O
TERROR DAS TAXAS DE CÂMBIO
O
fracasso do “Plano Real” é parte de uma crise monetária global
A
cada mês se torna mais claro: o capitalismo global, cuja vitalidade é
incansavelmente louvada, como na
televisão russa o frescor intelectual do presidente Ieltsin, na verdade não
sairá mais da UTI. As seguidas paradas cardíacas dos mercados financeiros
tiveram de ser atalhadas pelos médicos institucionais de plantão com uma alta
dosagem de medicamentos. Enquanto o paciente respira com ajuda de instrumentos,
o discurso oficial proclama que, além de poder bater recordes mundiais de
velocidade, ele é perfeitamente capaz de superar a si próprio. Essa
terapia-placebo, adotada em moldes grotescos na crise do México no final de
1994, na crise asiática de 1997 e na crise russa de 1998, tem toda
probabilidade de ser repetida na atual crise brasileira de início de 1999.
Um
dos componentes dessa receita cada vez menos digna de crédito é a idéia
propalada com atroz teimosia de que o sistema global de coordenadas não se
tornou insustentável, de que as diversas crises não têm absolutamente nada a
ver umas com as outras, de que elas são mero fruto da imaginação e remontam
sempre a "erros" ou "descuidos" políticos dos respectivos
governos. Do mesmo modo que os mandarins políticos dos tigres asiáticos, antes
venerados como deuses, foram subitamente tachados de déspotas corruptos, assim
também a administração do presidente Fernando Henrique Cardoso, ainda há
pouco tão enaltecida por sua conduta político-econômica, agora é
internacionalmente depreciada, junto com o real.
Quanto
mais encarniçadamente as potências dominantes negam que se trata de uma crise
de amplitude global, mais claramente vem à luz essa situação de fato. O
colapso do sistema mundial desdobra-se em três planos lógicos, dispostos de
certa forma em camadas sobrepostas. Na base da economia capitalista, o
crescimento da criação real de valor já chegou a um impasse, pois as forças
produtivas técnico-científicas crescem rapidamente para além da economia
monetária moderna, o que pode ser deduzido do crescente descompasso entre o
enorme potencial produtivo e o reduzido poder de compra.
No
segundo plano do capital monetário, simula-se temporariamente um crescimento
ulterior antecipando-se uma criação de valor futura que jamais ocorrerá, fato
que se manifesta no endividamento constante de consumidores, empresas e Estados,
os quais por sua vez mal-e-mal se mantêm à tona por meio da emissão de títulos
sem substância real de valor. Esse capital monetário fictício, no entanto,
somente é capaz de existir na forma específica de moedas nacionais, que compõem
assim o terceiro e último plano. A crise que subjaz ao capital produtivo,
portanto, manifesta-se logicamente depois de um certo tempo de incubação como
crise financeira, e essa, finalmente, como crise monetária.
As
crises financeiras nacionais assumem a forma transnacional de uma crise monetária
quando a própria emissão de moeda da economia interna é substituída pela
afluência de capital monetário em outras moedas. Essa possibilidade surgiu
apenas quando o dólar perdeu, em 1973, seu lastro em ouro, e o sistema antes
fixo das taxas de câmbio passou a oscilar de maneira imprevisível – um
primeiro indício do limite interno da economia real. O capital monetário, já
insuficiente para ser reinvestido na produção, buscou uma válvula de escape e
afluiu aos mercados financeiros transnacionais, que, no entanto, só podiam ser
insuflados sob a forma de numerário nacional, embora cada vez mais alheio à
circulação da respectiva economia interna. Em outras palavras, o capital monetário
fictício, livre de amarras, deu início a um "baile de máscaras das
moedas" ao pular permanentemente dessa para aquela "fantasia"
monetária, a fim de especular com as oscilações das taxas de câmbio de livre
flutuação, sem jamais ter de se fixar em investimentos estratégicos de caráter
imóvel.
Com
isso também foi superada a teoria clássica da taxa de câmbio das paridades de
poder de compra, criada pelo economista sueco Gustav Cassel (1866-1945), a qual
em última instância fazia com que as relações entre as moedas dependessem do
movimento real dos bens internacionais. Mas não foi a teoria de Cassel que se
revelou falsa, foi o capitalismo que se tornou suspeito a seus próprios
fundamentos e falsificou a si mesmo como realidade positiva. O fluxo de capital
monetário não é mais expressão do fluxo real de mercadorias; ao contrário,
a produção de bens (e portanto a sobrevivência de países e continentes
inteiros) é somente um aspecto secundário da liquidez que inunda o globo por
intermédio das moedas. Mas, em vez de registrar o caráter crítico dessa mudança,
desde os anos 80 os economistas preferiram favorecer a teoria financeira das
taxas de câmbio desenvolvida particularmente pelos anglo-saxões, teoria esta
que faz remontar a relação das moedas sobretudo ao peso dos respectivos ativos
"depositados" no capital monetário. Finge-se com isso descobrir uma
explicação melhor para uma realidade econômica neutra e sempre existente.
Ora, as crescentes crises monetárias contradizem esse cenário.
É óbvio que as moedas não se equiparam. A antiga disparidade econômica da produtividade entre centro e periferia repete-se mais uma vez na nova constelação das grandezas fictícias. De um lado situam-se as três moedas centrais, o dólar, o iene e o euro (até agora marco alemão), que definem o critério para o capital monetário transnacional. De outro lado encontram-se todas as outras moedas, que têm de medir a si próprias por meio desse critério. Isso significa que somente sob condições gravosas os Estados da periferia são capazes de atrair uma parcela do fluido capital monetário transnacional, a fim de sobreviverem economicamente a despeito da escassa rentabilidade. Nos anos 70 e 80, a crise global manteve-se em grande parte sob o signo das tentativas de contenção nacional.
Quando,
naquela época, países como o Brasil caíram vítimas da crise de
endividamento, pois seus créditos internacionais não puderam mais ser
regularmente amortizados, os respectivos bancos centrais passaram a trabalhar a
todo vapor, emitindo papel-moeda até as raias da hiperinflação. O FMI (Fundo
Monetário Internacional), antes quase ocioso, impediu afinal, na condição de
administrador da crise, uma catástrofe global do crédito, pois logrou
converter a maioria dos empréstimos estatais a longo prazo dos países
devedores em títulos com descontos acentuados, permitindo-lhes circular a
partir daí sob o nome de Brady-Bonds
(em homenagem ao então ministro das Finanças norte-americano).
O
preço para tanto foi um drástico surto recessivo em grande parte do Terceiro
Mundo. Sem uma solução definitiva, o problema foi simplesmente postergado,
porque as ajudas do FMI nada mais são, como é de boa praxe, do que créditos
temporários de cobertura. Trata-se sempre, portanto, apenas de assegurar a solvência
mínima das obrigações internacionais de um país. Todo o mecanismo repousa na
ficção de que cabe somente "colmatar" uma lacuna no processo real de
criação de valor. Que tal buraco negro abra uma bocarra cada vez maior não é
objeto de previsão, sendo antes um assunto tabu. Até hoje a situação
continua a mesma.
O
que mudou nos anos 90, porém, foi a forma de endividamento. Depois de malograr
a contração de créditos estatais a longo prazo, destinados a projetos
nacionais de desenvolvimento de cunho político, alguns países periféricos que
ainda davam sinal de vida passaram a ancorar suas moedas ao dólar. Com auxílio
dessa taxa de câmbio "política" atrelada ao dólar e das altas taxas
de juros, o capital monetário internacional de curto prazo foi atraído para
financiar a própria reprodução: investimentos para a industrialização
voltada à exportação, bem como para a infra-estrutura, mas também inúmeros
projetos que renovaram o gosto pelo luxo e pelo consumo.
Ao
contrário da antiga captação direta de crédito estatal no exterior, agora o
capital monetário transnacional afluía aos mercados financeiros do comércio
interno, e isso num volume essencialmente maior do que no passado. Dessa maneira
foi possível tanto ao Estado quanto às empresas e aos consumidores
endividarem-se com dinheiro estrangeiro nos seus próprios mercados financeiros.
O potencial inflacionário foi de certo modo burlado com meios político-monetários,
pois esse montante em dinheiro não aparecia nem como emissão irregular de
moeda pelo próprio Banco Central nem como expansão do volume de dólares que
circulavam nos Estados Unidos. Desse expediente lançaram mão não apenas os
tigres asiáticos; ele constituiu também a essência do Plano Real de 1994.
Como por milagre, a hiperinflação encolheu a zero.
O
preço dessa refinada manobra foi a renúncia à já fracassada estratégia
nacional de desenvolvimento, a abertura dos próprios mercados e o abandono
incondicional aos interesses dos fundos de investimento transnacionais. Ela
implicou também a defesa a qualquer custo da taxa de câmbio artificialmente
"política" como pressuposto do programa como um todo. Mas os custos
do afluxo de capital logo suplantaram os resultados dos projetos por ele
financiados, tal como no passado. A única diferença foi que a crise assumiu
outra forma sob as novas circunstâncias: agora ela se fazia notar como pressão
implacável sobre as moedas artificialmente sobrevalorizadas dos "mercados
emergentes".
O
colapso dos tigres asiáticos e da Rússia em breve abateu-se sobre a América
Latina e principalmente sobre o Brasil, pois o capital transnacional não tardou
em bater em retirada: o Brasil teve de amparar a cotação do real pulverizando
suas reservas internacionais (elas caíram, em poucos meses, de US$ 75 bilhões
para US$ 30 bilhões) e sufocando o crescimento interno com uma política de
juros extremados, que chegaram a orçar pelos 50%, o que fez o índice Bovespa
despencar 75% em relação ao pico da fase de prosperidade. Era de esperar que o
Brasil capitulasse, na esteira dos tigres asiáticos e da Rússia, e fosse
obrigado a deixar o real flutuar livremente, a despeito de um pacote de ajuda
concedido pelo FMI (nesse meio tempo, ele perdeu mais de 30% em relação ao dólar).
À
diferença da Ásia e da Rússia, a primeira reação ao colapso, curiosamente,
foi quase eufórica: num único dia, o índice Bovespa subiu mais de 30%, e
muitos áugures internacionais quase retiraram seu sinal de alerta. Tal fato só
faz corroborar a memória curta dos atores e a constituição irracional dos
mercados financeiros sob a pressão de uma liquidez que não sabe mais para onde
ir. É verdade que a situação brasileira difere em alguns pontos daquela dos
tigres asiáticos e da Rússia. O mercado interno brasileiro é muito maior e,
em alguns setores, relativamente menos dependente do afluxo de capital monetário
internacional. Também foi uma sensatez, por parte da administração de
Fernando Henrique Cardoso, em oposição à Tailândia ou à Coréia do Sul, não
defender absurdamente a taxa de câmbio "política" até o último
centavo, retirando-se em boa hora e reservando-se ainda algum espaço autônomo
de manobra.
Mas os problemas fundamentais continuam pendentes, e a crise estrutural, de raízes profundas, não é mais capaz de ser conjurada com tais subterfúgios, por mais refinados que eles sejam, pois suas causas estão fora do alcance de toda política governamental baseada no sistema de mercado. O fato de o colapso da taxa de câmbio "política" assumir traços de algo positivo, já que agora o Banco Central brasileiro poderia baixar os juros e a desvalorização seria um alento para as exportações, revela mais recalque do que clarividência. Sim, porque se for assim, por que cargas-d'água terá havido o Plano Real?
A
ignorância dos otimistas de plantão esquece completamente as condições que
levaram ao plano, aliás jamais superadas. De fato, a verdadeira razão para a
política de juros elevados não desapareceu, pois o Brasil necessita, somente
ele, de 40% dos aproximadamente US$ 180 bilhões de capital monetário
transnacional que se encontram à disposição, em 1999, dos mercados
emergentes, sempre sob a improvável condição de que não se verifiquem mais
outros surtos de crise!
Como
a âncora de estabilidade da taxa de câmbio desapareceu, os juros não podem
ser reduzidos a ponto de fomentar o almejado crescimento interno. Por outro
lado, o efeito benéfico à exportação trazido pela desvalorização do real
encontrará limites, pois nem o potencial produtivo nem a capacidade de absorção
do mercado mundial são suficientes numa conjuntura de crescimento global
estagnado.
Com
tanto mais razão, é ilusório desvincular do contexto econômico o elevado déficit
das contas públicas brasileiras, supondo-o "causa intrínseca" da
crise, e reclamar credulamente a adoção das rígidas medidas de poupança e
elevação de impostos, prometidas sob pressão. Numa forte recessão como essa,
é fatal quando o Estado aperta, por pouco que seja, o garrote dos impostos e ao
mesmo tempo suspende uma parte de seus gastos em investimentos e consumo. O déficit
estatal, em nenhum lugar do mundo, significa somente corrupção; direta ou
indiretamente ele é também demanda e vida para milhões de pessoas que já
sobrevivem no limite da miséria. Se a situação já é difícil sem déficit público
crescente, quem dirá sem ele. A receita milagrosa do FMI, fracassada nos quatro
cantos do globo, equivale a exortar a um náufrago que, no interesse de sua própria
salvação, cometa antes suicídio.
Com
isso retornamos novamente ao ponto de partida: não há nenhuma solução possível
de política monetária, porque os próprios fundamentos do moderno sistema
produtor de mercadorias estão em xeque. Eis por que as crises dos antigos
mercados emergentes continuarão a causar espécie e a saltar de um continente a
outro: a China já é o próximo candidato, como mostrou a falência bilionária
da sociedade de investimento Gitic, ofuscada pela tempestade brasileira.
Quando
o capital monetário transnacional, por falta de segurança, retira-se do país,
as dívidas em dólares do Estado e das empresas, bem como a dependência de
componentes importados para a produção e a subsistência precária da economia
interna, só abrem espaço a uma opção: voltar a imprimir papel-moeda. Mas
paradoxalmente, tão logo retorne a hiperinflação em meio ao quadro recessivo,
a fagulha da crise monetária chispará também sobre as três moedas-chave.
Tolo daquele que espera uma “vencedora” entre elas.
Original