(Robert Kurz, Ler Marx)

 

7. A mãe de todas as formas loucas e a ninhada de lobos da bolsa:

Capital que rende juros, bolhas especulativas e a crise do dinheiro

 

 

Introdução

 

Na discussão da teoria de Marx, esquece-se muitas vezes que a noção de modo de produção capitalista desenvolvida principalmente no livro primeiro de O Capital apresenta antes de mais apenas a lógica elementar da relação de capital e os seus pressupostos histórico-sociais. As manifestações empíricas imediatas, nas quais a sociedade capitalista se apresenta na sua superfície ao observador externo, pelo contrário, não coincidem simplesmente com a lógica essencial do capital, mas são de certo modo transformadas por múltiplas mediações e modificações. Se, como diz Hegel, é a essência que aparece, ela não aparece directamente e como tal, mas "mediada", modificada, obscurecida "impuramente" pelas influências através das quais chega à superfície. Ou seja, por um lado, a essência, de acordo com o seu conceito e a sua lógica, tem de ser primeiro destilada a partir da diversidade das suas manifestações e, por outro lado, partindo do conceito obtido de capital e da sua lógica essencial, é preciso discutir depois o contexto concreto de mediação, e explicar como e porquê esta essência se apresenta tal como aparece através de certas modificações. E, finalmente, temos também de analisar e expor o desenvolvimento histórico e o estado em cada caso empírico dessas formas e contextos de mediação, se pretendermos compreender a relação de capital como todo concreto, no seu estado de desenvolvimento actual.

Marx analisou as formas de mediação da lógica capitalista e do seu desenvolvimento no livro segundo e (fragmentariamente) no livro terceiro de O Capital, mas, como vimos, faltam, pelo menos em exposição sistemática, o "Estado" e o "mercado mundial" (que deveriam ter constituído o conteúdo do livro quarto, se tivesse sido escrito). Ainda assim, no seu desenvolvimento do conceito de capital, Marx analisou com relativo detalhe uma forma de mediação capitalista que hoje adquiriu uma importância bem decisiva: nomeadamente a forma do capital que rende juros e o conceito de "capital fictício" dele derivado. O capital que rende de juros, ou seja, puro capital-dinheiro, como capital de empréstimo ou de crédito, difere completamente da forma monetária do capital-dinheiro “em função”, fazendo a função de capital através dos processos de produção da economia empresarial. Enquanto o capital dinheiro da economia empresarial representa apenas a fase monetária transitória da metamorfose perpétua da acumulação capitalista, ou seja, um capital dinheiro que como tal continuamente volta a transformar-se directamente em meios de produção (c) e força de trabalho viva (v), o capital que rende juros representa um capital-dinheiro ligado apenas externa e indiretamente com o processo real da produção capitalista. Trata-se de um capital dinheiro emprestado às empresas, ao Estado ou até mesmo às famílias, que, em compensação, devem pagar juros (custo do crédito), além de pagar de volta o montante emprestado.

Do ponto de vista dos proprietários deste capital de crédito, ou credores, bem como na compreensão social geral da consciência capitalista, esta forma de capital derivada é a sua forma "verdadeira", com a "qualidade oculta" – para retomar Marx – de fazer dinheiro de si mesma, aparentemente sem passar pelo processo de produção da economia empresarial. Isso explica por que é também esta manifestação do contexto da mediação capitalista que constitui o ponto de partida da crítica vulgar e populista do capitalismo, inicialmente saída da pequena burguesia, que continuou a ser atiçada desde Proudhon e anarquistas seus partidários, passando por chefes de seitas da laia de Silvio Gesell ou Rudolf Steiner, até aos ideólogos nazis. Este anticapitalismo vulgar e néscio, de imediato adaptado aos preconceitos do "senso comum popular" capitalista, produtivista e amestrado pela disciplina do trabalho abstracto a partir do século XVIII, ataca o "capital financeiro improdutivo" em nome da nação capitalista, fazendo dele um vampiro sedento de sangue, ao mesmo tempo que glorifica e reivindica realmente o modo de produção capitalista propriamente dito: como, por exemplo, na famigerada oposição entre capital "criador" e capital "rapace" feita pelos nazis. Ao procurar identificar frequente e facilmente o capital financeiro demonizado com o judaísmo (tópico surgido no final da Idade Média e usado por Lutero até ao excesso), esta ideologia, construída sobre ressentimentos e baixos instintos humanos, e não sobre a análise e a teoria crítica, constitui simultaneamente um antro, ou uma espécie de irracional "economia política" do anti-semitismo moderno.

Este anticapitalismo redutor, defendido por todas as correntes populistas e anti-semitas, virado apenas contra a manifestação superficial do capital que rende juros, apresenta sem dúvida algumas semelhanças e sobreposições com o marxismo do movimento operário, ele próprio também prisioneiro das categorias capitalistas, embora não possa ser simples e denunciatoriamente equiparado com aquele. A principal motivação do movimento operário foi sempre lutar pelo reconhecimento jurídico e político dos trabalhadores, e por melhorar as suas condições de vida no capitalismo; a principal motivação das emoções populistas contra o capital financeiro, pelo contrário, foi sempre mobilizar os sentimentos de ódio e impotência cegos, para os instrumentalizar em jogos de poder, absorvendo a dinâmica da crise de modo anti-emancipatório.

Mas como, pelos conceitos utilizados e pela lógica de interpretação, a crítica do liberalismo económico dos sociais-democratas e comunistas, com a sua retórica impensada, atira sobre o capital financeiro e sobre os processos especulativos, reclamando-se ao mesmo tempo do trabalho e do Estado, da nação e de "investimentos de capital produtivo", esboça-se inconscientemente uma vaga aliança, nada santa, da crítica redutora e populista do capitalismo através de todo o espectro político, que leva exactamente ao oposto da emancipação social. Também o revivalismo keynesiano de esquerda da recente intervenção de Bourdieu contra o modelo neoliberal, com a sua tendência anti-americana, não está livre de tais motivações.

Mas, neste caso, os sucessores e os nostálgicos do marxismo do movimento operário não podem sequer invocar o Marx exotérico. Marx, naturalmente, não fala dos representantes do capital financeiro e especulador de uma forma tão lisonjeira como o fazem hoje os defensores radicais do mercado, pelo contrário, chama-os sem cerimônia vigaristas e lobos da bolsa, etc. Mas esses personagens nada edificantes nunca são contrapostos com animosidade ao capital produtivo, como faz a crítica populista e superficial do capitalismo dos apologistas do trabalho e dos anti-semitas, pelo contrário, são explicados na sua relação interna com o capital produtivo. Sobre este ponto, não há quase nenhuma diferença entre a argumentação exotérica e esotérica de Marx: daí a sua crítica mordaz a Proudhon e outros cavaleiros da luta contra o "vilão" capital que rende juros no seu tempo, cuja completa incompreensão do contexto formal capitalista e das leis do seu movimento interno ele prova.

Marx aqui não apenas desenvolve com precisão o conceito de capital que rende juros a partir do próprio conceito de capital, e na sua relação real com o capital produtivo que faz a função de capital, mas também mostra como esta relação se apresenta "invertida" no processo da reprodução capitalista e da sua dinâmica de crise. Só do facto de a alienação do capital-dinheiro como "mercadoria sui generis" (nas diversas formas de crédito) e a sua restituição com juros serem separados no tempo e no espaço, e de a relação interna com o processo de produção real do capital deixar de ser imediatamente visível, já decorre, para além da aparência ideológica da percepção distorcida do fetiche do capital, também uma potencialidade de crise própria, através da criação de um "capital fictício". O capital fictício, ou bolha financeira vazia, surge se o capital que rende juros é escriturado no activo do credor, que com ele pode efectuar operações (por exemplo, penhorá-lo como garantia de outras operações), quando na realidade o capital dinheiro emprestado não foi utilizado pelo devedor no circuito produtivo do capital, fazendo realmente função de capital (com utilização real de força de trabalho), ou se fracassou nessa utilização.

Ao contrário do tempo de Marx, esta situação também pode surgir hoje no plano do crédito ao consumo dos trabalhadores assalariados, como sabem por triste experiência própria muitos companheiros de infortúnio contemporâneos: o dinheiro emprestado, que do lado do credor é sempre capital-dinheiro (porque produtor de juros), mesmo se é gasto apenas no consumo, tem sempre como condição tácita que a força de trabalho do devedor seja usada no circuito produtivo de capital, e que ele possa pagar do seu salário tanto o reembolso do capital como o serviço dos juros. No caso de desemprego inesperado, levando a uma drástica redução do rendimento, esta relação necessária é interrompida, o que não se manifesta imediatamente, mas apenas depois de um certo tempo de incubação. No caso do crédito ao consumo, estamos perante uma simples analogia com o crédito de capital realmente grande, que é emprestado através de vários canais e de várias formas na função de capital das empresas, para que possam utilizar produtivamente a força de trabalho. Mas é claro que os mecanismos são sempre os mesmos. O mesmo se aplica igualmente ao Estado que toma dinheiro emprestado dos mercados financeiros também apenas como consumidor (na medida em que não opera ele próprio como empresa no mercado), e na realidade grande consumidor do conjunto da sociedade. O que para o trabalhador assalariado é o rendimento proveniente da venda da sua força de trabalho ao capital funcionando como capital, para poder financiar a sua dívida, no caso do Estado é a receita de impostos, através da qual ele absorve rendimentos monetários de todo o tipo e lucros do capital fazendo a função de capital.

Em todos estes três casos, a conexão do crédito com o processo de reprodução real do capital pode romper-se, sem que os inevitáveis ​​efeitos se façam sentir imediatamente. No caso do crédito ao consumo do trabalhador assalariado, como se viu, se ele ficar desempregado; no caso do Estado, se ele se endividar para além das receitas fiscais que é possível retirar da sociedade (ou como resultado de processos de crise que interrompam inesperadamente as receitas fiscais antecipadas); mas sobretudo, no caso do próprio capital que faz função de capital, quando o lucro obtido é menor do que a dívida a reembolsar. A hora da verdade, ou seja, o estouro da bolha, pode em cada caso ser adiado, prolongando o prazo do reembolso (na esperança de dias melhores, tanto para o credor como o devedor) com a renegociação da dívida, ou seja, obtendo novos créditos apenas para poder pagar os antigos. O abismo entre o capital dinheiro de que é preciso pagar juros e o processo de produção real de capital ameaça naturalmente aumentar cada vez mais, entrando-se num círculo vicioso e atingindo a dívida original logicamente um valor astronómico, sem nenhuma base produtiva.

Da análise de Marx resulta uma diferenciação clara: trata-se de uma componente positiva, ainda que mediada, do processo de acumulação capitalista global, quando o capital que rende juros obtém o fruto secundário que é o juro através da produção de capital fazendo a função de capital, e realmente a partir dela; trata-se de capital fictício, ou de certo modo de capital que rende juros caído na miséria, quando essa relação já foi rompida, mas essa ruptura ainda não foi realizada, de modo que os créditos, letras etc., na realidade já “podres”, ou seja, perdas não realizadas podem ainda ser escriturados (por ignorância ou má-fé) como activos existentes e crescentes, apesar de já terem perdido toda a substância.

Marx desenvolve um segundo conceito análogo de capital fictício a partir de um sector específico do capital financeiro, os mercados de acções. A "capitalização das expectativas" (perspectiva de lucros futuros), realizada através do aumento da cotação dos títulos, constitui à partida um capital fictício, porque já não existe aqui nenhuma relação substancial com o processo de produção capitalista real (ao contrário do dividendo, que corresponde logicamente ao juro do capital monetário puro, ou seja, representa uma parte deduzida do lucro real do empresário). Enquanto esta constituição específica de capital fictício é realizada paralelamente ao processo de acumulação real, pode ser recuperada por este a qualquer momento; mas, assim que ela se afasta dele e assume dimensões excessivas, estamos perante uma bolha financeira análoga ao capital fictício dos créditos tornados podres, ou seja, uma falsa acumulação, através de operações com valores sem substância, bolha essa que terá de rebentar (“ajustamento do valor”).

Tais processos ocorrem diariamente no capitalismo em pequena escala. Constantemente acontece que a relação entre capital real e capital financeiro se rompe, de um ponto de vista ou de outro, que se formam pequenas bolhas financeiras aqui e ali, que contas não são honradas, créditos entram em mora, devedores insolventes vão à falência – muitas vezes ao mesmo tempo que os seus infelizes credores. Tudo isto faz parte do curso maçadoramente normal dos negócios, dos riscos e dos efeitos secundários do processo de reprodução capitalista, em que a lógica essencial elementar da "valorização do valor" subjacente vai serpenteando através de múltiplas formas contraditórias de mediação. O caso só se torna um problema social geral quando os valores de capital fictício de créditos sem provisão desligados da criação de valor real via capital funcionando como capital, por um lado, e os valores de acções puramente especulativos ( ou também de imóveis, etc.) e/ou as dívidas do Estado, por outro lado, ultrapassam uma certa massa crítica. É sempre esse o caso quando ocorre em toda a sociedade a imobilização interna da acumulação real descrita por Marx na sua análise da crise, portanto, quando a produção capitalista já não pode absorver de forma rentável força de trabalho humana suficiente, por causa de sua própria contradição interna e das suas próprias leis. Mas este limite interno não é visível imediatamente, porque os "sujeitos económicos", empresas, Estados e famílias continuam a flutuar por algum tempo, endividando-se e assim constituindo capital fictício, enquanto os seus lucros, receitas etc. reais regridem ou param completamente; ou porque, por outro lado e simultaneamente, o capital monetário disponível aflui aos mercados bolsistas para além de toda proporção e constitui também aí um capital fictício na forma de uma bolha especulativa (a crise inevitável é assim, por um lado, adiada, por outro lado, porém, também agravada, com a formação de mais capital fictício.) Quando a crise finalmente irrompe, surge por isso em regra como uma crise puramente monetária, do crédito ou financeira em geral, embora na verdade tenha subjacente o limite interno do próprio capital produtivo. Daí também a habitual confusão populista de causa e efeito assim que a crise aparece realmente (“caça aos especuladores”, em vez de uma crítica emancipatória do próprio modo de produção capitalista).

Se a teoria e a análise de Marx do capital que rende juros e do capital fictício resultante dessa lógica não são hoje menos actuais do que a sua previsão da globalização, é pela simples razão de que ambos os processos decorrem, igual e complementarmente, da tendência interna de crise do capital. À fuga do capital "para fora", para os mercados mundiais, corresponde a fuga "para cima", para os mercados financeiros desacoplados do processo de produção real. Ambos os processos se condicionam reciprocamente e se misturam. A constituição do capital global imediato, na concorrência de crise mundial sem filtros, vai de mãos dadas com o surgimento de um mercado financeiro global sem filtros, de um exorbitante endividamento mundial e de uma bolha mundial de capital fictício. É precisamente por isso que se esboça uma crise financeira global possivelmente próxima, com um impacto incomparavelmente maior em comparação com todas as correspondentes crises financeiras do passado, principalmente porque o capital financeiro rebentou o quadro económico nacional da forma mais extensa, e agora a sua crise só pode ocorrer imediatamente à escala mundial. Para o entendimento dos mecanismos desta evolução, que escapa aos actuais banqueiros mundiais e analistas financeiros tal como aos seus antecessores: mais do que nunca, vamos a Marx! Os textos que seguem são em grande parte fragmentos do livro terceiro de O Capital, mas por vezes são apresentados numa ordem diferente, por razões de coerência lógica e de mais fácil inteligibilidade.

 

 

 

 

 

 

 

 


 

O fetiche puramente automático: é tão próprio do dinheiro render juros como de uma pereira dar peras

 

Dinheiro – considerado aqui como expressão autónoma de uma soma de valor, exista ela de facto em dinheiro ou em mercadorias – na base da produção capitalista pode ser transformado em capital e, em virtude dessa transformação, passar de um valor dado para um valor que se valoriza a si mesmo, que se multiplica. Produz lucro, isto é, capacita o capitalista a extrair dos trabalhadores determinado quantum de trabalho não pago, mais-produto e mais-valia, e apropriar-se dele. Assim adquire, além do valor de uso que possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, o de funcionar como capital. O seu valor de uso consiste aqui justamente no lucro que produz, uma vez transformado em capital. Nessa qualidade de capital possível, de meio para a produção de lucro, torna-se mercadoria, mas uma mercadoria sui generis. Ou, o que dá no mesmo, o capital enquanto capital torna-se mercadoria.

Suponhamos que a taxa média anual de lucro seja de 20%. Uma máquina no valor de 100 libras esterlinas, empregada como capital em condições médias e com a proporção média de inteligência e actividade adequada, proporciona então um lucro de 20 libras esterlinas. Assim, uma pessoa que dispõe de 100 libras esterlinas tem nas mãos o poder de fazer de 100 libras esterlinas 120, ou de produzir um lucro de 20 libras esterlinas. Tem nas mãos um capital possível de 100 libras esterlinas. Se essa pessoa deixa as 100 libras esterlinas por 1 ano a outra, que realmente as emprega como capital, dá a esta o poder de produzir 20 libras esterlinas de lucro, mais-valia que nada lhe custa, pela qual não paga equivalente. Se ao final do ano essa pessoa pagar ao proprietário das 100 libras esterlinas uma soma de talvez 5 libras esterlinas, isto é, parte do lucro produzido, então paga com isso o valor de uso das 100 libras esterlinas, o valor de uso de sua função-capital, a função de produzir 20 libras esterlinas de lucro. A parte do lucro que lhe paga chama-se juro, o que portanto nada mais é que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro, a qual o capital em funcionamento tem de pagar ao proprietário do capital em vez de pôr no próprio bolso.

É claro que a posse das 100 libras esterlinas dá ao seu proprietário o poder de atrair para si o juro, certa parte do lucro produzido pelo seu capital. Se não cedesse as 100 libras esterlinas ao outro, este não poderia produzir o lucro nem sequer funcionar como capitalista com relação a essas 100 libras esterlinas …

As 100 libras esterlinas produzem o lucro de 20 libras esterlinas pelo facto de funcionarem como capital, seja industrial ou mercantil. Mas a condição sine qua non dessa função enquanto capital é que sejam despendidas como capital, que o dinheiro seja desembolsado na compra de meios de produção no caso do capital industrial (ou de mercadoria no caso do capital mercantil). Mas, para ser gasto, tem de estar aí. Se A, o proprietário das 100 libras esterlinas, as gastasse para seu consumo privado ou as guardasse consigo como tesouro, não poderiam ser gastas como capital por B, o capitalista funcionante. B não despende o seu capital, mas o de A; mas não pode despender o capital de A sem contar com a vontade de A. Na realidade é A, pois, quem originalmente gasta as 100 libras esterlinas como capital, embora toda a sua função de capitalista se reduza a esse gasto das 100 libras esterlinas como capital. No que se refere a essas 100 libras esterlinas, B só funciona como capitalista porque A lhe cede as100 libras esterlinas e assim as gasta como capital.

Antes de mais nada, observemos a circulação peculiar do capital que rende juros. Teremos então de examinar em segunda instância a maneira especial como é vendida essa mercadoria, a saber, como é emprestada em vez de ser entregue de uma vez por todas.

O ponto de partida é o dinheiro que A adianta a B. Isso pode ocorrer com ou sem garantia; a primeira forma, entretanto, é a mais antiga, com excepção dos adiantamentos sobre mercadorias ou títulos de dívida, como letras de câmbio, acções etc. Estas formas particulares não nos interessam aqui. Tratamos aqui do capital que rende juros na sua forma ordinária.

Nas mãos de B, o dinheiro é realmente transformado em capital, percorre o movimento D–M–D' para voltar a A como D', como D+ΔD, em que ΔD representa o juro. Para simplificar abstraímos aqui, por enquanto, do caso em que o capital permanece por tempo mais longo nas mãos de B e os juros são pagos periodicamente.

O movimento é, portanto:

D-D-M-D'-D'

O que aparece aqui duplicado é 1) o dispêndio do dinheiro como capital e 2) o seu refluxo como capital realizado, como D' ou D+ΔD.

No movimento do capital comercial D–M–D', a mesma mercadoria muda de mãos 2 vezes ou, se um comerciante vende a outro, mais vezes; mas cada uma dessas mudanças de lugar da mesma mercadoria indica uma metamorfose, compra ou venda da mercadoria, por mais vezes que esse processo se possa repetir até à sua queda definitiva no consumo.

Em M–D–M, por outro lado, ocorre dupla mudança de lugar do mesmo dinheiro, mas indica a metamorfose completa da mercadoria, que primeiro se transforma em dinheiro e, em seguida, de dinheiro em outra mercadoria.

No caso do capital que rende juros, pelo contrário, a primeira mudança de lugar de D de modo nenhum constitui um momento seja da metamorfose de mercadorias, seja da reprodução do capital. Ele só se torna isso no segundo dispêndio, nas mãos do capitalista funcionante, que com ele comercia ou o transforma em capital produtivo. A primeira mudança de lugar de D expressa aqui apenas a sua transferência ou remessa de A para B; uma transferência que costuma realizar-se sob certas formas e garantias jurídicas.

A esse duplo dispêndio do dinheiro como capital, em que o primeiro é simples transferência de A para B, correspondo o seu duplo refluxo. Como D', ou D+ΔD, reflui do movimento para o capitalista funcionante B. Este transfere-o então novamente para A, mas ao mesmo tempo com parte do lucro, como capital realizado, como D+ΔD, em que ΔD não é igual ao lucro inteiro, mas é apenas parte do lucro, o juro. Para B reflui apenas como o que este despendeu como capital funcionante, mas como propriedade de A. Para que seu refluxo seja completo, B tem de transferi-lo novamente para A. Mas, além da soma de capital, B tem de entregar a A parte do lucro obtido com essa soma de capital sob o nome de juro, pois A só lhe cedeu o dinheiro como capital, isto é, como valor que não apenas se conserva no movimento, mas cria mais-valia para seu proprietário. Permanece nas mãos de B apenas enquanto é capital funcionante. E com seu refluxo – no fim do prazo estipulado – deixa de funcionar como capital. Como capital não mais funcionante, tem de ser devolvido a A, que não cessou de ser o proprietário jurídico do mesmo.

A forma de empréstimo que é peculiar dessa mercadoria, o capital como mercadoria, que ocorre aliás também noutras transacções em vez da forma de venda, já resulta da determinação de o capital aparecer aqui como mercadoria, ou de o dinheiro como capital se tornar mercadoria ...

 

Logo que o capital produtivo se tenha transformado em capital-mercadoria, tem de ser lançado no mercado e ser vendido como mercadoria. Aqui funciona simplesmente como mercadoria. O capitalista aparece apenas como vendedor de mercadoria, bem como o comprador apenas como comprador de mercadoria. Como mercadoria, o produto tem de realizar o seu valor no processo de circulação mediante a venda, e assumir sua figura transformada como dinheiro. Por isso, é totalmente indiferente se essa mercadoria é comprada por um consumidor, como meio de subsistência, ou por um capitalista, como meio de produção, como componente de capital. No acto de circulação, o capital-mercadoria funciona como mercadoria e não como capital. Ele é capital-mercadoria, diferente da simples mercadoria: 1) porque já está prenhe de mais-valia, sendo a realização do seu valor ao mesmo tempo realização de mais-valia; mas isso em nada altera a sua simples existência como mercadoria, como produto de determinado preço; 2) porque essa sua função de mercadoria é um momento do seu processo de reprodução como capital e, portanto, o seu movimento como mercadoria, por ser apenas movimento parcial desse processo, é ao mesmo tempo o seu movimento como capital; ele não se torna isso, entretanto, pelo próprio acto de venda, mas pela conexão desse acto com o movimento global dessa soma determinada de valor como capital.

Do mesmo modo, como capital monetário ele funciona apenas como dinheiro, isto é, como meio de compra de mercadorias (os elementos de produção). Que esse dinheiro seja aqui ao mesmo tempo capital monetário, uma forma do capital, não decorre do acto de compra, da função real que aqui exerce como dinheiro, mas da conexão desse acto com o movimento global do capital, pois esse acto que realiza como dinheiro inaugura o processo de produção capitalista.

Mas, na medida em que funcionam realmente, desempenham realmente o seu papel no processo, o capital-mercadoria actua aqui apenas como mercadoria e o capital monetário apenas como dinheiro. Em nenhum momento isolado da metamorfose, considerado por si, o capitalista vende a mercadoria como capital ao comprador, embora para este ela represente capital, ou aliena o dinheiro como capital ao vendedor. Em ambos os casos, ele aliena a mercadoria simplesmente como mercadoria e o dinheiro simplesmente como dinheiro, como meio de compra de mercadorias.

É só na conexão de todo o procedimento, no momento em que o ponto de partida aparece ao mesmo tempo como o ponto de retorno, … que o capital se apresenta no processo de circulação como capital … Nesse momento de retorno, entretanto, a mediação desapareceu. O que há é ... uma soma de dinheiro igual à soma originalmente adiantada mais um excedente sobre ela, a mais-valia realizada. E justamente nesse ponto de retorno, em que o capital existe como capital realizado, como valor valorizado, nessa forma – à medida que esse ponto seja fixado como ponto de repouso, imaginário ou real – o capital nunca entra em circulação, pelo contrário, aparece como retirado da circulação, como resultado de todo o processo. Logo que seja novamente gasto, nunca é alienado a um terceiro como capital, mas é vendido a ele como simples mercadoria ou lhe é entregue como simples dinheiro por mercadoria. No seu processo de circulação nunca aparece como capital, mas apenas como mercadoria ou dinheiro, e esta é aqui a sua única existência para os outros. Mercadoria e dinheiro são aqui ... capital … apenas nas suas relações ideais, ou com o próprio capitalista (do ponto de vista subjetivo) ou como momentos do processo de reprodução (do ponto de vista objectivo). O capital existe como capital no movimento real, não no processo de circulação mas somente no processo de produção, no processo de exploração da força de trabalho.

A coisa é diferente com o capital que rende juros, e justamente essa diferença constitui o seu carácter especifico. O possuidor de dinheiro que quer valorizar o seu dinheiro como capital que rende juros aliena-o a um terceiro, lança-o na circulação, torna-o mercadoria como capital; não só como capital para si mesmo, mas também para outros; não é meramente capital para aquele que o aliena, mas é entregue ao terceiro de antemão como capital, como valor que possui o valor de uso de criar mais-valia, lucro; como valor que se conserva no movimento e, depois de ter funcionado, retorna para quem originalmente o despendeu, nesse caso o possuidor
de dinheiro; portanto afasta-se dele apenas por um período, passa da posse do seu proprietário apenas temporariamente à posse do capitalista funcionante, não é dado em pagamento nem vendido, mas apenas emprestado; só é alienado sob a condição, primeiro, de voltar após determinado prazo ao seu ponto de partida, e, segundo, de voltar como capital realizado, tendo realizado o seu valor de uso de produzir mais-valia …

O capital emprestado reflui duplamente; no processo de reprodução retorna ao capitalista funcionante, e em seguida repete-se o retorno mais uma vez como transferência para o mutuante, o capitalista monetário, como reembolso ao verdadeiro proprietário, ao seu ponto de partida jurídico …

Mas o dinheiro, à medida que é emprestado como capital, é precisamente emprestado como essa soma de dinheiro que se conserva e se multiplica, que após certo período retorna com um acréscimo e pode sempre de novo passar pelo mesmo processo. Não é gasto como dinheiro nem como mercadoria, portanto não é trocado por mercadoria se é adiantado como dinheiro, nem se vende por dinheiro se é adiantado como mercadoria; é despendido como capital. A relação consigo mesmo, na qual se representa o capital, quando se encara o processo de produção capitalista como um todo e uma unidade, e na qual o capital aparece como dinheiro que gera dinheiro, simplesmente lhe é incorporada aqui sem o movimento intermediário, como seu carácter, sua determinação. E é nessa determinação que ele é alienado, quando emprestado como capital monetário …

O retorno do capital ao seu ponto de partida é, em geral, o movimento característico do capital no seu ciclo global. Isso não é característico apenas do capital que rende juros. O que o distingue é a forma externa, dissociada do ciclo mediador do retorno. O capitalista mutuante entrega o seu capital, transfere-o ao capitalista industrial, sem receber um equivalente … O primeiro dispêndio, que transfere o capital das mãos do mutuante para as do mutuário, é uma transacção jurídica que nada tem a ver com o processo real de reprodução, mas apenas o introduz. O reembolso, que transfere novamente o capital refluído das mãos do mutuário para as do mutuante, é uma segunda transacção jurídica, o complemento da primeira; uma introduz o processo real, a outra é um acto posterior a esse processo. Ponto de partida e ponto de retorno, entrega e restituição do capital emprestado, aparecem assim como movimentos voluntários, mediados por transacções jurídicas que ocorrem antes e depois do movimento real do capital e nada têm a ver com ele. Para este, seria indiferente se o capital pertencesse de antemão ao capitalista industrial e, por isso, simplesmente refluísse para ele como sua propriedade …

O movimento característico do capital em geral, o retorno do dinheiro ao capitalista, o retorno do capital ao seu ponto de partida, recebe no capital que rende juros uma figura totalmente externa, separada do movimento real de que é forma … Entrega, empréstimo de dinheiro por certo prazo e recuperação com juros (mais-valia). É a forma completa do movimento que cabe ao capital que rende juros como tal. O movimento real do dinheiro emprestado como capital é uma operação situada além das transacções entre mutuantes e mutuários. Nestas, essa mediação é apagada, invisível, não está directamente incluída. Como mercadoria de natureza peculiar, o capital possui também um modo peculiar de alienação. O retorno não se expressa aqui, portanto, como consequência e resultado de determinada série de actos económicos, mas como consequência de um acordo jurídico especial entre comprador e vendedor …

O que o comprador de uma mercadoria comum compra é o seu valor de uso; o que paga é o seu valor. O que o mutuário do dinheiro compra é também o seu valor de uso como capital; mas o que paga? Certamente não é, como no caso das outras mercadorias, o preço ou o valor. Entre mutuante e mutuário não se dá, como entre comprador e vendedor, uma mudança de forma do valor, de modo que esse valor exista uma vez na forma de dinheiro, outra vez na forma de mercadoria. A igualdade entre o valor entregue e o valor recuperado apresenta-se aqui de maneira completamente diferente. A soma de valor, o dinheiro, é entregue sem equivalente e após certo tempo é devolvida. O mutuante continua sempre proprietário do mesmo valor, mesmo depois de este ter passado das suas mãos para as do mutuário …

Ambos, o mutuante e o mutuário, despendem a mesma soma de dinheiro como capital. Mas só nas mãos do último ela funciona como capital. O lucro não se duplica pela dupla existência da mesma soma de dinheiro como capital para duas pessoas. Esta só pode funcionar como capital para ambos mediante repartição do lucro …

Nunca se pode esquecer que aqui o capital enquanto capital é mercadoria, ou que a mercadoria de que aqui se trata é capital. Todas as relações que aqui aparecem seriam, portanto, irracionais do ponto de vista da mercadoria simples, ou também do ponto de vista do capital enquanto funciona no seu processo de reprodução como capital-mercadoria. Emprestar e tomar emprestado, em vez de vender e comprar, é aqui uma diferença que decorre da natureza especifica da mercadoria capital. Do mesmo modo que o que se paga aqui é juro, em vez do preço da mercadoria. Se se quiser chamar ao juro preço do capital monetário, então essa é uma forma irracional de preço, completamente em contradição com o conceito do preço da mercadoria. O preço reduz-se aqui à sua forma puramente abstracta e sem conteúdo, ou seja, ele é determinada soma de dinheiro paga por qualquer coisa que, de uma maneira ou de outra, figura como valor de uso; enquanto, segundo seu conceito, o preço é igual ao valor expresso em dinheiro desse valor de uso.

Juro como preço do capital é de antemão uma expressão totalmente irracional. Aqui uma mercadoria tem duplo valor: primeiro, um valor e, depois, um preço distinto desse valor, enquanto o preço é a expressão monetária do valor … Como pode então uma soma de valor ter um preço além do seu próprio preço, além do preço que está expresso em sua própria forma-dinheiro? Pois o preço é o valor da mercadoria (e isso vale também para o preço de mercado, que difere do valor não pela qualidade, mas somente pela quantidade, relacionando-se apenas à grandeza do valor), em contraste com o seu valor de uso. Um preço que é qualitativamente diverso do valor é uma contradição absurda.

O capital manifesta-se como capital mediante a sua valorização; o grau da sua valorização expressa o grau quantitativo em que se realiza como capital. A mais-valia, ou o lucro, por ele produzida – a sua taxa ou nível – só pode ser medida comparando-a com o valor do capital adiantado. A maior ou menor valorização do capital que rende juros só é mensurável comparando o montante dos juros, a parte que lhe cabe do lucro global, com o valor do capital adiantado. Por conseguinte, se o preço expressa o valor da mercadoria, o juro expressa a valorização do capital monetário, e aparece por isso como o preço que se paga pelo mesmo ao mutuante. Resulta daí quão absurdo é de antemão querer aplicar aqui directamente as simples relações da troca mediada por dinheiro, da compra e venda, como faz Proudhon. O pressuposto fundamental é justamente que o dinheiro funcione como capital, e portanto possa ser remetido a terceira pessoa como capital em si, como capital potencial.

Como mercadoria, o capital, entretanto, aparece aqui na medida em que é oferecido no mercado e o valor de uso do dinheiro é realmente alienado como capital. E seu valor de uso, porém, é produzir lucro. O valor do dinheiro ou das mercadorias como capital não é determinado pelo valor que possuem como dinheiro ou como mercadorias, mas pelo quantum de mais-valia que produzem para o seu possuidor. O produto do capital é o lucro …

O capital aparece como mercadoria, além disso, na medida em que a divisão do lucro em juro e lucro propriamente dito é regulada pela procura e oferta, isto é, pela concorrência, inteiramente como os preços de mercado das mercadorias. A diferença, porém, evidencia-se tão patentemente como a analogia. Se procura e oferta se cobrem, o preço de mercado da mercadoria corresponde ao seu preço de produção, isto é, o seu preço aparece então regulado pelas leis internas da produção capitalista, independentemente da concorrência, uma vez que as flutuações de procura e oferta explicam apenas os desvios dos preços de mercado em relação aos preços de produção – desvios que se compensam mutuamente, de modo que, em certos períodos mais longos, os preços médios de mercado são iguais aos preços de produção. Logo que se cubram, essas forças cessam de actuar, anulam-se mutuamente, e a lei geral de determinação dos preços revela-se também como lei do caso particular; o preço de mercado corresponde então em sua existência imediata, e não apenas como média do movimento dos preços de mercado, ao preço de produção, que se regula pelas leis imanentes do próprio modo de produção ... Mas é diferente o que se dá com o juro do capital monetário. A concorrência não determina aqui os desvios da lei, mas não existe lei alguma da repartição além da ditada pela concorrência, porque ... não existe uma taxa natural de juros. Entende-se por taxa natural de juros a taxa fixada pela livre-concorrência. Não há limites naturais da taxa de juro. Onde a concorrência não se limita a determinar os desvios e as flutuações, quando, pois, no equilíbrio das suas forças contrapostas cessa toda determinação em geral, o que se trata de determinar é em si mesmo não regulado por lei e arbitrário …

Uma vez que o juro é simplesmente parte do lucro, que, segundo o nosso pressuposto, tem de ser paga pelo capitalista industrial ao capitalista monetário, aparece como limite máximo do juro o próprio lucro, sendo nesse caso a parte que caberia ao capitalista funcionante = 0. Abstraindo de casos isolados, em que o juro pode efectivamente ser superior ao lucro, mas então não podendo ser pago a partir do lucro, poder-se-ia talvez considerar como limite máximo do juro o lucro todo menos a parte do mesmo a ser desenvolvida adiante e que se resolve em salários de superintendência (wages of superintendence). O limite mínimo do juro é totalmente indeterminável. Ele pode descer a qualquer nível que se queira. Neste caso, surgem sempre circunstâncias contrariantes que o elevam acima deste mínimo relativo …

Em todo caso, a taxa média de lucro deve ser considerada o limite máximo definitivamente determinante do juro …

Quando se observam os ciclos de rotação em que se move a indústria moderna – estado de repouso, animação crescente, prosperidade, superprodução, colapso, estagnação, estado de repouso etc. ... –, vê-se que na maioria dos casos um nível baixo de juro corresponde aos períodos de prosperidade ou de lucros extraordinários, a subida do juro, à linha separadora entre a prosperidade e a sua inversão, e o máximo do juro até ao nível extremo da usura, à crise … A taxa de juro atinge o seu nível mais extremamente alto durante as crises, quando se tem de tomar dinheiro emprestado para pagar a qualquer custo. Uma vez que à subida do juro corresponde uma queda de preço dos títulos, isso constitui ao mesmo tempo uma excelente oportunidade para pessoas com capital monetário disponível se apropriarem, a preços ridículos, desses papéis que rendem juros, que, no curso normal das coisas, necessariamente recuperarão o seu preço médio, logo que a taxa de juro volte a cair …

A taxa de juro relaciona-se com a taxa de lucro da mesma maneira que o preço de mercado da mercadoria com o seu valor. Na medida em que a taxa de juro é determinada pela taxa de lucro, é sempre pela taxa geral de lucro e não pelas taxas específicas de lucro que possam imperar em ramos industriais particulares, e menos ainda pelo lucro extraordinário que o capitalista individual possa obter numa esfera particular de negócios. A taxa geral de lucro, portanto, reaparece realmente como facto dado na taxa de juro, embora esta última não seja uma expressão pura ou fiel da primeira …

No que toca à taxa de mercado sempre flutuante de juros, ela em cada momento é dada como grandeza fixa, com o preço de mercado das mercadorias, porque no mercado monetário todo o capital emprestável como massa global se confronta constantemente com o capital funcionante, de modo que a relação entre a oferta de capital emprestável, por um lado, e a procura por ele, por outro, decide o nível de mercado do juro em cada momento. Esse é tanto mais o caso quanto mais o desenvolvimento e a concentração consequente do sistema de crédito derem ao capital emprestável carácter social geral e o lançarem no mercado monetário de uma vez, ao mesmo tempo. A taxa geral de lucro, pelo contrário, só existe constantemente como tendência, como movimento de equalização das taxas particulares de lucro. A concorrência entre os capitalistas – que é em si esse movimento de equalização – consiste aqui no facto de estes retirarem gradualmente capital das esferas em que o lucro fica durante períodos maiores abaixo da média, e do mesmo modo encaminharem gradualmente capital para as esferas em que o lucro fica acima da média; ou também de capital adicional se repartir pouco a pouco em proporções diversas entre essas esferas. Trata-se de variação constante da oferta e da retirada de capital, em face destas diversas esferas, e jamais de acção simultânea, em massa, como na determinação da taxa de juro …

Essa separação qualitativa entre as duas partes do lucro bruto, pela qual juro é fruto do capital em si, da propriedade do capital abstraindo do processo de produção, e ganho empresarial é fruto do capital processante que actua no processo de produção, e portanto do papel activo que aplicador do capital desempenha no processo de reprodução – essa separação qualitativa não é de modo nenhum concepção meramente subjetiva do capitalista monetário aqui e do capitalista industrial acolá. Ela repousa sobre um facto objectivo, pois o juro flui para o capitalista monetário, mutuante, que é mero proprietário do capital, que representa, portanto, a mera propriedade do capital antes e fora do processo de produção; e o ganho empresarial flui para o capitalista meramente funcionante, que é não-proprietário do capital.

Tanto para o capitalista industrial, enquanto trabalha com capital emprestado, como para o capitalista monetário, enquanto não emprega ele mesmo o seu capital, a divisão meramente quantitativa do lucro bruto entre duas pessoas diferentes, que possuem ambas títulos jurídicos distintos sobre o mesmo capital, e por isso sobre o lucro por este produzido, converte-se com isso numa divisão qualitativa. Parte do lucro aparece agora como fruto que em si mesmo cabe ao capital numa determinação como juro; parte aparece como fruto específico do capital numa determinação oposta, e portanto como ganho empresarial; uma como mero fruto da propriedade do capital, a outra como fruto do mero funcionar com o capital, como fruto do capital como processante ou das funções que o capitalista activo exerce. E essa cristalização e autonomização das duas partes do lucro bruto uma contra a outra, como se se originassem de duas fontes essencialmente diversas, tem de se consolidar para a classe capitalista inteira e para o capital global. E na verdade sem que importe se o capital empregado pelo capitalista activo seja emprestado ou não, ou se o capital pertencente ao capitalista monetário seja aplicado por ele mesmo ou não. O lucro de cada capital, portanto também o lucro médio baseado na equalização dos capitais entre si, decompõe-se ou é dividido em duas partes qualitativamente diversas, autónomas e independentes entre si, juro e ganho empresarial, ambas determinadas por leis específicas. O capitalista que trabalha com capital próprio, assim como o que trabalha com capital emprestado, reparte o seu lucro bruto em juro, que lhe cabe como proprietário, como mutuante de capital a si mesmo, e em ganho empresarial, que lhe cabe como capitalista activo, funcionante. Assim, para essa divisão, enquanto qualitativa, torna-se indiferente se o capitalista tem realmente de repartir com outro ou não. O aplicador do capital, mesmo que trabalhe com capital próprio, decompõe-se em duas pessoas, o mero proprietário do capital e o aplicador do capital; seu capital mesmo, com relação às categorias de lucro que proporciona, se decompõe em propriedade de capital, capital fora do processo de produção, que proporciona juro em si, e capital dentro do processo de produção, que como processante proporciona ganho empresarial …

Toda a investigação sobre como o lucro bruto se diferencia em juro e ganho empresarial se resolve simplesmente na investigação sobre como parte do lucro bruto geralmente se cristaliza e autonomiza enquanto juro. Historicamente, porém, o capital que rende juros existe como forma acabada e tradicional, e portanto o juro como subforma acabada da mais-valia produzida pelo capital, muito antes de existirem o modo de produção capitalista e as concepções de capital e lucro que lhe correspondem. Por isso, na imaginação popular, o capital monetário, o capital que rende juros continua a ser o capital como tal, capital par excellence. Por isso, por outro lado, a concepção dominante até aos tempos de Massie, de ser o dinheiro como tal o que é pago no juro. A circunstância de capital emprestado proporcionar juro, seja ele realmente empregado como capital, ou não – também quando ele é apenas emprestado para consumo –, consolida a concepção da autonomia dessa forma do capital. A melhor prova da autonomia com que, nos primeiros períodos do modo de produção capitalista, o juro aparece perante o lucro, e o capital que rende juros perante o capital industrial, é que só em meados do século XVIII foi descoberto (por Massie e em seguida por Hume) o facto de o juro ser mera parte do lucro bruto, e que isso precisou mesmo de ser descoberto …

Se o capitalista industrial trabalha com capital próprio ou emprestado, em nada altera a circunstância de que a classe dos capitalistas monetários o confronta como espécie particular de capitalista, o capital monetário como espécie autónoma de capital, e o juro como forma autónoma da mais-valia, correspondente a este capital específico.

Considerado qualitativamente, o juro é mais-valia que a mera propriedade do capital proporciona, que o capital em si proporciona, embora o seu proprietário fique fora do processo de reprodução, que portanto o capital proporciona separado do seu processo.

Considerada quantitativamente, a parte do lucro que constitui o juro não aparece relacionada com o capital industrial e comercial como tal, mas com o capital monetário, e a taxa dessa parte da mais-valia, a taxa de juro, consolida essa relação. Pois, primeiro, a taxa de juro – apesar de sua dependência da taxa geral de lucro – é determinada de maneira autónoma, e, segundo, ela aparece, como o preço de mercado das mercadorias, em face da taxa intangível de lucro, como relação que, com toda a variação, é sólida, uniforme e sempre dada. Se todo capital estivesse nas mãos dos capitalistas industriais, então não existiriam juros nem taxa de juro. A forma autónoma assumida pela divisão quantitativa do lucro bruto gera a qualitativa …

A repartição puramente quantitativa do lucro entre duas pessoas que têm títulos jurídicos diversos sobre ele
transformou-se numa repartição qualitativa, que parece provir da natureza do capital e do próprio lucro …

O capital que rende juros é o capital enquanto propriedade em confronto com o capital enquanto função …

 

No capital que rende juros, a relação de capital atinge a sua forma mais alienada e mais fetichista. Temos aí D – D', dinheiro que gera mais dinheiro, valor que se valoriza a si mesmo, sem o processo que medeia os dois extremos. No capital comercial, D–M–D', existe pelo menos a forma geral do movimento capitalista, embora se mantenha apenas na esfera da circulação, portanto o lucro aparece como mero lucro de alienação; mas, ainda assim, apresenta-se como produto de uma relação social, e não como produto de uma mera coisa … Isso está apagado em D – D', a forma do capital que rende juros … É a fórmula original e geral do capital, condensada num resumé sem sentido. É o capital acabado, unidade do processo de produção e do processo de circulação, proporcionando, portanto, em determinado tempo, determinada mais-valia. Na forma do capital que rende juros isso aparece directamente, sem mediação pelo processo de produção e pelo processo de circulação. O capital aparece como fonte misteriosa, autocriadora do juro, do seu próprio incremento. A coisa (dinheiro, mercadoria, valor) já é capital como mera coisa, e o capital aparece como mera coisa; o resultado do processo global de reprodução aparece como propriedade que cabe por si a uma coisa … ; depende do possuidor do dinheiro, isto é, da mercadoria em sua forma sempre intercambiável, se ele quer despendê-lo como dinheiro ou alugá-lo como capital. Na forma do capital que rende juros, portanto, esse fetiche automático está elaborado em sua pureza, valor que se valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e não traz nenhuma marca do seu nascimento. A relação social está consumada como relação de uma coisa, do dinheiro, consigo mesmo. Em vez da transformação real do dinheiro em capital aqui mostra-se apenas a sua forma sem conteúdo. Como no caso da força de trabalho, o valor de uso do dinheiro torna-se aqui o de criar valor, valor maior que o contido nele mesmo. O dinheiro como tal já é potencialmente valor que se valoriza, e como tal é emprestado, o que constitui a forma de venda dessa mercadoria peculiar. Torna-se assim propriedade do dinheiro criar valor, proporcionar juros, tal como a de uma pereira é dar peras …

 

Com o desenvolvimento do comércio e do modo de produção capitalista, que somente produz com vista à circulação, essa base naturalmente desenvolvida do sistema de crédito é ampliada, generalizada e aperfeiçoada. O dinheiro funciona aqui, em geral, apenas como meio de pagamento, isto é, a mercadoria é vendida não contra dinheiro, mas contra uma promessa escrita de pagamento em determinado prazo … Até ao dia de vencimento e pagamento, essas letras de câmbio circulam por sua vez como meio de pagamento; e elas constituem o verdadeiro dinheiro comercial …

W. Leatham (banqueiro de Yorkshire), Letters on the Currency, 2º ed., Londres, 1840:

“ … É impossível decidir quantas delas provêm de negócios reais, por exemplo de compras e vendas efectivas, e que parte é fictícia (fictitious) e mero papel de favor, isto é, letras que são emitidas para recolher letras em circulação antes do vencimento e criar assim, pela produção de meros meios de circulação, capital fictício …”(p. 44)

Ch. Coquelin, “Du Crédit et des Banques dans l'Industrie”, ln: Revue des Deux Mondes, 1842, tomo 31 (p. 797):

Em cada país, a maioria das transacções de crédito efectua-se no próprio círculo das relações industriais, ... o produtor da matéria-prima adianta-a ao fabricante que a processa e recebe dele uma nota promissória com vencimento fixo. O fabricante, depois de executar a sua parte do trabalho, adianta, por sua vez e em condições semelhantes o seu produto a outro fabricante, que tem de continuar a processá-lo, e desse modo o crédito estende-se sempre mais, de um para o outro, até ao consumidor ... Cada um toma emprestado com uma mão e empresta com a outra, às vezes dinheiro, mas muito mais frequentemente produtos. Assim se realiza nas relações industriais um intercâmbio incessante de adiantamentos, que se combinam e se cruzam em todas as direções …”

Em correspondência com esse comércio de dinheiro, desenvolve-se o outro aspecto do sistema de crédito, a administração do capital que rende juros ou do capital monetário, como função particular dos comerciantes de dinheiro. Tomar dinheiro emprestado e emprestá-lo torna-se o seu negócio especial. Aparecem como intermediários entre os verdadeiros mutuante e o mutuário de capital monetário. Em termos gerais, o negócio bancário, sob esse aspecto, consiste em concentrar nas suas mãos o capital monetário emprestável em grandes massas, de modo que, em vez do mutuante individual, são os banqueiros, como representantes de todos os mutuantes de dinheiro, que enfrentam os capitalistas industriais e comerciais. Tornam-se os administradores gerais do capital monetário. Por outro lado, eles concentram os mutuários perante todos os mutuantes, ao tomar emprestado para todo o mundo comercial. Um banco representa, por um lado, a centralização do capital monetário, dos mutuantes e, por outro, a centralização dos mutuários. O seu lucro consiste, em geral, em tomar emprestado a juros mais baixos do que aqueles a que empresta.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

Ele tem escolha, mas isso é um disparate: o crédito como base da especulação

 

Se o capitalista industrial se compara com o capitalista monetário, o que o distingue deste é apenas o ganho empresarial, como excedente do lucro bruto sobre o juro médio, que em virtude da taxa de juro aparece como grandeza empiricamente dada. E se, por outro lado, ele se compara com o capitalista industrial que opera com capital próprio em vez de emprestado, este distingue-se dele apenas como capitalista monetário, ao embolsar ele mesmo o juro em vez de pagá-lo a outro. Por ambos os lados, a parte do lucro bruto distinta do juro aparece como ganho empresarial, e o próprio juro como mais-valia que o capital proporciona em si mesmo, e que portanto também proporcionaria sem aplicação produtiva.

Para o capitalista individual isso é praticamente correcto. Ele tem escolha quanto ao seu capital, quer este exista já à partida como capital monetário, quer tenha de ser transformado ainda em capital monetário, se deseja emprestá-lo como capital que rende juros ou se prefere ele mesmo valorizá-lo como capital produtivo. Considerado em geral, quer dizer, aplicado a todo o capital social, como fazem alguns economistas vulgares que até o enunciam como causa de lucro, isso é naturalmente um disparate. A transformação de todo o capital em capital monetário, sem haver pessoas que comprem e valorizem os meios de produção, em cuja forma existe todo o capital, abstraindo da parte relativamente pequena deste existente em dinheiro – isso naturalmente é um absurdo. Nisso está contido o absurdo ainda maior de que, sobre a base do modo de produção capitalista, o capital proporcionaria juros sem funcionar como capital produtivo, isto é, sem criar mais-valia, da qual o juro é apenas parte; de que o modo de produção capitalista seguiria o seu curso sem a produção capitalista. Se uma parte indevidamente grande dos capitalistas quisesse transformar o seu capital em capital monetário, a consequência seria uma imensa desvalorização do capital monetário …

 

O prazo do refluxo depende do decurso do processo de reprodução; no caso do capital que rende juros, o seu retorno como capital parece depender do simples acordo entre mutuante e mutuário. De modo que o refluxo do capital, com respeito a essa transacção, já não aparece como resultado determinado pelo processo de produção, mas como se o capital emprestado nunca tivesse perdido a forma de dinheiro. No entanto essas transacções são efectivamente determinadas pelos refluxos reais. Mas isso não aparece na própria transacção. Também nem sempre é o caso na prática. Se o refluxo real não se efectua no tempo devido, o mutuário tem de verificar com que outras fontes conta para cumprir as suas obrigações para com o mutuante …

O empréstimo de dinheiro como capital – a sua entrega sob a condição de ser restituído após certo tempo – tem portanto como pressuposto que o dinheiro seja realmente empregado como capital, que reflua realmente para o ponto de partida. O verdadeiro movimento circulatório do dinheiro como capital é, portanto, o pressuposto da transacção jurídica pela qual o mutuário tem de devolver o dinheiro ao mutuante. Se o mutuário desembolsa o dinheiro como capital é problema dele. O mutuante empresta-o como capital, e como tal tem de exercer as funções de capital, que implicam o ciclo do capital monetário até ao seu refluxo, em forma de dinheiro, para o ponto de partida …

 

Aceleração, por meio do crédito, das distintas fases de circulação ou da metamorfose das mercadorias e também da metamorfose do capital e, com isso, aceleração do processo de reprodução em geral. (Por outro lado, o crédito permite manter por mais tempo separados os actos de compra e de venda, servindo por isso de base para a especulação) …

 

Abstraindo do sistema de acções ... o crédito oferece ao capitalista individual, ou àquele que passa por tal, uma disposição dentro de certos limites absoluta de capital alheio e de propriedade alheia e, em consequência, de trabalho alheio. Disposição sobre capital social, não próprio, dá-lhe disposição sobre trabalho social. O próprio capital, que se possui realmente ou perante a opinião pública, passa a ser apenas a base para a superestrutura do crédito. Isso é válido sobretudo para o comércio grossista, por cujas mãos passa a maior parte do produto social. Todos os padrões de medida, todas as bases explicativas ainda mais ou menos justificadas nos limites do modo de produção capitalista desaparecem aqui. O que o comerciante grossista especulador arrisca é propriedade social, não dele.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

A formação do capital fictício chama-se capitalização

 

A forma do capital que rende juros faz com que cada rendimento monetário determinado e regular apareça como juro de um capital, quer provenha de um capital ou não. Primeiro, o rendimento monetário é convertido em juro e com o juro se acha então o capital de que se origina. Do mesmo modo, com o capital que rende juros cada soma de valor aparece como capital, desde que não seja despendida como rendimento; a saber, como soma principal (principal) em antítese ao juro possível ou real que pode proporcionar.

A coisa é simples: suponhamos que a taxa média de juros seja de 5% ao ano. Uma soma de 500 libras esterlinas, se transformada em capital que rende juros, proporcionaria portanto anualmente 25 libras esterlinas. Considera-se assim qualquer receita fixa anual de 25 libras esterlinas como juro de um capital de 500 libras esterlinas. Isso, entretanto, é e permanece uma ideia puramente ilusória, excepto no caso em que a fonte das 25 libras esterlinas – seja esta um simples título de propriedade ou de crédito, ou um elemento real de produção, como, por exemplo, uma propriedade fundiária – seja directamente transmissível ou assuma uma forma em que se torne transmissível …

 

A formação de capital fictício chama-se capitalização. Cada receita que se repete regularmente é capitalizada calculando-a na base da taxa média de juros, como importância que um capital emprestado a essa taxa de juro proporcionaria; se, por exemplo, a receita anual = 100 libras esterlinas e a taxa de juro = 5%, então as 100 libras esterlinas seriam o juro anual de 2 000 libras esterlinas, e essas 2 000 libras esterlinas são agora consideradas o valor-capital do título jurídico de propriedade sobre as 100 libras esterlinas anuais. Para quem compra esse título de propriedade, a receita anual de 100 libras esterlinas representa então, de facto, os juros do seu capital investido a 5%. Toda a conexão com o processo real de valorização do capital se perde assim até ao último vestígio e consolida-se a concepção do capital como autómato que se valoriza por si mesmo.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

O estado tem de mendigar: o capital fictício da dívida do Estado

 

O sistema de crédito público, isto é, das dívidas do Estado, cujas origens encontramos em Génova e Veneza já na Idade Média, apoderou-se de toda a Europa durante o período manufactureiro. Serviu-lhe de estufa o sistema colonial, com seu comércio marítimo e suas guerras comerciais. Assim, ele consolidou-se primeiramente na Holanda. A dívida do Estado, isto é, a alienação do Estado – seja despótico, constitucional ou republicano – imprime a sua marca sobre a era capitalista. A única parte da chamada riqueza nacional que realmente entra na posse colectiva dos povos modernos é – a sua dívida de Estado. Daí ser totalmente consequente a doutrina moderna de que um povo torna-se tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público torna-se o credo do capital. E com o surgimento do endividamento do Estado, o lugar do pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, é ocupado pela falta de fé na dívida do Estado.

A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acumulação primitiva. Como por um toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de força criadora e transforma-o assim em capital, sem necessidade de se expor ao esforço e ao perigo inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado na realidade não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida facilmente transmissíveis, que continuam a funcionar nas suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro sonante. Porém, abstraindo da classe de rentistas ociosos assim criada e da riqueza improvisada dos financeiros que actuam como intermediários entre o governo e a nação – como também os arrendatários de impostos, comerciantes e fabricantes privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo do Estado rende o serviço de um capital caído do céu – a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por acções, o comércio com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem, numa palavra: o jogo da bolsa e a moderna bancocracia.

Desde o seu nascimento, os grandes bancos, decorados com títulos nacionais, eram apenas sociedades de especuladores privados que se colocavam ao lado dos governos e, graças aos privilégios recebidos, estavam em condições de lhes adiantar dinheiro. Por isso, a acumulação da dívida do Estado não tem medidor mais infalível do que a alta sucessiva das acções desses bancos, cujo pleno desenvolvimento data da fundação do Banco da Inglaterra (l694). O Banco da Inglaterra começou por emprestar o seu dinheiro ao governo a 8%; ao mesmo tempo foi autorizado pelo Parlamento a cunhar dinheiro do mesmo capital, emprestando-o ao público outra vez sob a forma de notas bancárias. Com essas notas, ele podia descontar letras, conceber empréstimos sobre mercadorias e comprar metais nobres. Não demorou muito para que esse dinheiro de crédito, por ele mesmo fabricado, se tornasse a moeda, com a qual o Banco da Inglaterra fazia empréstimos ao Estado e, por conta do Estado, pagava os juros da dívida do Estado. Não bastava que ele desse com uma mão para retomar mais com a outra: ele, enquanto recebia, continuava eterno credor da nação até o último tostão adiantado. Progressivamente, tornou-se o receptáculo inevitável dos tesouros metálicos do país e o centro de gravitação de todo o crédito comercial. Ao mesmo tempo que na Inglaterra se parou de queimar bruxas, começou-se a enforcar falsificadores de notas bancárias. O efeito causado sobre os contemporâneos pelo repentino aparecimento dessa ninhada de bancocratas, financistas, rentiers, corretores, stockjobbers e lobos da bolsa é o que mostram os escritos daquela época, como por exemplo os de Bolingbroke …

Como a dívida do Estado se apoia nas receitas do Estado, que têm de cobrir os juros e demais pagamentos anuais, o moderno sistema tributário tornou-se um complemento necessário do sistema de empréstimos nacionais. Os empréstimos capacitam o governo a enfrentar despesas extraordinárias, sem que o contribuinte o sinta imediatamente, mas exigem como consequência subida de impostos. Por outro lado, o aumento de impostos causado pela acumulação de dívidas contraídas sucessivamente força o governo a tomar sempre novos empréstimos para fazer face a novos gastos extraordinários. O regime fiscal moderno, cujo eixo é constituído pelos impostos sobre os meios de subsistência mais necessários (portanto, encarecendo-os), traz em si mesmo o germe da progressão automática. A supertributação não é um incidente, mas sim um princípio. Na Holanda, onde esse sistema foi primeiramente inaugurado, o grande patriota de Witt celebrou-o por isso em suas máximas como o melhor sistema para manter o trabalhador assalariado submisso, frugal, diligente e (...) sobrecarregado de trabalho. A influência destruidora que exerce sobre a situação dos trabalhadores assalariados, no entanto, interessa-nos aqui menos que a violenta expropriação a ele devida do camponês, do artesão, enfim, de todos os componentes da pequena classe média. Sobre isso não há opiniões divergentes, nem mesmo entre os economistas burgueses. Sua eficácia expropriante é fortalecida ainda pelo sistema protecionista, que constitui uma de suas partes integrantes.

A grande participação da dívida do Estado e do seu correspondente sistema fiscal na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou muitos escritores, como Cobbett, Doubleday e outros a buscar erroneamente aqui a causa básica da miséria dos povos modernos.

O sistema protecionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores independentes, de capitalizar os meios nacionais de produção e de subsistência, de encurtar violentamente a transição do antigo modo de produção para o moderno. Os Estados europeus disputaram furiosamente entre si a patente desse invento, e, uma vez colocados ao serviço dos extractores de mais-valia, não se limitaram para esse fim a saquear o seu próprio povo, indirectamente com tarifas proteccionistas, directamente com prémios de exportação etc. Nos países secundários dependentes, toda a indústria foi violentamente extirpada, como, por exemplo, a manufactura de lã irlandesa pela Inglaterra. No continente europeu, segundo o modelo de Colbert, o processo foi ainda mais simplificado. O capital original do industrial flui aqui, em parte, directamente do tesouro do Estado.

“Por que”, exclama Mirabeau, “ir tão longe buscar a causa do esplendor da manufactura da Saxónia antes da Guerra dos Sete Anos? 180 milhões de dívidas do Estado!” (MIRABEAU. De la Monarchie Prussienne, Londres 1788, t. VI, p. 101)

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

Com o desenvolvimento e acumulação da propriedade burguesa, ou seja, com o desenvolvimento do comércio e da indústria, os indivíduos tornaram-se cada vez mais ricos, enquanto o Estado se tornava cada vez mais pobre. Este facto surgiu já nas primeiras repúblicas mercantis italianas, manifestou-se depois e teve o seu apogeu na Holanda no século passado, onde o especulador Pinto o assinalou já em 1750, e repete-se actualmente em Inglaterra. Assim, logo que a burguesia tenha juntado dinheiro, acontece que o Estado tem de mendigar junto dela e acaba por ser literalmente comprado por ela … Mesmo depois de ter sido assim comprado, o Estado continua ainda necessitado de dinheiro e, por isso, dependente da burguesia, mas pode mesmo assim, se o interesse da burguesia o exigir, dispor sempre de mais meios do que outros Estados menos desenvolvidos e por isso menos endividados. Mas mesmo os Estados menos desenvolvidos da Europa, os da Santa Aliança, caminham inexoravelmente para este destino e serão comprados em leilão pela burguesia.

 

A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846

 

 

O Estado tem de pagar anualmente a seus credores certo quantum de juros pelo capital emprestado. O credor, nesse caso, não pode pedir do devedor o reembolso, mas apenas vender o crédito, ou seja, o seu título de propriedade sobre ele. O próprio capital foi consumido, gasto pelo Estado. Ele já não existe. O que o credor do Estado possui é 1) um título de dívida contra o Estado, digamos de 100 libras esterlinas; 2) esse título de dívida dá-lhe direito sobre as receitas anuais do Estado, isto é, sobre o produto anual dos impostos, em determinado montante, digamos de 5 libras esterlinas ou 5%; 3) ele pode vender esse título de dívida de 100 libras esterlinas quando quiser a outras pessoas. Se a taxa de juro for de 5%, supondo-se ainda a garantia do Estado, o proprietário A pode, em regra, vender o título de dívida por 100 libras esterlinas a B, pois para B é o mesmo emprestar 100 libras esterlinas a 5% ao ano ou assegurar-se mediante o pagamento de 100 libras esterlinas um tributo anual do Estado no montante de 5 libras esterlinas. Mas, em todos esses casos, o capital, do qual o pagamento feito pelo Estado se considera um fruto (juro), permanece capital ilusório, fictício. A soma que foi emprestada ao Estado já não existe de todo. Ela em geral jamais se destinou a ser despendida, investida como capital, e apenas através do seu investimento como capital ela teria podido converter-se num valor que se conserva. Para o credor original A, a parte que lhe cabe dos impostos anuais representa o juro do seu capital, do mesmo modo que para o usurário, a parte que lhe cabe do património do pródigo, embora em ambos os casos a soma emprestada de dinheiro não tenha sido despendida como capital. A possibilidade de vender o título de dívida do Estado representa para A o refluxo possível da soma principal. Quanto a B, do seu ponto de vista particular, o seu capital está investido como capital que rende juros. Realmente, ele apenas apareceu no lugar de A, cujo crédito contra o Estado ele comprou. Por mais que essas transacções se multipliquem, o capital da dívida do Estado permanece puramente fictício, e a partir do momento em que os títulos de dívida se tornam invendáveis, desaparece a aparência desse capital. Não obstante … esse capital fictício tem seu próprio movimento … onde um défice aparece como capital – sendo o capital que rende juros, em geral, a matriz de todas as formas loucas, de modo que, por exemplo, na concepção do banqueiro, as dívidas podem aparecer como mercadorias.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

O título, como se constituísse capital real ao lado do capital: as sociedades por acções e o seu valor de mercado

 

Formação de sociedades por acções. Com isso:

1. Enorme expansão da escala de produção e das empresas, que era impossível para capitais isolados. Ao mesmo tempo tais empresas, que antes eram governamentais, tornam-se sociais.

2. O capital, que em si repousa sobre um modo social de produção e pressupõe uma concentração social de meios de produção e forças de trabalho, recebe aqui directamente a forma de capital social (capital de indivíduos directamente associados) ao contrário do capital privado, e as suas empresas apresentam-se como empresas sociais, ao contrário das empresas privadas …

 

Mesmo onde o título de dívida – o título de valor – não representa um capital puramente ilusório como no caso das dívidas do Estado, o valor de capital desse título é puramente ilusório. Viu-se ... como o sistema de crédito gera capital associado. Os papéis são considerados títulos de propriedade que representam esse capital. As acções de sociedades ferroviárias, mineiras, de navegação etc. representam capital real, a saber, o capital investido e que funciona nessas empresas, ou a soma de dinheiro que é adiantada pelos accionistas para ser despendida em tais empresas como capital. Do que não se exclui de modo nenhum a possibilidade de
que representem mera fraude. Mas esse capital não existe duplamente, uma vez como valor de capital dos títulos de propriedade, das acções, e outra vez como capital realmente investido ou a investir naquelas empresas. Ele existe apenas nesta última forma, e a acção nada mais é que um título de propriedade, pro rata, sobre a mais-valia a realizar por aquele capital. A pode vender esse título a B e B a C. Essas transacções em nada alteram a natureza da coisa. A ou B transformou então seu título em capital, mas C transformou seu capital em mero título de propriedade sobre a mais-valia a ser esperada do capital em acções.

O movimento autónomo do valor desses títulos de propriedade, não apenas dos títulos da dívida do Estado, mas também das acções, confirma a aparência, como se eles constituíssem capital real ao lado do capital ou do direito que eles possivelmente titulam. Eles tornam-se mercadorias cujo preço tem um movimento e uma fixação peculiares. O seu valor de mercado obtém uma determinação diferente do seu valor nominal, sem que o valor (ou a valorização) do capital real se altere. Por um lado, seu valor de mercado flutua com o montante e a segurança dos rendimentos sobre os quais dão título legal. Se o valor nominal de uma acção, isto é, a soma recebida, que a acção originalmente representa, é de 100 libras esterlinas e se a empresa, em vez de 5%, proporciona 10%, o seu valor de mercado, com as demais circunstâncias constantes e com uma taxa de juro de 5%, sobe para 200 libras esterlinas, pois capitalizada a 5% a acção representa um capital fictício de 200 libras esterlinas. Quem a compra por 200 libras esterlinas obtém desse investimento de capital um rendimento de 5%. Ocorre o contrário quando diminui o rendimento da empresa. O valor do mercado desses papéis é em parte especulativo, pois não é determinado apenas pela receita real, mas também pela esperada, calculada por antecipação. Mas, pressuposta a valorização do capital real como constante ou, onde não existe capital como no caso das dívidas do Estado, pressuposto o rendimento anual como fixado legalmente e também antecipado com suficiente segurança, então o preço desses papéis de crédito sobe e desce na razão inversa da taxa de juro. Se a taxa de juro sobe de 5% para 10%, então um título de valor que assegura um rendimento de 5 libras esterlinas representa apenas um capital de 50 libras esterlinas. Se a taxa de juro desce para 2 1/2%, então o mesmo título de valor representa um capital de 200 libras esterlinas. O seu valor sempre é apenas o rendimento capitalizado, isto é, o rendimento calculado sobre um capital ilusório, com base na taxa de juro vigente. Em tempos de aperto no mercado de dinheiro, o preço desses títulos cairá duplamente; primeiro, porque a taxa de juro sobe e, segundo, porque são lançados em massa no mercado, para serem realizados em dinheiro. Essa queda de preço ocorre independentemente da circunstância de o rendimento que esses papéis asseguram ao seu possuidor ser constante, como no caso dos títulos de dívida do Estado, ou de a valorização do capital real por eles representado ser possivelmente atingida pela perturbação do processo de reprodução, como no caso das empresas industriais. Neste último caso, acrescenta-se à desvalorização mencionada ainda uma outra. Passada a tempestade, esses papéis voltam a subir ao nível anterior, à medida que não representem empresas falidas ou fraudulentas. Sua desvalorização na crise actua como meio poderoso para a centralização das fortunas em dinheiro …

Na medida em que a sua desvalorização não exprimia uma paralisação real da produção e do tráfego em ferrovias e canais, ou o abandono de empreendimentos iniciados, ou o desperdício de capital em empresas positivamente sem valor, a nação não empobreceu nem de um centavo pelo estouro dessas bolhas de sabão de capital monetário nominal.

Todos esses papéis representam de facto apenas direitos acumulados, títulos jurídicos sobre produção futura, cujo valor monetário ou valor de capital ou não representa capital nenhum, como no caso da dívida do Estado, ou é regulado independentemente do valor do capital real que representam.

Em todos os países de produção capitalista existe uma massa enorme do chamado capital que rende juros ou moneyed capital nessa forma. E por acumulação do capital monetário em grande parte deve ser entendido apenas a acumulação desses direitos sobre a produção, acumulação do preço de mercado, do valor de capital ilusório desses direitos. Parte do capital bancário é, pois, investida nesses chamados papéis que rendem juros. Ela mesma constitui parte do capital de reserva, que não funciona no negócio bancário real. A parte mais importante consiste em letras de câmbio, isto é, promessas de pagamento de capitalistas industriais ou de comerciantes. Para o mutuante de dinheiro, essas letras de câmbio são papéis que rendem juros: ao comprá-las, ele deduz o juro pelo tempo que falta até ao vencimento. Isso é o que se chama descontar. Depende, pois, da taxa de juro em cada momento a grandeza da dedução da soma que a letra de câmbio representa.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

Todo um sistema de embuste e de fraude

 

Transformação do capitalista realmente funcionante em mero dirigente, administrador de capital alheio, e dos proprietários de capital em meros proprietários, simples capitalistas monetários ...

Esta é a abolição do modo de produção capitalista dentro do próprio modo de produção capitalista e, portanto, uma contradição que se abole a si mesma e que prima facie se apresenta como simples ponto de passagem para uma nova forma de produção. Também na aparência ela se apresenta como tal contradição. Em certas esferas estabelece o monopólio e provoca assim a intervenção do Estado. Reproduz uma nova aristocracia financeira, uma nova espécie de parasitas na figura de fazedores de projetos, fundadores e directores meramente nominais; todo um sistema de embuste e de fraude no tocante à formação de sociedades, emissão de acções e comércio de acções. É produção privada, sem o controlo da propriedade privada ...

O sucesso e o insucesso levam aqui simultaneamente à centralização dos capitais e, portanto, à expropriação na mais alta escala ... Essa expropriação apresenta-se, porém, no interior do próprio sistema capitalista como figura contraditória, como apropriação da propriedade social por poucos; e o crédito dá a esses poucos cada vez mais o carácter de puros aventureiros. Uma vez que a propriedade existe aqui na forma de acção, o seu movimento e transferência tornam-se puro resultado do jogo da bolsa, em que os pequenos peixes são devorados pelos tubarões e as ovelhas pelos lobos da bolsa. No sistema de acções existe já a antítese da antiga forma … mas a transformação na forma da acção permanece ainda presa nos limites capitalistas; e, portanto, em vez de ultrapassar a contradição entre o carácter social da riqueza e a riqueza privada, apenas a desenvolve numa nova configuração ...

 

Quanto maior a facilidade com que se pode obter adiantamentos sobre mercadorias não vendidas, tanto mais esses adiantamentos são tomados e tanto maior a tentação de fabricar mercadorias ou lançar as já fabricadas em mercados distantes, somente para desde logo obter sobre elas adiantamentos em dinheiro. A história do comércio inglês de 1845 a 1847 dá um exemplo contundente de como todo o mundo dos negócios de um país pode ser tomado por tal embuste e como isso acaba …

No fim de 1842, começou a ceder a pressão que desde 1837 pesava quase ininterruptamente sobre a indústria inglesa. Nos dois anos seguintes aumentou ainda mais a procura externa de produtos industriais ingleses … O novo mercado ofereceu novo pretexto para a expansão, que já estava em plena marcha … Com a mesma paixão com que se aumentava a produção construiam-se ferrovias; aqui a sede de especulação dos fabricantes e comerciantes encontrou pela primeira vez satisfação, e isso desde o verão de 1844. Subscreviam-se acções, tantas quantas fosse possível, isto é, até onde chegasse o dinheiro para os primeiros pagamentos; quanto ao resto, depois se veria! Quando vieram os demais pagamentos … tomou-se necessário recorrer ao crédito e, na maioria dos casos, também o verdadeiro negócio da firma teve de ser sangrado.

E esse verdadeiro negócio, em regra, também já estava sobrecarregado. Os atraentes lucros altos tinham levado a operações bem mais extensas do que as justificadas pelos recursos líquidos disponíveis. Mas o crédito estava aí, fácil de obter e ainda por cima barato … Todos os valores internos na bolsa estavam tão altos como nunca antes. Porque deixar passar a bela oportunidade, por que não velejar a todo o pano? …

O período de prosperidade … esteve ligado … à primeira grande fraude ferroviária. Quanto ao efeito dela sobre os negócios em geral … :

Em Abril de 1847, quase todas as casas comerciais tinham começado mais ou menos a matar à fome os seus negócios (to starve their business), ao investir parte do seu capital comercial em ferrovias … Também foram tomados empréstimos a juros altos, de 8%, por exemplo, sobre acções ferroviárias, por particulares, banqueiros e companhias de seguros … Esses adiantamentos tão grandes dessas casas comerciais às ferrovias levaram-nas a tomar capital demais aos bancos, mediante desconto de letras de câmbio, para com ele continuar o seu próprio negócio ...”

Em 1848 … o Sr. Lister, director do Union Bank of Liverpool, declarou entre outras coisas:

”Houve … uma expansão indevida do crédito ... porque homens de negócios transferiram o seu capital do próprio negócio para as ferrovias e, ainda assim, quiseram continuar o seu negócio na mesma extensão que antes. No início, cada um deles pensou provavelmente que pudesse vender as acções ferroviárias com lucro e assim repor o dinheiro no negócio. Talvez tenha verificado que isso não era possível e assim tomou crédito no seu negócio onde antes pagava à vista. Daí surgiu uma expansão de crédito” ...

Quanto maior o prazo de vencimento das letras de câmbio, tanto maior tem de ser o capital de reserva, e tanto maior é a possibilidade de uma diminuição ou retardamento do refluxo, por queda de preço ou saturação dos mercados. E, além disso, os retornos serão tanto mais inseguros quanto mais a transacção originária tiver sido condicionada pela especulação sobre alta ou baixa dos preços das mercadorias. É claro, entretanto, que com o desenvolvimento da força produtiva do trabalho e, por conseguinte, da produção em grande escala, 1) os mercados se expandem e se afastam do local de produção, 2) por isso, os créditos têm de prolongar-se e, portanto, 3) o elemento especulativo deve dominar cada vez mais as transacções. A produção em grande escala e para mercados distantes lança o produto global nas mãos do comércio; mas é impossível que o capital da nação se duplique, de modo que o comércio fosse em si capaz de comprar e revender, com capital próprio, todo o produto nacional. O crédito é aqui portanto indispensável; crédito que cresce em volume, ao crescer o montante de valor da produção, e em duração, com o distanciamento cada vez maior dos mercados. Ocorre aqui um efeito recíproco. O desenvolvimento do processo de produção amplia o crédito, e o crédito leva à expansão das operações industriais e mercantis.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

 

O negócio vai sempre bem, até que de repente ocorre o colapso

 

Mas agora a esse crédito comercial soma-se o crédito monetário propriamente dito. Os adiantamentos dos industriais e comerciantes entre si combinam-se com os adiantamentos de dinheiro que lhes são feitos pelos banqueiros e mutuantes de dinheiro. No desconto das letras de câmbio o adiantamento é apenas nominal. Um fabricante vende o seu produto contra uma letra e desconta essa letra num bill-broker. Na realidade, este adianta apenas o crédito do seu banqueiro, que por sua vez lhe adianta o capital monetário dos seus depositantes, constituídos pelos próprios industriais e comerciantes, mas também por trabalhadores (por meio de caixas económicas), pelos que usufruem de rendas fundiárias e demais classes improdutivas. Assim, para cada fabricante ou comerciante individual, contorna-se tanto a necessidade de um forte capital de reserva como a dependência dos refluxos reais. Por outro lado, porém, em parte devido à simples emissão de letras de favor, em parte devido a negócios de mercadorias realizados somente com a finalidade de fabricar letras, todo o processo se complica tanto que a aparência de negócios sólidos e refluxos rápidos pode subsistir tranquilamente depois de os refluxos, na realidade, já há muito serem feitos à custa em parte de mutuantes defraudados, em parte de produtores defraudados. Por isso, os negócios parecem quase exageradamente sadios justamente antes da crise. A melhor prova disso fornecem, por exemplo, os Reports on Bank Acts de 1857 e 1858, em que todos os directores de bancos, comerciantes, em suma, todos os peritos convocados, com Lorde Overstone à frente deles, se felicitavam mutuamente pelo florescimento e saúde dos negócios – exactamente um mês antes de rebentar a crise de Agosto de 1857. E curiosamente Tooke, em sua History of Prices, passa outra vez por essa ilusão, como historiador, a cada crise. O negócio vai sempre bem e a campanha em pleno progresso, até que de repente ocorre o colapso.

 

Enquanto a escala de produção permanece a mesma, a expansão leva apenas à abundância do capital monetário emprestável em face do capital produtivo. Daí baixa taxa de juros.

Se o processo de reprodução alcançou novamente a fase de prosperidade que precede a de activação excessiva, então o crédito comercial alcança uma extensão muito grande, que de facto volta a ter como base sadia refluxos obtidos com facilidade e produção ampliada. Nessa situação, a taxa de juro ainda continua baixa, mesmo que suba acima do mínimo. Na realidade, este é o único momento em que se pode dizer que taxa de juro baixa e, por isso, abundância relativa de capital emprestável coincide com expansão real do capital industrial. A facilidade e a regularidade dos refluxos combinadas com um crédito comercial extenso asseguram a oferta de capital de empréstimo, apesar do aumento da procura, e impedem que o nível da taxa de juro suba. Por outro lado, só agora entram em cena, em grau perceptível, os cavalheiros que trabalham sem capital de reserva ou mesmo sem capital de todo e por isso operam totalmente na base do crédito monetário. Acresce agora também a grande expansão do capital fixo em todas as formas e a abertura em massa de novas empresas de grande amplitude. O juro sobe agora ao seu nível médio. Volta a alcançar o nível máximo logo que a nova crise rebenta, o crédito cessa subitamente, os pagamentos interrompem-se, o processo de reprodução é paralisado e, com as excepções anteriormente mencionadas, surge, ao lado da carência quase absoluta de capital de empréstimo, abundância de capital industrial desocupado.

No conjunto, o movimento do capital de empréstimo, como ele se exprime na taxa de juro, decorre em direção oposta à do capital industrial. A fase em que a taxa de juro baixa, mas é superior ao nível mínimo, coincide com a melhoria e a confiança crescentes a seguir à crise, e especialmente a fase em que ela alcança seu nível médio, o meio equidistante do mínimo e do máximo, só esses dois momentos expressam a coincidência entre capital de empréstimo abundante e grande expansão do capital industrial. Mas, no começo do ciclo industrial, a taxa de juro baixa coincide com a contracção do capital industrial, e, no fim do ciclo, a taxa de juro alta coincide com a superabundância de capital industrial …

Esse ciclo industrial é de tal natureza que o mesmo ciclo, uma vez dado o primeiro impulso, tem de reproduzir-se periodicamente. Na situação de afrouxamento, a produção cai abaixo do nível que atingira no ciclo anterior e para o qual se criou agora a base técnica. Na prosperidade – no período médio – ela continua a desenvolver-se sobre essa base. No período de superprodução e de fraude, ela activa as forças produtivas ao máximo, até ultrapassar os limites capitalistas do processo de produção.

Que no período de crise faltem meios de pagamento é evidente por si mesmo … Mas nenhuma espécie de legislação bancária pode eliminar a crise.

Num sistema de produção em que toda a conexão do processo de reprodução assenta sobre o crédito, quando o crédito subitamente cessa e passa apenas a valer pagamento em espécie, tem de sobrevir evidentemente uma crise, uma corrida violenta aos meios de pagamento. À primeira vista, toda a crise se apresenta portanto apenas como crise de crédito e crise monetária. E de facto trata-se apenas da convertibilidade das letras em dinheiro. Mas essas letras representam na sua maioria compras e vendas reais cuja extensão ultrapassa de longe as necessidades sociais e está, em última instância, na base de toda a crise. Além disso, no entanto, uma enorme quantidade dessas letras representa negócios meramente fraudulentos que agora vêm à luz do dia e estouram; além de especulações feitas com capital alheio, mas fracassadas; e, finalmente, capitais-mercadorias desvalorizados, ou até invendáveis, ou refluxos que jamais podem entrar. Todo esse sistema artificial de expansão forçada do processo de reprodução não pode naturalmente ser curado pelo facto de um banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra, dar a todos os caloteiros, em papel seu, o capital que lhes falta, e comprar todas as mercadorias desvalorizadas aos seus antigos valores nominais. De resto, tudo aparece aqui invertido, pois nesse mundo de papel o preço real e os seus momentos reais nunca aparecem …

Com relação à importação e à exportação cabe observar que todos os países, um após o outro, são envolvidos na crise, revelando-se então que todos eles, com poucas excepções, exportaram e importaram demais, que, portanto, a balança de pagamentos se tornou desfavorável para todos e que, de facto, o problema não está na balança de pagamentos … O que num país aparece como excesso de importação, aparece no outro como excesso de exportação e vice-versa. Mas houve importação excessiva e exportação excessiva em todos os países … isto é, superprodução, promovida pelo crédito e pela inflação geral dos preços que a acompanha …

A balança de pagamentos, em tempos de crise geral, é desfavorável a todas as nações, pelo menos a todas as nações comercialmente desenvolvidas, mas sempre a uma após a outra, como num fogo de fila, logo que chega a sua vez de pagar; e a crise, uma vez rebentada, por exemplo, na Inglaterra, comprime a série desses prazos num período muito curto. Revela-se então que todas essas nações, ao mesmo tempo, exportaram excessivamente (portanto, superproduziram) e importaram excessivamente (portanto, supercomerciaram), que em todas os preços foram inflacionados e o crédito foi ampliado em demasia. E em todas sucede o mesmo colapso. O fenómeno da drenagem de ouro alcança então a todas sucessivamente e demonstra, justamente pela sua generalidade, 1) que a drenagem de ouro é mero fenómeno da crise, e não sua causa; 2) que a sequência em que ela sucede nas diversas nações apenas indica quando na série chegou sua vez de ajustar contas com o céu …

Se o sistema de crédito aparece como a alavanca principal da superprodução e da super-especulação no comércio é só porque o processo de reprodução, que é elástico por natureza, é forçado aqui até aos limites extremos, e é forçado precisamente porque grande parte do capital social é aplicada por não-proprietários do mesmo, que procedem por isso de maneira bem diversa do proprietário, que avalia receosamente os limites do seu capital privado enquanto este funciona como tal. Com isso ressalta apenas que a valorização do capital, fundada no carácter contraditório da produção capitalista, permite o desenvolvimento real, livre, somente até certo ponto, portanto constitui na realidade um entrave e um limite imanentes à produção, que são incessantemente rompidos pelo sistema de crédito. O sistema de crédito acelera, portanto, o desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial … Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises e, com isso, os elementos da dissolução do velho modo de produção.

 

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894

 

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/