O CLÍMAX DO
CAPITALISMO
Breve esboço da dinâmica histórica da crise
Quem
é que ainda quer saber do contexto histórico no
interior do desenvolvimento
capitalista: feliz é aquele que esquece. Nem sequer se deve
pensar que em 1982,
com a primeira insolvência do México,
poderá ter começado um ciclo de crise
qualitativamente nova, persistente até hoje, que
avança da periferia para os
centros, devorando o que encontra pelo caminho. A estrutura de
percepção
pós-moderna exclui qualquer ponto de vista que ultrapasse a
tendência da
estação. O que Marx designou, no
prefácio do primeiro volume de O Capital,
como condição de conhecimento em teoria social,
nomeadamente a “capacidade de
abstracção”, há muito que
tem a má fama de essencialismo. A micro-economia que
domina o discurso já não reconhece qualquer
sociedade, mas apenas os
indivíduos, como dizia Margaret Thatcher. Onde tudo
é economia, mesmo a relação
com o próprio eu, o espaço e o tempo reduzem-se
ao horizonte do clique de rato
e da experiência de shopping. Sobre o todo negativo nada deve
ser dito, para
que ele permaneça na mais graciosa invisibilidade. Muitos
dos que enfiam a
carapuça possivelmente perguntam: Qual falência do
Lehman Brothers? Isso foi
antes ou depois da Primeira Guerra Mundial? Quem se move no
espaço mediático,
apenas entre eventos desconexos, sem consciência do passado
nem do futuro,
também consegue afastar a crise do pensamento, desde que o
dinheiro continue a
sair do caixa automático.
Mas
a pouco e pouco a coisa começa a cheirar a esturro, de tal
modo que até o valor
de entretenimento do pesquisador de tendências como adivinho
entra em queda. No
novo século a crise parece ter vindo para ficar. A uma
recessão e um falso fim
de alarme segue-se outra, enquanto os guardiões do sistema
bancário global
gostariam de contar os seus esqueletos no armário e
sobretudo deitar fora a
chave. Nem sequer o chauvinismo exportador alemão
está completamente seguro de
que a Alemanha jogue realmente sozinha, numa liga completamente
diferente do
resto da Zona Euro. Ninguém sabe debaixo de qual telhado
haverá fogo amanhã ou
depois. Mas todos sabem que os focos de incêndio
estão à espreita por toda a
parte e parecem misteriosamente interligados. A confiança
fundamental
pós-moderna no capitalismo desmorona-se, ainda que a sua
vergonha não se tenha
tornado por enquanto o tema principal.
Até
a esquerda foucaultiana começa a perceber que entende tanto
de economia
política como Karl Marx entende de motociclismo. Por isso a
crise, apesar de
tudo, teve de conduzir o discurso para um terreno que foi
até aqui acusado de
“economicista” e fundamentalmente evitado. Que se
passa então com o
capitalismo? Infelizmente, Marx não nos deixou uma
cómoda teoria da crise, em
formato de livro de bolso. Como é grande a
pressão para juntar a perda
desconstrutivista da realidade com a redescoberta o mais barata
possível da
economia vulgar, buscam-se, na melhor das hipóteses,
versões algo superficiais
da tradição marxista.
De acordo com estas, de tempos a tempos o
capital
entra numa fase da chamada sobreacumulação. Muito
do capital acumulado não
consegue continuar a valorizar-se suficientemente, porque a mais-valia
produzida já não pode ser transformada na sua
forma dinheiro, ou “realizada”,
por falta de poder de compra da sociedade. Os investimentos em
máquinas e força
de trabalho foram elevados demais para a capacidade do mercado, surgem
excedentes de capacidade de produção, por toda a
parte há mercadorias
invendáveis, o capital dinheiro foge para os mercados
financeiros e formam-se
aí bolhas. O capital excedente, em todos os seus componentes
(capital real,
força de trabalho, capital mercadoria, capital dinheiro),
tem agora de ser
desvalorizado pela crise. Depois tudo pode recomeçar do
princípio.
Esta versão é a mais
saborosa para a perniciosa
ideologia pós-moderna. Pois a crise surge aqui como um
evento a-histórico, no
eterno retorno do mesmo. Assim, um ajustamento de vez em quando faz
tão bem ao capitalismo
como uma cura pelo suor. A crise faz parte do seu maravilhoso
funcionamento,
como a esquerda esclarecida já sabe há muito.
Expansão e contracção alternam-se
numa sucessão infinda, sem que se possa reconhecer um
processo coerente e
progressivo.
Mas em Marx encontram-se também
reflexões completamente diferentes. Segundo as quais, a
longo prazo, o problema
não é a insuficiência
periódica da realização da mais-valia
no mercado, mas
sim, muito mais fundamentalmente, a própria falta da sua
produção. O capital é
autocontradição em processo pois, por um lado,
tem como único objectivo a
incessante acumulação de valor, ou
“riqueza abstracta” (Marx), mas, por outro
lado, a concorrência obriga, através do
desenvolvimento das forças produtivas,
a tornar supérflua a força de trabalho, que
é a única fonte deste valor, e a
substituí-la por dispositivos
técnico-científicos.
No
entanto, o desenvolvimento das forças produtivas
não é o eterno retorno do
mesmo, mas sim um processo histórico
irreversível. Como Marx mostra nos Grundrisse,
isto leva a uma situação em que os
produtos são de facto bens úteis, mas
já
não podem representar uma quantidade suficiente de energia
laboral humana
passada como mercadorias. Isto não é um
ajustamento, mas um “limite interno”
(Marx) do capital. Este aspecto da teoria de Marx já era
inaceitável para o
marxismo tradicional, para quem o que importava era o
“planeamento do valor” em
vez da sua abolição. Para uma
consciência que desconhece completamente a
história e não consegue formular qualquer
conceito de valor, mas anda a
bisbilhotar de evento em evento e gostaria de se convencer que a
compulsão à
autovalorização é uma liberdade sem
limites, muito menos é possível pensar num
limite objectivo para esta forma de existência.
Ora
o capital depende não apenas do valor simplesmente, mas sim
da mais-valia,
produzida pela força de trabalho para além dos
seus próprios custos. O mesmo
desenvolvimento das forças produtivas que torna a
força de trabalho cada vez
mais supérflua embaratece os custos da força de
trabalho ainda utilizada.
Assim, aumenta a quota parte da mais-valia no tempo de trabalho total
despendido. Mas a massa de mais valia da sociedade depende
não apenas da sua
quota parte por trabalhador, mas também do número
de trabalhadores utilizáveis
num determinado standard de produtividade.
Marx
formulou este problema no terceiro volume de O capital, como
teoria da
queda tendencial da taxa de lucro. A parte do capital real no capital
dinheiro
aplicado aumenta continuamente, enquanto diminui também
continuamente a força
de trabalho com ele mobilizável. Isto pode ser lido
indirectamente nas
estatísticas burguesas, no facto de historicamente os custos
prévios de um
posto de trabalho aumentarem inexoravelmente, porque tem de ser
utilizado um agregado
cada vez maior de maquinaria, infraestruturas etc. para poder empregar
um
trabalhador. Uma vez que apenas a força de trabalho produz
valor novo, o lucro
médio do capital dinheiro antecipado tem de baixar
à escala social, embora
aumente a quota parte da mais-valia na produção
de valor por trabalhador.
O
resultado social depende da relação de grandeza
de duas tendências opostas.
Junta com a teoria de uma desvalorização
histórica fundamental do valor lida
nos Grundrisse, a
argumentação aqui esboçada desagrada
de tal modo ao
entendimento a-histórico do capital como alternando
eternamente entre expansão
e contracção que a novíssima Nova
Leitura de Marx, por cautela, declarou a
queda tendencial da taxa de lucro como um simples produto da
imaginação de Marx.
De
facto, a queda da taxa de lucro pode ser compensada até
certo ponto pelo
aumento da massa de lucro, se o modo de produção
capitalista como tal se
expandir e assim for aplicado mais capital dinheiro produtivamente.
Externamente essa expansão esgotou-se com a
“valorização” de todo o
espaço
terrestre. Mas há diversos conceitos de expansão
interna qualitativa, remetendo
todos para o economista burguês Joseph A. Schumpeter. Este
descreve o
desenvolvimento capitalista como criação
periódica de novos produtos e ramos
produtivos. Em conformidade, a expansão é
suportada por certos ciclos de
produtos, até que estes entram em
estagnação e empresários inovadores
lhes põem
fim com novos produtos para novas necessidades. Na fase de
“destruição
criativa” ocorre a contracção. Apenas
gradualmente o novo ciclo de produtos se
torna sustentável e pode começar a
expansão renovada numa base modificada.
A
teoria de Schumpeter tem o pequeno defeito estético de
não se relacionar de
modo nenhum com o contexto de desenvolvimento das forças
produtivas e produção
substancial de mais-valia. Tal como em toda a economia
política, considera-se a
superfície do mercado como o único objecto
válido da ciência económica.
É assim
que a criação de novos ramos de
produção e novas necessidades surge
automaticamente como fundamento da retoma capitalista, sem que seja
sequer
colocada a questão das condições
concretas de valorização através da
substância
trabalho, num standard de produtividade modificado. É
precisamente por isso que
a esquerda pós-modernizada agarra a ideia de Schumpeter e
teoremas aparentados
com tanto gosto, para completar Marx de forma um bocadinho
anti-substancialista. Novos ramos de produção,
novo êxito de valorização, pois
a massa de energia laboral despendida não
desempenhará possivelmente nenhum
papel assim tão importante, se dentro em breve se pode fazer
download do
dinheiro tal como de tudo o resto. Poder-se-ia depois escolher se a
área de
actividade para o próximo boom
será agora criada pela produção de
monstros da engenharia genética, pelas redes de amigos na
Internet, pelos
biocombustíveis em vez do pão para o mundo ou
pela salvação dos ursos polares.
Na
corrente oculta da argumentação de Marx a conta
apresenta-se de modo diferente.
Seja qual for o conteúdo da produção,
para o capital só interessa a quantidade
de força de trabalho criadora de valor que pode ser
utilizada. Esta tem de
subir em termos absolutos, se se pretende que o fim em si da
acumulação tenha
êxito. Ora a criação de novos ramos de
produção ou a entrada de produtos antes
de luxo na produção em massa somente podem
compensar a racionalização
tecnológico-científica da força de
trabalho por um período de tempo
historicamente limitado. O capitalismo atinge o seu clímax
quando a expansão
interna é atingida e ultrapassada pelo desenvolvimento das
forças produtivas.
Então a queda relativa da taxa de lucro transforma-se numa
queda absoluta da
massa social de mais-valia e portanto de lucro, esbarrando assim a
valorização
do valor supostamente eterna na sua
desvalorização histórica.
Podem
apontar-se alguns indícios de que o desenvolvimento
capitalista ingressou neste
estado desde os anos de 1980, com a terceira
revolução industrial. O culminar
da contradição interna é modificado e
filtrado pela expansão histórica do
sistema de crédito, que prossegue reflectindo especularmente
a estagnação e
declínio da massa de trabalho produtora de valor.
Já o permanente aumento
relativo do capital real empurrou progressivamente os custos mortos
antecipados
até às alturas, de tal modo que só
podiam ser financiados pelos lucros
correntes numa parte cada vez menor. O crédito
transformou-se de elemento
propulsor adjuvante da produção de mais-valia no
seu substituto. A acumulação
alimenta-se desde então cada vez menos da
substância de trabalho real passado e
cada vez mais da antecipação de trabalho
imaginário futuro. Investimentos e
empregos sem qualquer base real são financiados por uma
dívida global sem
precedentes e pelas bolhas financeiras daí resultantes. Esta
foi também a
condição de possibilidade social para o triunfo
das ideologias virtualistas e
desconstrucionistas. Todavia, apesar das aparências
temporárias, aqui não se
acumula capital, como se viu na indústria de
construção de muitos países
após o
estouro das bolhas imobiliárias.
Na
superfície do mercado mundial, o consumo cada vez mais
antecipado de lucros e
salários futuros assumiu a forma absurda de uma
divisão de funções entre
países
superavitários e deficitários. Uns compram com
dinheiro de receitas futuras
mercadorias cuja produção pelos outros foi
financiada através do recurso a
rendimentos futuros. Abre-se um buraco negro, que se alarga, entre a
criação de
valor real passada e uma futura ficticiamente antecipada. Este
constructo de
uma conjuntura de défict global tem dois eixos principais:
um maior, o circuito
de déficit do Pacífico, entre a
China/Ásia Oriental e os Estados Unidos, e
outro menor, na Europa, entre a Alemanha e o resto da União
Europeia, ou
melhor, da Zona Euro. O emprego assim mobilizado, por exemplo na China,
é tão
pouco viável como o foi a actividade de
construção para o boom
imobiliário. Num caso, a Ásia acumulou reservas
de divisas em dólares numa
ordem de grandeza astronómica, no outro caso, o sistema
bancário internacional
financiou déficts igualmente elevados no interior da zona
monetária comum.
Estes famigerados “desequilíbrios”
até são incompatíveis com os manuais
de
Economia Política que, de qualquer modo, já
ninguém leva a sério.
Após um encadeamento cerrado de
crises financeiras, que nos
últimos trinta anos abalaram países e sectores
económicos isolados, o crash
financeiro de 2008 assumiu pela primeira vez uma dimensão
global. O rompimento
das cadeias de crédito coloca na ordem do dia o grande surto
da desvalorização.
Foram os Estados, já por si altamente endividados, que
impediram o início da
avalanche, por meio de injecção maciça
de crédito adicional e emissão
monetária. Pressentiu-se, pelo menos, que não
estava a chegar ao fim uma
tempestade purificadora, mas eram as luzes do capital mundial que
estavam na
iminência de se apagar. Assim, os créditos podres
foram enterrados como lixo
nuclear com a ajuda de garantias dos Estados, as capacidades
industriais
excedentes foram mantidas por meio de enormes
subvenções e a conjuntura
económica foi artificialmente alimentada com programas
estatais.
Particularmente o capitalismo de Estado chinês
forçou o seu sistema bancário,
apoiado num património de divisas, a financiar investimentos
ruinosos na forma
de cidades fantasmas, aeroportos fantasmas, fábricas
fantasmas etc., inflando a
mãe de todas as bolhas imobiliárias.
Com todas essas medidas aventureiras
não foi resolvido
absolutamente nada, apenas foi adiado o processo de
desvalorização e deslocado
o problema dos mercados financeiros para os Estados. Era
previsível que o
fôlego dos programas estatais se esgotaria rapidamente.
Começou na Zona Euro,
como elo mais fraco da cadeia, mas também todas as outras
finanças estatais
balançam e correm o risco de desencadear
reacções em cadeia. Assim, a montanha
de dólares chinesa desfar-se-á em fumo, se os
Estados Unidos tiverem de admitir
que estão tesos. As dívidas estatais
incumpríveis somam-se aos créditos
incobráveis dos mercados financeiros; aproxima-se a
fusão nuclear do sistema de
crédito. O futuro capitalista já consumido
tornou-se presente. A Grécia mostra
exemplarmente que as pessoas teriam de deixar de viver durante anos
para
continuarem a satisfazer os critérios capitalistas.
Logo que a emissão
monetária deixar de se limitar a adiar a
desvalorização dos títulos de
dívida, mas passar a alimentar directamente a
conjuntura económica com dinheiro sem substância
por meio da simulação de
crédito, o próprio meio dinheiro em si se
desvalorizará. Também a
inflacção tem
um percurso prévio histórico. Se era quase
desconhecida desde a
industrialização até à
Primeira Guerra Mundial, as economias de guerra só
puderam ser financiadas pela emissão monetária,
irregular em termos
capitalistas. Mas, após a guerra mundial, o fantasma da
inflacção tornou-se um
companheiro constante do capitalismo, porque o sistema de
crédito expandido se
tornou constitutivo também para a
produção ordinária de mercadorias.
Hoje, os
pacotes de resgate já ultrapassaram as dimensões
da economia de guerra e a
enxurrada directa de dinheiro dos bancos emissores revela-se como
última
instância. Mesmo uma reforma monetária radical,
que anulasse todas as fortunas
e créditos, não levaria a um ponto zero e ao
reinício. Pois é incontornável o
agregado de conhecimento da sociedade, que já não
permite produção suficiente
de mais-valia. A desvalorização repetir-se-ia,
só que em intervalos cada vez
mais curtos.
Venha o que vier. Apesar de tudo isto a
consciência da
experiência mediática não gostaria de
se incomodar com realidades enfadonhas. O
fim do mundo, anunciado pelo calendário Maia para 2012,
é mais um motivo de
diversão. O importante é que o cartão
de crédito não seja cancelado. Também
para toda a esquerda pós-moderna, reconvertida à
social-democracia, é mais
fácil imaginar um capitalismo sem mundo do que um mundo sem
capitalismo. A
autodesconstrução final é definida
como um assunto excitante. Não é todos os
dias que uma pessoa se pode dar a esse luxo.
OriginalDIE KLIMAX DES KAPITALISMUS. Kurzer Abriss der historischen
Krisendynamikin: http://www.exit-online.org em 29.01.2012. Publicado na revista Konkret 02/2012