INTERESSES LOUCOS
As metamorfoses do imperialismo e a crise das interpretações
Quanto mais o mundo capitalista se transforma, maior parece ser a inclinação geral para a nostalgia. Ainda não se divulgou a ideia de que o capitalismo não é de modo algum a repetição do sempre igual, numa história meramente externa de acontecimentos, mas sim um processo histórico irreversível e dinâmico, que atravessa etapas de desenvolvimento qualitativamente diferentes. Isto vale não somente para o sistema económico mundial, mas também ao sistema político mundial.
O último poder mundial
Desde que a familiar constelação da guerra fria desapareceu, o pensamento analítico perdeu-se no pretérito mais que perfeito do imperialismo. Condutores em contramão de todos os matizes procuram reviver o “discurso” geopolítico da história anterior e posterior à Primeira Guerra Mundial, cujo pano de fundo era a luta dos poderes imperiais nacionais pela dominação global e pela expansão territorial. Procede-se como se fosse possível fazer dissolver no passado o conflito bipolar entre as superpotências, Estados Unidos e União Soviética, decidido a favor da supremacia ocidental. Mas a luta policêntrica pela hegemonia mundial limitou-se à época da concorrência política dos Estados nacionais europeus. Essa relação foi irrevogavelmente ultrapassada no plano económico com o fordismo e no plano político com a ascensão das duas superpotências continentais extra-europeias.
Já o conflito entre as superpotências se transformou num conflito entre sistemas que não se limitava essencialmente a anexações territoriais, no sentido de um cálculo de interesses limitado à economia nacional. Em vez disso, os Estados Unidos avançaram para um tipo de poder global de defesa do sistema de capitalismo concorrencial do Ocidente, contra os inoportunos e hostis sobreviventes do sistema de capitalismo de Estado das modernizações atrasadas do Leste e do Sul. É verdade que os Estados Unidos também tinham em vista esferas de influência definidas em termos de economia nacional, especialmente o seu “quintal”, a América Latina. Mas a Pax Americana estava determinada primeiramente pela lógica de retomar e completar a tendência, interrompida após a Primeira Guerra Mundial, para a construção dum mercado mundial universal e dum sistema mundial capitalista unitário.
Após o fracasso do capitalismo de Estado da União Soviética, a estrutura política mundial bipolar transformou-se no monocentrismo da última potência mundial. A luta pela hegemonia global no terreno do moderno sistema produtor de mercadorias está decidida. Os Estados europeus nunca poderão alcançar a vantagem militar dos Estados Unidos, nem sozinhos nem juntos, enquanto União Europeia. Essa opção é simplesmente infinanciável; para já não falar de que uma reversão dos fluxos unilaterais de capitais que correm para os Estados Unidos arruinaria o já precário sistema financeiro global. Mesmo que a República Federal da Alemanha tivesse aplicado em armamento todos os 200.000 milhões de marcos anuais despendidos na fracassada integração económica da Alemanha Oriental, ainda assim não poderia alcançar os Estados Unidos. Para comparar: entre 1935 e 1939 os gastos militares alemães foram mais altos que os dos Estados Unidos e dos mais importantes Estados europeus juntos. A Alemanha nazi não tinha somente uma ideologia de conquista mundial, mas também tinha capacidades políticas, económicas e militares para o efeito, tendo, por isso, de ser derrotada na maior guerra da história.
O caso hoje é bem diferente. Noventa por cento das intervenções nas guerras de ordenamento globais foram lideradas pelos Estados Unidos, sem os quais nada se faz. A conversa dos sonhadores de grandeza franceses e dos “políticos internos mundiais” (1) alemães sobre a “identidade da segurança” europeia própria não é convincente. É pura bobagem a saga anti-alemã, tipo mitologia Edda, sobre o início da última batalha pela hegemonia mundial entre a ressuscitada grande Alemanha e os Estados Unidos, precisamente no Kosovo.
De facto, alguns poucos representantes da esquerda radical, como Thomas Ebermann, mostram pelo menos razão analítica suficiente para rejeitar as piores distorções anti-alemãs da realidade como uma demissão “de toda análise das relações de poder económico e de força de combate militar” (Jungle World 13/01). Mas Ebermann não coloca fundamentalmente em questão a interpretação de um suposto retorno das lutas pelo poder imperiais nacionais. Assim parece que a Grande Alemanha ou a União Europeia apenas “ainda não” seriam capazes de desafiar a hegemonia mundial (mas que isso poderia vir a acontecer). A compreensão empírica parcial fica sem qualquer mediação com o paradigma teórico anacrónico.
A NATO contra os fantasmas da crise
Naturalmente continuam a existir interesses individuais das economias nacionais e poderes próprios dos Estados nacionais, mas têm importância secundária, sem qualquer papel estratégico efectivo. Trata-se de rivalidades subordinadas e “lutas entre departamentos” no interior do “imperialismo global ideal”. A NATO forma o quadro político e militar no qual estão integradas as subpotências dos Estados Unidos. E assim se mantém mesmo depois do fim da Guerra Fria. Não se pode falar de modo algum de um novo antagonismo de interesses intra-imperiais, que se desenvolveria até uma confrontação aberta, o qual teria de criar também uma imagem do inimigo culturalmente correspondente para a formação ideológica das sociedades, como fora construída no passado.
Há uma nova imagem do inimigo, mas num nível completamente diferente. Em contraste com as constelações do passado, não se trata de um poder igual ou de um sistema adversário, mas dos crescentes “potenciais de perturbação” do mercado universal. Correspondentemente difusa é a imagem do inimigo: os assim chamados Estados párias, os regimes cleptocráticos de crise, os potentados em colapso, guerreiros religiosos e etnobandidos pós-modernos ocupam o lugar dos contrapoderes claramente definidos no mesmo nível de concorrência. O que aqui se pretende prender são os fantasmas da crise mundial gerados quando a lógica de valorização atinge os seus limites. A produção global de “supérfluos” e de gerações perdidas cria também ideologias de crise eclécticas, milícias, a continuação da concorrência por outros meios e uma economia global de pilhagem que segue o processo capitalista de globalização como uma sombra.
Que se trata de lutar contra os fantasmas da crise e não contra poderes concorrentes é visivelmente claro pela reorientação da estratégia militar da NATO como polícia mundial. A guerra democrática de ordenamento mundial visa o paradoxal objetivo de conservar o mundo numa forma em que a maioria já se tornou objetivamente incapaz de se reproduzir; ela legitima-se pelo facto de esta maioria não reagir de forma emancipatória, mas como devoradora de seres humanos. Mas é exactamente porque a NATO luta contra as consequências de seu próprio modo de produção, no nível de desenvolvimento da terceira revolução industrial, que não pode vencer esta guerra. De facto o exército high-tech dos Estados Unidos e as suas tropas auxiliares são capazes de derrotar regularmente os aparelhos militares dos Estados párias, com seus equipamentos bélicos quando muito do velho fordismo, mas abaixo de seu poder de acesso continua imparavelmente a violência endémica dos inexoráveis processos de crise, trazendo sempre novas perdas de controle. Não apenas económica e politicamente, mas também com o policiamento mundial pelas forças armadas, daqui resulta um “business as usual” com o qual o “imperialismo global ideal” se arrasta através dos processos globais de destruição do seu modo de produção.
A globalização e a perda da soberania estatal
Nem os democratas mundiais nem a maioria dos seus críticos da esquerda radical querem admitir o carácter dos conflitos. Onde não existe nada mais que terra queimada das regiões em colapso devastadas pelo mercado mundial, uns vêem o início de uma rápida “construção da economia de mercado”, outros vêem uma disputa por “zonas de influência” abandonadas da valorização do capital. É uma e mesma ilusão, mas apenas com referências ideológicas diferentes. Notórios negacionistas da globalização, como Ebermann e Cª, pensam com toda seriedade que a guerra contra a Juguslávia teria levado ao “enterro das teorias da perda de significado do Estado”, porque “os consórcios mundiais precisam do Estado para o avanço dos seus negócios e para barrar o acesso de outros concorrentes baseados nacionalmente” (Jungle World 13/01).
Na verdade, não se trata de modo algum de bloquear o acesso de qualquer “outro capital baseado nacionalmente”, pelo contrário, o objetivo declarado é “manter aberto” o mundo para as transnacionais e não mais para o capital “baseado nacionalmente”. É precisamente nisso que se reflecte a destruição da “soberania”. O Estado não é mais o “capitalista global ideal” de um “estoque de capital nacional”, mas o capital e o Estado separam-se cada vez mais no processo de crise da globalização. Os interesses dos consórcios transnacionais não são territoriais, mas pontuais; o Estado, pelo contrário, permanece fundado sobre o paradigma territorial. Os Estados não podem mais agir como instâncias abrangentes na arena capitalista mundial, mas apenas reagir como coluna reparadora e polícia auxiliar dos processos independentes dos capitais transnacionais, de cujo processo de valorização permanecem dependentes.
Este novo nível da contradição torna-se perceptível também em relação às regiões problemáticas. O conceito de política externa torna-se obsoleto, pois já não se trata de delimitar as esferas de interesses entre Estados nacionais imperiais soberanos, nem de uma relação com soberanias territoriais subordinadas. Como a imagem num espelho das “guerras de formação dos Estados” do início dos tempos modernos, como lhes chamou o historiador Jacob Burckhard, temos de lidar com um novo tipo de “guerras de desestatização” nas regiões de colapso global, à medida que se rompem os fundamentos da economia nacional. No entanto, diplomacia de crise e tropas de intervenção móveis não conseguem substituir a dominação territorial. Longe de preparar anexações etc. segundo o padrão imperial de concorrência “geopolítica”, a NATO procura, de forma bastante desesperada, erguer fachadas de soberania estatal e encontrar os correspondentes parceiros “políticos” seguros, para depois colher sempre apenas protectorados pós-políticos, que continuam por pacificar.
Materialismo vulgar e irracionalidade capitalista
Naturalmente coloca-se sempre a questão dos interesses subjacentes à motivação da acção. A resposta do pensamento do marxismo do movimento operário apontava sempre no sentido de supor um materialismo de interesses racional transformado em acção político-militar. O carácter da valorização do valor como fim em si irracional ficava fora da reflexão porque se pensava mesmo nas categorias da ontologia capitalista. O quão pouco esse pensamento redutor está ultrapassado é o que se mostra no debate da esquerda radical e dos anti-alemães sobre os motivos das guerras democráticas de ordenamento mundial.
Tanto os materialistas vulgares clássicos quanto os geomaterialistas como Trampert/Ebermann vêem uma espécie de corrida ao ouro de impérios nacionais no Mar Cáspio, onde a grande Alemanha, os Estados Unidos etc. lutam pelos metais não-ferrosos e pelas rotas de oleodutos de uma “moderna rota da seda”, enquanto o Kosovo, abandonado por Deus, é alçado a “trampolim estratégico” de tais opções. Nesta racionalidade labrega se resolve para eles todo o conjunto do problema. Porque tal interpretação fica visivelmente muito aquém, os anti-alemães, por outro lado, bem à maneira pós-moderna, já não querem mais reconhecer quaisquer interesses materiais. Para Matthias Küntzel, por exemplo, parece tratar-se da distensão do habitual politicismo de esquerda num autonomizado padrão de acção de puro “desejo de poder”. Para autores da “Bahamas”, como Uli Krug, a guerra de ordenamento mundial transformou-se numa mera “guerra de consciência”, que só poderia ser esclarecida pela economia psíquica dos seus protagonistas.
O materialismo vulgar e o psicologismo vulgar menosprezam em igual medida o facto de, por natureza, a materialidade dos interesses capitalistas ser irracional e a irracionalidade da relação de capital ser materialista. A essência da guerra capitalista não consiste em que interesses racionais controlados colidem entre si, mas em que contradições sociais descontroladas explodem. Portanto, importa uma análise actual das contradições, em vez de se contentar com um linear positivismo dos interesses ou com uma astrologia da consciência reduzida à crítica da ideologia.
A liberdade de acesso às reservas de matérias-primas estratégicas constitui certamente um momento do interesse, mas somente um entre outros, que, ademais, já não se pode expressar na forma de um poder territorial imperial nacional, mas somente na forma de um imperialismo de segurança colectivo. Justamente nestas condições de globalização, além disso, o isolamento contra as regiões de crise e a contenção do fluxo de refugiados constitui um interesses material concorrencial perfeitamente autónomo do chauvinismo do bem-estar colectivo dos trabalhadores assalariados, dos gestores e da classe política do Ocidente. Nos limites do modo de produção capitalista é simplesmente do interesse superior do “imperialismo global ideal” manter pela força a forma capitalista do interesse como tal, juntamente com os seus pressupostos (previsibilidade das relações jurídicas etc.), muito embora, para a maioria da humanidade, ela se tenha tornado impossível de ser vivida ou já apenas se possa expressar na forma da economia de pilhagem. Assim se agudizam os paradoxos da relação de capital desenvolvida como relação mundial imediata, transformando-se as ideologias asselvajadas de novo em poder material; no entanto, a racionalidade interna capitalista e seus motivos de interesse não desaparecem, mas apenas assumem novas formas.
A etnicização da crise
Por todo mundo se pode observar como o colapso económico de regiões inteiras e de parte de populações se traduz numa etnicização da concorrência de dentro para fora. Isto é válido não apenas para as sociedades em colapso, mas também, até certo ponto, para o próprio centro. Em sua busca de padrões de interpretação e de enfrentamento, a NATO e os governos ocidentais adoptaram esse constructo positivamente, para assim operarem estratégias de segurança e de exclusão. Aqui se continua a exprimir a especificidade histórica alemã: a variante anglo-saxónica da ideologia de crise étnico-culturalista tem orientação mais utilitarista (como em Huntington), enquanto a alemã é orientada de forma mais substancialista. Mas essa diferenciação não actua mais como legitimação externamente concorrente de poderes imperiais nacionais, mas no interior do processo contraditório de interpretação e decisão da NATO. Ao mesmo tempo o constructo étnico-culturalista não se refere mais, nem sequer entre os neo-nazis, a uma estratégia de expansão territorial (“espaço vital”), que se tornou contraproducente em termos capitalistas, mas a “manter fora” ou “expulsar” os indesejáveis, que devem cair na miséria quietos nos respectivos países de origem.
Não é de surpreender que a instrumentalização do constructo étnico na política de segurança não funcione, mas apenas consiga colocar novas cargas explosivas. No entanto, em vez de entoar para as relações as suas feias melodias, a esquerda radical anti-alemã tem preferido reinterpretar o processo real como um combate espectral entre uma Pax Americana e uma Pax Germanica, até um fantasmático renascimento da coligação anti-Hitler. É perfeitamente legítimo revelar os momentos da “ideologia alemã”, as suas manifestações institucionais na República Federal Alemã e a sua influência contínua nas mentes. Mas é um erro capital querer derivar as relações capitalistas mundiais dos maus sentimentos dos corações alemães. Ironicamente, foi exatamente por isso que falhou a ligação especificamente alemã entre o envolvimento externo na guerra de ordenamento mundial e a discussão interna pelos direitos de imigração e cidadania. Ao se fixar na teoria da conspiração de um suposto plano de dominação mundial realizado pela longa mão da grande Alemanha, a esquerda radical não conseguiu trazer à discussão a explosiva contradição interna.
(1) Weltinnenpolitik (política interna mundial): conceito cunhado por Willy Brandt em 1973, em discurso na Assembleia da ONU que admitiu a RFA (Nt. Trad.)
Original IRRE INTERESSEN. Die Metamorphosen des Imperialismus und die Krise der Interpretationen in: http://www.exit-online.org em 25.04.2001