O FIM DA
ECONOMIA NACIONAL
A globalização
e a longa despedida do mundo das nações
A
ciência econômica encontra-se numa profunda crise. De fato, seus conceitos não
correspondem mais à realidade. O próprio nome da disciplina já o diz:
“economia política” ou "economia nacional". A palavra de ordem
hoje em dia é "globalização" – globalização dos mercados, do
dinheiro, do trabalho. É claro que o mercado mundial existe desde o século XVI.
Mas a economia de mercado moderna cresceu sobretudo dentro do espaço funcional
das "nações" criadas no século XVIII: com base num estoque de
capital nacional coerente, surgiram Estados nacionais dotados de sistemas jurídicos
nacionais, infra-estruturas etc. O mercado mundial era visto como "comércio
externo" e restringia-se a um plano secundário. Tal processo, que marcou o
surgimento de novas nações e economias nacionais, estendeu-se também pelo século
XX.
Embora
nossas idéias sociais e nossos "sentimentos políticos" ainda façam
referência ao espaço histórico das nações, essa é uma realidade que
pertence ao passado – pelo menos em termos econômicos. A partir da década de
80, um novo sistema de referências surgiu com uma rapidez impressionante,
impulsionado pelos satélites, a microeletrônica, a nova tecnologia em comunicação
e em transportes, e pela queda dos custos energéticos: para além dos limites
nacionais, surgiu um mercado único e global. Tudo passou a ser negociado a
qualquer momento e em toda parte: dívidas do Terceiro Mundo (brady bonds),
autopeças, mão-de-obra barata, órgãos humanos. A globalização produziu
novos fatos, mas tanto a política quanto a ciência econômica permaneceram
apegadas a seus velhos conceitos e teorias: o estudo da "economia
mundial" ou “economia global” ainda não faz parte do currículo
universitário.
Mas
qual foi, de fato, a mudança fundamental? O mercado mundial devassou as
entranhas da economia nacional e sua língua alcançou, por assim dizer, a última
das aldeias nos confins do mundo. Desde o início do século XX, a exportação
de mercadorias foi crescentemente incrementada pela exportação do capital. A
Ford não exportou apenas automóveis dos Estados Unidos para a Alemanha, mas
também construiu, nesse país, uma fábrica para o mercado alemão. A
Volkswagen, por sua vez, investiu nos Estados Unidos para suprir a demanda
interna norte-americana. Assim, nasceram as empresas multinacionais, mas nem por
isso a coesão das economias nacionais foi posta em questão. Sob a forma do
mercado de câmbio europeu, o sistema de crédito emancipou-se do controle
exercido pelos bancos nacionais. Isso aconteceu apenas com a nova qualidade da
revolução microeletrônica: agora tanto as transações monetárias como mesmo
os processos de produção material podem ser repartidos globalmente. O sistema
de crédito emancipou-se do controle dos bancos emissores nacionais na forma dos
euromercados monetários. Um especulador alemão pode operar com dólares no Japão;
uma empresa japonesa pode tomar empréstimos em marcos alemães nos Estados
Unidos. O mesmo vale para a produção: um produto vendido por uma empresa alemã
no mercado alemão pode ser elaborado parte na Inglaterra e parte no Brasil,
montado em Hong-Kong e expedido do Caribe.
A
partir da década de 60, o comércio mundial expandiu-se com maior rapidez do
que a produção mundial, e a aparente autonomização do comércio ganhou novo
alento no início dos anos 80. Tal fenômeno foi resultado da globalização:
assim, por exemplo, a produção das "fábricas de montagem" japonesas
na América Latina e na Europa – cuja única tarefa é montar componentes
semiprontos, com a utilização mínima de “produtos locais” – aparece
como exportação do México para os Estados Unidos ou da Inglaterra para a
Espanha. Em tais casos, na verdade, não se trata de exportação ou importação
de bens de consumo ou investimentos entre diversas economias nacionais, mas de
uma nova divisão do trabalho dentro das próprias empresas multinacionais. A
repartição das funções produtivas não se acha mais concentrada num único
lugar, mas difunde-se por vários países e continentes. Todos os componentes do
processo produtivo e do sistema financeiro perambulam pelo globo. O mercado
consumidor também teve de expandir-se por todo o mundo, pois quanto maiores os
investimentos em tecnologia avançada e quanto maior a racionalização por meio
da "lean production", tanto maior é o desemprego e tanto menor o
valor da força de trabalho e do poder de compra nacional.
A
concorrência, portanto, exige ao mesmo tempo o marketing global e o
"global outsourcing", sempre em busca de custos mais baixos e maiores
vendas – não importa em que região do mundo. A revista especializada alemã Wirtschaftswoche
formulou tal pensamento nos seguintes termos: "Produzir onde os salários são
baixos, pesquisar onde as leis são generosas e auferir lucros onde os impostos
são menores". Desse modo, até mesmo administradores de empreendimentos médios
tornam-se aos poucos "global players". O capital das empresas não
integra mais o estoque de capital nacional, mas se internacionaliza. E isso é
apenas o início de tal processo. Segundo declarações da empresa de
consultoria McKinsey, cerca de 5% do capital "alemão" está
globalizado, número que deverá atingir, em breve, os 25 ou 30%. Com isso,
altera-se também a orientação estratégica. A economia empresarial e economia
nacional se separam. Não há mais nenhuma estratégia de desenvolvimento econômico.
A
direção da empresa alemã Siemens, por exemplo, reuniu-se recentemente em
Cingapura e decidiu que sua mais nova geração de chips não será produzida,
como estava previsto, na cidade de Dresden (antiga Alemanha Oriental), mas sim
na Escócia. O Deutsche Bank, para desgosto do Banco Central alemão, transferiu
seu setor de investimentos de Frankfurt para Londres. A Mercedes-Benz não
publica mais seu balanço em Stuttgart, mas em Nova York, e o mais novo lançamento
automobilístico da empresa não será montado no sul da Alemanha, mas na França.
As próprias indústrias fornecedoras transferem sua produção para Portugal ou
Polônia, para a República Tcheca ou para o Sudeste Asiático; no país de
origem, permanece apenas o setor de finanças, mas em breve a própria
contabilidade será feita por alguma empresa indiana. A filosofia da marca de
qualidade desloca-se igualmente dos limites econômicos nacionais para um nível
mais globalizado: não mais "Made in Germany", mas "Made in
Mercedes".
As
conseqüências, sem dúvida, são absurdas e perigosas. A economia das empresas
ultrapassa todas as fronteiras, mas o Estado permanece – de acordo com sua
natureza – limitado ao território nacional. O Estado é cada vez menos o
"capitalista coletivo ideal" (Marx), com voz de comando ativa sobre o
estoque de capital nacional. A velha "economia política"
transformou-se em "política econômica". Quando a política deseja
impor limites à ação desenfreada do mercado, as empresas globalizadas logo
ameaçam com uma "Fuga do Egito". Isso vale também para as imposições
ecológicas. Proteger os mananciais hídricos? Poluição do solo? Que tal
repetir tais perguntas no México, onde se permite que o gado definhe aos
montes, sem que os políticos dêem a mínima importância? Depois nós voltamos
a conversar sobre a questão dos custos de produção...
Com
a diminuição da competência do Estado, desfaz-se também a contradição
entre "libertação nacional” e “imperialismo". A maioria dos
regimes fundados na acumulação nacional fracassou, pois foi incapaz de
financiar os custos de capital inerentes a um desenvolvimento industrial autônomo,
sob a pressão da globalização. Grande parte das indústrias estatais,
consideradas pouco lucrativas pelos padrões internacionais, é desativada ou
privatizada, isto é, comprada geralmente por empresas globalizadas. A curto
prazo, talvez seja possível, com isso, sanear as contas públicas. Mas o
capital estrangeiro não visa mais ao desenvolvimento do país como um todo e é
preciso atraí-lo com redução de impostos e outras regalias. O resultado, porém,
é a diminuição do número de empregos, causada pela racionalização, a evasão
dos lucros e a ausência de garantias para os investimentos.
Por
outro lado, os antigos Estados imperialistas não demonstram mais interesse na
anexação territorial ou nas "zonas de influência". Afinal de
contas, de que servem as enormes regiões assoladas pela pobreza, cuja população
não pode mais ser utilizada? Uma "zona de influência" nacional
representa um improdutivo devorador de recursos. As "zonas de
rentabilidade", porém, que se alteram quase diariamente, estão distribuídas
como um eczema ao longo do globo, e nem mesmo os Estados poderosos são capazes
de exercer um controle efetivo sobre tal economia difusa. Dessa maneira, as
diferenças entre os países pobres e ricos são lentamente niveladas, mas não
em termos do bem-estar geral. Em toda parte impõe-se a mentalidade voltada para
a exportação, ou seja, a integração direta e sem entraves no mercado
mundial, ao passo que, simultaneamente, um número cada vez menor de pessoas
conseguem integrar-se economicamente nesse mesmo mercado. Zonas de livre-comércio,
como o Nafta, a Comunidade Européia ou o Mercosul, só tendem a agravar o
problema, pois, geralmente, aceleram a desintegração da economia nacional e
promovem a união multinacional de pequenas ilhas de desenvolvimento. Da teoria
do caos conhecemos o "princípio da auto-semelhança": determinadas
estruturas se repetem em todas as escalas globais. O sistema de mercado global
é "auto-semelhante": num futuro próximo, em cada continente, em cada
país, em cada cidade, existirá uma quantidade proporcional de pobreza e
favelas contrastando com pequenas e obscenas ilhas de riqueza e produtividade.
Os Estados, devido à falta de recursos financeiros, abandonam à sua própria
sorte uma parcela cada vez maior da população, roubando-lhe o direito à
cidadania. As autoridades, enfim, buscam apenas manter o controle militar sobre
os setores "extraterritoriais" da miséria e da barbárie. Entretanto
já existe um “security guide” para os homens de negócios da globalização,
onde se aponta onde dominam as “situações fora de lei”.
É
evidente que o resultado desse tipo de globalização não é nada auspicioso.
Uma economia global limitada a uma minoria sempre mais restrita é incapaz de
sobreviver. Se a concorrência globalizada torna “não rentável” cada vez
mais produção industrial e assola numa proporção ascendente a economia das
regiões, segue-se logicamente que o capital mundial minimiza seu próprio raio
de ação. A longo prazo, o capital não poderá insistir na acumulação sobre
uma base tão restrita, dispersa por todo o mundo, do mesmo modo como não é
possível dançar sobre uma tampinha de cerveja.
Além
disso, a globalização acarreta uma nova contradição estrutural entre o
mercado e o Estado. De fato, por meio da internacionalização do estoque de
capital, o capital foge ao controle estatal e diminui as receitas públicas. Por
outro lado, o capital globalizado depende mais do que nunca de uma
infra-estrutura funcional (portos e aeroportos, estradas, sistemas de transporte
e comunicação, escolas, universidades, etc.), que, como antes, deve ser
organizada por iniciativa estatal. A globalização, podemos concluir, retira ao
Estado os meios financeiros imprescindíveis para o próprio desenvolvimento da
globalização.
Entretanto,
são sobretudo as reações desesperadas dos homens "cuspidos" do
mercado que desencadeiam a crise do novo sistema mundial. Os custos da
"segurança" crescem em proporções astronômicas. Os antigos países
imperialistas, numa economia globalizada, não podem mais declarar guerra uns
aos outros, mas são obrigados a mobilizar conjuntamente uma "polícia
mundial" contra os perdedores globais, a fim de garantir condições para o
negócio nas ilhas de riqueza. Talvez essa nova guerra seja ainda mais
dispendiosa do que a antiga “Guerra Fria”. Por toda parte, a máfia começa
a usurpar os atributos da soberania estatal. Ditaduras truculentas outrora
desenvolvimentistas, como o regime de Saddam Hussein, tornam-se imprevisíveis.
O fundamentalismo religioso inunda o mundo com seu terrorismo. Em diversos países
surgem movimentos militantes sem qualquer perspectiva, denominados, em geral,
"nacionalistas", mas que, na verdade, são "etnicistas" e,
na maioria das vezes, separatistas. Ao contrário dos amigos movimentos
nacionalistas burgueses, da Revolução Francesa ao Terceiro Reich, não se
trata agora da integração, mas sim da desintegração das nações ou das
economias nacionais. A globalização de uma "economia da minoria" tem
como conseqüência direta a "guerra civil mundial", em todos os países
e em todas as cidades.
Podemos
apenas perguntar com voz abafada o que é preciso fazer para barrar essa evolução.
Um retorno ao mundo das economias nacionais é improvável. Paradoxalmente, no
entanto, o espaço público da política ainda permanecem entregue ao Estado
nacional. Com base nessa contradição, será possível superar as nações de
um modo não apenas negativo? É viável a criação de territórios "pós-nacionais"
e campos de operação para além do mercado e do Estado?
Sob
o jugo da economia nacional, a nível local e regional, alguns países
desenvolveram novas formas cooperativas de administração e abastecimento autônomos,
capazes de suprir as necessidades humanas básicas. Mas os recursos para tanto são
absolutamente insuficientes. Como exemplo, podemos citar o movimento encabeçado
por Betinho no Brasil, as ONGs e algumas associações de renome mundial, como a
Anistia Internacional e o Greenpeace, que não têm propósitos comerciais nem são
vinculados ao Estado. Entretanto, nenhum desses grupos possui até agora competência
social ou econômica; ocupam-se apenas com as conseqüências negativas da
globalizacão, sem questionar o sistema econômico como um todo.
E
qual a função da teoria, do pensamento crítico internacional? A "paz
eterna", proclamada por Kant no limiar da era moderna como a paz entre as
nações independentes, foi tão incapaz de cumprir sua promessa quanto o
"internacionalismo proletário" dos movimentos socialistas. Nos dias
de hoje, parece que a filosofia capitulou definitivamente perante a barbárie do
mercado total. Será que a comunicação internacional ficará resumida, por
fim, aos lançamentos contábeis dos mercados financeiros globalizados? O
pensamento inconformista deve ser tão ágil quanto o dinheiro fugidio. O que
nos falta, na verdade, é a globalização de uma nova crítica social.
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