(Robert Kurz, Ler Marx)

 

1. Eles não sabem, mas fazem-no:

 

O modo de produção capitalista como fim em si mesmo irracional

 

 

Introdução

 

Se folhearmos a literatura marxista e anti-marxista dos séculos XIX e XX, encontramos por toda parte, com uma regularidade cansativa, a mesma redução: fale-se do capitalismo positiva ou negativamente, é quase exclusivamente nas categorias sociológicas de "classes" ou "camadas" sociais, enquanto as formas sociais em que se baseiam permanecem de certo modo neutras (ou então discute-se apenas o seu reagrupamento e a sua reconfiguração, por exemplo, na relação entre mercado e Estado). Trata-se, portanto, da relação entre classes sociais dentro do invólucro capitalista. Alegando que o capitalismo é uma sociedade de classes, os marxistas – invocando sempre apenas o Marx exotérico – acreditavam já ter dito o essencial. E os apologistas do capitalismo tentavam relativizar esta constatação dizendo que ele já tinha em grande parte ultrapassado a sociedade de classes, por meio do Estado social e da melhoria das condições de trabalho.

Neste debate não se questionava, pelo menos não se questionava a sério e com pretensão de reflexão teórica, como tinham então realmente vindo ao mundo as classes sociais, como se tornou realidade e se reproduz diariamente a sua constituição social. A razão para esta falta de interesse é simples: nesta perspectiva sociologicamente redutora, as relações sociais estão em última instância reduzidas a puras relações de vontade. O capitalismo existe porque os seus actores o "querem". Assim, o capitalismo confunde-se com os capitalistas (proprietários privados de capital dinheiro, e também gestores), ou com o colectivo social da classe capitalista, que se querem como tais. Esta vontade dos sujeitos capitalistas é que submeteu a si a maioria da sociedade como trabalhadores assalariados.

A propriedade privada dos meios de produção aparece, consequentemente, como a instituição central da vontade capitalista. Segundo a fórmula consagrada, esta monopolização social das potencialidades produtivas por si só dá aos capitalistas o direito de decidir sobre a sua utilização. A forma da subjugação ou, como Marx chama, "a exploração do homem pelo homem" parece assim realizar-se numa relação de dominação através da propriedade privada, na relação de dominação social entre capitalistas e trabalhadores assalariados. Visto que é uma relação social, só pode ser uma relação de classe. Segundo esta versão, a única diferença relativamente a uma sociedade com relações pessoais de dependência entre senhores e servos é que a dependência assumiu agora um carácter colectivo, de modo que cada indivíduo-trabalhador já não depende de um único senhor (como no feudalismo e na escravidão), mas da classe capitalista como um todo.

Reduzindo deste modo o conceito não só do moderno mas de qualquer modo de produção e formação social a relações entre classes sociais, codificadas e institucionalizadas numa forma jurídica (propriedade dos meios sociais de produção), o aspecto negativo e destrutivo do capitalismo parece de algum modo residir no carácter dos sujeitos capitalistas como classe dominante. O conceito de capital em si de repente pode coincidir simplesmente com o conceito de meios materiais de produção (máquinas, edifícios, etc.), tanto na formulação marxista como na economia política burguesa. O capital como tal já não é então uma relação social, mas torna-se um objecto reificado, enquanto a relação social imposta pelo capital figura sociologicamente como oposição de classes, de modo completamente exterior.

Continuando nesta perspectiva de que a classe dominante dos proprietários do capital emprega e “usa” a classe dependente dos trabalhadores assalariados para os seus fins privados, ela prossegue um interesse próprio particular, o seu interesse de classe subjectivo. Ao qual se opõe um outro interesse de classe contrário, o dos trabalhadores assalariados. E o resultado deste conflito de interesses é, naturalmente, uma luta de interesses, designadamente a boa e velha luta de classes. Implicitamente (e muitas vezes também explicitamente) para esta quinta-essência do marxismo do movimento operário a consequência extrema da crítica do capitalismo é obviamente livrar-se dos sujeitos-capitalistas de qualquer maneira, possivelmente prendê-los, ou cortar-lhe a cabeça – para usar a ideia e a prática da revolução francesa burguesa. Em qualquer caso, retirar-lhes o brinquedo, ou seja, expropriá-los, para que a gloriosa classe operária possa então gerir o capital material sob a sua direcção e no seu próprio interesse.

E isto também é mesmo simplesmente lógico: se o capitalismo equivale ao poder jurídico de disposição de uma classe dominante, então ele deixa de existir com o acto formal de uma mudança da propriedade de uma classe para outra. Um testemunho de uma ingenuidade quase comovente e realmente cómico deste pensamento marxista são, por exemplo, os solenes "certificados de expropriação" que, na fundação da RDA, proclamavam a passagem das empresas para as mãos do povo, as quais seriam então “empresas propriedade do povo” ("Volkseigene Betriebe" ou VEB).

Aqui transparece muito bem o campo conceptual daquele marxismo usado pelo movimento operário histórico, como ideologia para legitimar a sua luta de classes, que na verdade foi reduzida ao objectivo do reconhecimento no capitalismo. E é inegável que esta leitura também se encontra repetidamente no próprio Marx. É precisamente no contexto deste campo conceptual que ele se revela como o Marx exotérico, como um puro teórico da modernização. Há sobretudo dois problemas enfrentados por esta noção redutora de capitalismo do marxismo vulgar e onde ocorre a passagem da argumentação e crítica exotérica para a esotérica dentro da teoria de Marx.

Por um lado, a redução do conceito de capitalismo a relações de vontade de classes sociais compatibiliza-se extremamente mal com a objectividade "férrea" (tomada de Hegel) do processo histórico, com as suas consequências de níveis de desenvolvimento e formações sociais necessários. Obviamente que não é apenas a mera vontade subjectiva, à medida da classe e guiada pelo interesse, que constitui o capitalismo, pelo contrário, esta vontade social está incrustada em algo diferente – numa objectividade que a ultrapassa.

Isto torna-se ainda mais claro quando em Marx e no marxismo se fala continuamente, com a máxima evidência, das "leis" do modo de produção capitalista, mesmo decididamente das suas "leis naturais". Numa leitura positivista, revela-se aqui também, como para a noção de capital reificado, uma aproximação ao pensamento da economia política burguesa, para a qual, como se sabe, as leis do capitalismo são idênticas às leis alegadamente naturais da reprodução social em geral. Mas mesmo que se aceite que estas "leis económicas naturais" são apenas leis históricas limitadas do modo de produção especificamente capitalista, há um problema: o carácter objectivado e de “leis naturais" das estruturas reprodutivas e das formas de movimento e desenvolvimento capitalistas está em profunda contradição com o seu conceito reduzido a relações de vontade de classes sociológicas e jurídicas. O marxismo simplesmente desistiu de mediar e resolver esta contradição, aliás ele nem sequer a reconheceu.

Assim, a elaboração teórica marxista sempre teve necessariamente de desfazer-se em uma teoria da sociedade "objectivista" e "economicista" (quase científica), por um lado, e uma teoria da acção "subjectivista" (política e jurídica), por outro. Esta esquizofrenia reproduz a cisão do moderno pensamento burguês em geral que, desde a filosofia iluminista, não cessa de se cindir, proclamando repetidamente, em múltiplas variações, por um lado, uma sociedade humana que funciona quase automaticamente, como um mecanismo de relógio, de acordo com as leis do sistema (a "mão invisível" do mercado e mecanismos de regulação cibernéticos que colocam o homem ao nível dos insectos ou de partes funcionais de máquinas) e, por outro, o "livre arbítrio", a "autonomia do indivíduo", a "responsabilidade pessoal" e a "liberdade política" (a democracia).

O marxismo do movimento operário não quebrou este dilema de pensamento burguês, mas viveu com ele e (no caso da modernização atrasada do século XX) integrou-o no seu socialismo. Este último devia também funcionar segundo leis económicas objectivadas e naturais (incluindo a produção de mercadorias não suprimida), mas, ao mesmo tempo, incorporar a vontade de classe do proletariado e do seu partido tornada Estado.

Por outro lado, a argumentação marxista fica confusa quando se coloca a questão do sentido do sistema. Certamente que o sábio pensamento da luta de classes foi rápido a encontrar uma resposta para isso: o objectivo do capitalismo, naturalmente, é fazer explorar os trabalhadores assalariados pelos sujeitos-capitalistas. Se estes desejam tão ardentemente o capitalismo é porque ele lhes lhes fornece a famosa "mais-valia", por eles extorquida aos necessitados da humanidade. Obviamente que podemos interpretar exactamente neste sentido páginas inteiras do Marx exotérico, onde ele fala do "trabalho não pago" com o qual os trabalhadores assalariados produzem esse montante adicional de valor, para além do contravalor dos seus próprios custos de reprodução (recebido como salário), adicional de que os proprietários capitalistas se apropriam para enriquecer.

A consequência parece ser que a valente classe trabalhadora si aproprie do ganho retido depois de expulsar os exploradores, que receba todo o rendimento do seu trabalho e que a parte não paga do trabalho seja paga. O marxismo também foi forçado a reconhecer, é claro, que toda sociedade requer reinvestimento destinado a renovar os meios materiais de produção, bem como acumulação de reservas. Estas deduções necessárias ao produto do trabalho, no entanto, seriam então usadas em benefício da comunidade por instituições próprias da classe trabalhadora (em caso de dúvida, naturalmente o seu partido tornado Estado).

Esta resposta aparentemente tão simples e clara, que chega de rajada, tem contudo os seus problemas. Na verdade, ela dá a impressão de que os proprietários capitalistas se apropriam do lucro principalmente como riqueza pessoal. A relação de capital parece ser assim apenas uma variante da relação de algum modo intemporal entre pobreza e riqueza. As noções de Marx de mais-valia (na forma de dinheiro) e produto excedente (na forma de bens materiais) são aqui usadas ​​praticamente como sinónimos. Neste ponto, as formas de apropriação feudal e capitalista parecem diferir apenas pelo tipo de propriedade (propriedade da terra num caso e propriedade privada dos meios de produção no outro).

O facto é que os senhores feudais clássicos engoliam realmente o produto excedente material em impostos em espécie; mas mesmo esta libertinagem esteve sempre ligada a diferentes modos de distribuição, que permitam aos servos, vilões e outros receberem migalhas de uma maneira ou de outra. Pois mesmo para a riqueza pré-capitalista, os senhores não tinham estômagos suficientemente grandes. Na sua forma capitalista, a produção de riqueza tornada exorbitante escapa totalmente à apropriação subjectiva e sensível pelos proprietários dos meios de produção. Empresários e gestores nem conseguem consumir pessoalmente o enorme excedente que ultrapassa o contravalor do salário do trabalho, ou seja, o que sai das suas fábricas como graxa, granadas de mão, frangos assados ou livros de bolso, nem conseguem, mesmo fazendo grandes esforços, transformar os seus ganhos em produtos de luxo para seu próprio uso, para cujo desfrute, de resto, há muito já não têm tempo. Pelo contrário, para não se afundarem, eles são obrigados a reinvestir novamente uma grande parte do excedente convertido em dinheiro (o seja, da mais-valia) no processo de reprodução capitalista numa escala ampliada.

Portanto ninguém beneficia realmente da maior parte do "trabalho não pago", se por isso entendemos o gozo efectivo da riqueza produzida. Correspondentemente, uma grande massa de produtos não é muito propícia à fruição. Trata-se do aumento da produção pela produção – um fim em si irracional. Isso é exactamente o que o Marx esotérico chamou o fetichismo deste modo de produção, tal como os fetiches funcionavam nas sociedades pré-modernas. Marx também tem um nome para o mecanismo específico da divindade fetiche capitalista: chama-lhe "sujeito automático". Embora este termo apareça logo no início de O Capital, os marxistas nele bem versados ficam pasmados perante a referência a este singular “não-conceito” e sentem-no como bastante estranho. De facto, Marx designa com este termo o verdadeiro cerne da paradoxal relação social capitalista, que de modo nenhum de esgota na relação de classe e de exploração entre trabalhadores assalariados e capitalistas.

Em vez disso, de repente parece que, no capitalismo, todas as classes e categorias sociais em geral são igual e comummente meras categorias funcionais desse sujeito automático a que estão subordinadas, o qual, portanto, deve ser o verdadeiro objecto da crítica do capitalismo. Os proprietários e gerentes capitalistas, tal como os trabalhadores no fundo da hierarquia funcional capitalista, não são de modo nenhum sujeitos autocráticos da organização capitalista, mas sim meros funcionários da acumulação de capital como fim em si mesmo. Para cúmulo do paradoxo, o verdadeiro sujeito da dominação é um objecto morto, o dinheiro, que, reacoplado a si mesmo, se torna o motor fantasmagórico da reprodução social.

O resultado é um absurdo sem precedentes: as pessoas tornaram-se meros apêndices de uma economia autonomizada, de cujo movimento estão todas cativas, como os lémures do seu "lúgubre instinto". A sua actividade social confronta-os como o poder alienado e externo de um contexto sistémico cego; a sua própria sociabilidade está enfiada em produtos mortos e no dinheiro que os representa, enquanto eles próprios se comportam como seres não sociais, na forma da concorrência anónima. Esta concorrência é por sua vez a forma de relação comum a todas as classes capitalistas e categorias funcionais: não só os trabalhadores assalariados concorrem com os proprietários do capital, mas os proprietários do capital e os trabalhadores assalariados estão também em concorrência entre si. E, como os interesses de todos como produtores estão em conflito com seus interesses contrários enquanto consumidores, cada pessoa concorre de algum modo consigo mesma!

Esta dominação completamente louca de um sujeito automático reificado é tão difícil de entender porque o "dinheiro" e o "mercado" parecem existir desde tempos imemoriais, e o senso comum capitalista percebe o sistema que lhe é pressuposto sempre apenas no interior da esfera da circulação, da troca, desenvolvendo assim interesses de mercado ou de distribuição nas categorias pressupostas que lhe parecem inquestionáveis. Também o marxismo do movimento operário nunca conseguiu pensar para além disso. Mas, na verdade, diz o Marx esotérico com a sua referência ao sujeito automático irracional, em todas as sociedades pré-capitalistas o dinheiro e o mercado foram apenas fenómenos marginais ou de nicho, enquanto a maior parte da reprodução se realizava tomando outras formas com base numa "economia natural". Uma economia monetária e de mercado generalizada surge apenas através do reacoplamento capitalista do dinheiro a si mesmo. Neste caso, a produção de mercadorias já não é um objectivo final, pelo contrário, serve apenas de meio para o processo de valorização do dinheiro como fim em si mesmo, para a acumulação infinita de capital-dinheiro por amor de si mesmo.

Sob estas condições, os produtores independentes já não podem encontra-se num mercado, pelo contrário, a massa de trabalhadores assalariados só é “sujeito do dinheiro e sujeito do mercado” através da auto-entrega nos mercados de trabalho, enquanto os proprietários do capital figuram como meros representantes do sujeito automático. Segundo Marx, todos os indivíduos envolvidos estão reduzidos a "máscaras de personagens" das categorias económicas, e o mercado já não é uma esfera de livre troca, mas única e simplesmente a esfera de realização da mais-valia, ou seja, não passa de uma estação no palpitante processo vital, na incessante metamorfose do sujeito automático.

Os apologistas do capitalismo continuaram a tentar justificar melifluamente a natureza paranóica deste constructo social, afirmando que o aumento das forças produtivas que lhe está associado, imposto pela concorrência anónima, conduz automaticamente a um aumento do bem-estar. A experiência prática da esmagadora maioria da humanidade na história do capitalismo mostra exactamente o contrário. Como a produção de bens não é o objectivo, mas um simples meio para a valorização do dinheiro, também o bem-estar não pode ser o objectivo, mas quando muito um subproduto temporário do capital.

Enquanto, nas sociedades agrárias pré-modernas com base na economia natural, a indigência e a pobreza eram determinadas principalmente pelo facto de os homens estarem entregues à "primeira natureza" e pelo baixo nível das forças produtivas, o capitalismo gera uma pobreza secundária de origem puramente social. Como o objectivo da produção se destina unicamente à maximização do lucro abstracto por unidade monetária, pela primeira vez na história não se produz para satisfazer as necessidades. Quando não é possível alcançar pelo menos a taxa média de lucro, são imobilizados ou reduzidos os meios de produção, mesmo intactos, enquanto ao lado as pessoas estão privadas do necessário. E quando a lei do movimento do sujeito automático o requer, o aumento exorbitante das forças produtivas flui para carros, nós de auto-estrada ou foguetões, enquanto multidões de pessoas ficam sem abrigo e há crianças a passar fome, mesmo em países ricos.

Porém, a sistemática separação entre a finalidade da produção e a satisfação das necessidades, a que obriga esta grotesca má orientação dos recursos, não pode ser ultrapassada por uma simples mudança de poder ou de forma no interior das categorias capitalistas, nem por uma simples mudança de propriedade jurídica de uma classe social para outra, entre as classes sociais ou sujeitos funcionais do sistema, mas apenas através da abolição do próprio sujeito automático irracional e das suas leis de movimento tornadas uma segunda natureza. No início do século XXI, agora que o marxismo exotérico do antigo movimento operário está tão esgotado como a modernização atrasada da periferia capitalista, também o conceito sociologicamente redutor de capitalismo já deu o que tinha a dar. Agora, para a teoria crítica, apenas pode estar na ordem do dia o outro conceito de capital completamente diferente do Marx esotérico, que tem em vista a dominação material do sujeito automático – como figura teórica de um movimento social prático, pelo qual a forma comum da concorrência anónima já não será disputada, mas sim criticada e ultrapassada.

A selecção de textos de Marx que se segue centra-se no conceito de capital que vai além do entendimento do marxismo do movimento operário e nos seus paradoxos. Inclui a análise – embora limitada ao estritamente necessário – dos mecanismos funcionais capitalistas. Somente a partir da compreensão do capital como "sujeito automático" se pode conseguir depois também uma compreensão dos seus mecanismos funcionais, que não confunda a análise de Marx com uma exposição positivista da mera objectividade, mas a entenda como aquilo que ela significa, ou seja, uma crítica radical da objectivação errada e destrutiva das relações sociais.

 

 

 

 

 

 

 

 


 

As leis naturais da produção capitalista e as suas criaturas

 

Todo o começo é difícil, e isto vale para qualquer ciência ... A forma do valor, cuja figura acabada é a forma do dinheiro, é muito vazia de conteúdo e muito simples. Mesmo assim o espírito humano em vão tem procurado fundamentá-la há mais de 2 000 anos, enquanto conseguiu analisar formas muito mais complicadas e cheias de conteúdo, pelo menos aproximadamente. Porquê? Porque é mais fácil estudar o corpo desenvolvido do que a célula do corpo. Além disso, na análise das formas económicas não podemos servir-nos do microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstracção tem de os substituir a ambos. Para a sociedade burguesa, a forma celular da economia é a forma de mercadoria do produto do trabalho, ou a forma do valor da mercadoria. Para o pouco instruído, a análise parece perder-se em meras minúcias. Trata-se, efectivamente, de minúcias, mas daquelas de que se ocupa a anatomia micrológica.

Por isso, com excepção da parte relativa à forma do valor, não se poderá acusar este livro de ser difícil de compreender. Pressuponho, naturalmente, leitores que queiram aprender algo de novo e, portanto, também pensar por conta própria.

O físico observa processos naturais onde eles aparecem mais nitidamente e menos turvados por influências perturbadoras, ou, se possível, faz experiências em condições que assegurem o percurso puro do processo. O que eu me proponho investigar nesta obra é o modo de produção capitalista e as correspondentes relações de produção e de circulação ...

Na verdade, não se trata do grau maior ou menor de desenvolvimento dos antagonismos sociais que decorrem das leis naturais da produção capitalista. Trata-se dessas mesmas leis, dessas tendências que actuam e se impõem com necessidade férrea. O país industrialmente mais desenvolvido mostra ao menos desenvolvido apenas a imagem do seu próprio futuro.

... Mesmo quando uma sociedade descobriu a pista da lei natural do seu desenvolvimento – e a finalidade última desta obra é descobrir a lei económica do movimento da sociedade moderna – , ela não pode saltar nem suprimir por decreto as suas fases naturais de desenvolvimento. Mas pode abreviar e minorar as dores do parto.

Para evitar possíveis mal-entendidos, ainda uma palavra. Não pinto, de modo nenhum, de cor-de-rosa as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui só se trata de pessoas na medida em que são personificações de categorias económicas … O meu ponto de vista, que entende o desenvolvimento da formação económica da sociedade como um processo histórico natural, menos do que qualquer outro pode tornar o indivíduo responsável por relações das quais ele socialmente não passa de uma criatura, por mais que queira colocar-se subjectivamente acima delas.

No domínio da economia política, a investigação científica livre não se depara apenas com o mesmo inimigo de todos os outros domínios. A natureza peculiar da matéria que ela aborda chama ao campo de batalha as paixões mais violentas, mesquinhas e execráveis do coração humano, as fúrias do interesse privado. A Igreja Anglicana inglesa, por exemplo, mais depressa perdoa o ataque a 38 dos seus 39 artigos de fé do que a 1/39 das suas rendas monetárias...

Qualquer julgamento de crítica científica é para mim bem-vindo. Quanto aos preconceitos da chamada opinião pública, à qual nunca fiz concessões, tomo por divisa, como sempre, o lema do grande florentino: Segui il tuo corso, e lascia dir le genti!

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Prefácio à primeira edição, 1867

 

 

O próprio capitalista apenas é poderoso na qualidade de personificação do capital (por isso na contabilidade italiana aparece constantemente como uma figura dupla, por exemplo como devedor do seu próprio capital) ...

O capital é, pois, produtivo ... (enquanto) personificação e representação, forma objectivada das “forças produtivas sociais do trabalho” ou das forças produtivas do trabalho social ... Apresenta-se como uma coacção que os capitalistas se infligem e infligem aos operários e, portanto, na realidade, como lei do capital contra uns e outros.

 

Manuscritos económicos, 1863-1867

 

 

A forma elementar da riqueza capitalista

 

À primeira vista, a riqueza da sociedade burguesa aparece como uma imensa acumulação de mercadorias, sendo a mercadoria isolada a forma elementar dessa riqueza. Mas cada mercadoria se manifesta sob o duplo aspecto de valor de uso e de valor de troca.

A mercadoria, na linguagem dos economistas ingleses, é em primeiro lugar "uma coisa qualquer, necessária, útil ou agradável à vida", objecto de necessidades humanas, meio de existência na mais lata acepção da palavra. A forma sob a qual a mercadoria é um valor de uso confunde-se com a sua existência material tangível. O trigo, por exemplo, é um valor de uso especial, que se distingue dos valores de uso como o algodão, vidro, papel etc. O valor de uso não tem valor senão para o uso, e não adquire realidade senão no processo de consumo. Um mesmo valor de uso pode ser utilizado de diversas maneiras. Não obstante, a soma de seus empregos possíveis decorre de seu carácter de objecto com propriedades definidas. Ademais, não só está determinado qualitativamente, mas também quantitativamente. Os valores de uso diferentes têm medidas distintas de acordo com as suas particularidades naturais; por exemplo: um alqueire de trigo, uma resma de papel, um metro de tecido etc.

Qualquer que seja a forma social da riqueza, os valores de uso constituem sempre seu conteúdo, desde logo indiferente a essa forma. Ao provar o trigo, não se conhece quem o cultivou: servo russo, modesto aldeão francês ou capitalista inglês. Ainda que o valor de uso seja objecto de necessidades sociais e assim se articule à sociedade, não expressa todavia uma relação de produção social. Seja esta mercadoria considerada em seu valor de uso um diamante, por exemplo. Olhando o diamante, não se percebe que é uma mercadoria. Quando serve como valor de uso, estético ou mecânico, sobre o colo de uma dama ou na mão do lapidário, é diamante e não mercadoria. Parece ser necessário que a mercadoria seja um valor de uso, mas indiferente que o valor de uso seja uma mercadoria. O valor de uso, quando encarado de modo indiferente em relação à determinação económica formal, isto é, o valor de uso como tal, encontra-se fora da esfera de investigação da economia política. O valor de uso entra nela somente quando é determinado de forma económica. Directamente é a base material com que se manifesta uma relação determinada: o valor de troca.

O valor de troca aparece primeiramente como uma relação quantitativa na qual os valores de uso são permutáveis. Em tal relação, esses valores constituem uma magnitude idêntica de troca. Desse modo, um volume de Propércio e oito onças de rapé podem ter o mesmo valor de troca, apesar das diferenças do valor de uso do tabaco e da elegia. Considerado como valor de troca, um valor de uso vale exactamente tanto quanto outro, contanto que se apresente em proporção conveniente. O valor de troca de um palácio pode expressar-se em um número determinado de caixas de betume. Os fabricantes de betume de Londres, inversamente, expressam em palácios o valor de troca de suas caixas de betume multiplicadas. Indiferentemente, pois, ao seu modo natural de existência, sem se considerar a natureza específica da necessidade para a qual são valores de uso, as mercadorias, em quantidades determinadas, equilibram-se, substituem-se na troca, reputam-se como equivalentes e representam, assim, a despeito de sua variada aparência, a mesma unidade.

 

Para a crítica da economia política, 1º caderno, Primeira edição, 1859

 

 

Trabalho abstracto – A objectividade fantasmagórica

 

A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso... Os valores de uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a sua forma social. Na forma de sociedade que vamos examinar, eles são simultaneamente os suportes materiais do valor de troca.

O valor de troca aparece, antes de mais, como relação quantitativa, a proporção em que valores de uso de uma espécie são trocados por valores de uso de outra espécie ... o valor de troca só pode ser o modo de expressão, a “forma de manifestação” de um conteúdo dele distinguível.

Tomemos ... duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Qualquer que seja a sua relação de troca, pode sempre ser representada por uma equação em que um dado quantum de trigo é igualado a um certo quantum de ferro, por exemplo, 1 quarter de trigo = a quintais de ferro. Que diz essa equação? Que algo em comum da mesma grandeza existe em duas coisas diferentes, em 1 quarter de trigo e igualmente em a quintais de ferro. Ambas são, portanto, iguais a uma terceira, que em si mesma não é nem uma nem outra. Cada uma das duas, enquanto valor de troca, tem de ser redutível a essa terceira.

Um simples exemplo geométrico torna isso evidente. Para determinar e comparar as áreas de todas as figuras rectilíneas decompomo-las em triângulos. O triângulo, por sua vez, é reduzido a uma expressão completamente diferente de sua figura visível – a metade do produto da base pela altura. O mesmo ocorre com os valores de troca das mercadorias: tem-se de reduzi-los a algo comum, do qual eles representam um mais ou um menos.

Esse algo comum não pode ser uma propriedade geométrica, física, química ou qualquer outra propriedade natural das mercadorias. Suas propriedades corpóreas só entram em consideração à medida que elas lhes conferem utilidade, isto é, as tornam valores de uso. Por outro lado, porém, é precisamente a abstracção dos seus valores de uso que caracteriza evidentemente a relação de troca das mercadorias. Dentro desta relação, um valor de uso vale exactamente tanto como outro qualquer, desde que esteja disponível na proporção adequada. ...

Como valores de uso, as mercadorias são à partida de diferente qualidade, como valores de troca só podem ser de quantidade diferente, não contendo nenhum átomo de valor de uso.

Se agora deixarmos de lado o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta-lhes apenas uma propriedade, a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o produto do trabalho também já se transformou nas nossas mãos. Se abstraímos do seu valor de uso, abstraímos também dos componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram. Também já não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o carácter útil dos produtos do trabalho, desaparece o carácter útil dos trabalhos neles representados, desaparecendo também assim as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se na sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstracto.

Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Nada restou deles a não ser a mesma objectividade fantasmagórica, uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humana, sem considerar a forma como foi despendida. O que essas coisas ainda representam é apenas que na sua produção foi despendida força de trabalho humana, foi acumulado trabalho humano. Como cristalizações dessa substância social comum, elas são valores – valores mercantis...

Tomemos duas mercadorias, digamos um casaco e 10 metros de tecido... O casaco é um valor de uso que satisfaz uma necessidade específica. Para produzi-lo, precisa-se de determinada espécie de actividade produtiva. Esta é determinada pelo seu fim, modo de operar, objecto, meios e resultado...

Como casaco e tecido são valores de uso qualitativamente diferentes, assim os trabalhos a que devem a sua existência são também qualitativamente diferentes – o trabalho de alfaiataria e o de tecelagem. Se aquelas coisas não fossem valores de uso qualitativamente diferentes e, por isso, produtos de trabalhos úteis qualitativamente diferentes, elas não poderiam de modo nenhum confrontar-se como mercadorias. Casaco não se troca por casaco, o mesmo valor de uso pelo mesmo valor de uso.

... Enquanto valores, casaco e tecido são coisas de igual substância, expressões objectivas do mesmo tipo de trabalho. Mas a alfaiataria e a tecelagem são trabalhos qualitativamente diferentes... A evidência ensina ainda que na nossa sociedade capitalista, conforme a mutável orientação da procura de trabalho, dada porção do trabalho humano deverá ser alternadamente oferecida ora sob a forma de alfaiataria, ora sob a forma de tecelagem. Essa variação da forma do trabalho pode não decorrer sem atritos, mas tem de ocorrer. Abstraindo-se da determinação da actividade produtiva e, portanto, do carácter útil do trabalho, resta apenas que ele é um dispêndio de força humana de trabalho. Alfaiataria e tecelagem, apesar de serem actividades produtivas qualitativamente diferentes, são ambas dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos etc. humanos, e nesse sentido são ambas trabalho humano. São apenas duas formas diferentes de despender força humana de trabalho. Contudo, para poder ser despendida dessa ou daquela forma, a força humana de trabalho precisa de estar mais ou menos desenvolvida. Mas o valor da mercadoria representa simplesmente trabalho humano, dispêndio de trabalho humano em geral. Assim como na sociedade burguesa um general ou banqueiro desempenha um grande papel, enquanto o homem simples, pelo contrário, desempenha um papel mesquinho, assim é também aqui com o trabalho humano. Ele é dispêndio da força de trabalho simples que qualquer pessoa comum, sem desenvolvimento especial, possui em média no seu organismo físico...

Assim como nos valores casaco e tecido se abstrai da diferença entre os seus valores de uso, também nos trabalhos que se representam nesses valores se abstrai da diferença entre as suas formas úteis, alfaiataria e tecelagem. Assim como os valores de uso casaco e tecido resultam de combinações de actividades produtivas com tecido e fio, com determinado fim, e os valores casaco e tecido são, em contrapartida, simples gelatinas homogéneas de trabalho, assim os trabalhos contidos nestes valores não valem devido à relação produtiva que mantêm com tecido e fio, mas apenas como dispêndios de força de trabalho humana. Alfaiataria e tecelagem são elementos formadores dos valores de uso casaco e tecido, graças às suas diferentes qualidades; mas só são substância do valor do casaco e do valor do tecido na medida em que se abstrai da sua qualidade específica e ambas possuem a mesma qualidade, a qualidade de trabalho humano...

Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho humana em sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual, ou trabalho humano abstracto, gera o valor das mercadorias. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho humana sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

Essa redução apresenta-se como uma abstracção; mas é uma abstracção que ocorre todos os dias no processo de produção social. A decomposição de todas as mercadorias em tempo de trabalho não é uma abstracção maior nem menos real do que a decomposição de todos os corpos orgânicos em ar. Na realidade, o trabalho que assim se mede com o tempo não se apresenta como trabalho de diferentes sujeitos, pelo contrário, os diferentes indivíduos que trabalham é que se apresentam como simples órgãos do trabalho.

 

Para a crítica da economia política, 1º caderno, Primeira edição, 1859

 

 

A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho para outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho tornou-se, não somente enquanto categoria, mas na realidade, meio para a criação da riqueza em geral e deixou de o ser apenas como determinação dos indivíduos numa particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade burguesa – os Estados Unidos. Assim apenas aqui a abstracção da categoria “trabalho”, “trabalho em geral”, trabalho puro e simples, o ponto de partida da economia moderna, se torna verdadeira na prática.

 

Linhas gerais da crítica da economia política [Grundrisse]. Rascunho. 1857-1858

 

 

O valor dos diamantes pode cair abaixo do dos tijolos

 

Um valor de uso ou bem apenas tem valor porque nele está objectivado ou materializado trabalho humano abstracto. Como medir então a grandeza do seu valor? Por meio do quantum nele contido da “substância constitutiva do valor”, o trabalho. A própria quantidade de trabalho é medida pelo seu tempo de duração, e o tempo de trabalho tem, por sua vez, sua unidade de medida em determinadas fracções de tempo, como hora, dia etc.

Se o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho despendido durante a sua produção, poderia parecer que quanto mais preguiçoso ou inábil for um homem, tanto maior o valor da sua mercadoria, pois mais tempo ele necessita para terminá-la. No entanto, o trabalho que constitui a substância dos valores é trabalho humano igual, dispêndio da mesma força de trabalho humana. A força conjunta de trabalho da sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias, vale aqui como uma única e a mesma força de trabalho humana, não obstante ela ser composta de inúmeras forças de trabalho individuais. Cada uma dessas forças de trabalho individuais é a mesma força de trabalho humana que as outras, na medida que possui o carácter de uma força média de trabalho social e opera como tal força de trabalho socialmente média, ou seja, que na produção de uma mercadoria não consume mais que o trabalho em média necessário, ou tempo de trabalho socialmente necessário. Tempo de trabalho socialmente necessário é o requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade e de intensidade de trabalho. Na Inglaterra, por exemplo, depois da introdução do tear a vapor, bastava talvez somente metade do trabalho de antes para transformar certa quantidade de fio em tecido. O tecelão manual inglês continuava a precisar do mesmo tempo de trabalho que antes para essa transformação, mas agora o produto da sua hora de trabalho individual somente representava meia hora de trabalho social, e assim caiu para metade do valor anterior ...

Caso se conseguisse com pouco trabalho transformar carvão em diamante, o valor deste poderia cair abaixo do dos tijolos. Genericamente, quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho exigido para a produção de um artigo, tanto menor a massa de trabalho nele cristalizada, tanto menor o seu valor. Inversamente, quanto menor a força produtiva do trabalho, tanto maior o tempo de trabalho necessário para a produção de um artigo, tanto maior o seu valor. A grandeza do valor de uma mercadoria muda na razão directa do quantum e na razão inversa da força produtiva do trabalho que nela se realiza.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

As subtilezas teológicas de uma mesa e os hieróglifos sociais dos produtores de mercadorias

 

À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa evidente e trivial. Analisando-a, vê-se que é uma coisa muito complicada, cheia de subtileza metafísica e de caprichos teológicos. Como valor de uso, não há nada de misterioso nela, quer eu a observe sob o ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas pelas suas propriedades, ou de que ela somente recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem por meio da sua actividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante, a mesa continua a ser madeira, uma coisa sensível comum. Mas, logo que aparece como mercadoria, transforma-se numa coisa sensível supra-sensível. Ela não se limita a ficar com os pés no chão, pelo contrário, põe-se de pernas para o ar perante todas as outras mercadorias, e desenvolve macaquinhos no sótão da sua cabeça de madeira, de maneira muito mais estranha do que se começasse a dançar espontaneamente.

O carácter místico da mercadoria não provém, portanto, do seu valor de uso. Nem tampouco do conteúdo das determinações de valor. Pois, primeiro, por mais que se diferenciem os trabalhos úteis ou actividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles são funções do organismo humano, e que cada uma dessas funções, qualquer que seja o seu conteúdo ou forma, é essencialmente dispêndio de cérebro, nervo, músculo, órgão sensorial etc. humanos. Segundo, quanto ao que serve de base à determinação da grandeza do valor, a duração daquele dispêndio ou a quantidade de trabalho, a quantidade é obviamente distinguível da qualidade do trabalho. O tempo de trabalho que custa a produção dos meios de subsistência teve de interessar aos homens em todas as situações, embora não igualmente nos diferentes estádios de desenvolvimento. Finalmente, logo que os homens trabalham uns para os outros de alguma maneira, o seu trabalho adquire também uma forma social.

De onde provém, então, o carácter enigmático do produto do trabalho logo que ele assume a forma de mercadoria? Evidentemente, dessa mesma forma. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objectividade de valor dos produtos do trabalho, a medida do dispêndio de força de trabalho humana pela sua duração assume a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho e, finalmente, as relações entre os produtores, em que se efectivam as determinações sociais dos seus trabalhos, assumem a forma de uma relação social entre os produtos do trabalho.

O misterioso da forma de mercadoria, portanto, consiste simplesmente no facto de que ela reflecte para os homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objectivas dos próprios produtos do trabalho, como qualidades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflecte a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objectos. Por meio desse quiproquó os produtos do trabalho tornam-se mercadorias, coisas sensíveis supra-sensíveis ou sociais. Assim, a impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não se apresenta como uma excitação subjectiva do próprio nervo, mas como forma objectiva de uma coisa fora do olho. Mas, no acto de ver, a luz projecta-se realmente a partir de uma coisa, o objecto externo, sobre outra coisa, o olho. É uma relação física entre coisas físicas. Pelo contrário, a forma de mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa, não têm que ver absolutamente nada com a sua natureza física nem com as relações materiais que daí se originam. É apenas determinada relação social entre os próprios homens, que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autónomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim acontece no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana. Chamo a isso fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho logo que eles são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

Esse carácter fetichista do mundo das mercadorias provém, como a análise precedente já mostrou, do carácter social peculiar do trabalho que produz mercadorias.

Os objectos de uso só se tornam mercadorias por serem produtos de trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros. O complexo desses trabalhos privados forma o trabalho social total. Como os produtores somente entram em contacto social mediante a troca dos seus produtos do trabalho, as características especificamente sociais dos seus trabalhos privados também só aparecem nessa troca. Ou seja, os trabalhos privados só se afirmam, de facto, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores. Por isso, aos últimos as relações sociais entre os seus trabalhos privados aparecem como o que são, isto é, não como relações sociais directas entre pessoas nos seus próprios trabalhos, mas sim como relações coisificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas.

Somente no interior da sua troca é que os produtos recebem uma objectividade de valor socialmente igual, separada da sua objectividade de uso sensivelmente diferente. Essa cisão do produto do trabalho em coisa útil e coisa de valor realiza-se apenas, na prática, quando a troca tenha adquirido extensão e importância suficientes para que se produzam coisas úteis para serem trocadas, de modo que o carácter de valor das coisas já seja considerado ao serem produzidas. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores adquirem realmente duplo carácter social. Por um lado, eles têm de satisfazer determinada necessidade social, como trabalhos determinados úteis, e assim provar serem participantes do trabalho total, do sistema naturalmente desenvolvido da divisão social do trabalho. Por outro lado, só satisfazem as múltiplas necessidades dos seus próprios produtores na medida em que cada trabalho privado útil particular é permutável por qualquer outra espécie de trabalho privado, isto é, lhe equivale. A igualdade de trabalhos toto coelo diferentes só pode consistir numa abstracção da sua verdadeira desigualdade, na redução ao carácter comum que eles possuem como dispêndio de força de trabalho humana, como trabalho humano abstracto. O cérebro dos produtores privados apenas reflecte esse duplo carácter social dos seus trabalhos privados sob aquelas formas que aparecem na circulação prática, na troca dos produtos: portanto, só reflecte o carácter socialmente útil dos seus trabalhos privados na forma que o produto do trabalho tem de ser útil, e útil para outros; só reflecte o carácter social da igualdade dos trabalhos de diferentes espécies na forma do carácter de valor comum dessas coisas materialmente diferentes, os produtos do trabalho.

Portanto, os homens não relacionam os seus produtos do trabalho entre si como valores por considerarem essas coisas meros invólucros materiais de trabalho humano da mesma espécie. Pelo contrário. É ao equiparar os seus produtos de diferentes espécies na troca como valores que equiparam os seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Eles não sabem, mas fazem-no. Por isso, o valor não traz escrito na testa aquilo que é. Pelo contrário, o valor transforma cada produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens procuram decifrar o sentido do hieróglifo, descobrir o segredo do seu próprio produto social, pois a determinação dos objectos de uso como valores, tal como a língua, é um produto social seu. A tardia descoberta científica de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são apenas expressões coisificadas do trabalho humano despendido na sua produção faz época na história do desenvolvimento da humanidade, mas não dissipa de modo nenhum a aparência objectiva dos caracteres sociais do trabalho. Aquilo que somente vale para esta forma particular de produção, a produção de mercadorias – a saber, que o carácter especificamente social dos trabalhos privados, independentes entre si, consiste na sua igualdade como trabalho humano, e assume a forma de carácter de valor dos produtos do trabalho – parece àqueles que estão presos nas relações de produção mercantil, tanto antes como depois dessa descoberta, tão definitivo como a decomposição científica do ar nos seus elementos deixa que a forma do ar continue, enquanto forma de corpo físico.

O que, na prática, primeiro interessa aos que trocam produtos é a questão de quantos produtos alheios eles recebem pelo seu, ou seja, em que proporções se trocam os produtos. Logo que essas proporções amadurecem, alcançando certa estabilidade habitual, elas parecem provir da natureza dos produtos do trabalho, de modo que, por exemplo, 1 tonelada de ferro e 2 onças de ouro têm o mesmo valor, como 1 libra de ouro e 1 libra de ferro têm o mesmo peso, apesar de suas diferentes propriedades físicas e químicas. De facto, o carácter de valor dos produtos do trabalho apenas se consolida mediante a sua efectivação como grandezas de valor. As últimas variam sempre, independentemente da vontade, da previsão e da acção dos que trocam. O seu movimento social próprio possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controlo eles se encontram, em vez de as controlarem …

A reflexão sobre as formas de vida humana, e, portanto, também a sua análise científica, segue... um caminho oposto ao desenvolvimento real. Começa post festum e, por isso, com os resultados definitivos do processo de desenvolvimento. As formas que marcam os produtos do trabalho como mercadorias e, portanto, são pressupostas à circulação de mercadorias já possuem a consistência de formas naturais da vida social, antes que os homens procurem dar-se conta não do carácter histórico dessas formas, que eles antes já consideram imutáveis, mas do seu conteúdo. Assim, somente a análise dos preços das mercadorias é que levou à determinação da grandeza do valor, somente a expressão comum das mercadorias em dinheiro é que levou à fixação do seu carácter de valor. É exactamente essa forma acabada – a forma do dinheiro – do mundo das mercadorias que objectivamente encobre, em vez de revelar, o carácter social dos trabalhos privados e, portanto, as relações sociais entre os produtores privados. Se eu disser que casaco, botas etc. se relacionam com o tecido como a corporificação geral do trabalho humano abstracto, salta à vista o absurdo dessa expressão. Mas quando os produtores de casaco, botas etc. relacionam essas mercadorias com o tecido – ou com o ouro e a prata, o que em nada muda a coisa – como equivalente geral, a relação dos seus trabalhos privados com o trabalho social total aparece-lhes exactamente nessa forma absurda.

São precisamente tais formas que constituem as categorias da economia burguesa. São formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, objectivas para as condições de produção desse modo social de produção historicamente determinado, a produção de mercadorias. Todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a magia e a fantasmagoria que enevoam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente assim que passamos para outras formas de produção.

Como a economia política gosta de robinsonadas, apareça primeiro Robinson na sua ilha. Embora modesto por natureza, ele precisa de satisfazer várias necessidades e, por isso, tem de executar trabalhos úteis de diferentes espécies, fazer ferramentas, fabricar móveis, domesticar lamas, pescar, caçar etc. Não falamos aqui das orações e coisas semelhantes, porque o nosso Robinson se compraz nelas e considera tais actividades como recreio. Apesar da diversidade das suas funções produtivas ele sabe que elas são apenas diferentes formas da actividade do mesmo Robinson, portanto, somente modos diferentes de trabalho humano. A própria necessidade o obriga a distribuir o tempo com precisão entre as suas diferentes funções. Se uma ocupa mais e outra menos espaço na sua actividade total, isso depende da maior ou menor dificuldade a vencer para conseguir o efeito útil pretendido. A experiência ensina-lhe isso, e nosso Robinson, que salvou do naufrágio o relógio, o livro-razão, tinta e caneta, começa, como bom inglês, logo a a fazer a própria contabilidade. O seu inventário contém uma relação dos objectos de uso que ele possui, das diversas operações requeridas para a sua produção e, finalmente, do tempo de trabalho que em média lhe custam determinadas quantidades desses diferentes produtos. Todas as relações entre Robinson e as coisas que formam a sua riqueza, por ele mesmo criada, são aqui tão simples e transparentes que até o sr. M. Wirth poderia entendê-las, sem particular esforço intelectual. E todavia estão lá contidas todas as determinações essenciais do valor.

Ora passemos da ilha luminosa de Robinson para a sombria Idade Média europeia. Em vez do homem independente, encontramos aqui todos dependentes – servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. A dependência pessoal caracteriza tanto as condições sociais da produção material quanto as esferas de vida edificadas sobre ela. Mas, justamente porque as relações de dependência pessoal constituem a base social dada, os trabalhos e produtos não precisam de adquirir forma fantástica, diferente da sua realidade. Eles entram na engrenagem social como serviços e prestações naturais. A forma natural do trabalho, a sua particularidade é aqui a sua forma directamente social, e não a sua generalidade, como na base da produção de mercadorias. O trabalho servil é medido em tempo, tal como o trabalho que produz mercadorias, mas cada servo sabe que é certa quantidade da sua força de trabalho pessoal que ele despende ao serviço do seu senhor. O dízimo a ser pago ao padre é mais claro que a bênção do padre. Portanto, como quer que se julguem as máscaras que os homens vestem ao defrontarem-se aqui, as relações sociais entre as pessoas nos seus trabalhos aparecem em todo o caso como as suas próprias relações pessoais, e não são disfarçadas em relações sociais das coisas, dos produtos do trabalho.

Para observar o trabalho comum, isto é, o trabalho directamente socializado, não precisamos de recuar até à sua forma naturalmente desenvolvida no limiar da história de todos os povos civilizados. A indústria rural patriarcal de uma família camponesa, que produz para seu próprio uso cereais, gado, fio, tecido, peças de roupa etc., constitui um exemplo mais próximo. Essas diversas coisas apresentam-se à família como produtos diferentes do seu trabalho familiar, mas não se relacionam entre si como mercadorias …

Para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja relação social geral de produção consiste em relacionar-se com seus produtos como mercadorias, portanto como valores, e nessa forma coisificada relacionar mutuamente os seus trabalhos privados como trabalho humano igual, para essa sociedade o cristianismo, com seu culto do homem abstracto, é a forma de religião mais adequada, nomeadamente no seu desenvolvimento burguês, o protestantismo, o deísmo etc. Nos modos de produção da velha Ásia e da Antiguidade etc., a transformação do produto em mercadoria, e, portanto, a existência dos homens como produtores de mercadorias, desempenha um papel subordinado, que porém se torna tanto mais importante quanto mais as comunidades entram na fase de declínio. Povos propriamente comerciantes só existem nos intermúndios do mundo antigo, como os deuses de Epicuro, ou como os judeus nos poros da sociedade polaca. Esses antigos organismos sociais de produção são extraordinariamente mais simples e transparentes do que o organismo burguês, mas baseiam-se na imaturidade do homem individual, que não se desprendeu do cordão umbilical da ligação natural aos outros do mesmo género, ou em relações directas de domínio e servidão. Eles são condicionados por um baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho e por relações correspondentemente limitadas dos homens dentro do processo material de produção da sua vida, portanto, entre si e com a natureza. Essa restrição real reflecte-se idealmente nos cultos da natureza e nas religiões populares da Antiguidade. O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as relações quotidianas da vida prática representarem para os homens relações transparentes e racionais, entre si e com a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controlo consciente e planeado. Para tanto, porém, requer-se uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, são o produto natural de uma longa e penosa história de desenvolvimento.

A economia política analisou, de facto, embora incompletamente, o valor e a grandeza do valor, e o conteúdo oculto nessas formas. Mas nunca chegou a perguntar porque é que este conteúdo assume aquela forma, porquê, portanto, o trabalho se representa no valor, e a medida do trabalho pela sua duração na grandeza de valor do produto do trabalho. Fórmulas que não deixam lugar a dúvidas de que pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens e não são ainda os homens que dominam o processo de produção, tais fórmulas são consideradas pela sua consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo. Por isso ela trata as formas pré-burguesas do organismo social de produção como os padres da Igreja tratam as religiões pré-cristãs.

Até que ponto uma parte dos economistas é enganada pelo fetichismo colado ao mundo das mercadorias ou pela aparência objectiva das determinações sociais do trabalho é o que demonstra, entre outras, a disputa aborrecida e insípida sobre o papel da natureza na formação do valor de troca. Como o valor de troca é uma maneira social específica de expressar o trabalho empregado numa coisa, não pode conter mais matéria natural do que, por exemplo, a cotação cambial.

Como a forma de mercadoria é a forma mais geral e menos desenvolvida da produção burguesa, razão por que aparece cedo, embora não da mesma maneira dominante e característica como hoje em dia, o seu carácter fetichista parece ainda relativamente fácil de penetrar. Nas formas mais concretas, até essa aparência de simplicidade desaparece. De onde provieram as ilusões do sistema monetário? Ele não viu no ouro e na prata que representam, como dinheiro, uma relação social de produção, mas viu-os na forma de objectos naturais com estranhas qualidade sociais. E a economia moderna, que sobranceiramente desdenha do sistema monetário, não se torna evidente o seu fetichismo logo que trata do capital? Há quanto tempo desapareceu a ilusão fisiocrática de que a renda da terra se origina do solo e não da sociedade?

Para não antecipar, porém, limitamo-nos aqui a dar mais um exemplo relativo à própria forma de mercadoria. Se as mercadorias pudessem falar, diriam: É possível que nosso valor de uso interesse aos homens. Não é da nossa conta enquanto coisas. Mas o que nos compete enquanto coisas é o nosso valor. A nossa própria circulação como coisas mercantis demonstra isso. Relacionamo-nos umas com as outras somente como valores de troca. Ouçamos agora como a fala do economista revela a alma da mercadoria:

“Valor (valor de troca) é propriedade das coisas, riqueza (valor de uso) do homem. Valor, nesse sentido, implica necessariamente troca, riqueza não. Riqueza (valor de uso) é um atributo do homem, valor um atributo das mercadorias. Um homem, ou uma comunidade, é rico; uma pérola, ou um diamante, é valiosa. (...) Uma pérola ou um diamante tem valor como pérola ou diamante" (Observations on some Verbal Disputes in Pol. Econ., Particularly Relating to Value, and to Supply and Demand. Londres, 1821. p. 16.... S. Bailey, A Critical Dissertation on the Nature, Measures and Causes of Value…, London 1825, p.165 ss).

Até agora nenhum químico descobriu valor de troca na pérola ou no diamante. Os descobridores económicos dessa substância química, que se pretendem particularmente profundos na crítica, acham, porém, que o valor de uso das coisas é independente das suas propriedades enquanto coisas, e que o seu valor, pelo contrário, lhes é atribuído enquanto coisas. O que lhes confirma isso é a estranha circunstância de que o valor de uso das coisas se realiza para o homem sem troca, portanto, na relação directa entre coisa e homem, mas o seu valor, pelo contrário, se realiza apenas na troca, isto é, num processo social. Quem não se lembra aqui do bom Dogberry, ensinando ao vigilante Seacoal: “Ser um homem de boa aparência é uma dádiva das circunstâncias, mas saber ler e escrever vem da natureza.”

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

As mediações das formas irracionais em que determinadas relações económicas aparecem e praticamente se juntam não importam nada aos portadores práticos dessas relações económicas no seu modo de viver, e, como estão habituados a movimentar-se no meio delas, não ficam nada chocados com isso. Uma perfeita contradição não tem nada de misterioso para eles. Em formas de manifestação que perderam a coerência interna e que, tomadas isoladamente, são absurdas, eles sentem-se tão à vontade como o peixe na água. Vale aqui o que Hegel diz em relação a certas fórmulas matemáticas, ou seja, o que o bom senso considera irracional é racional e o que considera racional é a própria irracionalidade.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

O enigma do dinheiro ou as relações entre casaco e tecido

 

A objectividade do valor das mercadorias é diferente de Mistress Quickly, pois não se sabe por onde agarrá-la. Exactamente ao contrário da objectividade palpável e rude dos corpos das mercadorias, nem um átomo de matéria natural entra na objectividade do seu valor. Podemos virar e revirar uma mercadoria como quisermos, como coisa de valor ela continua a ser imperceptível. Mas se recordarmos que as mercadorias apenas possuem objectividade de valor na medida em que são expressões da mesma unidade social de trabalho humano, pois a sua objectividade de valor é puramente social, então é evidente que ela só pode aparecer numa relação social de mercadoria para mercadoria. Partimos, de facto, do valor de troca ou da relação de troca das mercadorias para chegar à pista do seu valor aí oculto. Temos de voltar agora a essa forma de manifestação do valor.

Toda a gente sabe, ainda que não saiba mais do que isso, que as mercadorias possuem uma forma de valor comum, que contrasta de maneira muito marcante com a heterogeneidade das formas naturais que apresentam o seus valores de uso – a forma do dinheiro. Aqui cabe, no entanto, realizar o que não foi jamais tentado pela economia burguesa, isto é, comprovar a génese dessa forma do dinheiro, ou seja, acompanhar o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor das mercadorias, desde a sua forma mais simples e sem brilho até à ofuscante forma do dinheiro. Com isso desaparece simultaneamente o enigma do dinheiro.

A relação mais simples de valor é evidentemente a relação de valor de uma mercadoria com uma única mercadoria de tipo diferente, seja qual for. A relação de valor entre duas mercadorias fornece, por isso, a mais simples expressão de valor para uma mercadoria…

x mercadoria A = y mercadoria B, ou: x mercadoria A vale y mercadoria B.

(20 metros de tecido = 1 casaco, ou: 20 metros de tecido valem 1 casaco.)

O segredo de toda a forma de valor encerra-se nessa forma simples de valor. Na sua análise reside a verdadeira dificuldade.

Duas mercadorias diferentes, A e B, no nosso exemplo tecido e casaco, representam aqui, evidentemente, dois papéis distintos. O tecido expressa o seu valor no casaco, o casaco serve de material para essa expressão de valor. A primeira mercadoria representa um papel activo, a segunda um papel passivo. O valor da primeira mercadoria é apresentado como valor relativo ou ela encontra-se sob forma relativa de valor. A segunda mercadoria funciona como equivalente ou encontra-se em forma de equivalente.

Forma relativa de valor e forma de equivalente pertencem uma à outra, determinam-se reciprocamente, são momentos inseparáveis, mas ao mesmo tempo são extremos que se excluem mutuamente ou se opõem, isto é, pólos da mesma expressão de valor; elas repartem-se sempre entre as diversas mercadorias relacionadas entre si pela expressão de valor. Não posso, por exemplo, expressar o valor do tecido em tecido. 20 metros de tecido = 20 metros de tecido não é nenhuma expressão de valor. A equação diz, pelo contrário: 20 metros de tecido são nada mais que 20 metros de tecido, um quantum determinado do objecto de uso tecido. O valor do tecido pode assim ser expresso apenas relativamente, isto é, por meio de outra mercadoria. A forma relativa de valor do tecido supõe, portanto, que alguma outra mercadoria a ela se oponha na forma de equivalente. Por outro lado, essa outra mercadoria que figura como equivalente não pode ao mesmo tempo encontrar-se na forma relativa de valor. Não é ela que expressa seu valor. Ela fornece apenas o material à expressão do valor de outra mercadoria.

É verdade que a expressão 20 metros de tecido = 1 casaco, ou 20 metros de tecido valem 1 casaco, encerra também as relações contrárias: 1 casaco = 20 metros de tecido, ou 1 casaco vale 20 metros de tecido. Porém, assim preciso inverter a equação para poder expressar o valor relativo do casaco, e logo que eu faço isso, torna-se o tecido equivalente em vez do casaco. A mesma mercadoria não pode, portanto, aparecer ao mesmo tempo sob ambas as formas na mesma expressão de valor. Pelo contrário, elas excluem-se polarmente.

Se uma mercadoria se encontra sob a forma relativa de valor ou sob a forma oposta, a forma de equivalente, depende exclusivamente da posição que essa mercadoria ocupe na expressão de valor em cada momento, ou seja, se é a mercadoria cujo valor é expresso ou aquela na qual é expresso o valor …

Digamos: como valores, as mercadorias são meras gelatinas de trabalho humano, então a nossa análise reduz as mesmas à abstracção de valor, mas sem dar-lhes qualquer forma de valor diferente das suas formas naturais. A coisa é diferente na relação de valor de uma mercadoria com a outra. O seu carácter de valor revela-se aqui por meio da sua própria relação com outra mercadoria …

Na relação de valor do tecido o casaco vale como seu igual em qualidade, como coisa da mesma natureza, porque é um valor. Ele vale aqui, portanto, como coisa na qual aparece valor, ou a qual em sua forma natural palpável representa valor. Na verdade, o casaco, o corpo da mercadoria casaco, é um mero valor de uso. Um casaco expressa tão pouco valor quanto qualquer peça de tecido. Isso comprova apenas que ele significa mais dentro da relação de valor com o tecido que fora dela, assim como algumas pessoas significam mais dentro de um casaco com galões que fora dele.

Na produção do casaco foi realmente despendida força de trabalho humana sob a forma de alfaiataria ... Por esse lado, o casaco é “portador de valor”, ainda que essa sua propriedade não se veja, nem na sua forma mais puída. E na relação de valor do tecido ele vale apenas segundo esse lado, portanto como valor corporificado, como corpo de valor. Apesar de sua aparência abotoada, o tecido reconheceu nele a bela alma de valor de origem comum. O casaco, em relação ao tecido, não pode representar valor, sem que para este o valor assuma simultaneamente a forma de um casaco. Assim o indivíduo A não pode comportar-se para com o indivíduo B como uma majestade, sem que para A majestade assuma simultaneamente a forma corpórea de B e que, portanto, modifique feições, cabelos e várias outras características cada vez que muda o pai do povo.

Na relação de valor, na qual o casaco constitui o equivalente do tecido, a forma de casaco vale, portanto, como forma de valor. O valor da mercadoria tecido é assim expresso no corpo da mercadoria casaco, o valor de uma mercadoria no valor de uso da outra. Como valor de uso o tecido é uma coisa fisicamente diferente do casaco, como valor é algo igual ao casaco e parece, portanto, como um casaco. Assim, o tecido recebe uma forma de valor diferente de sua forma natural. A sua existência de valor aparece na sua igualdade com o casaco, como a natureza de carneiro do cristão na sua igualdade com o cordeiro de Deus…

Por meio da relação de valor, a forma natural da mercadoria B torna-se a forma de valor da mercadoria A, ou o corpo da mercadoria B o espelho do valor da mercadoria A. Ao relacionar-se com a mercadoria B como corpo de valor, como materialização de trabalho humano, a mercadoria A torna o valor de uso de B material da sua própria expressão de valor. O valor da mercadoria A, assim expresso no valor de uso da mercadoria B, possui a forma do valor relativo…

Como vimos, uma mercadoria A (o tecido) ao expressar o seu valor no valor de uso de uma mercadoria diferente B (o casaco) imprime a esta última uma forma peculiar de valor, a de equivalente...

A primeira peculiaridade que chama a atenção quando se observa a forma de equivalente é esta: o valor de uso torna-se forma de manifestação do seu contrário, do valor.

A forma natural da mercadoria torna-se forma de valor. Porém, nota bene, esse quiproquó ocorre para uma mercadoria B (casaco ou trigo ou ferro etc.) apenas internamente à relação de valor, na qual outra mercadoria qualquer A (tecido etc.) se junta a ela, apenas no interior dessa relação. Como nenhuma mercadoria pode figurar como equivalente de si mesma, nem fazer da sua própria pele natural expressão do seu próprio valor, ela tem de relacionar-se como equivalente com outra mercadoria, ou fazer da pele natural de outra mercadoria a sua própria forma de valor …

Expressando a forma relativa de valor de uma mercadoria, por exemplo do tecido, a sua qualidade de ter valor como algo inteiramente distinto do seu corpo e das suas propriedades, por exemplo, como algo igual a um casaco, essa expressão mesma indica que nela se oculta uma relação social. Com a forma de equivalente dá-se o contrário. Ela consiste justamente em que um corpo de mercadoria, como o do casaco, tal qual ela é, expressa valor, possuindo assim por natureza forma de valor. É verdade que isso vale apenas internamente à relação de valor, na qual a mercadoria tecido está relacionada com a mercadoria casaco enquanto equivalente. Mas como as propriedades de uma coisa não se originam da sua relação com outras coisas, mas apenas actuam em tal relação, parece também que o casaco possui por natureza a sua forma de equivalente, a sua propriedade de ser directamente trocável, tanto quanto a sua propriedade de ser pesado ou de manter alguém aquecido. Daí o enigmático da forma de equivalente, que apenas fere o rústico olhar burguês do economista político quando se lhe apresenta já pronta, sob a forma do dinheiro. Então ele busca explicações que ponham de lado o carácter místico do ouro e da prata, substituindo-os por mercadorias menos ofuscantes, e salmodiando com sempre renovado prazer o catálogo das mercadorias vulgares que noutros tempos desempenharam o papel de equivalente de mercadorias. Ele não suspeita que a mais simples expressão de valor, como 20 metros de tecido = 1 casaco, já dá a solução do enigma da forma de equivalente…

Na forma de alfaiataria como na forma de tecelagem é despendida força de trabalho humana. Ambas as actividades possuem, portanto, a propriedade geral do trabalho humano e, por conseguinte, em determinados casos, como por exemplo na produção de valor, podem ser consideradas somente sob esse ponto de vista. Tudo isso não é misterioso. Mas na expressão de valor da mercadoria a coisa torna-se distorcida. Por exemplo, para expressar que a tecelagem, não em sua forma concreta como tecelagem, mas sim em sua propriedade geral como trabalho humano, gera o valor do tecido, ela é confrontada com a alfaiataria, o trabalho concreto que produz o equivalente do tecido, como a forma de realização palpável do trabalho humano abstracto.

É portanto uma segunda peculiaridade da forma de equivalente que trabalho concreto se converta na forma de manifestação do seu contrário, trabalho humano abstracto.

Mas na medida em que o trabalho concreto alfaiataria funciona como mera expressão de trabalho humano indiferenciado, ele possui a forma da igualdade com outro trabalho, o trabalho contido no tecido, e portanto, ainda que trabalho privado como todos os outros, trabalho que produz mercadorias, é no entanto trabalho em forma directamente social. Pois apresenta-se num produto que é directamente trocável por outra mercadoria. É, portanto, uma terceira peculiaridade da forma de equivalente que trabalho privado se converta na forma do seu contrário, trabalho em forma directamente social …

O exame mais pormenorizado da expressão de valor da mercadoria A, contida na relação de valor com a mercadoria B, demonstrou que dentro da mesma a forma natural da mercadoria A funciona apenas como figuração de valor de uso, e a forma natural da mercadoria B apenas como forma de valor ou figuração de valor. A antítese interna entre valor de uso e valor oculta na mercadoria é, portanto, representada por meio de uma antítese externa, isto é, por meio da relação entre duas mercadorias, na qual uma delas, cujo valor deve ser expresso, funciona directamente apenas como valor de uso; a outra, pelo contrário, na qual o valor é expresso vale directamente apenas como valor de troca. A forma simples de valor de uma mercadoria é, por conseguinte, a forma simples de manifestação da antítese entre valor de uso e valor nela contida. ...

A expressão em qualquer mercadoria B distingue o valor da mercadoria A apenas do seu próprio valor de uso, colocando-a, portanto, numa relação de troca com alguma espécie individual de mercadoria diferente dela mesma, em vez de expressar a sua igualdade qualitativa e a sua proporcionalidade quantitativa com todas as outras mercadorias. A forma simples de valor relativo de uma mercadoria corresponde à forma de equivalente individual de outra mercadoria. Assim o casaco possui, na expressão relativa de valor do tecido, apenas a forma de equivalente ou a forma de trocabilidade directa com relação a essa espécie individual de mercadoria, o tecido.

Entretanto, a forma individual de valor passa por si mesma a uma forma mais completa. Por meio da mesma, o valor de uma mercadoria A é certamente expresso apenas em uma mercadoria de outro tipo. Qual é, porém, a espécie dessa segunda mercadoria, se casaco, se ferro, se trigo etc., é totalmente indiferente. Assim, conforme ela entre numa relação de valor com esta ou aquela outra espécie de mercadoria, surgem diferentes expressões simples de valor de uma mesma mercadoria. O número das suas possíveis expressões de valor é apenas limitado pelo número de espécies de mercadorias diferentes dela. A sua expressão individualizada de valor converte-se, portanto, numa série constantemente ampliável das suas diferentes expressões simples de valor …

z mercadoria A = u mercadoria B ou = v mercadoria C ou = w mercadoria D ou = x mercadoria E ou = etc.

(20 metros de tecido = 1 casaco ou = 10 libras de chá ou = 40 libras de café ou = 1 quarter de trigo ou = 2 onças de ouro ou = 1/2 tonelada de ferro ou = etc.) ...

O valor de uma mercadoria, do tecido, por exemplo, é agora expresso em inumeráveis outros elementos do mundo das mercadorias. Qualquer outro corpo de mercadoria torna-se espelho do valor do tecido. Assim aparece esse mesmo valor pela primeira vez verdadeiramente como gelatina de trabalho humano indiferenciado. Pois o trabalho que o gera é agora expressamente representado como trabalho equiparado a qualquer outro trabalho humano, seja qual for a forma natural que ele possua e se, portanto, se objectiva em casaco ou trigo ou ferro ou ouro etc. Por meio da sua forma de valor, o tecido encontra-se agora também em relação social já não apenas com outra espécie individual de mercadoria, mas sim com o mundo das mercadorias. Como mercadoria, ele é cidadão deste mundo. Ao mesmo tempo, a interminável série das suas expressões mostra que é indiferente ao valor mercantil a forma específica do valor de uso na qual ele se manifesta.

... A corrente em que uma equiparação de valor se liga à outra permanece sempre prolongável por meio de cada nova espécie de mercadoria que surge, a qual fornece o material para nova expressão de valor. Segundo, ela forma um mosaico colorido de expressões de valor, desconexas e diferenciadas. Se finalmente, como deve ocorrer, o valor relativo de cada mercadoria for expresso nessa forma desdobrada, então a forma relativa de valor de cada mercadoria é uma série infinita de expressões de valor ... Como aqui a forma natural de cada espécie particular de mercadoria é uma forma de equivalente particular ao lado de inumeráveis outras formas de equivalente particulares, existem, em geral, apenas formas de equivalente limitadas, das quais cada uma exclui a outra. Do mesmo modo, a espécie de trabalho determinada, concreta, útil contida em cada mercadoria equivalente particular é apenas forma de manifestação particular – portanto não exaustiva – do trabalho humano. Este possui, na verdade, a sua forma de manifestação completa ou total no ciclo inteiro daquelas formas particulares de manifestação. Mas assim ele não possui nenhuma forma de manifestação unitária.

A forma relativa de valor desdobrada consiste numa soma de expressões de valor ou equações da primeira forma, como:

20 metros de tecido = 1 casaco

20 metros de tecido = 10 libras de chá etc.

Cada uma dessas equações contém, reciprocamente, a equação idêntica:

1 casaco = 20 metros de tecido

10 libras de chá = 20 metros de tecido etc.

De facto: quando um homem troca o seu tecido por muitas outras mercadorias e, portanto, expressa o seu valor numa série de outras mercadorias, então necessariamente os muitos outros possuidores de mercadorias também precisam de trocar as suas mercadorias por tecido e, por conseguinte, expressar os valores das suas diferentes mercadorias na mesma terceira mercadoria em tecido. – Invertamos, portanto a série: 20 metros de tecido = 1 casaco ou = 10 libras de chá = etc., isto é, expressemos a relação recíproca implicitamente já contida na série, e então obtemos:

1 casaco = 10 libras de chá = 40 libras de café = 1 quarter de trigo = 2 onças de ouro = 1/2 tonelada de ferro = x mercadoria A = etc. mercadoria =

= 20 metros de tecido

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

É como se, ao lado e para além de leões, tigres, lebres e todos os outros animais reais, que no seu conjunto constituem os diferentes géneros, espécies, subespécies, famílias etc. do reino animal, existisse também o animal, a incarnação individual de todo o reino animal. Um tal indivíduo, que abrange em si mesmo todas as espécies realmente existentes do mesmo item, é um universal, como animal, Deus etc. Como o tecido se tornou único equivalente, de tal modo que qualquer outra mercadoria se lhe refere como forma do valor, ele torna-se assim, como forma do valor comum a todas as mercadorias, o equivalente geral, o corpo geral do valor.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Primeira edição, 1867

 

 

As mercadorias apresentam agora os seus valores 1) de modo simples, porque numa única mercadoria, e 2) de modo unitário, porque na mesma mercadoria. A sua forma de valor é simples e comum a todas, portanto, geral …

A forma obtida por último expressa os valores do mundo das mercadorias numa e mesma espécie de mercadoria, isolada das outras, por exemplo, no tecido, e representa assim os valores de todas as mercadorias por meio da sua igualdade com o tecido. Como algo igual ao tecido, o valor de cada mercadoria não apenas se distingue do seu próprio valor de uso, mas de qualquer valor de uso, e justamente por isso ele é expresso como aquilo que ela tem em comum com todas as mercadorias. Essa forma é a primeira, portanto, a relacionar realmente as mercadorias entre si como valores, ou que as deixa aparecer reciprocamente como valores de troca.

As duas formas anteriores expressam o valor de cada mercadoria, seja numa única mercadoria de espécie diferente, seja numa série de muitas mercadorias diferentes dela. Em ambos os casos é, por assim dizer, questão particular da mercadoria individual dar-se uma forma de valor e ela o realiza sem a intervenção das outras mercadorias. Estas desempenham, contrapostas a ela, o papel meramente passivo do equivalente. A forma de valor geral, pelo contrário, surge apenas como obra comum do mundo das mercadorias. Uma mercadoria só ganha a expressão geral do valor porque simultaneamente todas as demais mercadorias expressam o seu valor no mesmo equivalente, e cada nova espécie de mercadoria que aparece tem que fazer o mesmo. Evidencia-se com isso que a objectividade do valor das mercadorias, por ser a mera “existência social” dessas coisas, também somente pode ser expressa na sua relação social universal, e a sua forma tem de ser a forma social em vigor.

Na forma de iguais ao tecido, todas as mercadorias aparecem agora não só qualitativamente iguais, como valores em geral, mas ao mesmo tempo como grandezas de valor quantitativamente comparáveis. Ao espelhar as suas grandezas de valor num único material, no tecido, essas grandezas de valor reflectem-se mutuamente. Por exemplo, 10 libras de chá = 20 metros de tecido, e 40 libras de café = 20 metros de tecido. Então, 10 libras de chá = 40 libras de café. Ou, 1 libra de café contém apenas 1/4 da substância de valor, trabalho, contida em 1 libra de chá.

A forma de valor geral relativa do mundo das mercadorias imprime à mercadoria equivalente dele excluída, ao tecido, o carácter de equivalente geral. A sua própria forma natural é a figura de valor comum a esse mundo, sendo o tecido por isso directamente trocável por todas as outras mercadorias. A sua forma corpórea funciona como encarnação visível, como crisálida social geral de todo o trabalho humano. A tecelagem, o trabalho privado que produz tecido, encontra-se simultaneamente na forma social geral, na forma da igualdade com todos os outros trabalhos. As inumeráveis equações em que consiste a forma de valor geral equiparam, sucessivamente, o trabalho realizado no tecido com cada trabalho contido em outra mercadoria, tornando assim a tecelagem a forma geral de manifestação do trabalho humano enquanto tal. Deste modo, o trabalho objectivado no valor das mercadorias não se representa apenas de um modo negativo, como trabalho em que todas as formas concretas e propriedades úteis dos trabalhos reais são abstraídas. Sua própria natureza positiva é expressamente ressaltada. Ele é a redução de todos os trabalhos reais à sua característica comum de trabalho humano, ao dispêndio de força de trabalho humana ...

A forma de equivalente geral é uma forma do valor em si. Ela pode ser recebida, portanto, por qualquer mercadoria. Por outro lado, uma mercadoria encontra-se apenas na forma de equivalente geral ... porque e na medida em que é posta de parte por todas as demais mercadorias como equivalente. E só a partir do momento em que essa exclusão se limita definitivamente a um tipo específico de mercadoria é que a forma de valor relativa unitária do mundo das mercadorias adquire consistência objectiva e validade social geral.

O tipo específico de mercadoria com cuja forma natural a forma de equivalente se funde socialmente torna-se mercadoria-dinheiro, ou funciona como dinheiro. Torna-se sua função especificamente social e, portanto, seu monopólio social, desempenhar o papel de equivalente geral dentro do mundo das mercadorias. Entre as mercadorias que na forma II figuram como equivalentes particulares do tecido, e na forma III expressam em comum seu valor relativo em tecido, determinada mercadoria conquistou historicamente essa posição privilegiada, o ouro ...

O progresso apenas consiste em que a forma de trocabilidade directa geral ou a forma de equivalente geral se fundiu agora definitivamente, por meio do hábito social, com a forma natural específica da mercadoria ouro.

O ouro só se confronta com outras mercadorias como dinheiro por já antes ter-se contraposto a elas como mercadoria. Tal como todas as outras mercadorias funcionou também como equivalente, seja como equivalente individual em actos isolados de troca, seja como equivalente particular ao lado de outros equivalentes mercantis. Pouco a pouco, passou a funcionar, em círculos mais estreitos ou mais extensos, como equivalente geral. Logo que conquistou o monopólio dessa posição na expressão de valor do mundo das mercadorias, torna-se mercadoria dinheiro ...

A expressão relativa simples de valor de uma mercadoria, por exemplo, do tecido, na mercadoria que já funciona como mercadoria dinheiro, por exemplo, o ouro, é a forma preço. A “forma preço” do tecido é, pois:

20 metros de tecido = 2 onças de ouro

ou, sendo 2 libras esterlinas o nome monetário de 2 onças de ouro,

20 metros de tecido = 2 libras esterlinas

 … Esta forma de equivalente geral surge e desaparece com o contacto social momentâneo que a chamou à vida. É atribuída alternada e transitoriamente a esta ou àquela mercadoria. Com o desenvolvimento da troca de mercadorias fixa-se exclusivamente em espécies particulares de mercadorias ou cristaliza-se na forma do dinheiro. A que classe de mercadorias ela adere é, no início, algo ocasional. No entanto, existem duas circunstâncias que grosso modo são decisivas. A forma fixa-se ou nos artigos de troca mais importantes vindos do estrangeiro, os quais de facto são formas de manifestação naturalmente desenvolvidas do valor de troca dos produtos locais, ou no objecto de uso que representa o elemento principal do património local alienável, como o gado, por exemplo …

Na mesma medida em que a troca de mercadorias rompe os seus laços apenas locais e, com isso, o valor das mercadorias se desenvolve para vir a ser materialização do trabalho humano em geral, a forma do dinheiro passa para mercadorias por natureza adequadas à função social de equivalente geral, os metais preciosos.

 … Forma adequada de manifestação do valor ou materialização de trabalho humano abstracto e, portanto, igual, pode ser apenas uma matéria cujos diversos exemplares possuam todos a mesma qualidade uniforme. Por outro lado, como a diferença das grandezas de valor é puramente quantitativa, é necessário que a mercadoria monetária seja capaz de expressar variações meramente quantitativas, podendo ser dividida à vontade e novamente recomposta a partir das suas partes. Ouro e prata possuem essas propriedades por natureza.

O valor de uso da mercadoria monetária dobra. Além do seu valor de uso particular como mercadoria, como o ouro por exemplo serve para obturar dentes, como matéria-prima para artigos de luxo etc., ela adquire um valor de uso formal decorrente de suas funções sociais específicas.

Sendo todas as mercadorias meros equivalentes particulares do dinheiro e o dinheiro seu equivalente geral, elas se relacionam como mercadorias particulares com o dinheiro, a mercadoria geral.

Viu-se que a forma do dinheiro é apenas o reflexo aderente a uma única mercadoria das relações de todas as outras mercadorias. Que o dinheiro seja mercadoria, portanto, apenas é uma descoberta para aquele que parte da sua forma acabada para depois a analisar. O processo de troca dá à mercadoria por ele transformada em dinheiro não o seu valor, mas a sua forma de valor específica. A confusão entre essas duas determinações levou a considerar o valor do ouro e da prata como sendo imaginário. Podendo o dinheiro ser substituído, em certas funções, por meros signos dele mesmo, surgiu o outro erro, que ele seja mero signo. Por outro lado, essa noção implicava vislumbrar que a forma de dinheiro da coisa é externa a ela mesma e mera forma de manifestação de relações humanas ocultas atrás dela. Nesse sentido, cada mercadoria seria um signo, pois, como valor, é apenas um invólucro reificado do trabalho humano nela despendido. Mas, ao considerar meros signos os caracteres sociais que as coisas ou os caracteres reificados que as determinações sociais do trabalho recebem com base em determinado modo de produção, está-se ao mesmo tempo a explicá-los como produto arbitrário da reflexão dos homens. Essa era uma maneira de esclarecer muito apreciada no século XVIII, para eliminar pelo menos transitoriamente a aparência estranha das formas enigmáticas de que se revestiam as condições humanas, cujo processo de formação não se podia ainda decifrar.

Observou-se anteriormente que a forma de equivalente de uma mercadoria não implica a determinação quantitativa da sua grandeza de valor. Sabe-se que ouro é dinheiro, sendo, portanto, directamente permutável com todas as mercadorias. Mas não é por isso que se sabe quanto valem, por exemplo, 10 libras de ouro. Como qualquer outra mercadoria, o dinheiro pode expressar a sua própria grandeza de valor apenas relativamente a outras mercadorias. O seu próprio valor é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção e expressa-se naquele quantum de qualquer outra mercadoria em que está cristalizado o mesmo tempo de trabalho. Essa constatação da sua grandeza relativa de valor ocorre na sua fonte de produção, em troca directa. Quando entra em circulação como dinheiro o seu valor já está dado …

Já vimos que na expressão mais simples de valor, x mercadoria A = y mercadoria B, a coisa em que a grandeza de valor de outra coisa é representada parece possuir a sua forma de equivalente independentemente dessa relação, como uma propriedade social da sua natureza. Já investigamos a consolidação dessa falsa aparência. Ela completou-se logo que a forma de equivalente geral se fundiu com a forma natural de uma espécie particular de mercadoria ou se cristalizou na forma de dinheiro. Uma mercadoria não parece tornar-se dinheiro porque todas as outras mercadorias representam nela os seus valores, mas, pelo contrário, parecem todas expressar seus valores nela porque ela é dinheiro. O movimento mediador desaparece no seu próprio resultado e não deixa atrás de si nenhum vestígio. As mercadorias encontram, sem nenhuma colaboração sua, a sua própria figura de valor pronta, como um corpo de mercadoria existente fora e ao lado delas. Essas coisas, ouro e prata, tais como saem das entranhas da terra, são imediatamente a encarnação directa de todo o trabalho humano. Daí a magia do dinheiro. A conduta meramente atomística dos homens no seu processo de produção social e, portanto, a figura coisificada das suas próprias relações de produção, que é independente do seu controlo e de sua acção individual consciente, começam por se manifestar no facto de os seus produtos do trabalho assumirem em geral a forma de mercadoria. O enigma do fetiche do dinheiro, portanto, é apenas o enigma ofuscante do fetiche da mercadoria tornado visível.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

O sujeito automático

 

Historicamente, o capital começa por se confrontar com a propriedade fundiária em toda a parte sob a forma de dinheiro, como fortuna em dinheiro, capital comercial e capital usurário. No entanto, não é preciso remontar à história da formação do capital para reconhecer o dinheiro como a sua primeira forma de aparição. A mesma história se desenrola diariamente perante os nossos olhos. Cada novo capital pisa em primeira instância o palco, isto é, o mercado, mercado de mercadorias, mercado de trabalho ou mercado de dinheiro, sempre ainda como dinheiro, dinheiro que deve transformar-se em capital por meio de determinados processos.

Dinheiro como dinheiro e dinheiro como capital diferenciam-se primeiro pela sua diferente forma de circulação.

A forma directa de circulação de mercadorias é M–D–M, transformação de mercadoria em dinheiro e retransformação de dinheiro em mercadoria, vender para comprar. Ao lado dessa forma, encontramos uma segunda especificamente diferenciada, a forma D–M–D, transformação de dinheiro em mercadoria e retransformação de mercadoria em dinheiro, comprar para vender. O dinheiro que no seu movimento descreve essa última circulação transforma-se em capital, torna-se capital e, já pela sua determinação, é capital.

Vejamos mais de perto a circulação D–M–D. Ela percorre, como a circulação simples de mercadorias, duas fases opostas. Na primeira fase, D–M, compra, o dinheiro é transformado em mercadoria. Na segunda fase, M–D, venda, a mercadoria é retransformada em dinheiro. A unidade de ambas as fases, porém, é o movimento global que troca dinheiro por mercadoria e, novamente, a mesma mercadoria por dinheiro, compra mercadoria para vendê-la, ou, se não se consideram as diferenças formais entre compra e venda, compra mercadoria com o dinheiro e dinheiro com a mercadoria. O resultado, em que todo o processo se apaga, é troca de dinheiro por dinheiro, D–D…

Ora é evidente que o processo de circulação D–M–D seria insosso e sem conteúdo caso se quisesse, com tal rodeio, trocar o mesmo valor em dinheiro pelo mesmo valor em dinheiro, por exemplo, 100 libras esterlinas por 100 libras esterlinas. Incomparavelmente mais simples e mais seguro seria o método do entesourador, que retém as suas 100 libras esterlinas em vez de expô-las ao perigo da circulação. Por outro lado, se o comerciante revende por 110 libras esterlinas o algodão comprado a 100 libras esterlinas, ou se é forçado a desfazer-se dele por 100 libras esterlinas ou até mesmo por 50 libras esterlinas, em qualquer caso o seu dinheiro descreveu um movimento próprio e original, de espécie completamente diferente da descrita na circulação simples de mercadorias, por exemplo, nas mãos do camponês, que vende cereais e, com o dinheiro obtido, compra roupas. Por enquanto, vale a característica das diferenças formais entre os ciclos D–M–D e M–D–M. Com isso se há-de revelar simultaneamente a diferença de conteúdo que espreita por trás dessas diferenças formais.

Examinemos, antes mais, o que é comum a ambas as formas.

Ambos os ciclos se decompõem nas duas mesmas fases contrapostas, M–D, venda, e D–M, compra. Em cada uma das duas fases se confrontam os mesmos dois elementos materiais, mercadoria e dinheiro – e duas pessoas, nas mesmas máscaras de personagens económicos, um comprador e um vendedor. Cada um dos dois ciclos é a unidade das mesmas fases contrapostas e, em ambos os casos, essa unidade é mediada pelo surgimento de três contraentes, dos quais um apenas vende, outro apenas compra, mas o terceiro alternadamente compra e vende.

O que, no entanto, separa de antemão ambos os ciclos M–D–M e D–M–D é a sucessão inversa das mesmas fases contrapostas de circulação. A circulação simples de mercadorias começa com a venda e termina com a compra, a circulação do dinheiro como capital começa com a compra e termina com a venda. Na primeira é a mercadoria, na segunda é o dinheiro que constitui o ponto de partida e o ponto de chegada do movimento. Na primeira forma é o dinheiro, na outra, inversamente, é a mercadoria que medeia o percurso global.

Na circulação M–D–M, o dinheiro é finalmente transformado em mercadoria que serve de valor de uso. O dinheiro está, pois, definitivamente gasto. Na forma inversa, D–M–D, o comprador gasta dinheiro para como vendedor receber dinheiro. Com a compra ele lança dinheiro na circulação, para retirá-lo dela novamente pela venda da mesma mercadoria. Ele larga o dinheiro só com a astuciosa intenção de apoderar-se dele novamente. O dinheiro é apenas adiantado.

Na forma M–D–M, a mesma peça monetária muda duas vezes de lugar. O vendedor recebe-a do comprador e paga-a depois a outro vendedor. O processo global, que começa com o recebimento do dinheiro por mercadoria, termina com a entrega de dinheiro por mercadoria. Inversamente na forma D–M–D. Não é a mesma peça monetária que muda aqui duas vezes de lugar, mas a mesma mercadoria. O comprador recebe-a das mãos do vendedor e entrega-a nas mãos de outro comprador. Assim como na circulação simples de mercadorias a dupla mudança de lugar da mesma peça monetária acarreta a sua transferência definitiva de uma mão para outra, assim aqui a dupla mudança de lugar da mesma mercadoria acarreta o refluxo do dinheiro ao seu primeiro ponto de partida.

O refluxo do dinheiro ao seu ponto de partida não depende de a mercadoria ser vendida mais cara do que foi comprada. Essa circunstância influi apenas na grandeza da soma de dinheiro que reflui. O próprio fenómeno do refluxo ocorre assim que a mercadoria comprada é revendida, portanto o ciclo D–M–D está completamente descrito. Essa é, portanto, uma diferença que salta à vista entre a circulação do dinheiro como capital e a sua circulação como mero dinheiro…

O ciclo M–D–M parte do extremo de uma mercadoria e termina no extremo de outra mercadoria, que sai da circulação e entra no consumo. Consumo, satisfação de necessidades, numa palavra, valor de uso, é, por conseguinte, o seu objectivo final. O ciclo D–M–D, pelo contrário, parte do extremo do dinheiro e volta finalmente ao mesmo extremo. O seu motivo indutor e finalidade determinante é o próprio valor de troca.

Na circulação simples de mercadorias, ambos os extremos têm a mesma forma económica. São ambos mercadoria. E também mercadorias de mesma grandeza de valor. Mas são valores de uso qualitativamente diferentes, por exemplo, cereais e roupas. A troca de produtos, a troca dos diferentes materiais em que o trabalho social se representa, constitui aqui o conteúdo do movimento. Diferente é o caso na circulação D–M–D. Ela parece à primeira vista sem conteúdo porque tautológica. Ambos os extremos têm a mesma forma económica. São ambos dinheiro, portanto não-valores de uso qualitativamente diferenciados, pois dinheiro é a figura metamorfoseada das mercadorias, em que os seus valores de uso específicos estão apagados. Primeiro trocar 100 libras esterlinas por algodão e depois trocar novamente o mesmo algodão por 100 libras esterlinas, portanto, trocar por meio de um rodeio dinheiro por dinheiro, o mesmo pelo mesmo, parece uma operação tão sem finalidade como insossa. Uma soma de dinheiro pode diferenciar-se de outra soma de dinheiro somente pela sua grandeza. Portanto, o processo D–M–D não deve o seu conteúdo a nenhuma diferença qualitativa nos extremos, pois ambos são dinheiro, mas apenas à sua diferença quantitativa. No final, é retirado da circulação mais dinheiro do que foi lançado nela no começo. O algodão comprado por 100 libras esterlinas é, por exemplo, revendido a 100+10 libras esterlinas, ou 110 libras esterlinas. A forma completa desse processo é, portanto, D–M–D', em que D' = D+∆D, ou seja, igual à soma de dinheiro originalmente adiantado mais um incremento. A esse incremento ou excedente sobre o valor original chamo eu – mais-valia (surplus value). O valor originalmente adiantado não só se mantém na circulação, mas altera nela a sua grandeza de valor, acrescenta mais-valia ou valoriza-se. E esse movimento transforma-o em capital.

É também possível que em M–D–M ambos os extremos, M, M, por exemplo, cereais e roupas, sejam grandezas de valor quantitativamente diferentes. O camponês pode vender os cereais acima do valor ou comprar as roupas abaixo do valor delas. E pode, por sua vez, ser enganado pelo comerciante de roupas. Tal diferença de valor permanece, no entanto, para essa mesma forma de circulação, puramente casual. Ela não perde simplesmente sentido e entendimento como processo D–M–D, se os dois extremos, cereais e roupas por exemplo, são equivalentes. Pelo contrário, a sua igualdade de valor é aqui condição do percurso normal.

A repetição ou renovação da venda para compra, como este mesmo processo, encontra medida e alvo num objectivo final situado fora dela, o consumo, a satisfação de determinadas necessidades. Na compra para a venda, pelo contrário, começo e término são o mesmo, dinheiro, valor de troca, e já por isso o movimento é sem fim. Sem dúvida, de D adveio D+∆D, das 100 libras esterlinas, 100+10. Mas consideradas apenas qualitativamente, 110 libras esterlinas são o mesmo que 100 libras esterlinas, ou seja, dinheiro. E consideradas quantitativamente 110 libras esterlinas são uma soma limitada de valor tal como 100 libras esterlinas. Se as 110 libras esterlinas fossem gastas como dinheiro, deixariam de desempenhar o seu papel. Deixariam de ser capital. Retiradas de circulação, se petrificariam em tesouro e nenhum farthing se acrescentaria a elas, ainda que ficassem guardadas até ao dia do Juízo Final. Caso se trate de valorização do valor, existe então tanta necessidade da valorização das 110 libras esterlinas como das 100 libras esterlinas, já que ambas são expressões limitadas do valor de troca, ambas, portanto, tendo a mesma vocação de se aproximarem da riqueza simplesmente por meio da expansão da grandeza. De facto, o valor originalmente adiantado de 100 libras esterlinas diferencia-se, por um instante, da mais-valia de 10 libras esterlinas, que lhe foi acrescentada na circulação, mas essa diferença esvai-se logo de novo. No fim do processo, o que surge não é, de um lado, o valor original de 100 libras esterlinas e, do outro, a mais-valia de 10 libras esterlinas. O que surge é um valor de 110 libras esterlinas que se encontra na mesma forma adequada para começar o processo de valorização, como as 100 libras esterlinas iniciais. Dinheiro surge de novo no fim do movimento como seu início. O fim de cada ciclo individual, em que a compra se realiza para a venda, constitui por si mesmo o início de novo ciclo. A circulação simples de mercadorias – a venda para a compra – serve de meio para um objectivo final que está fora da circulação, a apropriação de valores de uso, a satisfação de necessidades. A circulação do dinheiro como capital, pelo contrário, é um fim em si mesmo, pois a valorização do valor só existe dentro desse movimento sempre renovado. Por isso o movimento do capital é insaciável.

Como portador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro torna-se capitalista. A sua pessoa, ou melhor, o seu bolso, é o ponto de partida e o ponto de retorno do dinheiro. O conteúdo objectivo daquela circulação – a valorização do valor – é a sua meta subjectiva, e somente na medida em que a apropriação crescente da riqueza abstracta é o único motivo indutor das suas operações ele funciona como capitalista, ou capital personificado, dotado de vontade e consciência. O valor de uso, portanto, nunca deve ser considerado como meta imediata do capitalista. Tampouco o lucro isolado, mas apenas o incessante movimento do ganho. Esse impulso absoluto de enriquecimento, essa caça apaixonada do valor é comum ao capitalista e ao entesourador, mas enquanto o entesourador é apenas o capitalista demente, o capitalista é o entesourador racional. A multiplicação incessante do valor, pretendida pelo entesourador ao procurar salvar o dinheiro da circulação, é alcançada pelo capitalista mais esperto, ao entregá-lo sempre de novo à circulação.

As formas autónomas, as formas de dinheiro que o valor das mercadorias assume na circulação simples medeiam apenas a troca de mercadorias e desaparecem no resultado final do movimento. Na circulação D–M–D, pelo contrário, ambos, mercadoria e dinheiro, funcionam apenas como modos diferentes de existência do próprio valor, o dinheiro o seu modo geral, a mercadoria o seu modo particular, por assim dizer apenas camuflado, de existência. Ele passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático. Fixadas as formas particulares de aparição que o valor que se valoriza assume alternadamente no ciclo da sua vida, então obtêm-se as explicações: capital é dinheiro, capital é mercadoria. De facto, porém, o valor torna-se aqui o sujeito de um processo em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de dinheiro e mercadoria, modifica a sua própria grandeza, enquanto mais-valia afasta-se de si mesmo enquanto valor original, autovaloriza-se. Pois o movimento pelo qual ele adiciona mais-valia é o seu próprio movimento, a sua valorização, portanto autovalorização. Ele recebeu a qualidade oculta de gerar valor porque ele é valor. Ele pare filhotes vivos ou, pelo menos, põe ovos de ouro.

Como sujeito que domina tal processo, em que ele ora assume ora se desfaz da forma do dinheiro e da forma da mercadoria, mas se conserva e se dilata nessa mudança, o valor precisa antes de mais de uma forma autónoma, por meio da qual a sua identidade consigo mesmo é constatada. E essa forma ele só a possui no dinheiro. Este constitui, por isso, o ponto de partida e o ponto final de todo processo de valorização. Ele era 100 libras esterlinas, agora é 110 libras esterlinas etc. Mas o próprio dinheiro vale aqui apenas como uma forma do valor, pois este tem duas. Sem assumir a forma de mercadoria, o dinheiro não se torna capital. O dinheiro não se apresenta aqui, portanto, polemicamente contra a mercadoria, como no entesouramento ...

Se na circulação simples o valor das mercadorias adquire no máximo, em confronto com seu valor de uso, a forma autónoma de dinheiro, aqui ele apresenta-se subitamente como uma substância em processo e semovente, para a qual mercadorias e dinheiro são ambos meras formas. Mais ainda. Em vez de representar relações mercantis, ele entra agora, por assim dizer, numa relação privada consigo mesmo. Como valor original, ele distingue-se de si mesmo como mais-valia, assim como Deus Pai se distingue de si mesmo como Deus Filho, e ambos são da mesma idade e constituem de facto uma só pessoa, pois só por meio da mais-valia de 10 libras esterlinas as 100 libras esterlinas adiantadas se tornam capital, e, assim que se tornam isso, assim que é gerado o filho e por meio do filho o pai, volta a desaparecer a sua diferença e ambos são um, 110 libras esterlinas.

O valor torna-se, portanto, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. Ele provém da circulação, entra novamente nela, nela se sustenta e multiplica, retorna aumentado dela e recomeça o mesmo ciclo, sempre de novo. D–D', dinheiro que gera dinheiro – money which begets money –, diz a descrição do capital na boca dos seus primeiros intérpretes, os mercantilistas.

Comprar para vender, ou melhor, comprar para vender mais caro, D–M–D', parece ser apenas uma espécie do capital, a forma peculiar do capital comercial. Mas também o capital industrial é dinheiro que se transforma em mercadoria e, por meio da venda de mercadoria, se retransforma em mais dinheiro. Actos que ocorram eventualmente entre a compra e a venda, fora da esfera da circulação, nada mudam nessa forma de movimento ...

De facto, portanto, D–M–D' é a fórmula geral do capital, como aparece directamente na esfera da circulação.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

A força de trabalho como mercadoria no mercado

 

Tomemos o processo de circulação numa forma em que ele se apresenta como mera troca de mercadorias. Esse é o caso sempre que ambos os possuidores de mercadorias compram mercadorias um ao outro e a balança das suas obrigações recíprocas de dinheiro se compensa no dia do pagamento. O dinheiro serve aqui como dinheiro de conta para expressar os valores das mercadorias nos seus preços, mas não se confronta materialmente com as próprias mercadorias. Na medida em que se trata do valor de uso, é claro que ambos os trocadores podem ganhar. Ambos alienam mercadorias que lhes são inúteis como valor de uso, e recebem mercadorias de que necessitam para o seu uso. E essa vantagem pode não ser a única. A, que vende vinho e compra cereal, produz talvez mais vinho do que o semeador de cereal B poderia produzir no mesmo período de tempo de trabalho, e o semeador de cereal B poderia produzir no mesmo tempo de trabalho mais cereal do que o vinicultor A. A recebe, portanto, pelo mesmo valor de troca, mais cereal e B mais vinho do que se cada um, sem troca, tivesse de produzir vinho e cereal para si mesmo. No que se refere ao valor de uso, pode portanto dizer-se que “a troca é uma transação em que ambas as partes ganham” (Destutt de Tracy. Traité de la Volonté et de ses Effects. Paris, 1826. p. 68.). Com o valor de troca é diferente.

“Um homem que possui muito vinho e nenhum cereal comerceia com um homem que tem muito cereal e nenhum vinho, e entre eles se troca trigo no valor de 50 por um valor de 50 em vinho. Este intercâmbio não constitui um aumento do valor de troca, seja para um, seja para o outro; pois cada um deles já possuía, antes da troca, um valor igual àquele que obteve por meio dessa operação.” (RIVIÈRE, Mercier de la. L’Ordre Naturel et Essentiel des Sociétés Politiques, “Physiocrates, Éd. Daire, II Partie, p. 544).

Nada muda na coisa se o dinheiro se interpõe como meio de circulação entre as mercadorias e os actos de compra e venda se separam sensivelmente. O valor das mercadorias está representado nos seus preços antes que entrem na circulação, sendo portanto pressuposto e não resultado da mesma.

Considerado abstractamente, isto é, deixando de considerar as circunstâncias que não decorrem das leis imanentes da circulação simples de mercadorias, o que ocorre nela, fora a substituição de um valor de uso por outro, nada mais é que uma metamorfose, mera mudança de forma da mercadoria. O mesmo valor, isto é, o mesmo quantum de trabalho social objectivado, permanece nas mãos do mesmo possuidor de mercadoria, primeiro na figura da sua mercadoria, depois na do dinheiro em que se transforma, finalmente na da mercadoria na qual esse dinheiro se retransforma. Essa mudança de forma não inclui nenhuma mudança de grandeza do valor... Se, portanto, em relação ao valor de uso, ambos os trocadores podem lucrar, não podem ganhar ambos no valor de troca. Pelo contrário, aqui diz-se: “Onde há igualdade, não há lucro”. As mercadorias podem chegar a ser vendidas por preços que se desviam dos seus valores, mas esse desvio aparece como violação da lei da troca de mercadorias. Na sua figura pura, ela é uma troca de equivalentes, portanto não um meio de enriquecer em valor.

Por trás das tentativas de apresentar a circulação de mercadorias como fonte de mais-valia, espreita geralmente um quiproquó, uma confusão entre valor de uso e valor de troca …

Se mercadorias ou mercadorias e dinheiro de igual valor de troca, portanto equivalentes, são trocados, então evidentemente ninguém tira da circulação mais do que lança nela. Então não ocorre nenhuma formação de mais-valia. Em sua forma pura, o processo de circulação das mercadorias exige a troca de equivalentes. No entanto, as coisas na realidade não se passam de modo puro. Suponhamos, portanto, intercâmbio de não-equivalentes.

Em todo o caso, no mercado de mercadorias, só possuidor de mercadorias se confronta com possuidor de mercadorias e o poder que essas pessoas exercem umas sobre as outras é somente o poder das suas mercadorias. A diferença material das mercadorias é o motivo central da troca e torna os possuidores de mercadorias reciprocamente dependentes, pois nenhum deles tem o objecto das suas próprias necessidades e cada um deles tem nas mãos o objecto da necessidade do outro. Além dessa diferenciação material dos seus valores de uso, só existe uma diferença entre as mercadorias, a diferença entre a sua forma natural e a sua forma transformada, entre mercadoria e dinheiro. E, assim, os possuidores de mercadorias só se diferenciam enquanto vendedores, possuidores de mercadoria, e enquanto compradores, possuidores de dinheiro.

Admita-se agora que seja permitido aos vendedores, por um privilégio inexplicável, vender a mercadoria acima do seu valor, a 110 quando ela vale 100, portanto com um aumento nominal de preço de 10%. O vendedor cobra, portanto, uma mais-valia de 10. Mas depois de ter sido vendedor, ele se torna comprador. Um terceiro possuidor de mercadorias encontra-o agora como vendedor e goza por sua vez do privilégio de vender a mercadoria 10% mais cara. Nosso homem ganhou 10 como vendedor para perder 10 como comprador. O todo acaba redundando no facto de todos os possuidores de mercadorias venderem reciprocamente as suas mercadorias 10% acima do valor, o que é inteiramente o mesmo que venderem as mercadorias pelos seus valores. Tal aumento nominal e geral do preço acarreta o mesmo efeito que se os valores das mercadorias fossem avaliados em prata em vez de em ouro. As denominações monetárias, isto é, os preços das mercadorias iriam inchar, mas as suas relações de valor ficariam inalteradas.

Suponhamos, pelo contrário, que seja privilégio do comprador comprar as mercadorias abaixo do seu valor. Aqui não é sequer necessário recordar que o comprador se torna novamente vendedor. Ele era vendedor antes de se tornar comprador. Ele já perdeu 10% como vendedor antes de ganhar 10% como comprador. Tudo fica como dantes.

A formação de mais-valia e daí a transformação de dinheiro em capital não pode ser explicada por venderem os vendedores as mercadorias acima do seu valor, nem por os compradores as comprarem abaixo do seu valor ...

Pode-se virar e revirar como se queira, o resultado é o mesmo. Sendo trocados equivalentes, daí não surge mais-valia, e sendo trocados não-equivalentes, daí também não surge mais-valia. A circulação ou troca de mercadorias não produz valor …

Mostrou-se que a mais-valia não pode originar-se da circulação, que na sua formação tem de ocorrer algo por trás das suas costas e que nela mesma é invisível. Mas pode a mais-valia originar-se de outro lugar que não da circulação? A circulação é a soma de todas as relações recíprocas dos possuidores de mercadorias. Fora da mesma o possuidor de mercadoria só está ainda em relação com sua própria mercadoria. No que toca ao valor dela, a relação se limita ao facto de que ela contém um quantum do seu próprio trabalho medido segundo determinadas leis sociais. Esse quantum de trabalho expressa-se na grandeza de valor da sua mercadoria e, como grandeza de valor, representa-se em dinheiro de conta, num preço de, por exemplo, 10 libras esterlinas. Mas o seu trabalho não se representa no valor da mercadoria e num excedente acima do seu próprio valor, não num preço de 10 que seja ao mesmo tempo um preço de 11, não num valor que seja maior do que ele mesmo. O possuidor de mercadorias pode formar valores por meio do seu trabalho, mas não valores que se valorizem. Ele pode aumentar o valor de uma mercadoria, acrescentando mediante novo trabalho novo valor ao valor preexistente, por exemplo, ao fazer de couro botas. O mesmo material tem agora mais valor porque contém um quantum maior de trabalho. A bota tem, por isso, mais valor do que o couro, mas o valor do couro permanece o que era. Ele não se valorizou, não se acrescentou uma mais-valia durante a fabricação da bota. É, portanto, impossível que o produtor de mercadorias, fora da esfera de circulação, sem entrar em contacto com outros possuidores de mercadorias, valorize valor e, daí, transforme dinheiro ou mercadoria em capital.

O capital não pode, portanto, originar-se da circulação, e tampouco pode não se originar da circulação. Deve, ao mesmo tempo, originar-se e não se originar dela …

Um resultado duplo foi, portanto, alcançado.

A transformação do dinheiro em capital tem de ser desenvolvida com base nas leis imanentes à troca de mercadorias, de modo que a troca de equivalentes sirva de ponto de partida. O nosso possuidor de dinheiro, por enquanto ainda presente apenas como capitalista larvar, tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, vendê-las pelo seu valor e, mesmo assim, extrair no final do processo mais valor do que lançou nele. Sua metamorfose em borboleta tem de ocorrer na esfera da circulação e não tem de ocorrer na esfera da circulação. São essas as condições do problema. Hic Rhodus, hic salta!

A modificação do valor do dinheiro que deve transformar-se em capital não pode ocorrer neste mesmo dinheiro, pois como meio de compra e como meio de pagamento ele só realiza o preço da mercadoria que compra ou paga, enquanto, persistindo na sua própria forma, petrifica-se numa grandeza de valor permanentemente igual. Tampouco pode a modificação originar-se do segundo acto de circulação, a revenda da mercadoria, pois esse acto apenas retransforma a mercadoria da forma natural na forma do dinheiro. A modificação precisa de ocorrer, portanto, com a mercadoria comprada no primeiro acto D–M, mas não com o seu valor, pois são trocados equivalentes, a mercadoria é paga pelo seu valor. A modificação só pode originar-se, portanto, do seu valor de uso enquanto tal, isto é, do seu consumo. Para extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir dentro da esfera da circulação, no mercado, uma mercadoria cujo próprio valor de uso tivesse a característica peculiar de ser fonte de valor, portanto, cujo consumo efectivo fosse em si objectivação de trabalho, por conseguinte, criação de valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado tal mercadoria específica – a capacidade de trabalho ou força de trabalho.

Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um ser humano e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer espécie.

No entanto, para que o possuidor de dinheiro encontre à disposição no mercado a força de trabalho como mercadoria, diversas condições têm de ser preenchidas. A troca de mercadorias não inclui em si mesma outras relações de dependência que não as originadas por sua própria natureza. Sob esse pressuposto, a força de trabalho como mercadoria só pode aparecer no mercado à medida que e porque ela é oferecida à venda ou é vendida como mercadoria pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para que o seu possuidor a venda como mercadoria, ele deve poder dispor dela, ser livre proprietário da sua capacidade de trabalho, da sua pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram no mercado e entram em relação um com o outro como possuidores de mercadorias iguais, só se diferenciando por um ser comprador e o outro vendedor, sendo portanto ambos pessoas juridicamente iguais. O prosseguimento dessa relação exige que o proprietário da força de trabalho só a venda por determinado tempo, pois se a vende em bloco, de uma vez por todas, então ele vende-se a si mesmo, transforma-se de homem livre em escravo, de possuidor de mercadoria em mercadoria. Como pessoa, ele tem de se relacionar com a sua força de trabalho como sua propriedade e, portanto, sua própria mercadoria, e isso ele só pode na medida em que a coloca à disposição do comprador e a deixa consumir apenas provisoriamente, por um prazo de tempo determinado, sem renunciar à sua propriedade sobre ela pela sua alienação.

A segunda condição essencial para que o possuidor de dinheiro encontre no mercado a força de trabalho como mercadoria é que o seu possuidor, em lugar de poder vender mercadorias em que o seu trabalho se tenha objectivado, precise de pôr à venda como mercadoria a sua própria força de trabalho, que só existe na sua corporalidade viva.

Para que alguém venda mercadorias distintas da sua força de trabalho, tem de possuir naturalmente meios de produção, por exemplo, matérias-primas, instrumentos de trabalho etc. Ele não pode fazer botas sem couro. Precisa, além disso, de meios de subsistência. Ninguém, nem mesmo um músico do porvir, pode alimentar-se com produtos do futuro, nem portanto de valores de uso cuja produção não esteja concluída, e, como nos primeiros dias da sua aparição no palco do mundo, o homem ainda precisa de consumir todos os dias, antes de produzir e enquanto produz. Caso os produtos sejam produzidos como mercadorias, então têm de ser vendidos depois de produzidos, e só podem satisfazer as necessidades do produtor depois da venda. Ao tempo da produção acresce o tempo necessário à venda.

Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro precisa de encontrar, portanto, o trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre no duplo sentido de que ele, como pessoa livre, dispõe da sua força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem outras mercadorias para vender, solto, livre de todas as coisas necessárias à realização da sua força de trabalho.

Por que se defronta com ele esse trabalhador livre na esfera da circulação é questão que não interessa ao possuidor de dinheiro, que encontra o mercado de trabalho como uma divisão específica do mercado de mercadorias ... Uma coisa, no entanto, é clara. A natureza não produz de um lado possuidores de dinheiro e de mercadorias e, do outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho. Essa relação não faz parte da história natural, nem tampouco é uma relação social comum a todos os períodos históricos. Ela mesma é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções económicas, da decadência de toda uma série de formações mais antigas da produção social.

Também as categorias económicas que observámos antes ostentam a sua marca histórica. Na existência do produto como mercadoria estão envolvidas determinadas condições históricas. Para se tornar mercadoria o produto não pode ser produzido como meio de subsistência imediato para o próprio produtor. Se tivéssemos pesquisado mais: em que circunstâncias todos os produtos, ou mesmo apenas a maioria deles, tomam a forma de mercadoria, então se teria descoberto que isso só ocorre com base num modo de produção bem específico, o capitalista. Tal pesquisa não se coadunava, no entanto, com a análise da mercadoria. Podem ocorrer produção de mercadorias e circulação de mercadorias, embora a grande massa de produtos, orientada directamente para o autoconsumo, não se transforme em mercadoria e, portanto, o processo de produção social ainda esteja muito longe de estar dominado em toda a sua extensão e profundidade pelo valor de troca. A representação do produto como mercadoria supõe uma divisão de trabalho tão desenvolvida dentro da sociedade que a separação entre valor de uso e valor de troca, que apenas principia com a troca directa de géneros, já se tenha completado. Tal estádio de desenvolvimento, porém, é comum às formações socioeconómicas historicamente mais diversas.

Ou, se considerarmos o dinheiro, pressupõe-se que a troca de mercadorias tenha atingido um certo nível. As formas específicas de dinheiro, mero equivalente de mercadoria ou meio de circulação ou meio de pagamento, tesouro e dinheiro mundial, apontam, de acordo com a extensão diversa e a predominância relativa de uma ou outra função, para estádios muito diferentes do processo de produção social. Apesar disso, de acordo com a experiência, basta uma circulação de mercadorias relativamente pouco desenvolvida para a constituição de todas essas formas. Diversamente com o capital. Suas condições históricas de existência de modo nenhum estão presentes na circulação mercantil e monetária. Ele só surge onde o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra o trabalhador livre como vendedor da sua força de trabalho no mercado, e esta é uma condição histórica que encerra uma história mundial. O capital, portanto, anuncia de antemão uma época do processo de produção social.

Essa mercadoria peculiar, a força de trabalho, tem de ser agora examinada mais de perto. Como todas as outras mercadorias, ela tem um valor. Como é ele determinado?

O valor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à produção, e portanto também reprodução, desse artigo específico. Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas determinado quantum de trabalho social médio nela objectivado. A força de trabalho só existe como aptidão do indivíduo vivo. A sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste na sua própria reprodução ou manutenção. Para a sua manutenção, o indivíduo vivo precisa de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho corresponde, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência, ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção do seu possuidor. A força de trabalho só se realiza, no entanto, mediante a sua exteriorização, ela só se acciona no trabalho. Por meio da sua activação, o trabalho, porém, é gasto determinado quantum de músculo, nervo, cérebro etc. humanos que precisa de ser reposto. Esse gasto acrescido exige uma receita acrescida. Se o proprietário da força de trabalho trabalhou hoje, ele tem de poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as mesmas condições de força e saúde. A soma dos meios de subsistência tem, pois, de ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como indivíduo trabalhador no seu estado de vida normal. As próprias necessidades naturais, como alimentação, roupa, aquecimento, habitação etc., são diferentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, o âmbito das chamadas necessidades básicas, assim como o modo da sua satisfação, é ele mesmo um produto histórico e, por isso, depende grandemente do nível cultural de um país, entre outras coisas também essencialmente sob que condições, e, portanto, com que hábitos e aspirações de vida se constituiu a classe dos trabalhadores livres. Ao contrário das outras mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral. No entanto, para determinado país, em determinado período, o âmbito médio dos meios de subsistência básicos é um dado.

O proprietário da força de trabalho é mortal. Se a sua aparição no mercado é para ser contínua, como pressupõe a contínua transformação de dinheiro em capital, então o vendedor da força de trabalho tem de perpetuar-se “como todo o indivíduo se perpetua pela procriação” (Petty). As forças de trabalho subtraídas do mercado pelo desgaste e pela morte têm de ser continuamente substituídas, ao menos por um número igual de novas forças de trabalho. A soma dos meios de subsistência necessários à produção da força de trabalho inclui, portanto, os meios de subsistência dos substitutos, isto é, dos filhos dos trabalhadores, de modo que essa race de peculiares possuidores de mercadorias se perpetue no mercado das mercadorias.

Para modificar a natureza humana geral de tal modo que ela alcance habilidade e destreza em determinado ramo de trabalho, tornando-se força de trabalho desenvolvida e específica, é preciso determinada formação ou educação, que por sua vez custa uma soma maior ou menor de equivalentes mercantis. Conforme o carácter mais ou menos mediato da força de trabalho, os seus custos de formação são diferentes. Esses custos de aprendizagem, ínfimos para a força de trabalho comum, entram portanto no âmbito dos valores gastos para a sua produção.

O valor da força de trabalho resolve-se no valor de uma soma determinada de meios de subsistência. Ele muda também com o valor desses meios de subsistência, isto é, com a grandeza do tempo de trabalho exigido para sua produção.

Parte dos meios de subsistência, por exemplo, alimentação, aquecimento etc., é diariamente consumida e tem de ser diariamente reposta. Outros meios de subsistência, como roupas, móveis etc., gastam-se em períodos mais extensos de tempo e, por isso, só precisam de ser repostos em períodos mais extensos de tempo. Mercadorias de uma espécie têm de ser compradas ou pagas diariamente, outras semanalmente, trimestralmente etc. Mas como quer que a soma dessas despesas se possa repartir durante, por exemplo, um ano, ela tem de ser coberta pela receita média dia a dia. Seja a massa das mercadorias exigidas diariamente para a produção da força de trabalho = A, a exigida semanalmente = B, a exigida trimestralmente = C etc., então a média diária dessas mercadorias seria (365A+52B+4C+etc.)/365. Supondo-se que 6 horas de trabalho social estão contidas nessa massa de mercadorias necessária ao dia médio, então objectiva-se diariamente na força de trabalho meio dia de trabalho social médio, ou é exigido meio dia de trabalho para a produção diária da força de trabalho. Esse quantum de trabalho exigido para a sua produção diária forma o valor de um dia de força de trabalho, ou o valor da força de trabalho reproduzida em um dia. Se meio dia de trabalho social médio se representa igualmente numa massa de ouro de 3 xelins ou em 1 táler, então 1 táler é o preço correspondente ao valor de um dia da força de trabalho. Se o possuidor da força de trabalho a oferece por 1 táler ao dia, então o seu preço de venda é igual ao seu valor e, de acordo com nossos pressupostos, o possuidor de dinheiro, que cobiça transformar o seu táler em capital, paga esse valor.

O limite último ou limite mínimo do valor da força de trabalho é constituído pelo valor de uma massa de mercadorias, sem cujo suprimento diário o portador da força de trabalho, o ser humano, não pode renovar o seu processo de vida, sendo portanto o valor dos meios de subsistência fisicamente indispensáveis. Se o preço da força de trabalho baixa a esse mínimo cai abaixo do valor dela, pois assim ela só pode manter-se e desenvolver-se de forma atrofiada. Mas o valor de cada mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho requerido para fornecê-la com a sua qualidade normal …

A natureza peculiar dessa mercadoria específica, a força de trabalho, faz com que, com a conclusão do contrato entre comprador e vendedor, o seu valor de uso ainda não se tenha verdadeiramente transferido para as mãos do comprador. O seu valor, como o de qualquer outra mercadoria, estava determinado antes de ela entrar na circulação, pois determinado quantum de trabalho social havia sido gasto para a produção da força de trabalho, mas o seu valor de uso consiste na exteriorização posterior dessa força. Por isso, a alienação da força e a sua verdadeira exteriorização, ou seja, a sua existência como valor de uso, separam-se no tempo. No caso de mercadorias, porém, em que a alienação formal do valor de uso mediante a venda e sua verdadeira entrega ao comprador se separam no tempo, o dinheiro do comprador funciona geralmente como meio de pagamento. Em todos os países com modo de produção capitalista, a força de trabalho só é paga depois de ter funcionado durante o prazo previsto no contrato de compra, por exemplo, no final de cada semana. Por toda a parte, portanto, o trabalhador adianta ao capitalista o valor de uso da força de trabalho; deixa-a ser consumida pelo comprador antes de receber o pagamento do seu preço; por toda a parte, portanto, o trabalhador fornece crédito ao capitalista. Que esse fornecimento de crédito não é nenhuma fantasia vã, mostra-o não só a perda ocasional do salário creditado quando ocorre bancarrota do capitalista, mas também uma série de efeitos mais duradouros. No entanto, nada muda na natureza da própria troca de mercadorias se o dinheiro funciona como meio de compra ou como meio de pagamento. O preço da força de trabalho está fixado contratualmente, ainda que ele só venha a ser realizado depois, como o preço do aluguer de uma casa. A força de trabalho está vendida, ainda que ela só seja paga posteriormente. Para a concepção pura da relação, no entanto, é útil pressupor, por enquanto, que o possuidor da força de trabalho recebe com sua venda cada vez e também prontamente o preço estipulado contratualmente.

Conhecemos agora a maneira como é determinado o valor pago ao possuidor dessa mercadoria peculiar, a força de trabalho, pelo possuidor de dinheiro. O valor de uso, que este último recebe por sua vez na troca, só se mostra na utilização real, no processo de consumo da força de trabalho. O possuidor de dinheiro compra no mercado todas as coisas necessárias a esse processo, como matéria-prima etc., e paga o seu preço integral. O processo de consumo da força de trabalho é, simultaneamente, o processo de produção de mercadoria e de mais-valia. O consumo da força de trabalho, como o consumo de qualquer outra mercadoria, ocorre fora do mercado, ou da esfera de circulação. Abandonemos então, junto com o possuidor de dinheiro e o possuidor da força de trabalho, essa esfera ruidosa, existente na superfície e acessível a todos os olhos, para seguir os dois ao local oculto da produção, em cujo limiar se pode ler: No admittance except on business. Aqui se há-de mostrar não só como o capital produz, mas também como ele mesmo é produzido, o capital. O segredo da fabricação de mais-valia há-de finalmente desvendar-se.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

O consumo de força de trabalho como fermento vivo do capital

 

Voltemos ao nosso capitalista in spe. Deixámo-lo logo depois de ele ter comprado no mercado todos os factores necessários a um processo de trabalho, os factores objectivos ou meios de produção e o factor pessoal ou força de trabalho. Com olhar sagaz de conhecedor, ele escolheu os meios de produção e as forças de trabalho adequados para o seu negócio particular, fiação, fabricação de botas etc. O nosso capitalista põe-se então a consumir a mercadoria que ele comprou, a força de trabalho, isto é, ele faz o portador da força de trabalho, o trabalhador, consumir os meios de produção mediante o seu trabalho …

O processo de trabalho mostra dois fenómenos peculiares no seu decurso, enquanto processo de consumo da força de trabalho pelo capitalista,.

O trabalhador trabalha sob controlo do capitalista a quem pertence o seu trabalho. O capitalista cuida de que o trabalho se realize em ordem e os meios de produção sejam empregados conforme os seus fins, portanto, que não seja desperdiçada matéria-prima e que o instrumento de trabalho seja preservado, isto é, só seja destruído na medida em que o seu uso no trabalho o exija. Segundo, porém: o produto é propriedade do capitalista, e não do produtor directo, do trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor de um dia da força de trabalho. A sua utilização, como a de qualquer outra mercadoria, por exemplo, a de um cavalo que alugou por um dia, pertence-lhe, pois, durante o dia. Ao comprador da mercadoria pertence a utilização da mercadoria, e o possuidor da força de trabalho dá, de facto, apenas o valor de uso que vendeu ao dar o seu trabalho. A partir do momento em que entrou na oficina do capitalista, o valor de uso da sua força de trabalho, a sua utilização, o trabalho, pertence ao capitalista. O capitalista, mediante a compra da força de trabalho, incorporou o próprio trabalho, como fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, que lhe pertencem igualmente. Do seu ponto de vista, o processo de trabalho é apenas o consumo da mercadoria força de trabalho por ele comprada, que só pode no entanto consumir ao acrescentar-lhe meios de produção. O processo de trabalho é um processo entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem. O produto desse processo pertence-lhe de modo inteiramente igual ao produto do processo de fermentação na sua adega …

O produto – a propriedade do capitalista – é um valor de uso, fio, botas etc. Mas, embora as botas, por exemplo, constituam de certo modo a base do progresso social e o nosso capitalista seja um decidido progressista, não fabrica as botas por causa delas mesmas. O valor de uso não é de modo nenhum a coisa qu’on aime pour lui-même. Produzem-se aqui valores de uso somente porque e na medida em que sejam substrato material, portadores de valor de troca. E para o nosso capitalista trata-se de duas coisas. Primeiro, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria: Segundo, ele quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto do que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a força de trabalho, para as quais adiantou o seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor, e não só valor, mas também mais-valia …

Consideremos o processo de produção agora também como processo de formação de valor.

Sabemos que o valor de qualquer mercadoria é determinado pelo quantum de trabalho materializado no seu valor de uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Isso vale também para o produto que o nosso capitalista obteve como resultado do processo de trabalho. É preciso desde logo calcular o trabalho materializado nesse produto.

Seja, por exemplo, fio.

Para a fabricação do fio precisa-se, em primeiro lugar, da sua matéria-prima, por exemplo 10 libras de algodão. Não é necessário investigar o valor do algodão pois o capitalista comprou-o no mercado pelo seu valor, por exemplo 10 xelins. No preço do algodão já está representado o trabalho exigido para a sua produção, como trabalho social geral. Suponhamos ainda que a massa de fusos desgastada no processamento do algodão, que representa para nós todos os outros meios de trabalho empregados, tenha um valor de 2 xelins. Se uma massa de ouro de 12 xelins é o produto de 24 horas ou 2 dias de trabalho, segue-se desde logo que no fio estão objectivados 2 dias de trabalho …

Na venda da força de trabalho, foi suposto que o seu valor diário = 3 xelins e que nestes últimos estão incorporadas 6 horas de trabalho, sendo exigido esse quantum de trabalho para produzir a soma média dos meios diários de subsistência do trabalhador. Se o nosso fiandeiro durante 1 hora de trabalho transforma 1 2/3 libra de algodão em 1 2/3 libra de fio, então transformará em 6 horas 10 libras de algodão em 10 libras de fio. Durante o processo da fiação o algodão absorve portanto 6 horas de trabalho. O mesmo tempo de trabalho representa-se num quantum de ouro de 3 xelins. Mediante a própria fiação acrescenta-se assim ao algodão um valor de 3 xelins.

Vejamos agora o valor total do produto, das 10 libras de fio. Nelas se objectivam 2 1/2 dias de trabalho, sendo 2 dias contidos no algodão e na massa de fusos, e 1/2 dia absorvido durante o processo da fiação. O mesmo tempo de trabalho representa-se numa massa de ouro de 15 xelins. O preço adequado ao valor das 10 libras de fio é, pois, 15 xelins, e o preço de 1 libra de fio, 1 xelim e 6 pence.

 … O valor do produto é igual ao valor do capital adiantado. O valor adiantado não se valorizou, não produziu mais-valia, o dinheiro não se transformou pois em capital. O preço das 10 libras de fio é 15 xelins, e 15 xelins foram despendidos no mercado pelos elementos constitutivos do produto … O valor inchado do fio em nada ajuda, pois seu valor é apenas a soma dos valores que antes se distribuíram entre algodão, fuso e força de trabalho, e de tal adição simples de valores preexistentes não pode agora nem nunca surgir uma mais-valia …

Examinemos a coisa mais de perto. O valor de um dia da força de trabalho importava em 3 xelins, porque nela mesma está objectivada meia jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência necessários para produzir diariamente a força de trabalho custam meia jornada de trabalho. Mas o trabalho passado que a força de trabalho contém e o trabalho vivo que ela pode prestar, seus custos diários de manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas inteiramente diferentes. A primeira determina seu valor de troca, a outra forma seu valor de uso. O facto de ser necessária meia jornada para mantê-lo vivo durante 24 horas não impede o trabalhador, de modo nenhum, de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e a sua valorização no processo de trabalho são duas grandezas distintas. Era essa diferença de valor que o capitalista tinha em vista quando comprou a força de trabalho. Sua propriedade útil, de poder fazer fio ou botas, era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho para criar valor tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o valor de uso específico dessa mercadoria ser fonte de valor, e de mais valor do que ela mesma tem. Esse é o serviço específico que o capitalista dela espera. E ele procede, no caso, segundo as leis eternas da troca de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza o seu valor de troca e aliena o seu valor de uso. Ele não pode obter um sem desfazer-se do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor quanto o valor de uso do óleo vendido pertence ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A circunstância de a manutenção diária da força de trabalho só custar meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar um dia inteiro, e por isso, o valor que a sua utilização cria durante um dia é o dobro do seu próprio valor de um dia, é uma grande sorte para o comprador, mas de modo algum uma injustiça contra o vendedor.

O nosso capitalista previu o caso que o faz sorrir. O trabalhador encontra, por isso, na oficina, os meios de produção necessários não para um processo de trabalho de 6 horas, mas de 12. Se 10 libras de algodão absorviam 6 horas de trabalho e se transformavam em 10 libras de fio, então 20 libras de algodão absorverão 12 horas de trabalho e se transformarão em 20 libras de fio. Consideremos o produto do processo prolongado de trabalho. Nas 20 libras de fio estão objectivadas agora 5 jornadas de trabalho: 4 na massa consumida de algodão e fusos, 1 absorvida pelo algodão durante o processo de fiação. Mas a expressão em ouro de 5 jornadas de trabalho é 30 xelins ou 1 libra esterlina e 10 xelins. Esse é, portanto, o preço das 20 libras de fio. Uma libra de fio custa, depois como antes, 1 xelim e 6 pence. Mas a soma dos valores das mercadorias lançadas no processo importou em 27 xelins. O valor do fio é de 30 xelins. O valor do produto ultrapassou de 1/9 o valor adiantado para sua produção. Dessa maneira, transformaram-se 27 xelins em 30. Deram uma mais-valia de 3 xelins. Finalmente a artimanha deu certo. Dinheiro transformou-se em capital.

Todas as condições do problema foram resolvidas e as leis da troca de mercadorias não foram de modo nenhum violadas. Trocou-se equivalente por equivalente. O capitalista, como comprador, pagou toda a mercadoria pelo seu valor, algodão, massa de fusos, força de trabalho. Depois fez o que faz qualquer outro comprador de mercadorias. Consumiu o seu valor de uso. Do processo de consumo da força de trabalho, ao mesmo tempo processo de produção de mercadoria, resultou um produto de 20 libras de fio com um valor de 30 xelins. O capitalista volta agora ao mercado e vende mercadoria, depois de ter comprado mercadoria. Vende a libra de fio por 1 xelim e 6 pence, nenhum centavo acima ou abaixo do seu valor. E, não obstante, tira da circulação 3 xelins mais do que nela lançou. Todo esse seguimento, a transformação do seu dinheiro em capital, se opera na esfera da circulação e não se opera nela. Por intermédio da circulação, por ser condicionado pela compra da força de trabalho no mercado. Fora da circulação, pois esta apenas introduz o processo de valorização, que ocorre na esfera da produção …

Se comparamos o processo de formação de valor com o processo de valorização, vemos que o processo de valorização não é nada mais que um processo de formação de valor prolongado além de certo ponto. Se este apenas dura até ao ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um novo equivalente, então é um processo simples de formação de valor. Se ultrapassa esse ponto, torna-se processo de valorização …

Como unidade de processo de trabalho e processo de formação de valor, o processo de produção é processo de produção de mercadorias; como unidade do processo de trabalho e processo de valorização, é ele processo de produção capitalista, forma capitalista de produção de mercadorias.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

Os cadáveres das máquinas, a transmigração da alma do valor e os dons naturais da força de trabalho

 

Os diferentes factores do processo de trabalho tomam parte na formação do valor do produto de diferentes modos.

O trabalhador acrescenta ao objecto do trabalho novo valor por meio do acréscimo de determinado quantum de trabalho, abstraindo do conteúdo determinado, da finalidade e do carácter técnico do trabalho. Por outro lado, reencontramos os valores dos meios de produção consumidos como partes integrantes do valor do produto, por exemplo, os valores do algodão e do fuso no valor do fio. O valor dos meios de produção conserva-se pela sua transferência para o produto. Essa transferência ocorre durante a transformação dos meios de produção em produto, no processo de trabalho. É mediada pelo trabalho. Mas como?

O trabalhador não trabalha duas vezes ao mesmo tempo, uma vez para agregar valor ao algodão por meio do seu trabalho e outra vez para conservar o seu valor anterior, ou, o que é o mesmo, para transferir ao produto, o fio, o valor do algodão que transforma e do fuso com o qual trabalha. Pelo contrário, conserva o valor antigo pelo mero acréscimo de novo valor. Mas como o acréscimo de novo valor ao objecto de trabalho e a conservação dos valores antigos no produto são dois resultados totalmente diferentes que o trabalhador alcança ao mesmo tempo, embora trabalhe uma só vez durante esse tempo, essa dualidade do resultado só pode explicar-se, evidentemente, pela dualidade do seu próprio trabalho. No mesmo instante, o trabalho tem de gerar valor numa qualidade e conservar ou transferir valor noutra qualidade.

Como é que todo o trabalhador agrega tempo de trabalho e, portanto, valor? Sempre apenas sob a forma do seu modo peculiar de trabalho produtivo. O fiandeiro só agrega tempo de trabalho, fiando, o tecelão, tecendo, o ferreiro, forjando. Mas mediante essa forma orientada para um fim, sob a qual agregam trabalho em geral e, por isso, novo valor, mediante o fiar, tecer e forjar, os meios de produção algodão e fuso, fio e tear, ferro e bigorna tornam-se elementos constituintes de um produto, de um novo valor de uso. A forma antiga do seu valor de uso desaparece, mas só para aparecer sob nova forma de valor de uso. Ao considerar o processo de formação de valor vimos que, na medida em que se consome um valor de uso a fim de produzir novo valor de uso, o tempo de trabalho necessário para a produção do valor de uso consumido forma parte do tempo de trabalho necessário para a produção do novo valor de uso, portanto é tempo de trabalho que se transfere do meio de produção consumido para o novo produto. O trabalhador conserva assim os valores dos meios de produção consumidos, ou transfere-os ao produto como partes componentes do valor, não pelo acréscimo de trabalho em geral, mas pelo carácter particularmente útil, pela forma específica produtiva desse trabalho adicional. Como actividade produtiva, adequada a um fim – fiar, tecer, forjar –, o trabalho ressuscita dos mortos os meios de produção através do seu mero contacto, vivifica-os para serem factores do processo de trabalho e combina-se com eles para formar produtos.

Se o trabalho específico produtivo do trabalhador não fosse o de fiar, ele não transformaria o algodão em fio e, portanto, não transferiria os valores do algodão e do fuso para o fio. Se, no entanto, o mesmo trabalhador mudar de profissão e se tornar marceneiro, agregará, depois como antes, valor ao seu material mediante uma jornada de trabalho. Agrega valor mediante o seu trabalho não por ser trabalho de fiação ou de marcenaria, mas por ser trabalho abstracto social geral, e agrega determinada grandeza de valor não por seu trabalho ter um conteúdo particular útil, mas porque dura um determinado tempo. Portanto, em virtude de sua propriedade abstracta geral, como dispêndio de força de trabalho humana, o trabalho do fiandeiro agrega novo valor aos valores do algodão e do fuso, e em virtude da sua propriedade concreta, específica e útil como processo de fiação, transfere o valor desses meios de produção para o produto e mantém assim o seu valor no produto. Daí a dualidade do seu resultado no mesmo momento …

Valor, abstraindo da sua representação puramente simbólica no signo de valor, existe apenas num valor de uso, numa coisa. (O próprio homem, considerado mera existência de força de trabalho, é um objecto natural, uma coisa, embora uma coisa viva, consciente, e o próprio trabalho é manifestação material dessa força.) Portanto, se o valor de uso se perde, perde-se também o valor. Os meios de produção não perdem o valor simultaneamente com o seu valor de uso, porque de facto só perdem a figura originária do seu valor de uso, por meio do processo de trabalho, para ganhar a figura de outro valor de uso no produto. Mas por mais que importe ao valor existir num valor de uso qualquer, também lhe é indiferente em qual deles ele existe, como mostra a metamorfose das mercadorias. Segue-se daí que no processo de trabalho só se transfere valor do meio de produção para o produto, na medida em que o meio de produção, juntamente com o seu valor de uso independente, também perca o seu valor de troca. Ele cede ao produto apenas o valor que perde como meio de produção. Os factores objectivos do processo de trabalho, porém, comportam-se diferentemente neste aspecto.

O carvão com que se aquece a máquina desaparece sem deixar vestígios, do mesmo modo que o óleo com que se lubrifica o eixo da roda etc. Tinta e outras matérias auxiliares desaparecem, mas mostram-se nas propriedades do produto. A matéria-prima constitui a substância do produto, mas mudou de forma. Matéria-prima e matérias auxiliares perdem, portanto, a figura independente com que entram no processo de trabalho como valores de uso. Isso é diferente com os meios de trabalho propriamente ditos. Um instrumento, uma máquina, um edifício de fábrica, um recipiente etc. prestam serviço no processo de trabalho apenas enquanto conservam a sua figura originária, entrando amanhã no processo de trabalho com a mesma forma com que entraram ontem. Como durante a sua vida, durante o processo de trabalho, conservam a figura independente face ao produto, assim também o fazem após sua morte. Os cadáveres de máquinas, instrumentos, edifícios industriais etc. continuam a existir separados dos produtos que ajudaram a formar. Se considerarmos todo o período em que tal meio de trabalho presta serviço, desde o dia de sua entrada na oficina até ao dia do seu banimento para a arrecadação, veremos que, durante esse período, o seu valor de uso foi inteiramente consumido pelo trabalho e o seu valor de troca transferiu-se totalmente para o produto. Se, por exemplo, uma máquina de fiar teve vida útil de 10 anos, então o seu valor total transferiu-se, durante o processo de trabalho de 10 anos, para o produto de 10 anos. O período de vida de um meio de trabalho compreende, portanto, um número maior ou menor de processos de trabalho, repetidos com ele sempre de novo. E acontece ao meio de trabalho o mesmo que ao homem. Todo o homem perece gradualmente todos os dias por 24 horas. Mas não se nota em ninguém por quantos dias já pereceu. Isso não impede, entretanto, as companhias de seguros de vida de tirarem, da vida média dos homens, conclusões muito certas e, o que é muito mais, muito lucrativas. O mesmo ocorre com o meio de trabalho. Sabe-se, por experiência, quanto tempo dura em média um meio de trabalho, determinado tipo de máquina, por exemplo. Suponhamos que o seu valor de uso, no processo de trabalho, dure apenas 6 dias. Perde então, em cada dia de trabalho, 1/6 do seu valor de uso e cede, por isso, 1/6 do seu valor ao produto diário. Desse modo calcula-se a depreciação de todos os meios de trabalho, isto é, por exemplo, a sua perda diária de valor de uso e a sua correspondente transferência diária de valor ao produto.

Isso demonstra convincentemente que um meio de produção nunca transfere mais valor ao produto do que perde no processo de trabalho pela destruição do seu próprio valor de uso. Se não tivesse valor a perder, isto é, se não fosse ele mesmo produto do trabalho humano, então não transferiria nenhum valor ao produto. Serviria de formador de valor de uso sem servir de formador de valor de troca. Isso ocorre com todos os meios de produção preexistentes por natureza, sem colaboração humana, como a terra, o vento, a água, o ferro no filão, a madeira da floresta virgem etc.

Outro fenómeno interessante se nos apresenta aqui. Suponhamos que uma máquina tenha, por exemplo, um valor de 1 000 libras esterlinas e se deprecie em 1 000 dias. Nesse caso, cada dia 1/1 000 do valor da máquina passa dela mesma para o seu produto diário. Ao mesmo tempo, a máquina inteira continua a actuar, embora com decrescente força vital, no processo de trabalho. Vê-se, portanto, que um factor do processo de trabalho, um meio de produção, entra na totalidade no processo de trabalho, mas só em parte no processo de valorização. A diferença entre processo de trabalho e processo de valorização reflecte-se aqui nos seus factores objectivos, dado que o mesmo meio de produção conta na totalidade como elemento do processo de trabalho, e apenas em parte como elemento da formação de valor.

Por outro lado, um meio de produção pode, pelo contrário, entrar totalmente no processo de valorização, embora apenas parcialmente no processo de trabalho. Suponha que, ao fiar o algodão, haja a cada 115 libras 15 que não constituem fio, mas apenas devil’s dust [pó de algodão]. Apesar disso, se esse desperdício de 15 libras for normal e inseparável da elaboração média do algodão, o valor dessas 15 libras, que não constituem elemento do fio, entra no valor do fio do mesmo modo que o valor das 100 libras que constituem a sua substância. O valor de uso de 15 libras de algodão tem de tornar-se pó para fazer 100 libras de fio. A perda desse algodão é, portanto, uma condição da produção do fio. Por isso mesmo transfere o seu valor para o fio. Isso vale para todos os excrementos do processo de trabalho, pelo menos na medida em que esses excrementos não constituem outra vez novos meios de produção e, por conseguinte, novos valores de uso independentes. Vê-se, por exemplo, nas grandes fábricas de máquinas em Manchester, montanhas de refugos de ferro, produzidos por máquinas ciclópicas como se fossem aparas de madeira, que são transportados à noite em grandes carros da fábrica à fundição de ferro, para voltarem no dia seguinte da fundição de ferro à fábrica como ferro maciço.

Os meios de produção apenas transferem valor à nova figura do produto na medida em que, durante o processo de trabalho, perdem valor na figura dos seus valores antigos de uso. O máximo de perda de valor que podem sofrer no processo de trabalho está evidentemente limitado pela grandeza originária de valor com que entram no processo de trabalho, ou pelo tempo de trabalho exigido para a sua própria produção. Os meios de produção nunca podem, por isso, agregar ao produto mais valor do que possuem, independentemente do processo de trabalho a que servem ...

Quando o trabalho produtivo transforma meios de produção em elementos constituintes de um novo produto, ocorre com o seu valor uma transmigração de almas. Ele transmigra do corpo consumido para o corpo recém-estruturado. Mas essa transmigração de almas ocorre igualmente nas costas do verdadeiro trabalho. O trabalhador não pode agregar novo trabalho e com ele criar novo valor sem conservar valores antigos, pois ele tem de agregar o trabalho sempre sob uma forma útil, e não pode agregá-lo em forma útil sem fazer de produtos meios de produção de um novo produto e transferindo assim o seu valor para o novo produto. É portanto um dom natural da força de trabalho em acção, do trabalho vivo, conservar valor ao agregar valor, um dom natural que nada custa ao trabalhador, mas que rende muito ao capitalista, a conservação do valor preexistente do capital. Enquanto o negócio corre bem, o capitalista está aprofundado demais no ganho de excedente para ver esse dom gratuito do trabalho. Interrupções violentas do processo de trabalho, crises, tornam-lho sensivelmente perceptível.

O que se consome dos meios de produção é o seu valor de uso, pelo consumo do qual o trabalho forma produtos. O seu valor não é de facto consumido, nem pode portanto ser reproduzido. Ele é conservado, não porque uma operação ocorre com ele mesmo no processo de trabalho, mas porque o valor de uso em que existia originalmente na verdade desaparece, mas desaparece apenas em outro valor de uso. O valor dos meios de produção reaparece, por isso, no valor do produto, mas, falando com exactidão, ele não é reproduzido. O que é produzido é o novo valor de uso, em que reaparece o antigo valor de troca.

É diferente o que acontece com o factor subjectivo do processo de trabalho, a força de trabalho em acção. Enquanto o trabalho, por meio de sua forma adequada a um fim, transfere o valor dos meios de produção para o produto e o conserva, cada momento do seu movimento cria valor adicional, novo valor. Suponhamos que o processo de produção se interrompe no ponto em que o trabalhador tenha produzido o equivalente do valor da sua própria força de trabalho, tendo agregado mediante trabalho de 6 horas, por exemplo, um valor de 3 xelins. Esse valor forma o excedente do valor do produto sobre seus componentes devidos ao valor dos meios de produção. Ele é o único valor original que surgiu de dentro desse processo, a única parte de valor do produto que é produzida pelo próprio processo. Todavia substitui apenas o dinheiro adiantado pelo capitalista na compra da força de trabalho e gasto pelo próprio trabalhador em meios de subsistência. No que se refere aos 3 xelins despendidos, o novo valor de 3 xelins aparece apenas como reprodução. Mas ele é reproduzido realmente, e não só aparentemente, como o valor dos meios de produção. A substituição de um valor pelo outro é mediada aqui por criação nova de valor.

Já sabemos, entretanto, que o processo de trabalho perdura além do ponto em que seria reproduzido um simples equivalente do valor da força de trabalho e agregado ao objecto do trabalho. Em vez das 6 horas, que bastam para isso, o processo dura, por exemplo, 12 horas. Mediante a actividade da força de trabalho, não só se reproduz o seu próprio valor, mas produz-se também valor excedente. Essa mais-valia forma o excedente do valor do produto sobre o valor dos constituintes consumidos do produto, isto é, dos meios de produção e da força de trabalho.

Ao apresentar os papéis que os diversos factores do processo de trabalho desempenham na formação do valor do produto, caracterizamos, de facto, as funções das diferentes partes componentes do capital no seu próprio processo de valorização. O excedente do valor total do produto sobre a soma dos valores dos seus elementos constituintes é o excedente do capital valorizado sobre o valor do capital originalmente adiantado. Meios de produção, por um lado, e força de trabalho, por outro, são apenas diferentes formas de existência que o valor do capital original assumiu ao desfazer-se da sua forma do dinheiro e ao transformar-se nos factores do processo de trabalho.

A parte do capital que se converte em meios de produção, isto é, em matéria-prima, matérias auxiliares e meios de trabalho, não altera a sua grandeza de valor no processo de produção. Chamo-a por isso parte constante do capital, ou, mais concisamente, capital constante.

A parte do capital convertida em força de trabalho, pelo contrário, modifica o seu valor no processo de produção. Ela reproduz o seu próprio equivalente e além disso produz um excedente, uma mais-valia que ela mesma pode variar, ser maior ou menor. Essa parte do capital transforma-se continuamente de grandeza constante em grandeza variável. Chamo-a, por isso, parte variável do capital, ou, mais concisamente, capital variável. As mesmas partes componentes do capital, que do ponto de vista do processo de trabalho se distinguem como factores objectivos e subjectivos, como meios de produção e força de trabalho, distinguem-se do ponto de vista do processo de valorização como capital constante e capital variável.

… O valor de uma mercadoria é de facto determinado pelo quantum de trabalho nela contido, mas este quantum é ele próprio socialmente determinado. Se muda o tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção … há um efeito retroactivo sobre a mercadoria antiga, que sempre vale como exemplar isolado da sua espécie, cujo valor se mede sempre pelo trabalho socialmente necessário, isto é, sempre pelo trabalho necessário nas condições sociais presentes.

Assim como o valor da matéria-prima, o valor dos meios de produção que já prestam serviço no processo de produção, da maquinaria, por exemplo, pode variar, também a parte de valor que transferem para o produto. Se, por exemplo, em consequência de uma nova invenção, se reproduz maquinaria da mesma espécie com menos dispêndio de trabalho, a antiga maquinaria é mais ou menos desvalorizada e transfere, por isso, relativamente menos valor ao produto. Mas também aqui a mudança de valor se origina fora do processo de produção em que a máquina funciona como meio de produção. Nesse processo nunca cede mais valor do que possui independentemente dele.

Assim como uma mudança no valor dos meios de produção, mesmo quando ocorre retroativamente após sua entrada no processo, não altera o seu carácter como capital constante, tampouco uma mudança na proporção entre capital constante e variável atinge a sua diferença funcional. As condições técnicas do processo de trabalho podem ser transformadas de forma que, por exemplo, onde antes 10 trabalhadores com 10 ferramentas de pouco valor processavam uma massa relativamente pequena de matéria-prima, agora 1 trabalhador com 1 máquina cara processa cem vezes mais matéria-prima. Nesse caso, o capital constante, isto é, a massa de valor dos meios de produção empregados, teria crescido consideravelmente e a parte do capital variável, adiantada sob a forma de força de trabalho, teria caído muito. Essa mudança, no entanto, altera apenas a relação de grandezas entre o capital constante e o variável, ou a proporção em que o capital total se decompõe em componentes constantes e variáveis, mas não atinge a diferença entre constante e variável.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

O desgaste material da máquina é duplo. Um desgaste decorre do uso, como as moedas se desgastam pela circulação; o outro, da sua não-utilização, como uma espada inactiva enferruja na bainha. Esse é o seu desgaste pelos elementos. O desgaste da primeira espécie está em relação mais ou menos directa com o uso; o segundo, até certo ponto, na razão inversa do uso. Mas, além do desgaste material, a máquina sofre um desgaste por assim dizer moral. Ela perde valor de troca à medida que se podem reproduzir de modo mais barato máquinas de igual construção, ou à medida que surjam máquinas melhores concorrendo com ela. Em ambos os casos o seu valor, por mais nova e vitalmente forte que ainda possa ser, já não é determinado pelo tempo de trabalho de facto objectivado nela mesma, mas pelo tempo de trabalho necessário para a sua própria reprodução ou para a reprodução da máquina mais aperfeiçoada. Por isso, ela está mais ou menos desvalorizada. Quanto mais curto o período em que o seu valor global é reproduzido, tanto menor o perigo da depreciação moral e, quanto mais longa a jornada de trabalho, tanto mais curto aquele período. Logo que se introduz maquinaria em qualquer ramo da produção, aparecem, passo a passo, novos métodos para reproduzi-la mais barato e aperfeiçoamentos que atingem não só partes ou dispositivos isolados, mas toda a sua construção.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

A tautologia da riqueza relativa: forma material e força líquida do capital

 

A mais-valia que o capital C adiantado no processo de produção produziu, ou a valorização do capital adiantado C, apresenta-se à partida como excedente do valor do produto sobre a soma de valor dos seus elementos de produção.

O capital C decompõe-se em duas partes, uma soma de dinheiro c despendida com meios de produção, e outra v, despendida com força de trabalho; c representa a parte do valor transformada em capital constante e v a parte que se transformou em capital variável. Originalmente, portanto, é C = c+v, por exemplo, o capital adiantado de 500 libras esterlinas = 410 libras esterlinas de c + 90 libras esterlinas de v. No fim do processo de produção surge a mercadoria cujo valor é = c+v+m, representando m a mais-valia, por exemplo, 410 libras esterlinas de c + 90 libras esterlinas de v + 90 libras esterlinas de m. O capital original C transformou-se em C’, e de 500 libras esterlinas em 590 libras esterlinas. A diferença entre ambos é = m, uma mais-valia de 90. Como o valor dos elementos de produção é igual ao valor do capital adiantado, é de facto uma tautologia dizer que o excedente do valor do produto sobre o valor dos seus elementos de produção é igual à valorização do capital adiantado, ou igual à mais-valia produzida.

Todavia essa tautologia exige determinação mais precisa. O que se compara com o valor do produto é o valor dos elementos de produção consumidos na sua formação. Vimos, porém, que a parte do capital constante aplicado que consiste em meios de trabalho transfere ao produto apenas uma porção do seu valor, enquanto a outra porção persiste na sua antiga forma de existência. Como esta última não desempenha nenhum papel na formação do valor, deve-se aqui abstrair dela. Sua inclusão nos cálculos nada alteraria … Por capital constante adiantado para a produção de valor, e é disso que aqui se trata, compreendemos sempre apenas o valor dos meios de produção consumidos na produção …

Já sabemos, de facto, que a mais-valia é mera consequência da mudança de valor que ocorre com v, a parte do capital convertida em força de trabalho … Mas a verdadeira mudança de valor e a proporção em que se altera o valor são obscurecidas pelo facto de, em consequência do crescimento da sua parte variável, crescer também o capital total. Este era 500 e tornou-se 590. A análise pura do processo exige, portanto, a abstracção total da parte do valor do produto em que apenas reaparece o valor do capital constante, isto é, supõe-se o capital constante c = 0 …

À primeira vista, parece estranho igualar o capital constante a 0. No entanto é o que se faz constantemente na vida quotidiana. Se alguém quisesse calcular, por exemplo, quanto ganha a Inglaterra com a indústria de algodão, começaria por descontar o preço do algodão pago aos Estados Unidos, Índia, Egipto etc., quer dizer, igualar a 0 o valor do capital que apenas reaparece no valor do produto.

Ainda assim, não é apenas a relação da mais-valia com a parte do capital da qual ela directamente se origina e cuja mudança de valor representa que tem grande significado económico, mas também a relação com o capital total adiantado … Para valorizar parte do capital mediante sua conversão em força de trabalho, a outra parte do capital tem que ser transformada em meios de produção. Para que o capital variável funcione, tem que ser adiantado capital constante em proporções adequadas, segundo o carácter técnico determinado do processo de trabalho. A circunstância de se precisar de retortas e de outros recipientes para um processo químico não impede, porém, que na análise se abstraia da própria retorta. Na medida em que a criação de valor e a mudança de valor são encaradas em si mesmas, isto é, em sua pureza, os meios de produção, essas formas materiais do capital constante, só fornecem a matéria em que a força em fluxo formadora do valor se deve fixar. A natureza dessa matéria é por isso indiferente, se algodão ou ferro. Também o valor dessa matéria é indiferente. Ela tem que existir em volume suficiente para poder absorver o quantum de trabalho a ser despendido durante o processo de produção. Dado o volume, o seu valor pode subir ou baixar ou ela pode não ter valor, como terra e mar, que o processo da criação de valor e de mudança do valor não é afectado.

Assim começamos por igualar a parte constante do capital a 0. O capital adiantado reduz-se assim de c+v a v, e o valor do produto c+v+m ao produto de valor v+m. Dado o produto de valor = 180 libras esterlinas, no qual se representa o trabalho que fluiu durante todo o processo de produção, temos de deduzir o valor do capital variável = 90 libras esterlinas para obter a mais-valia = 90 libras esterlinas. O número 90 libras esterlinas = m expressa aqui a grandeza absoluta da mais-valia produzida. Mas a sua grandeza proporcional, isto é, a proporção em que se valorizou o capital variável, é evidentemente determinada pela relação entre a mais-valia e o capital variável, expressando-se como m/v. No exemplo acima é, portanto, 90/90 = 100%. A essa valorização proporcional do capital variável, ou a grandeza proporcional da mais-valia, chamo taxa de mais-valia.

Vimos que o trabalhador, durante parte do processo de trabalho, apenas produz o valor da sua força de trabalho, isto é, o valor dos meios de subsistência de que necessita … Mas, como na parte da jornada de trabalho em que produz o valor diário da força de trabalho, digamos 3 xelins, ele produz apenas um equivalente ao valor dela já pago pelo capitalista e, portanto, repõe apenas o valor adiantado do capital variável pelo novo valor criado, aparece essa produção de valor como mera reprodução. Assim, à parte da jornada de trabalho em que sucede essa reprodução chamo tempo de trabalho necessário, e trabalho necessário ao trabalho despendido durante esse tempo …

O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador labuta além dos limites do trabalho necessário, embora lhe custe trabalho, dispêndio de força de trabalho, não cria para ele nenhum valor. Ela gera a mais-valia, que sorri ao capitalista com todo o encanto de uma criação do nada. A essa parte da jornada de trabalho chamo tempo de trabalho excedente, e ao trabalho despendido nela: mais-trabalho (surplus labour). Assim como, para a noção do valor em geral, é essencial concebê-lo como mero coágulo de tempo de trabalho, como simples trabalho objectivado, é igualmente essencial para a noção de mais-valia concebê-la como mero coágulo de tempo de trabalho excedente, como simples mais-trabalho objectivado …

À parte do produto em que se representa a mais-valia ... chamamos mais-produto (surplus produce, produit net). Tal como a taxa de mais-valia se determina pela sua relação não com a soma total, mas com a parte do capital variável, assim a grandeza do mais produto se determina pela sua relação não com o resto do produto total, mas com aquela parte do produto em que se representa o trabalho necessário. Como a produção de mais-valia é o objectivo determinante da produção capitalista, não é a grandeza absoluta do produto mas a grandeza relativa do mais-produto que mede o grau de riqueza.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

Segundo a nossa suposição, o valor do produto era = 410 libras esterlinas de c + 90 libras esterlinas de v + 90 de m, e o capital adiantado = 500 libras esterlinas. Como a mais-valia = 90 e o capital adiantado = 500, obter-se-ia, segundo o modo costumeiro de cálculo, uma taxa de mais-valia (que é confundida com a taxa de lucro) = 18%, uma proporção tão baixa que comoveria o sr. Carey e outros pregadores da harmonia. Na realidade, porém, a taxa de mais-valia não é m/C nem m/(c+v), mas sim m/v, não é, portanto, 90/500, mas sim 90/90 = 100%, mais de cinco vezes o grau aparente de exploração …

Ricardo … investigou tão pouco quanto os demais economistas a mais-valia como tal, isto é, independentemente de suas formas particulares, como lucro, renda da terra etc. Ele confunde, portanto, as leis sobre a taxa da mais-valia com as leis sobre a taxa de lucro. Como já foi dito, a taxa de lucro é a relação da mais-valia com o capital global adiantado, enquanto a taxa de mais-valia é a relação da mais-valia com a parte apenas variável desse capital. Suponhamos que um capital de 500 libras esterlinas (C) se divide em matérias-primas, meios de trabalho etc. (c), valendo em conjunto 400 libras esterlinas, e em 100 libras esterlinas de salários (v); além disso a mais-valia = 100 libras esterlinas (m). Então, a taxa de mais valia m/v = 100 libras esterlinas / 100 libras esterlinas = 100%. Mas a taxa de lucro m/C = 100 libras esterlinas / 500 libras esterlinas = 20%. É óbvio além disso que a taxa de lucro pode depender de circunstâncias que de modo nenhum afectam a taxa de mais-valia.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

Acumulai! Acumulai! As leis coercivas da concorrência e os fanáticos da valorização do valor

 

A divisão social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que não reconhecem nenhuma outra autoridade senão a da concorrência, a coerção exercida sobre eles pela pressão dos seus interesses recíprocos, do mesmo modo que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as condições de existência de todas as espécies.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

Para que uma mercadoria seja vendida pelo seu valor de mercado, isto é, em proporção ao trabalho socialmente necessário nela contido, o quantum global de trabalho social que é empregado na massa global desta espécie de mercadoria tem de corresponder ao quantum da necessidade social dela, isto é, da necessidade social solvente. A concorrência, as flutuações dos preços de mercado, que correspondem às flutuações da relação entre procura e oferta, tentam constantemente reduzir a esta medida o quantum global de trabalho empregado em cada espécie de mercadoria …

No caso da oferta e procura, entretanto, a oferta é igual à soma dos vendedores ou produtores de determinada espécie de mercadoria, e a procura igual à soma do compradores ou consumidores (individuais ou produtivos) da mesma espécie de mercadoria. E, mais precisamente, as somas actuam uma sobre a outra como unidades, como forças agregadas. O indivíduo actua aí apenas como parte de uma força social, como átomo da massa, e é nessa forma que a concorrência faz valer o carácter social da produção e do consumo.

O lado da concorrência que é no momento o mais fraco é ao mesmo tempo aquele em que o indivíduo actua independemente da massa dos seus competidores, e muitas vezes directamente contra ela, e assim torna perceptível a dependência um do outro, enquanto o lado mais forte confronta sempre como unidade mais ou menos fechada o antagonista. Se para essa determinada espécie de mercadoria a procura é maior que a oferta, cada comprador – dentro de certos limites – oferece mais que o outro e assim encarece para todos a mercadoria, elevando o seu preço acima do valor de mercado, enquanto, por outro lado, os vendedores procuram vender colectivamente a um preço de mercado alto. Inversamente, se a oferta é maior que a procura, um começa a liquidar mais barato e os outros têm de segui-lo, enquanto os seus compradores actuam colectivamente para reduzir o preço de mercado o mais possível abaixo do valor de mercado. O lado colectivo só interessa a cada um enquanto ganhar mais com ele do que contra ele. E o colectivismo cessa logo que o lado em questão se torne o mais fraco, quando então cada indivíduo procura por sua própria conta arranjar-se o melhor possível. Além disso, se alguém produz mais barato e pode vender mais, apoderando-se de um espaço maior do mercado e vendendo abaixo do preço de mercado ou do valor de mercado correntes, faz isso mesmo, e assim começa a acção que pouco a pouco força os outros a introduzirem o modo mais barato de produzir e que reduz o trabalho socialmente necessário a uma nova medida menor. Se um lado tem a supremacia, ganham todos que a ele pertencem; é como se todos tivessem de fazer valer um monopólio em comum. Se um lado é o mais fraco, cada um pode procurar por sua própria conta ser o mais forte (por exemplo, quem trabalha com menos custos de produção) ou, pelo menos, sair-se o melhor possível, e nesse caso o seu vizinho que vá para o diabo, embora sua actuação não afecte somente a ele, mas também a todos os seus companheiros.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

O facto de capitais que põem em movimento quantidades desiguais de trabalho vivo produzirem quantidades desiguais de mais-valia supõe, pelo menos até certo ponto, que o grau de exploração do trabalho ou a taxa de mais-valia sejam os mesmos, ou que as diferenças existentes entre eles se considerem anuladas por razões reais ou imaginárias (convencionais) de compensação. Isso pressupõe concorrência entre os trabalhadores e equalização através da sua constante migração de uma esfera da produção para outra.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

Com salário por tempo prevalece, com poucas excepções, salário igual para as mesmas funções, enquanto com salário por peça, pelo contrário, ainda que o preço do tempo de trabalho seja medido por determinado quantum de produtos, o salário diário ou semanal varia com a diferenciação individual dos trabalhadores, dos quais um fornece apenas o mínimo do produto num período dado, outro a média e um terceiro mais do que a média ...

Mas a maior liberdade que o salário por peça oferece à individualidade tende a desenvolver,
por um lado, a individualidade, e com ela o sentimento de liberdade, a independência e autocontrolo dos trabalhadores; por outro lado, a concorrência entre eles e de uns contra os outros.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

Parte da mais-valia é consumida pelo capitalista como renda, parte é aplicada como capital ou acumulada.

Com uma massa de mais-valia dada, uma dessas partes é tanto maior quanto menor for a outra. Permanecendo iguais as demais circunstâncias, é a proporção em que se realiza essa partilha que determina a grandeza da acumulação. Mas quem procede a essa partilha é o proprietário da mais-valia, o capitalista. Ela é, portanto, um acto de sua vontade. Da parte do tributo por ele recolhido, que ele acumula, diz-se que a poupa, porque não a consome, isto é, porque exerce a sua função de capitalista, a saber, a função de se enriquecer …

Mas, nessa medida, o móbil da sua acção também não é o valor de uso e satisfação, mas o valor de troca e sua multiplicação. Como fanático da valorização do valor, ele força sem nenhum escrúpulo a humanidade à produção pela produção e, portanto, a um desenvolvimento das forças produtivas sociais e à criação de condições materiais de produção, que são as únicas que podem constituir a base real de uma forma de sociedade mais elevada, cujo princípio básico é o desenvolvimento livre e pleno de cada indivíduo. Apenas como personificação do capital o capitalista é respeitável. Como tal, ele partilha com o entesourador o instinto absoluto do enriquecimento. O que neste, porém, aparece como mania individual, é no capitalista efeito do mecanismo social, do qual ele é apenas uma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista faz do contínuo aumento do capital investido numa empresa industrial uma necessidade, e a concorrência impõe a cada capitalista individual as leis imanentes do modo de produção capitalista como leis coercivas externas. Obriga-o a ampliar o seu capital continuamente para conservá-lo, e ele só pode ampliá-lo mediante acumulação progressiva.

Na medida em que a sua acção e omissão são apenas funções do capital, que nele é dotado de vontade e consciência, o seu próprio consumo privado constitui para ele um roubo contra a acumulação do seu capital …

Nos primórdios históricos do modo de produção capitalista – e cada parvenu capitalista percorre individualmente essa fase – predominam a sede de riqueza e a avareza como paixões absolutas ... Em certo nível de desenvolvimento torna-se até uma necessidade do negócio do “infeliz” capitalista um grau convencional de esbanjamento, que é ao mesmo tempo ostentação de riqueza e assim meio de obter crédito. O luxo entra nos custos de representação do capital … Se bem que, por isso, o esbanjamento do capitalista não possua nunca o carácter de bona fide do esbanjamento do pródigo senhor feudal, pois no fundo espreita sempre a mais suja avareza e o cálculo mais angustioso, no entanto, o seu esbanjamento cresce com a sua acumulação, sem que um precise de prejudicar a outra. Com isso, ao mesmo tempo, desenvolve-se no coração do capitalista um conflito fáustico entre o impulso para acumular e o instinto do prazer ...

Acumulai, acumulai! Isso é Moisés e os profetas! … Portanto, poupai, poupai, isto é, retransformai a maior parte possível da mais-valia ou do mais-produto em capital! A acumulação pela acumulação, a produção pela produção, nessa fórmula a economia clássica expressou a vocação histórica do período burguês. Ela não se enganou em nenhum momento sobre as dores do nascimento da riqueza, mas para que serve a lamentação diante de uma necessidade histórica? Se para a economia clássica o proletário é apenas uma máquina para a produção de mais-valia, o capitalista vale para ela também apenas como uma máquina para a transformação dessa mais-valia em mais-capital.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

 

A fórmula geral do capital é D–M–D', isto é, uma soma de valor é lançada na circulação para se retirar dela uma soma de valor maior. O processo que gera essa soma de valor maior é a produção capitalista; o processo que a realiza é a circulação do capital. O capitalista não produz a mercadoria por ela mesma, não pelo seu valor de uso ou para o seu consumo pessoal. O produto que efectivamente interessa ao capitalista não é o próprio produto palpável, mas o excedente de valor do produto sobre o valor do capital nele consumido …

Nunca se deve esquecer que a produção dessa mais-valia – e a retransformação de parte da mesma em capital, ou a acumulação, constitui parte integrante dessa produção de mais-valia – é o objectivo imediato e o motivo determinante da produção capitalista. Nunca se deve apresentá-la, portanto, como algo que ela não é, ou seja, como produção que tem por finalidade imediata a satisfação ou a criação de meios de satisfação para os capitalistas.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

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