A
VIRTUALIZAÇÃO DA ECONOMIA
Os
mercados financeiros transnacionais e a crise da regulação
O
triunfo da virtualidade sobre a realidade, sob o impacto da computadorização e
da nova mídia, já vem sendo discutido há duas décadas pelas ciências
sociais. Se o espaço virtual domina a realidade material e produz assim uma
realidade de segunda ordem, isso é menos uma questão dos meios técnicos de
comunicação do que um problema da economia. Hoje nada é tão virtual quanto a
rede planetária dos mercados financeiros. Em termos simples, isso significa que
não há mais uma correlação intrínseca entre a produção de bens reais e o
movimento dos mercados financeiros. Do mesmo modo que a indústria capitalista
do século 20 criou um mundo material à sua imagem, assim também o capital
virtual dos mercados financeiros cria, no final deste século, um sistema
industrial à sua imagem, ou seja, uma economia de segunda ordem.
Por
trás desse desenvolvimento estava originalmente a transformação económica da
própria indústria. É claro que, como antes, o processo material da vida é
determinado pelas mercadorias industriais, mas sua produção exige cada vez
menos dispêndio de energia humana. As formas económicas, porém, do moderno
sistema produtor de mercadorias repousam no facto de as mercadorias
representarem energia social despendida. Para evitar essa contradição, a ciência
económica oficial tirou, há tempos, a falsa conclusão de negar toda a substância
económica objectiva da produção de mercadorias e deixar que o valor das
mercadorias se esgotasse na apreciação subjectiva da utilidade para os indivíduos.
Entretanto, as relações sociais continuam a ser definidas pelo dispêndio recíproco
de energia humana ("produtividade"). Surge dessa maneira uma relação
absurda: de um lado, o dispêndio de energia, em termos capitalistas, torna-se
inutilizável por um número cada vez maior de pessoas que vive no presente; de
outro, o capital é obrigado, justamente por isso, a recorrer à utilização
virtual de energia humana virtual num futuro virtual.
Desde
o início do século 20, essa tendência levou a uma alteração – furtiva,
mas inexorável – da relação entre o capital industrial e o capital
financeiro. Se, apesar das pequenas crises especulativas, o capital financeiro
foi um sector bastante secundário entre 1850 e cerca de 1910, enquanto o
desenvolvimento era ditado pelo capital industrial, a relação inverteu-se nas
décadas seguintes. Tanto o financiamento da produção industrial, cujos custos
eram crescentes em decorrência da evolução técnica, quanto a crescente
ampliação do número de tarefas do Estado em benefício do consumo social,
imprescindível nos moldes capitalistas (infra-estrutura, previdência social,
armamentos etc.), não puderam mais ser custeados com o refluxo dos ganhos
industriais. Por isso, as empresas, assim como os Estados, passaram a depender
cada vez mais da antecipação virtual de receitas futuras (o crédito nas suas
diferentes formas).
Esse
processo conduziu a duas consequências diversas. Primeiro, as moedas tiveram de
ser desatreladas do padrão-ouro e, portanto, de toda cobertura objectiva
(substancial). Segundo, o centro do capitalismo deslocou-se dos cartéis
industriais para o sistema bancário. Apesar disso, essa forma de virtualização
ainda manteve laços com a antiga sociedade industrial. O capital financeiro
tinha realmente de encarnar-se em investimentos industriais e estatais, tinha
realmente de firmar-se a longo prazo, a fim de colher rendimentos. Tratava-se
ainda de cingir o virtual futuro capitalista ao presente, uma estratégia que
simplesmente prolongava a realidade industrial. Eis por que o desenvolvimento
das Bolsas manteve ainda o vínculo de fato com o êxito industrial virtualmente
antecipado. E pelo mesmo motivo o capital financeiro, que dominava a indústria,
permaneceu também centrado no sistema nacional dos bancos comerciais. A circulação
internacional de capitais era realizada por intermédio desses bancos e
sujeitava-se a mecanismos de regulação e controle dos respectivos Estados
nacionais.
Por
volta do início dos anos 80, porém, a virtualização do capital financeiro
ingressou num estágio de desenvolvimento qualitativamente novo. O pano de
fundo, mais uma vez, é uma nova transformação da própria indústria. Isso
porque a tecnologia microeletrónica ocasiona um salto qualitativo na virtualização
económica das mercadorias industriais. Como produtos e bens de consumo técnicos,
elas são palpavelmente materiais, da mesma forma que antes, mas, como
mercadorias (isto é, como objectos de uma forma social), elas representam, sob
as novas condições técnicas, um dispêndio tão diminuto de energia humana
que de certo modo já se apresentam como simples mercadorias virtuais. A consequência
lógica é o capital financeiro romper todo o vínculo com o sistema industrial,
cujo futuro virtual ele deixa de representar, representando dali em diante
apenas a sua própria virtualidade futura.
Esse
novo estágio de virtualização à segunda potência ensejou, por sua vez,
consequências decisivas. Se, entre 1910 e 1980, o centro do capitalismo
deslocou-se dos cartéis industriais para o sistema bancário, a partir de então
ele desloca-se dos bancos comerciais para os grandes fundos de investimento.
Agora não se trata mais de prolongar a realidade industrial da criação
industrial de valor. Só na aparência externa ainda estamos às voltas com uma
antecipação virtual de êxitos industriais futuros. Como sismógrafo da tendência
futura da criação industrial de valor, o movimento do novo capital financeiro
é quase tão relevante como um altímetro num foguete com destino a Marte. Além
disso, esse fundo de capital que hoje domina as formas tradicionais do capital
financeiro não se acha mais confinado à moldura do Estado nacional. Com auxílio
da mídia electrónica, ligada por satélite em rede planetária, podem-se
efectuar transferências em tempo real de qualquer ponto da Terra a outro ponto
qualquer. Os movimentos dos fundos de capital não representam mais uma circulação
de capitais intermediada por bancos comerciais cujos centros são as nações;
antes, é o capital financeiro transnacional que, desde o princípio, age num
plano de segunda ordem, como que "acima" ou para além do capital
financeiro, tradicionalmente investido e vinculado ao sistema de referência
nacional. É por isso que os fundos transnacionais saltam com facilidade sobre
todas as formas de regulação e todos os mecanismos de controle nacionais.
Isso
significa também que esse novo capital financeiro não logra mais encarnar-se
por si próprio em investimentos industriais. É claro que o capital financeiro
tradicional também foi negociado na forma de papéis, circulando amplamente,
mas tal circulação permaneceu vinculada directamente às rendas industriais.
Como virtualidade de segunda ordem, os fundos transnacionais não se ligam mais
às rendas industriais, mas à virtualidade de primeira ordem. Em outras
palavras, trata-se da capitalização das "expectativas de
expectativas", sem nenhum contacto com a realidade industrial. Esse sucedâneo
potencializado do capital financeiro tradicional é, no entanto, o simples
reverso da própria virtualização económica dos produtos industriais.
Disso
decorre que os investimentos industriais efectivos, além de todas as outras
formas de reprodução social, tornam-se parte integrante da virtualização. Os
fundos transnacionais não se multiplicam por meio de ganhos industriais, mas
por meio do aumento na cotação dos títulos. Esse quadro vai muito além da
especulação tradicional, uma vez que os próprios investimentos efectivos não
se custeiam mais com o refluxo dos ganhos industriais, mas, indirectamente, com
os aumentos na cotação dos papéis. O empresariado industrial tem de cuidar
para que o preço das acções suba a todo custo, de maneira a atrair os fundos
transnacionais, elevando assim o preço das acções etc. Uma vez em marcha esse
mecanismo, o empresariado industrial pode contrair empréstimos a fim de saldar
investimentos efectivos. Porém, a "garantia" desses créditos,
daquilo que realmente é emprestado, não é nem um valor industrial substancial
nem a produção esperada desse valor, mas unicamente o afluxo presente e
esperado dos fundos transnacionais.
Isso
não vale apenas para os investimentos reais, mas também para uma parcela
crescente do consumo. Quanto mais os investimentos privados, ínfimos que sejam,
de formas tradicionais de poupança (inclusive benefícios previdenciários)
transferem-se para o fundo de capitais, maior é a parcela do crédito ao
consumidor em relação à qual não se empenha mais a renda efectiva dos salários
(industriais ou não) do trabalhador, mas o ganho virtual do fundo. E o mesmo se
aplica, a olhos vistos, às receitas estatais. Ao contrair empréstimos e
empenhar assim receitas tributárias futuras, o Estado recorria, no passado, a
tributos cujo substrato eram salários e ganhos industriais efectivos. Os
tributos eram o aspecto efectivo, real, em oposição ao aspecto virtual do crédito.
Mas, na medida em que os investimentos industriais efectivos e o próprio
consumo real são custeados com um crédito de puras rendas virtuais, a receita
tributária que sobre eles se funda passa a ter bases naturalmente virtuais. O
sistema de crédito deixa de ser uma articulação entre a criação real de
valor e sua antecipação virtual, sendo-o apenas entre diversos planos da própria
economia de bases virtuais.
Toda
a economia aparentemente real, com seu capital material e seus produtos,
inclusive os investimentos industriais ou estatais e o consumo, representam cada
dia mais uma fachada que se mantém de pé somente com o afluxo de fundos
transnacionais. Esse é o verdadeiro âmago da globalização. Mas, como o fundo
de capital não está cingido a ganhos industriais reais e a nenhum mecanismo
nacional de controle ou regulação, a qualquer momento ele pode retirar-se de
cena. Em casos como esse, a fachada da aparente economia real não tarda a ruir.
O colapso fulgurante ameaça empresas, particulares e Estados que ainda há
pouco pareciam "saudáveis", pois o crédito sem lastro real
desvaloriza-se rapidamente. Por outro lado, à maneira dos desenhos animados, a
fachada em ruínas é capaz de recompor-se com a mesma rapidez, tão logo os
fundos transnacionais tornem a afluir.
Obviamente,
não há mais relação alguma com a criação industrial de valor quando, por
exemplo, a Bolsa brasileira perde 70% de seu valor em poucas semanas, para então,
do nível mais baixo registrado, recuperar em poucos meses 100% das aplicações.
Algo semelhante vale para o movimento pendular das Bolsas asiáticas. O que se
define eufemisticamente como "volatilidade" é o resultado da
virtualização: no espaço virtual, cada movimento se dá com a velocidade da
luz e é determinado pelo acaso. Como os fundos transnacionais, virtualidade
económica de segunda ordem, não possuem mais lastro na efectiva criação
industrial de valor, são as interpretações subjectivas, as encenações da mídia,
os boatos e as declarações esparsas de políticos, banqueiros ou
administradores de fundos que determinam o fluxo dos fundos de capital, e isso não
apenas em suas oscilações diárias, mas em seus próprios princípios. Surge
daí uma insegurança extrema para toda a reprodução social. Uma única
palavra inadvertida do sr. Greenspan arruina nações inteiras.
Essa
insegurança e esse arbítrio na movimentação dos fundos transnacionais é um
despropósito, naturalmente. Depois de fracassarem todas as tentativas de
conferir estabilidade a essa nova forma do capital financeiro por meio de regras
nacionais de cunho tradicional, cresce agora o número de vozes que exige formas
internacionais de regulação. A desregulamentação brutal dos mercados
financeiros, da forma como foi implementada sob o impacto do consenso neoliberal
nos anos 80 e 90, é considerada assim quase como um erro político. E, quem
diria, o próprio FMI declara-se radicalmente favorável a submeter o movimento
mundial dos fundos transnacionais a novas formas de regulação e controle.
Não
por acaso todas as considerações desse género permanecem vagas e imprecisas.
Essa falta de pulso firme tem raízes sobretudo institucionais: para surtir
efeito, não bastaria que um tal controle se restringisse a ajustes
internacionais, devendo antes assumir um carácter transnacional; ocorre que, à
diferença dos fundos transnacionais, não se dispõe de uma instância política
transnacional. Os Estados Unidos, a última potência mundial, negam-se por seu
turno a qualquer tipo de discussão sobre mecanismos de controle, em franca
oposição a muitos governos europeus, asiáticos e latino-americanos, e isso não
apenas por razões ideológicas. O "milagre" americano da transformação
de US$ 255 bilhões de déficit anual num superávit de US$ 70 bilhões são o
resultado exclusivo de receitas suplementares que advêm, como em nenhum outro
país do mundo, da economia virtualizada, e não da criação industrial de
valor.
É
por isso que os Estados Unidos, como última instância e receptáculo da
virtualização global, não têm interesse algum em mecanismos de controle que
fixem os fundos transnacionais em outros países. Cada crise dos mercados
financeiros traz água para o moinho de sua felicidade, porque os fundos sempre
buscam refúgio nos Estados Unidos, o seu “porto seguro". A tentativa de
controle dos mercados financeiros contradiria o próprio carácter da virtualização,
que não pode, justamente, ser convertida por decreto em criação de valor. O
fim da economia virtual só ocorrerá quando a Bolsa de Nova York quebrar, pois
de lá os fundos não poderão mais fugir para lugar algum (se quebrar a Bolsa
nova-iorquina, todas as outras quebrarão). Nesse caso, sem dúvida, estarão na
ordem do dia outros problemas que não o controle político de um capital monetário
virtualizado, o qual, de resto, deixará de existir.
Original