque ele
não ocorreu realmente. Não é uma questão de necessidade objectiva, mas uma
questão da consciência crítica. Nem as rebeliões do século XVIII e início
do século XIX, nem o velho movimento operário, nem sequer os novos movimentos
sociais das últimas décadas foram capazes de produzir tal consciência. Pelo
contrário, as formas capitalistas de trabalho abstracto, de valorização do
valor e de Estado moderno foram cada vez mais internalizadas. Mas isto apenas
foi assim factualmente. Portanto, o capitalismo não “tinha de” desenvolver
as suas contradições internas até ao ponto alcançado hoje, mas foi isso
mesmo que ele fez. Agora, somos confrontados com a tarefa de formular de novo a
crítica das formas capitalistas e o programa para a sua abolição, no nível
das contradições alcançado. Esta é simplesmente a nossa situação histórica,
e é inútil lamentar a batalhas perdidas do passado. Embora o capitalismo
esbarre objectivamente no seu limite histórico absoluto, a emancipação ainda
pode falhar hoje, por falta de suficiente consciência crítica. Então o
resultado já não seria uma nova primavera de acumulação, mas, como disse
Marx, a eventual queda colectiva na barbárie.
De acordo com a crítica do valor (da teoria de Marx) a ligação valor-preço passa por um número infindável de mediações. Essa ligação é extremamente flexível. Como podemos então dizer que o capital atingiu o seu limite interno?
As
formas de mediação de valor e preço não são de uma multiplicidade infinita,
elas formam uma sucessão de etapas geralmente determinável, cujo regulador é
a concorrência. O número de transacções individuais, pelo contrário, é que
se pode caracterizar como quase infinito. Mas isso é outra coisa. Devido ao
grande número de transacções empíricas, a todos os níveis do
capital-mercadoria, do capital-dinheiro e do crédito, que também só
insuficientemente são abrangidos pelas estatísticas burguesas, a situação da
valorização real nunca pode ser determinada exactamente. Há sempre uma certa
tensão entre teoria e empiria. No entanto, a teoria dos fenómenos observáveis
pode ser posta em relação com o processo interno essencial da valorização.
Pois o enlace das mediações de valor e preço é realmente complexo, mas de
modo nenhum infinitamente flexível. O movimento da concorrência em milhares de
milhões de transacções individuais relaciona-se com a massa de valor real de
toda a sociedade, que não pode ser de imediato determinada empiricamente. Esta
massa de valor real está vinculada, de acordo com Marx, à substância do
trabalho abstracto, ou seja, à massa de energia humana abstracta utilizada no
espaço funcional do capital. O capital, por outro lado, não pode usar
arbitrariamente muita força de trabalho humana, mas somente em conformidade com
o padrão pertinente de produtividade, que por sua vez é imposto pela concorrência.
As formas intermediárias entre valor e preço não são, portanto,
arbitrariamente flexíveis; a sua flexibilidade tem por limite a quantidade real
de substância social que lhes está subjacente. No entanto, é sempre apenas ex
post que se verifica empiricamente se as relações sociais valor-preço são
substancialmente ajustadas ou se representam apenas ar quente. É precisamente
por essa situação que passamos na actual crise. Assim se comprova na prática
que a ideia de uma flexibilidade infinita dos preços em relação à substância
do valor não passava de uma grandiosa ilusão.
O senhor lê a teoria de Marx da crise como uma teoria do colapso, uma teoria baseada na ideia de uma subprodução de capital. Outros marxistas (Grossmann, Mattick) o fizeram antes, mas essa crítica foi sempre ultraminoritária. Os marxistas – fossem quais fossem as suas diferenças – sempre leram e ainda lêem a teoria de Marx como uma teoria da distribuição desigual da riqueza (distribuição desigual essa que teria a sua origem na especulação, na desregulamentação, na busca de superlucros nos mercados financeiros) e rejeitam a teoria do colapso. Serão ambas estas leituras de Marx justificadas pelo próprio Marx? Existe um duplo Marx?
O
termo “colapso” é metafórico e sugestivo. Foi usado por Eduard Bernstein,
sem qualquer reflexão teórica, para desqualificar completamente a teoria da
crise de Marx, sob o impacto do desenvolvimento capitalista empírico no fim do
século XIX. O termo aparece no chamado fragmento sobre as máquinas dos Grundrisse, que nem Bernstein nem os seus adversários conheciam,
porque os Grundrisse só foram
publicados muito mais tarde. No terceiro volume de O Capital Marx fala exactamente de um "limite interno do
capital" que acaba por se tornar absoluto. As anteriores “teorias do
colapso" minoritárias de Rosa Luxemburgo e Henryk Grossman argumentavam
com a falta de "realização" da mais-valia (Luxemburgo), ou com uma
"sobreacumulação" de capital (Grossmann), que não poderia ser
reinvestido suficientemente. Paul Mattick cedo se distanciou da teoria do limite
interno objectivo do capital; tal como os leninistas, ele identificou o
"colapso" com a acção política do proletariado. Em Marx, existem
dois níveis diferentes da teoria da crise, que não estão teoricamente
unificados. O primeiro nível refere-se às contradições da circulação do
capital: à disparidade entre compras e vendas, bem como à desproporcionalidade
com esta relacionada entre os ramos da produção. O segundo nível, nos Grundrisse
e no terceiro volume de O Capital,
refere-se muito mais fundamentalmente à relação entre a produtividade e as
condições da valorização, ou seja, à falta de produção da própria
mais-valia, ao tornar-se supérflua demasiada força de trabalho. Apenas as
contradições da circulação desempenharam um papel nas teorias da crise
marxistas; a questão da falta de substância real de trabalho não foi objecto
de qualquer debate. Na terceira revolução industrial, no entanto, apenas o
segundo nível mais profundo da teoria da crise de Marx se torna relevante. A
"dessubstancialização" real do capital está tão avançada que
apenas é possível uma acumulação aparente insubstancial, através das bolhas
financeiras e do crédito público, a qual actualmente atinge os seus limites. O
que está em causa já não é a distribuição desigual da “riqueza
abstracta" (Marx), mas sim a libertação da riqueza concreta do fetichismo
do capital e das suas formas abstractas. A maioria dos marxistas contemporâneos,
porém, regrediram para trás até mesmo das teorias da crise anteriores e
limitam-se a assumir o clássico ponto de vista pequeno-burguês de uma crítica
ao "capital financeiro”. Confundem causa e efeito: reduzem a crise não
à falta objectiva de produção real de valor, mas à ganância subjectiva dos
especuladores. O modo de produção capitalista não é mais criticado nos seus
fundamentos; só se pretende voltar à configuração fordista do trabalho
abstracto. Esta opção não é apenas ilusória, é também reaccionária. E
tem uma semelhança estrutural com a ideologia económica do anti-semitismo.
Você, Robert Kurz, e Moishe Postone, cujo livro "Tempo, trabalho e dominação social" está publicado em francês, desenvolveis dois tipos de crítica do valor que divergem num ponto central. Para si, com os ganhos de produtividade o capital perde substância (trabalho abstracto) e, na terceira revolução industrial da microeletrónica, essa substância é perdida completamente pelo capital. Para Postone, pelo contrário, os ganhos de produtividade fazem crescer o valor – provisoriamente. Depois de o ganho de produtividade ser generalizado, o aumento de valor é anulado, regredindo a unidade básica do trabalho abstracto (a hora de trabalho) para o seu nível inicial. Assim, para você o valor desmorona-se, enquanto para Postone o valor se expande incessantemente, para em seguida retornar ao seu ponto de partida. Daí a pergunta: isto não destrói a plausibilidade da crítica do valor? Ou deve-se ver aqui um momento provisório?
O
ponto em comum com Postone é a crítica do conceito de trabalho do marxismo
tradicional. O entendimento tradicional transformou o conceito de trabalho
abstracto, em Marx puramente negativo, crítico e histórico, numa definição
positivista, reinterpretando-o como condição eterna da humanidade. Em Postone,
no entanto, falta a dimensão da teoria da crise na crítica do trabalho
abstracto; nesta questão ele próprio permanece tradicional. O aumento da
produtividade significa que menos energia humana produz mais produto material.
Portanto, a produtividade nunca aumenta o valor, mas sempre o diminui, como Marx
mostra logo no primeiro volume de O
Capital. Quem afirma o contrário confunde o nível social com o nível da
economia empresarial, ou a totalidade do capital com o capital individual. O
capital individual que em primeiro lugar aumenta isoladamente a sua própria
produtividade consegue uma vantagem na concorrência. Ele oferece os produtos
individuais mais baratos, conseguindo assim vender mais mercadorias e,
precisamente por isso, realizar para si próprio uma parte maior da massa de
valor social. O que do ponto de vista da economia empresarial surge como lucro
crescente e, portanto, como crescente “criação de valor” conduz
socialmente, no entanto, à diminuição do valor, e na verdade em detrimento
dos outros capitais individuais. Se a maior produtividade se generalizar, o
capital individual inovador perde a sua vantagem na concorrência. Mas isso não
é de forma alguma o regresso a zero ou a um ponto de partida anterior. Pelo
contrário, a produtividade aumentada torna-se agora o novo padrão geral. A
hora de trabalho, como unidade básica de trabalho abstracto, é sempre a mesma,
como tal não pode de modo nenhum ter diferentes "níveis". O padrão
novo e mais elevado de produtividade, no entanto, obriga a que sejam necessárias
menos destas horas sempre iguais de trabalho abstracto para uma massa crescente
de produtos. Se na crise se desvaloriza e destrói capital, apesar disso o padrão
de produtividade atingido permanece, porque está inscrito no conjunto do
conhecimento e do know how. Para ser
claro: o capitalismo não pode retornar do nível da microeletrónica ao nível
da máquina a vapor. Um novo aumento do valor torna-se cada vez mais difícil
perante níveis de produtividade cada vez mais elevados e, consequentemente, com
uma substância de trabalho abstracto cada vez menor. No passado, a redução
constante do valor era apenas relativa. Com o aumento dos padrões de
produtividade, o produto individual podia representar cada vez menos trabalho
abstracto e, portanto, cada vez menos valor. No entanto, graças ao
embaratecimento respectivo, cada vez mais bens anteriormente de luxo entraram no
consumo de massas, alargando-se a produção e os mercados. A relativa redução
da substância social de valor por produto individual pôde, portanto, levar
ainda a um aumento absoluto da massa total de valor social, porque a produção
social alargada no seu conjunto mobilizava mais trabalho abstracto do que o
tornado supérfluo no fabrico dos produtos individuais. Isto prende-se com o
mecanismo designado por Marx como produção de “mais-valia relativa”. O
mesmo processo, que reduz continuamente a quota-parte da força de trabalho que
produz valor no conjunto do capital, faz baixar também, juntamente com o valor
dos alimentos necessários à reprodução dessa força de trabalho, o valor
dela própria e, portanto, aumenta a quota-parte da mais-valia na produção
total de valor. Mas isto aplica-se apenas à força de trabalho individual. Para
apurar a quantidade social de valor e de mais-valia, porém, é decisiva a relação
entre o aumento da mais-valia relativa por força de trabalho individual e o número
de forças de trabalho que podem ser socialmente utilizadas em conformidade com
o padrão de produtividade. No fragmento sobre as máquinas dos Grundrisse
e no terceiro volume de O Capital,
Marx faz notar que o aumento de produtividade deve logicamente chegar a um ponto
em que será dispensado mais trabalho abstracto do que poderá ser
adicionalmente mobilizado ainda pela expansão dos mercados e da produção. Então
também o aumento da mais-valia relativa por trabalhador individual não
adiantará nada, porque o número de trabalhadores no conjunto utilizáveis
diminui muito. Pode-se mostrar que este ponto abstractamente antecipado por Marx
é atingido histórica e concretamente com a terceira revolução industrial. Se
assim não fosse o capital teria podido mobilizar bastante trabalho abstracto na
base dos seus próprios fundamentos produtivos, e aumentar a produção de valor
real, em vez de ter de subsidiá-la numa escala sem precedentes, através de
endividamento, bolhas financeiras e crédito público. O choque da desvalorização
a todos os níveis do capital está em curso à nossa vista. Mas agora menos do
que nunca haverá o regresso a um ponto zero, a partir do qual todo o teatro
pudesse começar novamente. Pelo contrário, mantém-se a causa fundamental do
desastre, ou seja, o novo padrão de produtividade estabelecido
irreversivelmente pela terceira revolução industrial. Portanto, já só resta
a criação repetida de novo capital monetário insubstancial pelos Estados e
pelos bancos, capital que repetidamente entrará em colapso, com intervalos cada
vez mais curtos.
A crítica do valor é sempre confrontada com a seguinte objecção: Se não houver um sujeito de classe revolucionário, um grupo social por natureza portador da consciência, que interesses haverá então que levem a querer uma sociedade fundamentalmente humana e verdadeiramente histórica?
O
conceito de sujeito, no fundo, é paradoxal, é um conceito fetichista. Por um
lado, o sujeito é entendido como uma instância de pensamento e de acção autónomos.
Por outro lado, porém, este mesmo sujeito, justamente na sua qualidade de
sujeito revolucionário de classe, deve ser condicionado de modo puramente
objectivo. Ele deve ter "objectivamente" uma "missão histórica",
independentemente de os seus titulares empíricos saberem disso ou não. A
suposta autonomia de pensamento e de acção desmente-se a si mesma se assenta
numa pré-determinação inconsciente. É como se a crítica radical não fosse
uma acção da consciência, livre e não-determinada, mas sim um mecanismo
causalmente condicionado, como o tempo ou a digestão. A função da consciência
seria então, apenas, consumar conscientemente a própria causalidade. Mas essa
é precisamente a determinação fetichista do pensamento e da acção no domínio
do capital. Se a emancipação enquanto sujeito, embora consciente, só deve
ocorrer como um processo natural ou mecânico, então será o contrário de si
mesma. Pode-se determinar objectivamente os mecanismos cegos do capital, mas não
a libertação da falsa objectividade, libertação essa que não pode voltar a
ser de novo objectiva. A libertação é um facto histórico e, portanto, não
pode ser teoricamente “deduzida”, como a queda tendencial da taxa de lucro.
O famoso "sujeito objectivo" do marxismo tradicional não é senão
uma categoria do próprio capital, ou uma função do "sujeito automático"
(Marx) do trabalho abstracto e do valor. Não existe nenhum grupo social no
capitalismo que tenha uma pré-determinação ontológica transcendente. Todos
os grupos sociais são pré-formados pelo valor e, portanto, constituídos de
modo capitalista. Quando se fala de "interesses" é preciso fazer uma
distinção. Há, por um lado, os interesses
vitais das pessoas, de conteúdos materiais, sociais e culturais, que são
idênticos às suas necessidades históricas. Estes conteúdos estão, por outro
lado, amarrados à forma capitalista. O conteúdo real das necessidades é assim
visto como secundário; apenas o interesse capitalista, constituído sob a forma
de dinheiro (salário e lucro), é imediatamente percebido. Claro que é inevitável
que as necessidades reais ou interesses vitais sejam reivindicados em primeiro
lugar na forma capitalista vigente. No entanto, se a diferença entre o conteúdo
e a forma deixar de ser vista, esse interesse vira-se contra os seus titulares:
estes tornam então os seus interesses dependentes, para a vida e para a morte,
de que a valorização do capital funcione. Reduzem-se a si mesmos a um
“sujeito objectivo" que entrega a sua vida às leis do capital e
considera essa submissão normal. Pelo contrário, é importante declarar o
conteúdo real das necessidades como absolutamente inegociável. Somente então
existe a possibilidade de intensificar a tensão entre a forma capitalista e
este conteúdo, até à crítica que transcenda para além do capital. Isso não
será acto de um "sujeito objectivo”, mas de seres humanos, que apenas
querem sê-lo e nada mais. Um movimento emancipatório não tem qualquer
fundamento ontológico pré-consciente, pelo contrário, tem de constituir-se a
si mesmo, “sem rede nem fundo duplo”.
Uma empresa, um hospital ou uma escola estão em greve. Luta-se pela preservação dos empregos, contra a deterioração das condições de trabalho e contra os cortes salariais... ou então os trabalhadores já não lutam pela preservação dos postos de trabalho, mas ameaçam “fazer tudo ir pelos ares” para receberem indemnizações de saída decentes (isso já aconteceu várias vezes em França). Como há-de reagir a isso quem se relaciona positivamente com a crítica do valor? Que atitude tomar face aos sindicatos e aos média?
A
crítica do valor não é simplesmente contra as lutas sociais imanentes ao
capitalismo. Estas são um ponto de partida necessário. No entanto, a questão
é saber em que sentido se desenvolvem tais lutas. Aqui a fundamentação
desempenha um papel importante. Os sindicatos habituaram-se a apresentar as suas
exigências não como decorrendo das necessidades dos seus membros, mas como
contribuição para o melhor funcionamento do sistema. Assim, diz-se que seriam
necessários salários mais altos para fortalecer a conjuntura económica, e que
eles seriam possíveis porque o capital tem altos lucros. Mas, logo que a
valorização do capital obviamente emperra, esta atitude leva a render-se
voluntariamente à co-gestão da crise, no "superior interesse" da
economia da empresa, das leis do mercado, da nação, etc. Esta falsa consciência
existe não apenas entre os profissionais dos sindicatos, mas também nas
chamadas bases. Se as trabalhadoras e trabalhadores assalariados se identificam
com a sua própria função no capitalismo e exigem aquilo que precisam apenas
em nome dessa função, tornam-se eles próprios “máscaras de carácter”
(Marx) de um determinado componente do capital, nomeadamente a força de
trabalho. Assim, eles reconhecem que apenas têm direito à vida se conseguirem
produzir mais-valia. Daqui decorre uma concorrência acirrada entre as diversas
categorias de trabalhadoras e trabalhadores assalariados e uma ideologia de
exclusão social darwinista. Isto é particularmente evidente na luta defensiva
pela conservação dos postos de trabalho, que não tem qualquer perspectiva
para além disso. Aqui muitas vezes concorrem entre si pela sobrevivência até
os empregados das diferentes empresas do mesmo grupo. Portanto, é
essencialmente simpático, e de resto também mais realista, que os
trabalhadores franceses tenham ameaçado fazer explodir as fábricas para forçarem
a obtenção de uma indemnização de despedimento razoável. Estas novas formas
de luta não são defensivas nem positivas, mas poderão ser combinadas com
outras reivindicações, como por exemplo a melhoria do rendimento dos
desempregados. Na medida em que de tais lutas sociais surja um movimento social,
também este, com a experiência dos seus limites práticos, se confrontará com
as questões de uma nova “crítica categorial” ao fim em si fetichista do
capital e das suas formas sociais. A concretização desta perspectiva avançada
é a tarefa da nossa elaboração teórica, que não existe num Além abstracto,
mas se entende como momento do debate social.
Para os anti-industrialistas, a emancipação do capitalismo é sinónimo de retorno à sociedade agrária (Kaczynski, ‘Encyclopédie des Nuisances’ etc.) Para os adeptos do decrescimento (Décroissants) emancipação significa saída do capitalismo – mas, como eles escondem a ligação entre produção e valor, a sua crítica não passa de pura moral de renúncia para tempos de crise. Para si em que consiste a sociedade pós-capitalista?
Já
Marx disse, com razão, que o anti-industrialismo abstracto é reaccionário,
porque joga fora o potencial de socialização e, tal como os apologistas do
capitalismo, só consegue imaginar um contexto geral da reprodução social nas
formas do capital. O anti-industrialismo conclui que a auto-determinação
humana só poderá ser à custa da “dessocialização”, em pequenas redes
baseadas na economia de subsistência (small
is beautiful). O regresso postulado à reprodução agrária é apenas o
aspecto material desta ideologia. No lugar de uma divisão de funções
amplamente diversificada e entrelaçada deve entrar o “faça você mesmo”
imediato. Trata-se de uma fantasia económica que constitui um aspecto do que
Adorno chamou "falsa imediatidade”. Se essas condições fossem
realizadas, uma grande parte da humanidade actual teria de passar fome. Não é
melhor a crítica do crescimento, igualmente abstracta, que hoje está na moda e
que pretende uma "produção de mercadorias simples", sem a coerção
do crescimento, ou substitutos das relações contratuais burguesas, em pequenos
contextos de cooperação. O que, no espaço da língua alemã, se apresenta
como “economia solidária” não passa de um conglomerado de ideias
pequeno-burguesas que há muito falharam historicamente e que, sob as novas
condições de crise, não oferecem qualquer perspectiva. Tais ideias são um
mero subterfúgio. Não querem entrar em conflito com a administração da
crise, mas sim cultivar o seu próprio idílio imaginário, "ao lado"
da síntese social real feita pelo capital. Na prática esses projectos são
completamente irrelevantes. Eles representam apenas uma ideologia "de bons
sentimentos" de esquerdas desorientadas, que pretendem auto-iludir-se no
capitalismo de crise e correm o risco de tornar-se elas próprias um recurso da
administração da crise. A questão, pelo contrário, é libertar a reprodução
social do fetiche do capital e das suas formas basilares. As potências de
socialização são determinadas no capitalismo de modo puramente negativo, como
submissão dos seres humanos ao fim em si mesmo da valorização. Até o lado
material da produção industrial obedece a este imperativo do "sujeito
automático" (Marx). Portanto, o conteúdo material da socialização
industrial não pode ser superado positivamente, mas tem de ser abolido
juntamente com as formas fetichistas do capital. Isso afecta não só as relações
sociais de produção, mas também a relação com a natureza. Não se trata,
por conseguinte, de assumir a indústria capitalista e o produtivismo que lhe é
inerente sem rupturas. No entanto, um “anti-produtivismo” igualmente
abstracto, ou a regressão a uma pobreza idílica em economia de subsistência e
à atmosfera socialmente opressiva de confusas "comunidades", não é
alternativa, mas apenas o reverso da mesma medalha. A tarefa é, pois,
revolucionar as próprias condições materiais de produção ao nível social
global e tomar como objectivo as necessidades, bem como a preservação das
bases naturais. Isto significa que não poderá haver mais desenvolvimento
descontrolado segundo o critério geral e abstracto da chamada racionalidade da
economia empresarial. Os diversos momentos da reprodução social devem ser
considerados no contexto da lógica própria do respectivo conteúdo. Por
exemplo, os cuidados médicos e a educação não podem ser organizados segundo
o mesmo padrão da produção de máquinas de perfurar ou de rolamentos de
esferas. As infra-estruturas sociais ultrapassaram em geral a forma do valor, em
consequência da "cientificização". Mesmo dentro da própria indústria,
tem de ser suplantada esta lógica do valor, que transforma as forças
produtivas em forças destrutivas, enquanto vai desbastando domínios necessários
à vida, por falta de "rentabilidade". Assim, a mobilidade não deve
ser eliminada, ou reduzida ao nível de carroças puxadas por burros, mas sim,
partindo da forma destrutiva do transporte automóvel individual, transformada
numa rede qualitativamente nova de transportes públicos. Os “excrementos da
produção” (Marx) não podem continuar a ser espalhados na natureza, em vez
de serem integrados num circuito industrial. E a "cultura de combustão"
capitalista não pode ser mantida, exigindo-se, pelo contrário, um uso
diferente dos materiais energéticos fósseis. Finalmente, é preciso que os
momentos da reprodução insusceptíveis de serem abrangidos pelo valor e pelo
trabalho abstracto, que foram dissociados da sociedade oficial e historicamente
delegados nas mulheres (trabalho doméstico, acompanhamento, cuidados etc.),
sejam organizados de forma conscientemente social e descolados da sua fixação
sexual. Esta ampla diversificação da produção industrial e dos serviços,
segundo critérios puramente qualitativos, é algo diferente de um
anti-industrialismo abstracto; mas exige a abolição da razão capitalista, da
síntese através do valor e do cálculo económico empresarial daí resultante.
Isto só funciona como processo social, por meio de um contramovimento social da
própria sociedade, e não através "modelos" pseudo-utópicos, que
apenas teriam de ser generalizados. A sociedade pós-capitalista não pode ser
pintada como um “modelo” positivo que se deva apresentar completamente
pronto. Isso não seria concretização nenhuma, pelo contrário, não passaria
de uma patética abstracção e mais uma antecipação da falsa objectividade,
precisamente a mesma que tem de ser abolida. O que a teoria pode desenvolver
como crítica do economismo capitalista são critérios de uma socialização
diferente. Aqui se inclui, antes de mais, um planeamento social consciente dos
recursos, que deve tomar o lugar da dinâmica cega das “leis coercivas da
concorrência" (Marx). O planeamento social caiu em descrédito, mesmo na
esquerda, porque o seu conceito nunca foi além da compreensão do extinto
socialismo de Estado burocrático. Mas esse socialismo não constituiu qualquer
alternativa ao capitalismo, mas sim, essencialmente, uma "modernização
atrasada" na periferia do mercado mundial, que fez uso dos mecanismos do
Estado capitalista. A lógica do valor não foi abolida, mas apenas
nacionalizada. A consciência crítica não foi mais longe, nas condições de
um desenvolvimento ainda não esgotado do capital mundial. Não tinha de ser
necessariamente assim, mas é um facto histórico. Tratava-se apenas da
participação das regiões periféricas no mercado mundial com direitos iguais,
participação em que acabaram fracassando. Portanto, esta formação permaneceu
prisioneira da aporia de um “planeamento do valor", que por natureza não
é planeável, mas implica a concorrência universal, sob os ditames do
produtivismo abstracto. Se hoje a socialização negativa através do valor
esbarra em limites históricos à escala mundial, está na ordem do dia um novo
paradigma de planeamento social, para além do mercado e do Estado, para além
do valor e do dinheiro.
Tradicionalmente, a crítica do capitalismo fazia-se do ponto de vista do trabalho. Para si, Robert Kurz, capital e trabalho não se contradizem. Para si, o capitalismo é a sociedade do trabalho. Por que rejeita você o trabalho?
O conceito claramente crítico e negativo de trabalho abstracto em Marx pode ser determinado como sinónimo da moderna categoria “trabalho". Nas condições pré-modernas, às vezes não havia sequer essa abstracção universal, outras vezes ela era determinada negativamente de maneira diferente, ou seja, como actividade dos dependentes e subjugados (escravos). "Trabalho" não é a mesma coisa que produção em geral, ou que “processo de metabolismo com a natureza" (Marx), ainda que a terminologia de Marx sobre a questão seja hesitante. Foi o capitalismo que, pela primeira vez, generalizou e ideologizou positivamente a categoria negativa "trabalho" e deste modo levou à inflação do conceito de trabalho. O cerne dessa generalização e falsa ontologização do "trabalho" é constituído pela redução, historicamente sem precedentes, do processo de produção a um puro e simples dispêndio de energia humana abstracta, ou de “nervo, músculo e cérebro" (Marx), com total indiferença para com o conteúdo. Os produtos “são válidos” socialmente não como bens de uso, mas como representações de trabalho abstracto passado. Sua expressão geral é o dinheiro. Neste sentido, em Marx o trabalho abstracto, ou energia humana abstracta, constitui a "substância" do capital. O fim em si mesmo fetichista da valorização, de fazer de um euro dois euros, baseia-se no fim em si mesmo de aumentar ininterruptamente o dispêndio de trabalho abstracto, sem levar em conta as necessidades. Este imperativo absurdo, no entanto, está em contradição com o aumento permanente da produtividade, que é imposto pela concorrência. A crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho é uma impossibilidade lógica, uma vez que não se pode criticar o capital a partir da sua própria substância. A crítica do capitalismo tem de ser dirigida contra esta substância em si, libertando a humanidade da sujeição ao trabalho abstracto forçado. Só então poderá ser vencida a indiferença face ao conteúdo da reprodução e ser levado a sério este mesmo conteúdo. Se o capital é entendido no sentido restrito, como capital-dinheiro e capital físico ("capital constante" em Marx), há realmente uma contradição funcional entre capital e trabalho. Trata-se de diferentes interesses capitalistas num sistema de referência comum. Mas, se se compreende o capital no sentido mais amplo de Marx, o trabalho é apenas a sua outra parte integrante. Capital-dinheiro e capital físico representam "trabalho morto", a força de trabalho (“capital variável” em Marx) representa “trabalho vivo". Existem apenas diferentes "estados de agregação" do trabalho abstracto e, portanto, do capital. Neste entendimento, a contradição é "interior" ao próprio capital global, ou "sujeito automático", e não uma contradição que aponte para além do capitalismo. O antigo movimento operário, enquanto não assumiu a posição de libertar-se do trabalho abstracto, mas sim a posição de libertar esse mesmo trabalho, ele próprio se amarrou a ser aquela mera parte integrante do capital e a encontrar um duvidoso “reconhecimento” apenas nesse sentido. Por conseguinte, no socialismo de Leste, aliás, capitalismo de Estado, o trabalho abstracto não foi criticado nem abolido, mas usado pela burocracia como categoria fundamental, na tentativa (falhada) duma contabilização tecnocrática. Hoje, na terceira revolução industrial, o capitalismo minou amplamente a sua própria substância de trabalho. Nos balanços dos conglomerados empresariais, o trabalho já não desempenha qualquer papel decisivo, como parte do capital. A produção industrial, e não só, é mais influenciada pelo uso da ciência e da técnica do que pelo uso da actividade humana produtiva imediata. A dinâmica cega do capitalismo ultrapassou na prática e reduziu ao absurdo a ideia, já teoricamente sempre falsa, de um socialismo baseado na contabilização do "tempo de trabalho”. O que precisa de ser planeado numa sociedade pós-capitalista não é a quantidade de energia física humana, mas sim o uso com sentido e pragmaticamente diversificado dos recursos naturais, técnicos e intelectuais.
Original
MARXSCHE
THEORIE, KRISE UND ÜBERWINDUNG DES KAPITALISMUS
in
www.exit-online.org
(13.05.2010). Entrevista
introdutória a uma colectânea de análises e ensaios do autor a publicar em
França.