SUPERAÇÃO DA CRISE E "UTOPIA "

Robert Kurz

O momento de inércia da vida e do pensamento humanos parece imenso, e a capacidade de sofrimento dos indivíduos talvez chegue muito perto daquela dos animais. Não obstante, existe um limite absoluto, mesmo que este esteja à beira da "destruição do mundo", limite do qual ninguém pode dizer o quanto estamos distantes. É possível que a era das trevas da crise do sistema produtor de mercadorias, com suas formas de percurso e acontecimentos catastróficos, abranja boa parte do século XXI.

Além disso, todo acontecimento, até o mais aterrador, depois de isolado da lógica global da economia mundial, pode ser interpretado arbitrariamente e colocado subjectivamente em contextos extremamente bizarros. A consequência disso é que em qualquer situação específica e em qualquer catástrofe particular podem acontecer reacções que se encontram em conformidade com o sistema. Essas, no entanto, terão no futuro menos o carácter de "reformas" do que, pelo contrário, o de terror do Estado e de administração de crises. Por isso, essas opções não oferecem nenhuma perspectiva consoladora. Transformam-se em elementos dos próprios processos catastróficos. Tanto mais desesperadora e ignorante tem que parecer aquela sabedoria académica nascida de discussões de botequim, que ainda hoje continua comentando com toda calma a escatologia errónea da crítica da economia de Marx e ridicularizando presunçosamente todo prognóstico de crises futuras como cenário de fim de mundo, supostamente irracional. Como se não bastassem os fins de mundo já acontecidos, que atingiram a maioria da humanidade. Essa presunção serena simplesmente não leva em conta o entrelaçamento global do dinheiro que implica uma dimensão igualmente global da crise. Por isso são ilusórias desde o princípio qualquer referências amenizadoras a outras situações históricas com clima de fim de mundo (por exemplo, o início da Era Moderna), depois das quais teria continuado "a vida". Deveríamos observar muito bem quais as poltronas de onde provém essa zombaria e que rastilho já está aceso debaixo delas.

O que menos podemos esperar é que a lógica destrutiva imanente possa ser rompida e superada pelas administrações estatistas de crise e emergência. A crise seria apenas superáveis se um consciente movimento social de supressão acabasse com a mera administração dessa crise, movimento que teria que derrubar, com violência maior ou menor, também esses aparatos.(1) Nesse sentido, não se tornou desnecessária, apesar de todas as diferenças resultantes do nível mais elevado da socialização, a forma geral das históricas revoluções burguesas, inclusive a Revolução de Outubro.

Pois a crítica da ideologia de decapitação jacobina não significa, de modo algum, que a humanidade tivesse que se entregar ao automatismo de uma transformação pacífica do sistema produtor de mercadorias. Essa ideia, em face dos acontecimentos catastróficos, seria desatrelada da realidade. É óbvio que, matando pessoas que são meras máscaras de carácter de determinadas relações, ninguém pode acabar com essas relações. Mas essa consideração não anula a necessidade de romper também empiricamente o domínio, sem sujeito, do valor económico abstracto, o que exige o rompimento dos aparatos(2) que com certeza pretendem manter o valor como valor, mesmo que essa conservação absurda da forma básica causasse a ruína (como já está acontecendo) de milhões de seres humanos.

Existe até o perigo de que a crítica social, depois de perder toda a orientação prática e teórica, ofereça-se aos aparatos de emergência como fornecedora de legitimização, suprimindo assim a si mesma, na função de crítica social, em vez de suprimir a economia fetichista. Essa intervenção torna-se possível, e até provável, quando por trás dos aparatos estatais abalados aparece a anarquia no sentido negativo, isto é, a anarquia dos sujeitos-mercadoria que, presos em sua crise incompreendida, põem-se indiscriminadamente em atitude de ataque. A transformação tendencial do estatismo em um barbarismo secundário poderia produzir outra pseudolegitimizacão do Estado moderno e de sua missão civilizatória já terminada, e isso precisamente na consciência daqueles que vagamente compreendem esse processo.

Do mesmo modo que outrora o absolutismo trouxe certa pacificação frente à situação anterior, sangrenta e agitada pelas lutas intermináveis entre os poderes particulares, o aparato de emergência poderia apresentar-se como último baluarte da normalidade frente à rebelião imediatamente subsequente, realizada de forma desorientada e bárbara por aqueles que foram "enforcados" pela lógica do dinheiro. Em vez de assumir a missão perigosa de dar a essa rebelião um conteúdo consciente e um novo objectivo, precisamente as competências intelectuais, indispensáveis para essa tarefa, poderiam sucumbir à tentação de ensaiar, por trás dos baluartes do aparato de emergência, a própria sobrevivência no decadente mundo do dinheiro, que acabará apesar de tudo.(3)

No entanto, uma critica social radical, renovada e praticada no apogeu da crise do sistema produtor de mercadorias, teria que se emancipar completamente de suas ideias anteriores, já obsoletas. Em virtude da situação totalmente modificada da sociedade mundial, a crise nem sequer poderá ser identificada com os antigos recursos da crítica. Em resumo, essa modificação fundamental pode ser caracterizada como segue:

(a) Tendencialmente, o capitalismo tornou-se "incapaz de explorar", isto é, pela primeira vez na história capitalista está diminuindo também em termos absolutos – independentemente do movimento conjuntural - a massa global do trabalho abstracto produtivamente explorado, e isso em virtude da intensificação permanente da força produtiva.

(b) Uma vez que a rentabilidade das empresas somente pode ser estabelecida no nível até então alcançado da produtividade, e isso apenas de acordo com o padrão social mundial, e uma vez que esse nível, em virtude da crescente intensidade de capital, está se tornando inalcançável para cada vez mais empresas, ficam paralisados em um número crescente de países cada vez mais recursos materiais; desaparece a capacidade aquisitiva correspondente e os mercados que dela resultam, tirando-se assim dos homens as condições capitalistas da satisfação de suas necessidades.

(c) A "força produtiva ciência" gerada cegamente pelo próprio capitalismo criou assim no nível substancial-material potências que já não são compatíveis com as formas básicas da reprodução capitalista, continuando-se não obstante a encaixá-las forçosamente nessas formas. A consequência é a transformação das forças produtivas em potenciais destrutivos, que provocam catástrofes ecológicas e sócio-econômicas.

(d) Uma vez que essa crise consiste precisamente na eliminação tendencial do trabalho produtivo e, com isso, na supressão negativa do trabalho abstracto pelo capital e dentro do capital, ela já não pode ser criticada ou até superada a partir de um ponto de vista ontológico do "trabalho", da "classe trabalhadora", ou da "luta das classes trabalhadoras". Nessa crise, e em virtude dela, revela-se todo o marxismo da história como parte integrante do mundo burguês da mercadoria moderna, sendo por isso atingido ele próprio pela crise.

Somente depois de compreender essa constelação, pode-se avaliar toda a extensão do perigo que brota nessa situação histórica. Sucessivamente, a crise está avançando com toda a força, sendo porém interpretada de forma errónea: primeiro como crise aparentemente particular dos países subdesenvolvidos do Terceiro Mundo e, depois, como crise do modelo "errado" da reprodução do socialismo real, enquanto a própria economia de concorrência ocidental aparece como "vencedora", ainda que provavelmente, se pensarmos em dimensões históricas, apenas durante um segundo. Essa interpretação errónea da crise, isto é, a incapacidade de reconhecer sua verdadeira extensão global e de decifrar sua lógica interna, deve-se, evidentemente, ao facto de que todos os modelos de interpretação ainda apresentam eles mesmos a forma-mercadoria, sendo impossível reconhecer através deles a crise do sistema produtor de mercadorias.

Particularmente a esquerda, com todos as seus matizes, mostra-se completamente incapaz de dar uma resposta à crise. Para isso, não possui nem sinal de um programa, porque seu pensamento está firmemente vinculado às categorias do marxismo do movimento operário, permanecendo, portanto, obcecado pela forma-mercadoria. O "outro" Marx, o da critica da economia política que transcende essa forma, foi há muito tempo mandado para um além teórico, ou então somente serve de fundamento para um sermão dominical "filosófico", livre de qualquer compromisso. Toda recordação das consequências verdadeiras provoca na esquerda reacções quase já furiosas de defesa e hipocrisia teórica, nascidas da consciência pesada. E por isso precisamente a esquerda considera as consequências erradas: em vez de radicalizar-se após a derrota dos "mercados planejados" da modernização recuperadora, e de combater, no nível actual da crise, a lógica do mercado, ela passa, pelo contrário, a aproximar-se das formas ocidentais do mercado, originariamente capitalistas, e isso em parte na ponta dos pés, mas em parte também esmagando abertamente e com toda força o seu próprio papel anterior, de oposição. Não há muita esperança de que esse pensamento possa juntar força suficiente para outra virada quando chega o momento em que a crise se alastra definitivamente para o Ocidente, revelando impiedosamente a insustentabilidade de todos os programas da economia de mercado.

Mas, reconhecendo e aceitando o não à realidade: a humanidade tem que enfrentar o facto de que, por trás de suas costas e pelas forças produtivas que ela mesma criou, foi socializada de forma comunista "o nível substancial-material e "técnico". Essa situação objectiva é incompatível com as formas que o sujeito apresenta na superfície da sociedade. O comunismo, supostamente fracassado, que é confundido com as sociedades em colapso da modernização recuperadora, não é nem utopia nem um objectivo distante, jamais alcançável, muito além da realidade, mas sim,

um fenómeno já presente, o mais próximo que encontramos na realidade, ainda que na forma errada e negativa, dentro do invólucro capitalista do sistema mundial produtor de mercadorias, isto é, na forma de um comunismo das coisas, como entrelaçamento global do conteúdo da reprodução humana. E esse comunismo é dirigido pela estrutura cega e tautológica do automovimento do dinheiro, que não pode obedecer a nenhuma lógica de necessidades sensíveis, sentindo os próprios sujeitos humanos o contexto em que se encontram como realidade objectivada e extrínseca, dentro da qual somente podem observar e examinar a actuação das leis próprias, da mesma maneira que aquela dos processos naturais (por exemplo, com a teoria conjuntural). Nessa situação, a consciência burguesa, em todas as suas formas de manifestação e variações nascidas durante a história da modernidade, está vacilando, num vaivém cada vez mais rápido, desamparado e desesperado, entre o pólo monetarista e o estatista de sua existência(4) sem poder escapar aos processes catastróficos que ela própria criou. Uma vez que se tornou efectiva e definitivamente obsoleto o "comunismo do trabalho", que nunca passou de uma ideologia rígida da modernização burguesa, já não encontrando nenhum fundamento na realidade, ignora-se a realidade comunista que existe por trás das costas. Na verdade, esse distingue-se bastante do socialismo esperado pelo antigo movimento operário. Pois não foi criado pelo proletariado, mas sim pela "força produtiva ciência". Fundamenta-se nessa, e não tem mais nada a ver com a antiga ontologia do trabalho, supostamente anticapitalista.

Por isso, o problema que actualmente se apresenta, e isso sob pena da ruína, já não pode ser compreendido e resolvido pelo antigo pensamento "utópico". Esse pensamento, por encontrar-se muito aquém do momento de crise e supressão do sistema produtor de mercadorias, tinha que se limitar à projecção abstracta de um "novo ser humano". Até suas manifestações mais radicais nada mais podiam ser, na verdade, do que antecipações fantásticas não de um comunismo futuro, mas sim somente de fases de desenvolvimento futuras da moderna Sociedade de mercadorias e sua totalidade hoje em dia definitivamente amadurecida, que se manifesta na forma do mercado mundial.

Mas não se trata de criar um "novo ser humano", que saísse de alguma retorta ideológica como Atena saiu da cabeça de Zeus, nem de transportar (conforme acreditam Horkheimer e seus adeptos) algo "completamente diferente", criado por uma razão transcendente e absoluta, para este mundo "mau", até agora intocado por essa razão. Todos esses construtores nascem do pensamento iluminista, que junto com o sistema produtor de mercadorias tem de chegar a seu fim, por ter ele mesmo a forma-mercadoria, considerando e percebendo o mundo de forma invertida, isto é, por meio da abstracção, típica da forma-mercadoria, do conteúdo sensível. A actualidade exige, no fundo, uma razão prática que pode ser imanente, isto é, que se limita à superação de determinada situação histórica, porque já não pode estabelecer a pretensão absoluta de uma "razão universal" burguês-iluminista, que na verdade não tem substância alguma.

Hoje em dia, essa ideia é até pronunciada pelo próprio pensamento iluminista decaído, mas outra vez de forma errada, a saber, como renúncia a qualquer pretensão de conhecimento. A renúncia cabisbaixa aos assim denominados conceitos abrangentes" e "teorias abrangentes" (compare Sloterdijk, 1983), a proibição tácita de pensar no nível das estruturas básicas, a denúncia de toda crítica social radical como "presunção" de um pensamento "desvinculado da prática" - tudo isso é apenas o lado oposto e negativo da pretensão absoluta e iluminista que antigamente era atribuída a uma "razão universal" abstracta.

Nessa redução das pretensões até a insignificância manifesta-se não apenas o reconhecimento da obsolescência das utopias do iluminismo e do movimento operário (pois isso seria realmente um progresso), mas também, e até muito mais, o carácter secreto, burguês e marcado pela mercadoria, desse próprio pensamento, que agora aparece indisfarçado, depois de desfazer-se de suas vestimentas históricas. Pois o que esse pensamento, livre de todas as restrições, entende por razão prática e imanência não absolutista é um manejo prático e desavergonhado da categoria dinheiro, pressuposta cegamente e sem crítica, categoria cujo automovimento tautológico finalmente pode ser reconhecido como princípio ontológico. O que está aqui actuando é ainda a mesma razão abstracta do iluminismo, que se tornou destrutiva e à qual se passou a recorrer somente numa forma diminutiva e decadente, acompanhada de constantes desculpas e teoricamente malbaratada, porque o sujeito, apesar de reconhecer sua desrealização e heteronomia, agarra-se desesperadamente a essa sua forma. A redução da razão subjectiva desemboca na apoteose da lógica objectiva do mercado, à qual as pessoas acabam se sujeitando com um prazer quase masoquista.

"Ser prático" não significa mais nada, portanto, do que se acomodar, até em crises e catástrofes, no automovimento abstracto do dinheiro, reduzir a subjectividade (inclusive a teórica) a uma estratégia astuciosa de sobrevivência (sendo essa a quintessência banal da "crítica da razão cínica", aparentemente abrangente, de Sloterdijk) e, como se isso não bastasse, combinar essas atitudes, se possível, com o gesto habitual da "critica", que dessa maneira transforma-se em seu contrário.(5)

Mas a superação da crise exige um tipo completamente diferente, exactamente oposto, de "razão prática" e "imanência", que ao invés de moderar a crítica social torna-a mais radical e mais aguda. Ou, em palavras mais precisas: a substância material das potências alcançadas da socialização tem que ser radicalmente liberada da forma histórica que contaminou essa substância e tornou-a extremamente destrutiva. O que é exigido é, portanto, uma razão sensível, que é exactamente o contrário da razão iluminista, abstracta, burguesa e vinculada à forma-mercadoria. Revelar-se-ia então que a pretensão dessa, de ser absoluta, nada mais significa que medir conteúdos sensíveis de qualidade totalmente diferente com os mesmos critérios de uma lógica que se tornou independente. À indiferença do dinheiro frente ao conteúdo das necessidades corresponde então a forma teórica do método científico positivista, aplicado a conteúdos quaisquer.

Essa lógica e essa razão chegaram ao fim porque as forças produtivas substancial-materiais que delas brotaram chegaram a causar, sob o ditado da abstracção social, estragos insuportáveis. Por um lado causaram a fome e o desespero de milhões e, por fim, biliões de pessoas, e por outro, a paralisação em massa de recursos ainda perfeitos. Por um lado, são paralisadas produções indispensáveis, sem consideração das necessidades, e por outro, levados a cabo projectos "piramidais" extremamente perigosos, sem consideração dos prejuízos. Os navios de containers, que transportam às regiões de fome africanas os bens procedentes de doações caritativas, levam de volta para casa, dessas regiões, produtos de luxo e das monoculturas das agroindústrias com os quais já não tem nada a ver a maioria da população desses países, nem como produtores, nem como consumidores. O sistema da agricultura da Comunidade Europeia, nascido das contradições da exigência de rentabilidade e da orientação no mercado mundial, já não parece passar de passatempo de lunáticos. O desperdício de energia, causado pelo absurdo transporte individual e por produções completamente inúteis que trazem em si sua própria finalidade, está destruindo o clima, a atmosfera, a camada de ozónio e o lençol de água, sendo não obstante incentivado e garantido (por exemplo, na crise do Golfo) com meios de destruição de massas, nas correspondentes "regiões de interesse".

Já não tem nenhum sentido, em face dessas acções colectivas de suicídio em escala mundial, discutir "reformas" isoladas, enquanto isso não acontece com a perspectiva da supressão radical da mercadoria moderna e de seu sistema mundial. Para possibilitar as actividades de remoção, mais do que necessárias há algum tempo (e que, como ironia do destino, serão o primeiro acto inevitável depois de terminar o "trabalho" abstracto), e a purificação, necessária a sobrevivência, dos entrelaçamentos materiais que escaparam ao controle, por meio da "razão sensível", tem que ser interrompido por toda parte e aniquilado, o quanto antes, esse sistema mundial da rentabilidade e dos processos abstractos de exploração em empresas.

Tratar-se-ia de uma revolução de facto, mas não daquele tipo no qual uma "classe" dentro da forma-mercadoria (e constituída por essa) tivesse que "derrotar" outra "classe", como sujeito antípoda. A possível violência resultaria unicamente do facto de que um sistema louco e perigoso para a humanidade não será abandonado voluntariamente por seus representantes (os executivos, a classe política, e o aparato de administração e de emergência).

Mas para essa revolução, por sua vez, teria primeiro que se formar um movimento de supressão, como força social, e isso é apenas possível por meio da consciência e, com isso, mediante a conscientização, que no nível intelectual restabelece o contexto perdido e deixa de considerar os fenómenos de destruição em sua mera particularidade, forma em que já não podem ser superados. Isso já provam o fracasso e a dissolução rápida dos movimentos concentrados em um só ponto.

Provavelmente não seria difícil chegar com muitas pessoas ao acordo de que a "razão sensível" tornou-se tão necessária quanto um pedaço de pão e que é precisamente a lógica abstracta, independentizada, da rentabilidade que está destruindo o mundo. Mas o sujeito-mercadoria fica assustado e teimoso no momento em que percebe que a consequência seria o fim de todas as receitas em dinheiro, isto é, da famosa relação de mercadoria e dinheiro, além da qual ele não conhece, e nem quer conhecer ou desenvolver, outra forma de relações sociais. Sem pensar, passa a identificar imediatamente como "utopia" irrealizável a crítica do dinheiro, apesar de essa, nas condições dadas, ser exactamente o contrário. "Mas como vai funcionar isso na prática?" - esta pergunta, feita com toda seriedade, poderia muito bem conduzir, mediante a discussão social e de experiências práticas, a resultados concretos. Mas ela é apenas retórica, pejorativa e reprovadora.

Ninguém pode afirmar que conhece um caminho cardeal para sair da miséria; ninguém pode tirar da cartola um programa de supressão da mercadoria moderna. A fatalidade é apenas que até agora nem se iniciou uma discussão que enfoque o problema. "E como pode continuar tudo isso na prática?" – esta réplica justa, na forma de outra pergunta, acaba sempre numa nova sujeição à lógica dominante de destruição. Os passageiros do Titanic querem ficar no convés, e que a banda continue tocando. Se tivermos que viver mesmo o "fim da história", não será um final feliz.

Já não tem sentido algum recorrer ao Estado contra o mercado, e ao mercado contra o Estado. A falha do Estado e a falha do mercado tornam-se idênticas porque a forma de reprodução social da modernidade perdeu completamente sua capacidade de funcionamento e de integração. Mas com isso torna-se impossível contornar os problemas, tanto na teoria quanto na prática, e isso o mais tardar no momento em que também os componentes ocidentais do sistema global de produção de mercadorias chegam a experimentar, no mesmo grau de crueldade que o resto do mundo, as consequências da crise. Hic Rhodus, hic salta.

Notas:

(1) Também não é absolutamente o caso que a "competência" (por exemplo, na área das ciências naturais ou no abastecimento da população) constituísse a essência dessas administrações de emergência. Tais competências já estão servindo hoje de instrumentos seja do estatismo seja do monetarismo sendo seus representantes incorporados por meio de motivações compulsórias, isto é, tanto mediante a dependência monetária e material quanto mediante obrigações jurídicas e ameaças de pena. E quanto à substância organizatória das administrações de emergência, não é preciso ter grandes ilusões. Já nas modestas estreias da lógica da emergência, que aconteceram ate na RFA, vencedora no mercado mundial (por exemplo, por ocasião das manifestações contra as usinas atómicas, da catástrofe de Chernobyl ou das invasões de casas abandonadas), tivemos a oportunidade de lançar um olhar à máscara petrificada e anónima das autoridades. O aparato administrativo é tão sensível às necessidades quanto uma central de computadores, O aparato judiciário é nada menos positivista quanto o do Terceiro Reich, e o núcleo do aparato policial e militar profissional está a principio disposto a empregar violência indiscriminada. Já uma ideologia muito diluída de tranquilidade e ordem e um sentimento de solidariedade corporativista do aparato independentizado devem ser suficientes como fundamento da legitimação das brutalidades mais terríveis. Essa tendência manifesta-se em todos os lugares onde já foi desencadeada a lógica da emergência, seja em Pequim ou na Lituânia, em Londres ou em Paris, no norte da Índia ou na América do Sul.

(2) Constitui no entanto, uma condição prévia a circunstância de que esse rompimento apenas pode ser o resultado de uma mobilização bem-sucedida de grandes massas em favor de uma alternativa social nova e conscientemente formulada que primeiro tem que ser elaborada. Essa circunstância faz com que tal ideia seja completamente incompatível com a lógica do terror "simbólico" (defendido por exemplo pelos terroristas da RAF), que voltou até atrás do jacobinismo e por isso tinha que acabar na ausência completa de perspectivas.

(3) Precisamente na inteligência da estrutura académica média e superior, há pouco ainda crítica e até radical, e particularmente entre os intelectuais envelhecidos de 1968, aconteceram com certo atraso programações no sentido da "normalidade" da classe média, que sinalizam tacitamente o desejo de se acomodar no meio da crise "dos outros" antes que seja tarde - atitude devastadora em relação ao pensamento teórico crítico para não falar de seu carácter ilusório.

(4) Não apenas por parte da esquerda podemos observar uma "nova falta de transparência" (Habermas, 1985) crescente e baseada em referências confusas e aparentemente insolúveis. Por um lado, continua-se evocando, e isso precisamente em face dos fenómenos de crise socio-econômicos, as competências de superação do Estado social e de bem-estar, e por outro lado exorta-se, em variações esquerdistas e direitistas a um "civismo" não estatal, que na verdade será mais um disfarce ideológico da lógica igualmente heterônoma do mercado. Nem no papel de sujeito-cidadão, nem naquele de sujeito-mercado, o indivíduo moderno pode ainda superar sua crise, por mais que criem palavras novas seus ideólogos, pois meras palavras nunca lhes faltaram.

(5) Até que ponto um "pensamento duplo" no sentido de Orwell já penetrou as ciências sociais académicas revela-se na mudança de nome do actual apogeu histórico da objetificação do mundo, em forma-mercadoria, chamando-se esse processo de "desobjetificação das relações sociais" (Giesen, 1991). Consta no programa a produção teórica de conceitos tortos e desfigurados: "Hoje em dia própria crítica social abandonou sua distância do conjunto, para tornar-se prática e pôr em movimento o que observou. Com isso, entra na sociedade, passa a fazer parte dela e perde sua força criticamente sintética" (Giesen, 1991, p. 246). Isto é, a crítica social pode continuar usando esse nome mesmo depois de desistir dessa função. Pressupõe-se simplesmente que a prática sempre tenha que integrar-se de forma afirmativa nas condições já existentes. Essa inversão dos factos implica outra: "A pós-modernidade é o produto de intelectuais em situações especiais e novas, nas quais unicamente a crítica da crítica social promete criar a distância necessária" (Giesen, I.c.). A mudança de nome, de afirmação para crítica e de crítica para afirmação, parece desenvolver-se até a virtuosidade. Um dos termos predilectos da prática "crítica", que nada critica, é no contexto das teorias de "civismo", tão modernas quanto indefinidas, a expressão "negociar", como se a lógica afirmada do mercado não fosse uma esfera de execução da rentabilidade e de suas leis, mas sim uma espécie de bazar oriental em que se reúnem diversos poderes sociais e culturais, para se decidirem subjectivamente (e com toda a liberdade) por acordos universalmente aceitáveis. Para esses representantes, actualmente predominantes no espirito académico "crítico", nem pessoas morrendo de fome, nem perseguições sangrentas, nem tanques em avanço, nem mercados financeiros em colapso, parecem poder estabelecer uma ligação com a realidade.

(In. O Colapso da Modernização - Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial de Robert Kurz; Editora Paz e Terra, Brasil, 2ª edição, 1993.

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/