11. DA GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL

 

AO AMOQUE NUCLEAR?

(Cap. 11 do Livro A GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL, Robert Kurz, Janeiro 2003)

 

 

A “vitória” dos EUA e da polícia mundial democrática no Afeganistão foi na realidade um fracasso. Osama Bin Laden, nem vê-lo, e mesmo que fosse encontrado ou a sua morte fosse comprovada, a Al-Qaeda continuaria, numa medida não inferior à do passado, um fantasma impossível de agarrar. Mesmo o fenómeno aparentemente mais fácil de circunscrever dos talibãs perdeu-se no reino do imperscrutável; os líderes mais importantes desapareceram (se é que foram de todo assim tão importantes), e os prisioneiros de Guantánamo não passam de figuras de segunda ordem ou, o que é ainda mais embaraçoso, revelaram ser filhos de camponeses ou de refugiados totalmente ignorantes, obrigados a servir os talibãs.

Mesmo com a ajuda do regime Karzai, na prática limitado a Cabul, os EUA não podem esperar exercer nem sequer uma aparência de controlo sobre a situação pouco transparente nas extensíssimas regiões de alta montanha; de resto, o mesmo se aplica também ao Paquistão, cujo governo também não exerce qualquer controlo sobre os pachtuns nas vastas e inacessíveis regiões fronteiriças. Em boa verdade, o resultado global da expedição ao Afeganistão é frustrante, e de modo algum pode passar por desagravo pelos golpes que a Al-Qaeda infligiu aos EUA. De modo semelhantemente frustrante evolui, no seu todo, a pomposamente anunciada “guerra contra o terrorismo”. Na medida em que houve sequer resultados, estes podem antes de mais ser designados como lastimosos. Algumas detenções, na sua maioria de espécie duvidosa, tão-pouco podem fazer-se passar por “vitória” sobre a rede-fantasma, como o congelamento de algumas contas bancárias e actividades afins, que denotam antes de mais o desamparo. É um facto que os EUA se arrogaram o direito de proceder em qualquer Estado, sem o acordo ou mesmo o conhecimento do respectivo governo, a operações militares ou policiais; mas agora revela-se cada vez mais claramente que nem sabem o que devem fazer ao certo, nem contra quem. Que os serviços secretos da última potência mundial, onde poucos dominam alguma língua estrangeira e cujo presidente nem sequer sabe pronunciar correctamente os nomes dos seus inimigos e dos respectivos países, trabalham de uma forma tudo menos eficaz e fiável, é coisa que já provaram até à exaustão no passado.

Mas não são apenas factores superficiais deste tipo que fazem supor que a “guerra contra o terrorismo” está a cair em saco roto. Antes é a própria natureza desta inimizade que ameaça tornar o empreendimento improcedente; trata-se precisamente da incompatibilidade dos adversários que não combatem no mesmo plano. Por muito assustador que possa ser um rinoceronte indiano, não é capaz de lutar contra os seus próprios vírus intestinais e “ganhar”. O problema é e continua a ser que tanto o aparelho militar, como a política de estado de emergência global dos EUA e de todo o “capitalismo global ideal” se refere ao sistema territorial da soberania que começa a dissolver-se diante dos olhos e com a involuntária cumplicidade dos aparelhos capitalistas democráticos.

 

 

O regresso ao paradigma dos "estados vilões"

 

O dilema do estado de excepção global e dos seus actores já se agudiza quase de mês a mês: por um lado, o imperialismo da segurança e da e exclusão da democracia mundial assumiu ele próprio, com a sua definição culturalista do inimigo como “o islão” e com a postulada “guerra contra o terrorismo”, um paradigma pós-soberano, pós-territorial e pós-político; não o fez voluntariamente, mas sob a pressão da crise mundial e dos acontecimentos que a acompanham. Por outro lado, porém, o seu horizonte mental, o seu alinhamento institucional e sobretudo também os seus utensílios de poder estão completamente limitados ao mundo de soberania, territorialidade e política.

Uma orientação contrária, que tivesse em devida conta o real processo de decomposição deste sistema de referência, apenas poderia acelerar este processo. Mais ainda: os aparelhos imperiais teriam de trair e quase que abandonar a sua própria natureza para conseguirem fazer frente ao inimigo na realidade e chegar a aproximar-se dele o suficiente; no entanto, tal apenas significaria que não só teriam de deixar de ser quem são, mas que também teriam de prescindir dos seus utensílios de poder apenas aparentemente superiores (a saber, num plano diferente). Além disso, nesse caso já nem sequer poderiam dar seguimento à sua intenção fulcral, que é a de defenderem de “perturbações” a ordem mundial capitalista existente, antes teriam de participar na sua decomposição; ainda mais do que já o fazem involuntariamente.

Como o seu objectivo é apenas não tolerar qualquer outra ordem no planeta, e, por outro lado, os fantasmas da crise deste sistema que combatem também não trazem em si o germe de uma outra ordem, não passando de produtos da sua própria barbarização, toda a “guerra” gravita, no fundo, em torno do facto de o sistema que domina o planeta não ser capaz de viver nem de morrer. Já não consegue viver porque a sua substância global de fim-em-si do trabalho abstracto está objectivamente em decadência. E não chega a morrer porque a forma desta substância, a agora esvaziada forma de sujeito da modernidade, que já não se consegue “externalizar” suficientemente no processo real de valorização, não desaparece de moto próprio, mas apenas pode ser ultrapassada conscientemente; e porque os indivíduos e as instituições se negam a fazer este esforço, visto quererem continuar a mover-se como fantasmas dentro da forma dessubstanciada. Deste modo, todas as opções apenas podem conduzir ao absurdo.

Por isso, mantém-se o impulso para a regressão anacrónica, mesmo que as referências imediatas à época das guerras mundiais vão empalidecendo. Mas “o mal”, os maus da fita de serviço que têm de ser apanhados, têm de ser de algum modo reinseridos no velho esquema político estatal, para ainda se conseguir imaginar um espaço operacional acessível.

A nova regressão dos EUA da “guerra” contra Bin Laden, a Al-Qaeda e o terrorismo a um ataque ao Iraque e ao seu ditador Saddam Hussein deve ser vista neste contexto. Depois do 11 de Setembro, pareceu inicialmente que o paradigma dos estados vilões estava a ser abandonado. Em muitos comentários, até se falava na possibilidade de alguns dos que até aí tinham sido considerados estados vilões serem levados a participar nesta nova campanha contra o terror; neste contexto era referido sobretudo o antigo inimigo islamista principal, o Irão. Parece também ter havido sinais da parte do Irão, do Iraque e de outros estados muçulmanos de estarem disponíveis para prestar alguma cooperação nesse sentido. Esta possível opção pode ser facilmente explicada pelo facto de, independentemente da respectiva orientação ideológica, pelo menos formalmente ainda se tratar de estruturas estatais modernas, que só podem estar interessadas em salvaguardar a soberania e têm de ser hostis a potências pós-soberanas do tipo da Al-Qaeda.

Mas os EUA acabaram por não poder adoptar esta opção. O fáctico desastre da campanha contra Bin Laden e a Al-Qaeda, a falta de notícias de sucessos espectaculares, a situação totalmente confusa no Afeganistão e, de resto, em todas as regiões globais em crise e desmoronamento, os novos atentados terroristas entretanto ocorridos e o problema da intransparência geral das paisagens do terror e da barbarização global quase que impuseram uma “fuga para a frente”, que consiste pura e simplesmente na regressão ao paradigma aparentemente transparente dos “estados vilões”. O imperialismo global democrático e especialmente o governo da última potência mundial necessitam desesperadamente de um grande êxito espectacular na guerra de ordenamento mundial para poderem demonstrar que ainda “são eles quem manda”. No entanto, esta demonstração de força e vontade de domínio do mundo apenas é possível no plano anacrónico da guerra territorial à moda de Clausewitz, onde afinal sabem ser imbatíveis.

Evidentemente, o Iraque oferece-se para “servir de exemplo” na medida em que aqui a definição do inimigo já vem sendo construída desde a guerra do Golfo do início dos anos 90, de modo que esse processo já não tem de ser iniciado. No seguimento seriam possíveis outros ataques preventivos contra os países referidos pelo presidente Bush júnior como pertencentes a um tal “eixo do mal”, ou seja, contra o Irão, talvez a Coreia do Norte, possivelmente alguns países africanos (a Somália voltou a integrar o círculo restrito dos candidatos), ou seja, uma série de intervenções que se prolongaria por um longo período de tempo, em que o desrespeito pelo direito internacional iniciado na guerra contra a Jugoslávia residual se tornaria um hábito, e o mundo poderia ser preparado para “danos colaterais” que podem ir até ao extermínio de grupos populacionais inteiros; isto com o objectivo de conseguir um acobardamento global, de incrementar a obediência geral na comunidade dos Estados em decomposição e de provar a si próprios uma capacidade de intervenção em nada diminuída, ou seja, de dar um tratamento de compensação triunfalista às frustrações vividas desde o 11 de Setembro.

As tentativas de legitimação de um ataque ao Iraque são as menos credíveis de todas as guerras de ordenamento mundial até à data. Que o regime de Saddam Hussein, exangue economicamente e quanto aos seus potenciais militares, constitua um “perigo para o mundo” é uma afirmação descabelada e duplamente inverdadeira.

Pois, em primeiro lugar, a suposição do desenvolvimento de armas químicas ou biológicas aplica-se a grande parte da comunidade dos Estados; e os próprios EUA não são os últimos a recusarem qualquer controlo neste sentido, a cancelarem acordos internacionais a seu bel-prazer e a não se incomodarem com projectos neste sentido dos seus próprios amigos ditadores. Em segundo lugar, todas as opções e projectos da ditadura de Saddam Hussein estão de tal modo reduzidos pelo embargo, pelas zonas de exclusão de voo, pelos bombardeamentos constantes, pelos controlos dos inspectores de armamentos conduzidos ao longo de anos e pela destruição de sistemas de armamentos e de compostos de combate (apesar da sabotagem por parte do regime), que há muito o aparelho militar iraquiano deixou de ter qualquer capacidade de empreender uma operação estratégica séria dirigida para o exterior.

Já antes, esta potência militar de segunda ou terceira classe tinha poucas capacidades neste sentido, visto que a breve ocupação do emirado do Kuwait, quase inexistente em termos militares, não pode ser considerada uma acção desse tipo; e, nos anos 80, na guerra contra o regime dos mulás iranianos, equipado de modo ainda muito mais rudimentar, o exército de Saddam tinha falhado em toda a linha, apesar do generoso apoio ocidental. Que agora os escombros deste exército possam invadir os vizinhos árabes, ou mesmo Israel, e até constituir uma “ameaça para o mundo”, é simplesmente ridículo. Até os antigos inspectores de armamentos, que nunca fizeram segredo de estarem ao serviço do governo dos EUA, recusaram energicamente esta afirmação do governo Bush.

A única coisa que ainda restaria a Saddam no caso de um ataque da maquinaria militar dos EUA seria uma derradeira acção de desespero; provavelmente um ataque contra Israel com alguns mísseis e compostos de combate restantes que poderia causar alguns danos (e, o que seria suficientemente mau, causar a morte ou ferimentos a um considerável número de pessoas), mas sem capacidade de desferir um golpe estratégico. No caso de um ataque a Bagdade com tropas terrestres, porém, com a intenção de eliminar fisicamente ou de prender Saddam e a sua camarilha, os EUA teriam de contar com baixas substanciais, especialmente na eventualidade de um feroz combate casa a casa. É de recear que os EUA, para minimizarem as suas próprias baixas, poderiam em tal caso preparar a invasão da megalópole por um bombardeamento cerrado, aceitando como consequência a morte de massas da população civil e a criação de caóticos fluxos de refugiados. Que o imperialismo global da polícia mundial democrática está em princípio predisposto para o assassínio de massas é algo que já provou com os “danos colaterais” das guerras de ordenamento mundial até aqui ocorridas.

Mas também existe a eventualidade de que não haja qualquer resistência séria. Pode ser que o decrépito exército iraquiano entre em colapso de imediato e capitule ou se dissolva simplesmente. Depois de os EUA já terem encorajado abertamente ao assassínio do presidente iraquiano, também este resultado não é improvável. De qualquer modo, uma parte considerável do aparelho iraquiano não vai tardar a oferecer os seus serviços à potência mundial à primeira vista infinitamente superior. Apenas seria perigosa e impossível de ganhar uma guerra de guerrilha sistemática contra o contingente de ocupação dos EUA; mas ninguém a vai conduzir, pelo menos não em nome do regime de Saddam. É absolutamente improvável que exista alguma facção no Iraque que tenha vontade de arriscar a vida por esta corrupta e bárbara ditadura baseada nos clãs.

No plano da guerra à moda de Clausewitz, portanto, é de esperar, se não um passeio militar, mesmo assim uma decisão relativamente rápida que poderá levar no máximo semanas a alcançar. Como potência territorial e soberana, apoiada num exército clássico, o regime de Saddam não tem a mínima hipótese. E, neste sentido, ainda há outras guerras deste tipo que possam ser “ganhas” sem qualquer problema. Afinal foi por isso que a administração Bush reduziu as iniciativas estratégicas ao plano dos “estados vilões” fáceis de vencer, para poder apresentar êxitos superficiais.

Mas é precisamente neste aspecto que se revela toda a irracionalidade deste modo de proceder. Quanto mais Estados ou territórios pós-estatais os EUA cilindram, mais precária se torna a sua situação como última potência mundial. Quando a massa das populações mortas ou afugentadas apresentar uma desproporção cada vez mais crassa relativamente aos resultados alcançáveis, e mesmo aos objectivos ainda passíveis de serem formulados politicamente, a legitimação moral dos EUA vai entrar em colapso no plano mundial, mesmo que a matilha dos média democráticos uive com o poder. A prazo é inegável: os EUA e a NATO acabam por ser incapazes de pacificar estes territórios e as suas massas populacionais, e tanto mais incapazes quantos mais estes forem.

Já no Iraque torna-se extremamente difícil construir mesmo apenas uma criatura do tipo de um Djindjic ou Karzai. A dita oposição iraquiana, que agora é apaparicada a muito custo pelo governo dos EUA, contrariamente ao que acontece, por exemplo, na Sérvia ou no Afeganistão, pelo menos no Iraque central não consiste em forças internas relevantes, mas apenas em obscuros grupos de exilados sem qualquer base no próprio país, e metade dos quais traz, de resto, outra vez o adjectivo de mau agoiro “islâmico” no seu nome. Se daí sair alguma coisa, será a próxima fornada de monstros.

No Iraque, provavelmente nem sequer poderia ser posta em cena a farsa de uma “democratização” ou coisa que o valesse. Não existe qualquer concepção coerente para a constituição de um governo depois da “guerra”. A divisão em “zoos étnicos” sob o controlo dos EUA, propalada em 1996 pelo MIT, ou seja, o estabelecimento, já hoje indirectamente preparado pelo estabelecimento de zonas de exclusão de voo, de uma região curda autónoma, ou mesmo de um Estado curdo independente no Norte, de uma região dominada por clãs xiitas no Sul, e de um Iraque residual governado por alguma das figuras que actualmente se encontram no exílio, teria por consequência última uma nova zona de insegurança totalmente instável e fustigada por guerras permanentes. Já existem esforços do Irão no sentido de cerrar fileiras com os xiitas do Sul; e já está claro que a estratégia do MIT constitui uma afronta crassa ao regime torturador preferido do Ocidente, que é a estrategicamente importante Turquia, cujo governo já assinalou que “em circunstância alguma” irá aceitar a criação de um “Curdistão” de algum modo autónomo no Norte do Iraque. E é extremamente improvável que um regime do Iraque central, seja de que género for, aceite ceder aos curdos a região petrolífera em torno de Kirkuk, hoje ainda controlada por Saddam.

Foi a compreensão da inevitabilidade de tais processos subsequentes de desestabilização ulterior e guerras secundárias infindáveis, de consequências arrasadoras para toda a já de si explosiva região do Médio Oriente, que fez com que o governo do presidente Bush sénior, no início dos anos 90, não passasse ao ataque da própria cidade de Bagdade depois de ter corrido Saddam do Kuwait. Parecia demasiado grande o perigo de os EUA se verem envolvidos numa infindável intervenção permanente com efeitos de escalada. O facto de a camarilha de falcões em torno do presidente Bush júnior agora ignorar estas reflexões e querer passar à “fuga para a frente” a qualquer preço deixa claro em que medida as contradições da concepção do ordenamento mundial democrático e a irracionalidade do poder capitalista amadureceram, na década de guerras de ordenamento mundial que se seguiu ao fim de uma época.

 

 

A crise dos mercados financeiros e o “sonho do Oleodorado”

 

No entanto, a força propulsora de uma irracional “fuga para a frente” não é apenas a frustração na “guerra contra o terrorismo”, mas ainda mais o avançar da crise económica no próprio Ocidente. A economia vudu do capitalismo das bolhas financeiras dos anos 90 está em colapso e apenas um milagre ainda a poderia salvar. O total desastre da new economy e a rápida queda dos mercados financeiros em curso desde a Primavera do ano 2000 repercute-se com algum desfasamento na economia real. O centro desta crise encontra-se nos EUA, cuja economia das bolhas financeiras tinha puxado toda a economia mundial nos anos 90, com excedentes de importações fantásticos. O inevitável fim desta aérea era de prosperidade do “capital fictício” ameaça não só arrastar a economia completamente sobre-endividada dos EUA para o precipício e despoletar uma crise mundial de dimensão insuspeitada, mas também, numa perspectiva mais ampla, pôr em causa a capacidade de financiamento da máquina militar dos EUA e acarretar o fim da hegemonia mundial.

A queda protelada da última potência mundial chegou assim à esfera do agudamente possível. Como era de esperar, são as próprias contradições internas da forma capitalista amadurecida em sistema mundial que precipitam esta derrocada. Para os representantes do “imperialismo global ideal” democrático e seus ideólogos, esta relação não é compreensível, precisamente porque lhes faltam todos os instrumentos conceptuais para tal. Mas é o instinto de poder que fareja o perigo, e são os fenómenos empíricos que sinalizam uma ameaça iminente. O optimismo económico profissional das entidades oficiais virou miserável e cabisbaixo, enquanto a decomposição do sistema político vai progredindo e os êxitos retumbantes na “luta” contra os fantasmas da crise teimam em não aparecer. A “fuga para a frente” em grandes intervenções militares preventivas recebe, assim, um ímpeto adicional da ameaça da crise económica mundial: tem de aparecer um “milagre”, a qualquer preço.

Em termos superficiais, este milagre teria evidentemente de consistir em de algum modo reverter o rebentar das bolhas financeiras e obrigar o aumento do valor fictício sobretudo das cotações em bolsa a regressar ao movimento ascendente aparentemente imparável e permanente dos anos 90, de onde possam alimentar-se novamente e de forma secundária investimentos e consumo sem uma base real. Uma tal reversão improvável do processo de crise do capitalismo financeiro parece possível se tomarmos por base a conhecida ideologia da economia política contemporânea de que a economia supostamente é feita “a 90 por cento de psicologia” e não de processos objectivados. Por muito insustentável que esta ideia seja em princípio, é igualmente verdade que precisamente o carácter de sismógrafo da bolsa se exprime através das reacções subjectivas dos “participantes do mercado”; e, pelo menos no curto prazo, o “momento psicológico” pode, por isso, levar a agulha do instrumento de medição a dar uma leitura em contraciclo com o processo objectivo. O cálculo neste sentido consistiria em que as bolsas, após uma superficial vitória à moda de Clausewitz contra o Iraque de Saddam, poderiam fazer saltar as rolhas das garrafas de espumante e, assim, dar o tiro de partida para um novo boom das bolhas financeiras.

Evidentemente, também o governo dos EUA, os adivinhos económicos e toda a peritocracia sabem bem que a euforia da vitória após um ataque preventivo bem sucedido (se ocorrer mesmo) só por si não poderia sustentar um boom bolsista por um período prolongado. Já na passada era das bolhas financeiras, esta proeza apenas era possível devido ao facto de a cada passo serem proclamados novos suportes intra-económicos ou tecnológicos para uma “onda longa” de acumulação real vindoura, que deviam justificar o boom bolsista como mera antecipação de uma era subsequente de crescimento da economia real em vários planos. Quer fosse a esperança de um novo capitalismo “terciário” dos serviços ditos pessoais, a de um ímpeto secular através da capitalização e comercialização da Internet ou a de uma era pós-fordista de investimento e consumo da indústria de telecomunicações veiculada pelo UMTS, etc.: qualquer destas opções revelou-se um fiasco. Este tipo de prognóstico aparente com o fim de acelerar a constituição de bolhas de capital tornou-se um modelo em fim de linha. No entanto, aquilo que já não funcionou como renovação interna, passível de acumulação, de uma expansão capitalista (a “destruição criativa” na gíria da economia empresarial de Schumpeter) é o que agora se pretende pôr em marcha sob a forma de um impulso de valorização do capital apenas exterior, induzido pela guerra e pela devastação militar puramente destrutiva.

Não se trata de um programa de relançamento económico sustentável a longo prazo e baseado no rearmamento, pois, numa extensão necessária para que assim seja, este nem poderia ser financiado devido à dívida acumulada, nem seria minimamente necessário tecnicamente e mediante a mobilização social de todos os recursos; para tal, o regime de Saddam Hussein é um peixe demasiado miúdo. No entanto, não está tão-pouco em causa uma conjuntura de reconstrução, pois ninguém vai pagar a reparação dos estragos causados no Iraque, e evidentemente não haverá no Ocidente quaisquer estragos de guerra de relevância económica; mesmo os efeitos dos maiores atentados terroristas situam-se mais no plano do simbólico em termos psicológicos e evidentemente não podem ser comparados com a destruição causada pela II Guerra Mundial no sentido da conjuntura de uma reconstrução eventualmente subsequente (que, de resto, sozinha teria sido de longe fraca demais para parir um “milagre económico”; para tal foi necessária a expansão interna do capital sob a forma das novas indústrias fordistas).

O que está em causa relativamente ao aspecto económico e da política de crise da “fuga para a frente” rumo a uma nova “guerra” contra o Iraque é, de facto, um cálculo referido à base energética do petróleo. Nos EUA, o debate sobre o assunto é feito perfeitamente às claras, ao passo que na Europa até à data apenas um determinado discurso de política energética se ocupou deste aspecto. Ao mesmo tempo, o interesse central é por demais óbvio: “O presidente não tem quaisquer interesses do foro da economia empresarial. Quer assegurar o fluxo constante do ouro negro – e isto tornando acessíveis novas fontes de abastecimento e enfraquecendo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)” (Krönig/Vorholz 2002).

O que está em causa não são, portanto, interesses imperiais nacionais dos EUA, mas uma redução drástica do preço do crude e a sua abundância em ordens de grandeza superiores. Para os EUA, este cálculo reveste-se tanto de um interesse estratégico de longo prazo como de um interesse de curto prazo no âmbito da política de crise, e assim não foi por acaso que o Iraque passou ao primeiro plano: “Libertado de amarras políticas e com uma infra-estrutura petrolífera renovada, o Iraque [...] já em cinco anos poderia tornar-se um major player no mercado do petróleo. Esta visão fascina os estrategas energéticos em Washington. É um facto que os Estados Unidos da América extraíram, desde o início da era do petróleo, mais petróleo do que qualquer outra nação. E continuam a ser o segundo maior produtor de petróleo à escala mundial. Mas as reservas domésticas de petróleo estão a esgotar-se, ao passo que a sede de petróleo dos americanos continua a crescer. O efeito desta situação é que os EUA se tornam cada vez mais dependentes de petróleo importado. De acordo com uma comissão de peritos do ministério do comércio dos EUA, tal configura ‘uma ameaça à segurança nacional’. A produção petrolífera dos EUA já está a decrescer desde 1970. Com o volume actualmente extraído a manter-se, as reservas estarão esgotadas em menos de 11 anos. Ainda menores são as perspectivas do petróleo do Mar do Norte. E as esperanças acalentadas nos anos 90 de uma bonança petrolífera quase infinita na região junto do Mar Cáspio entretanto também demonstraram ser exageradas. O potencial de hidrocarbonetos no Cazaquistão, no Azerbaijão, no Turquemenistão e nas regiões russas e iranianas limítrofes do Mar Cáspio comparar-se-ia afinal mais ao do Mar do Norte do que ao do Médio Oriente, segundo reza uma análise do ministério da energia dos EUA [...] Segundo espera Washington, um Iraque libertado não se subordinará necessariamente ao sistema de quotas de produção da OPEP [...] Um Iraque libertado [...] poderia tornar-se um verdadeiro Oleodorado [...] Todos os peritos entram em devaneio ao falarem do potencial do Iraque. As condições de produção são consideradas ideais. Em lado nenhum é mais barato bombear o petróleo da terra. Os custos de produção não chegam a perfazer um dólar por barril; tirar a mesma quantidade do permafrost da Sibéria ou do Mar do Norte custa 14 a 18 dólares. De acordo com estimativas conservadoras, no solo iraquiano jazem cerca de 15 por cento das reservas mundiais...” (Krönig/Vorholz, ibidem).

Com base nestes dados é fácil de adivinhar o contexto em que se insere a mobilização da máquina militar dos EUA contra o Iraque. Trata-se de uma dupla investida da política de crise: por um lado, no plano da própria guerra de ordenamento mundial e, por outro, no plano do iminente colapso da economia mundial com a economia dos EUA ao centro: “’Dois coelhos com uma cajadada’ é como o perito em questões do Médio Oriente e colunista do New York Times, Thomas L. Friedman, define a sua visão: poderíamos libertar-nos de um perigoso ditador e, ao mesmo tempo, destruir o cartel da OPEP, responsável pela constante alta dos preços do petróleo (!) se um novo governo moderado do Iraque modernizasse as instalações de extracção de petróleo, as levasse rapidamente a produzir ao máximo das suas capacidades e assim ajudasse a reduzir os preços da energia no mundo inteiro. Esta opinião é partilhada pelo perito energético dos EUA Philip Verleger, que agora constata: ‘Um ataque ao Iraque comporta riscos económicos se não for bem sucedido. Mas se for conseguida uma rápida transição do poder sem grandes complicações, tal conduzirá a um longo período de preços reduzidos do petróleo (!) e a um impulso para a economia mundial (!)” (Diederichs 2002).

É claro como água: o ataque ao Iraque é idealizado como um duplo “golpe de libertação”, como o “milagre” possível, destinado tanto a compensar as frustrações da “guerra contra o terrorismo” como (e sobretudo) a suster a derrocada dos mercados financeiros e, por arrastamento, da economia global real. Também entra nesta opção, embora apenas de forma secundária, o cálculo estratégico de longo prazo de responder à redução da produção própria de petróleo nos EUA e à crescente dependência da produção de petróleo do Médio Oriente por uma atempada intervenção musculada para evitar a “ameaça à segurança nacional” por parte do desperdício energético desenfreado e da cultura de combustão que, como é sabido, é especialmente desmedida nos EUA. Mas, em termos primários, trata-se do problema mais candente, a saber, a actual “salvação” do capitalismo das bolhas financeiras dos EUA, da respectiva conjuntura e, por conseguinte, da economia mundial.

Depois de as concepções tecnológicas internas (Internet, UMTS, etc.) terem falhado como projecções para um insuflamento ulterior do capitalismo financeiro simulativo, agora uma “era do petróleo barato” induzida externamente com meios militares deve fazer as vezes de uma nova projecção para recuperar o boom bolsista e, depois dos anos 90, fazer também da primeira década do século XXI uma era de jobless growth [crescimento sem emprego]. Certamente também os ideólogos da inteligência democrática assassina que apostam nesta opção sabem ou intuem que a energia barata por si só não é capaz de inaugurar uma nova época de acumulação real, mas que para tal seria necessária uma verdadeira era fundadora, com capacidade de uma reabsorção maciça de força de trabalho no processo de valorização, enquanto a geração fundadora da new economy fracasou miseravelmente, e por motivos que não deixam de ser objectivos.

Mas afinal a almejada “era do petróleo barato”, que se promete construir sobre os cadáveres de “danos colaterais” humanos maciços, apenas deve servir de máquina dos desejos projectivos de uma nova capitalização das bolsas para brindar o capitalismo dos accionistas, vazio de substância, e as suas elites perversas com mais uns anitos, até que (segundo a imaginação inconsciente ou meio consciente) se invente uma nova patranha e deste modo se possa continuar, segundo pensam, ad aeternum com o capitalismo das bolhas financeiras sobre o fundo de um mundo real de miséria em decadência.

O facto de que algo não está bem em todo este cálculo, que este acaba por equivaler a um jogo de azar e poderá acelerar o colapso em vez de o impedir, é uma ideia que é recalcada por todos os meios. No que diz respeito às alterações que podem ser esperadas na zona de crise do Médio Oriente, esta concepção, que no fundo já nem merece tal designação, precisamente porque se assemelha antes a uma cega “fuga para a frente”, já apenas pode recorrer a quimeras auto-sugestivas.

É mais uma vez à ideologia culturalista pós-moderna e da economia institucional, com a sua inversão de causas e efeitos, que se recorre para pintar do espaço árabe e islâmico uma imagem de “paisagens florescentes”[1] como consequência supostamente expectável do ataque dos EUA ao Iraque: “Para Philip Verleger [...] pouco admira que países como a Arábia Saudita, o Kuwait, ou o Irão tenham um interesse eminente em que Saddam Hussein continue em funções. Afinal a alta dos preços energéticos garante aquelas receitas que são necessárias à continuidade dos seus regimes autocráticos, à opressão de oposicionistas e à manutenção do luxuoso estilo de vida das elites políticas. Por isso, o perito do mundo árabe Fareed Zakaria já pensa mais longe: ‘Uma invasão do Iraque bem executada seria o melhor meio de finalmente trazer todo o mundo árabe para o caminho das reformas’. Na opinião de Zakaria, uma região que é caracterizada sobretudo pelo falhanço gritante dos seus governantes, pelo fundamentalismo daí (!) resultante e por uma propensão para tendências terroristas precisa urgentemente de uma ‘história de sucesso’. Na opinião de Zakaria, um Iraque reformado com uma liderança moderada que aceite a modernidade e a democracia poderia, por isso, tornar-se um exemplo para o mundo árabe e impor mudanças, precisamente em países que até à data se destacam sobretudo pela opressão e destituição de direitos dos seus cidadãos. Zakaria e outros peritos não temem que uma intervenção no Iraque possa ‘incendiar a região’, tal como muito se refere na Europa” (Diederichs 2002).

Por um lado, estamos aqui perante a habitual percepção ocidental dos fenómenos de crise, que põe os factos de pernas para o ar, na medida em que reinterpreta o falhanço objectivo do mercado e do sistema como um “falhanço dos governantes” meramente subjectivo, e não deduz a “propensão para tendências terroristas” do colapso da integração no mercado mundial mas, de forma inversa, deduz este colapso económico daquela “propensão” (definida de maneira culturalista). Por outro lado, porém, as reflexões da peritocracia dos EUA da categoria de um Verleger ou Zakaria, com o seu quase incrível desfasamento da realidade, excedem de longe a medida habitual da ignorância ocidental. Pois evidentemente uma “era do petróleo barato” imposta pelas armas teria como consequência última o preciso oposto da “história de sucesso” que idealizam, acompanhada de “lideranças moderadas” com base na “modernidade e democracia”; isto sem referir que aqui de qualquer modo apenas se trata de chavões ideológicos sem conteúdo.

É pura e simplesmente absurda a ideia de que “a alta dos preços energéticos” teria conduzido a regimes autocráticos, ao passo que precisamente “preços reduzidos do petróleo” teriam por consequência a paz, a democracia e a alegria geral no Médio Oriente. Evidentemente, a destruição da OPEP e a redução imposta do preço do petróleo a um “nível de salvação” do capitalismo mundial significaria a ruína completa de todo o Médio Oriente. Já com os preços do petróleo relativamente elevados por intervenção da OPEP, uma estabilização, por muito precária que seja, das massas no nível de pobreza apenas se consegue com a ajuda de ditaduras e monarquias de tortura pró-ocidentais. Se, no seguimento da ocupação do Iraque, os EUA impuserem um preço do petróleo ao nível reduzido do período anterior à OPEP, aos regimes autocráticos até à data por eles apaniguados substituir-se-á o colapso económico e estatal completo da totalidade da região petrolífera central, tal como acontece em grandes partes de África, da Ásia Central, da Indonésia ou da Jugoslávia, e por aí adiante.

O resultado apenas poderia ser um desastre completo do imperialismo da segurança, precisamente nesta região estrategicamente mais importante do mundo. O ódio já acumulado e por demais justificado contra o Ocidente explodiria por completo nesta nova grande região em colapso. A esses sombrios regimes não iriam substituir-se democracias bem comportadas, mas estados anómicos avançados e uma guerrilha de ódio pan-árabe contra as instalações de extracção e as vias de transporte do “petróleo barato”. Os EUA teriam de inaugurar o estado de emergência qualitativamente novo de uma ditadura militar directa e de um sangrento regime de ocupação para toda a região petrolífera, um empreendimento impossível de aguentar. Devido aos custos do imperialismo da segurança, o suposto “petróleo barato” tornar-se-ia rapidamente mais caro que o extraído no permafrost da Sibéria.

Torna-se, portanto, evidente que o contexto justificativo da anunciada intervenção no Iraque tem, na realidade, por consequência última um recrudescimento do processo global de crise, a aceleração da desestabilização e da anomização, uma degradação ainda mais violenta dos mercados financeiros e da economia mundial. Neste processo, a própria racionalidade capitalista do interesse entra em colapso. Não são interesses imperiais nacionais que entram em choque no espaço do Mar Cáspio para, perante o pano de fundo de uma “valorização eterna do capital”, demarcarem os seus quinhões de um novo Eldorado energético. Pelo contrário, estamos perante a tentativa desesperada dos EUA de, em nome do “imperialismo global ideal” ou, se tiver de ser, por sua conta e risco, na velha região petrolífera que, na realidade é a única que se reveste de uma relevância real, abrirem, através do estado de emergência de uma ditadura militar descarada dos EUA imposta à totalidade desse espaço estratégico, uma última opção “milagrosa” e “de salvação” para impedirem o seu próprio afundamento. A racionalidade interna do cálculo dos interesses particulares é definitivamente suplantada pela irracionalidade do contexto sistémico sobrejacente; a racionalidade e a irracionalidade do capitalismo começam a coincidir imediatamente.

 

 

A pulsão de morte nuclear do poder

 

Já os anos 90, “década louca” do capitalismo global das bolhas financeiras, foram acompanhados pelos excessos de anomização, economia de saque, barbárie violenta, atentados suicidas, amoques e pelas guerras de ordenamento mundial democráticas ou expedições punitivas rumo à periferia. Desde o colapso da new economy e o início da crise do capitalismo financeiro, estes fenómenos de uma violência irracional e autodestrutiva ampliaram-se e aceleraram enormemente.

Os atentados do 11 de Setembro fizeram parte de uma série ininterrupta de manifestações da pulsão de morte capitalista que indiciam o colapso da forma do sujeito moderna à escala mundial; e isto não só ao modo específico da “sede de morte” islamista, mas numa onda que vai muito além de um cansaço da vida agressivo até ao extremo, e que entretanto já se descarrega quase numa cadência semanal em actos herostráticos de um extermínio e auto-extermínio encenado. Quer se trate desse estudante finlandês de 19 anos que se fez explodir juntamente com um centro comercial popular, ou desse veterano da guerra do Golfo que, nos arredores de Washington, se empenhou como “atirador de elite” a matar mais de uma dúzia de pessoas de forma indiscriminada com a sua mira telescópica, ou a feri-las com gravidade: estes acontecimentos multiplicam-se inflacionariamente e, através dos média, inundam a consciência de uma humanidade desgastada pelos desaforos do capitalismo e que não pára de ser humilhada.

Neste clima, que é cada vez mais atiçado pela ignorância desavergonhada da inteligência funcional reduzida do capitalismo e da sua representação democrática, são possíveis escaladas ulteriores de uma violência suicida cega; até ataques terroristas com meios químicos e biológicos, ou mesmo ogivas nucleares, como a imprensa democrática tem imaginado desde o 11 de Setembro, movida pelo pressentimento e pelo medo, mas sem se deixar perturbar minimamente por qualquer compreensão do contexto condicionante. Nas imensas extensões da antiga e fracturada União Soviética existem armas nucleares tácticas “perdidas” suficientes para algum dia poderem cair nas mãos de “mártires” enamorados com a morte; e a “bomba islâmica” já espreita no Paquistão, país totalmente decrépito e dilacerado por contradições, cujo aparelho de administração de violência, oficialmente pró-ocidental, já há muito que está infestado pela loucura religiosa,

Até à data ainda podia parecer que a pulsão de morte manifesta da razão capitalista se expressa unicamente nas formas de asselvajamento ideológico da periferia e nas ideias desvairadas de um massa crescente de indivíduos desorientados do centro, ou seja, nos actos de comandos suicidas e de atiradores tresloucados. A representação democrática oficial, pelo contrário, parecia defender a “normalidade” funcional capitalista; com efeito, uma normalidade de fim-em-si intrinsecamente louca e a braços com os seus próprios fantasmas de crise, mas ainda não no mesmo degrau de anomia e de manifestação da pulsão de morte. Ainda assim, foi e continua a ser a mesmíssima forma de sujeito capitalista da concorrência universal, comum a ambos os lados, que se manifesta nas guerras de ordenamento mundial e nas erupções de violência; de uma forma deslimitada, anomizada, depravada e abertamente paranóica, por um lado, e em moldes oficiais (ainda) formalmente vinculados, agarrados à racionalidade interna.

Mas esta diferenciação vai sendo sucessivamente terraplanada. Do lado oficial, a irracionalidade de tudo isto esteve presente desde o início não só de uma forma sistémica e indirecta, mas igualmente de forma imediata, nas resoluções pela violência intentadas e no real recurso a armas de destruição maciça de alta tecnologia. Já hoje, o imperialismo global democrático tem mais vidas humanas a pesarem-lhe na consciência do que todos os senhores da guerra, guerreiros de Deus, neonazis, assim como perpetradores de atentados suicidas e de amoques juntos. Que a ideologia que o acompanha ultrapassou o limite da paranóia sobressai sobejamente de uma argumentação como a de Ulrich K. Preuss. A rápida progressão da anomização por parte do poder oficial nas guerras de ordenamento mundial aponta no mesmo sentido, tal como os momentos ideológicos de um fundamentalismo religioso cristão presente na administração Bush.

Na realidade, a sociedade central do capitalismo, que é a dos EUA, está carregada de emoções apocalípticas primitivas como nenhuma outra. Nisso reflecte-se o carácter vulgar da política imperial global e o pressentimento do seu final desastroso que, no entanto, não é imaginado como o inevitável fim da hegemonia dos EUA enquanto última potência mundial, mas como o descalabro do planeta Terra numa “religiosa” terceira guerra mundial; visão esta que já exerce os seus efeitos sobre as massas à escala da cultura pop: “Os dois fundamentalistas cristãos Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins, um dos quais já foi padre e o outro, um colaborador próximo do evangelista Billy Graham, cumprem uma missão: O seu ciclo ‘Left Behind’, uma saga dos ‘Últimos Dias da Terra’ em dez volumes, tem um sucesso louco junto dos leitores nos EUA. Títulos como ‘Final’ ou ‘A Visitação’ mantêm-se no topo da lista dos mais vendidos do New York Times ao longo de meses. Uma série de romances feitos de parangonas desastrosas, retratos de um final dos tempos, que são pintados a negro com uma estranha satisfação. Gritos e escandaleira, dentes a bater e olhos a revirar-se, faz-se ouvir o som da última trombeta. E, com esta receita, os autores que se fizeram a si próprios dotados, LaHaye e Jenkins, conseguem algo de que outros apenas conseguem sonhar: serem lidos como se fosse uma questão de vida e morte. O que se passa aí para que pessoas civilizadas devorem, numa espécie de frenesim do final dos tempos, estas pilhagens da apocalipse de S. João? [...] Enquanto os bons e os maus se disputam, o mundo vai-se afundando como quem não quer a coisa. É um processo bastante grosseiro, o de despoletar a terceira guerra mundial para criar algum suspense [...] Na sua obra incendiária, os autores levaram até aos limites um clima de instabilidade existencial e histeria latente. Com a sua fusão de uma ficção diletante com uma teologia insidiosa acertam, com uma pontaria extraordinária, no ponto sensível, no calcanhar de Aquiles dos nossos dias, sejam os últimos ou não. Com recurso a um meio de comunicação social, prosseguem com o projecto dos grandes movimentos do despertar americano do início do século XIX: um milhão de almas para Cristo. Sem dúvida, os autores entendem-se sobretudo como missionários, como agentes ao serviço do senhor [...] Para o próximo volume, encaixaram, nos EUA, o maior adiantamento que alguma vez foi desembolsado por um livro [...]” (Gogos 2002).

A ligação entre esta “variante low cost do apocalipse”, a política do governo dos EUA e a lógica interna da relação de capital é mais estreita do que pode parecer à primeira vista. Afinal não se trata apenas de um clima na cultura dos EUA, desde sempre especialmente vulnerável ao fundamentalismo protestante. O “Senhor”, em cujo nome a ficção científica de despertar apocalíptico se mobiliza, apenas representa uma cifra para a metafísica real secularizada do capitalismo, em cujo centro se encontra o vazio metafísico da forma do valor: a forma referida a si própria sem qualquer conteúdo, a forma de fim-em-si do movimento de valorização de capital monetário, que apenas se “aliena” nas coisas in-diferentes do mundo para – de acordo com a tal formulação de Hegel – voltar a si própria numa quantidade paradoxalmente alargada desse “nada”, de uma riqueza abstracta puramente numérica. É esta a auto-referência dessa “validade sem significado”, desse “princípio vazio”, que apenas anda a assombrar a história intelectual moderna por ser o paradoxal princípio de realidade da modernidade produtora de mercadorias.

O ponto decisivo neste contexto é o problema do movimento de “externalização”, a que aqui ainda temos de voltar. A contaminação com matéria física qualitativa, com relações sociais, etc., que em princípio já causa horror à ética de Kant que se confunde por inteiro com a abstracção vazia, é “infelizmente” necessária para que o capital (a abstracção do valor) possa estar neste e ser deste mundo; mas, de acordo com esta lógica, apenas é aceitável na medida em que serve de mero suporte ao processo de valorização e o regresso da abstracção vazia a si mesma permanece garantido (fazer de um dólar, euro, etc., dois, numa progressão infinita). Referências e necessidades materiais como relações sociais são, portanto, apenas toleradas na medida em que forem capazes de representar o estado de agregação “incarnado” “no mundo” e, nesta medida, do ponto de vista do vazio metafísico, constituírem de certo modo um mal necessário.

Mas se o processo de valorização deparar com limites, se o movimento de “externalização” metafísico-real já não for conseguido e no mundo real já não puder ser representado nenhum estado de agregação regular do capital, os objectos físicos e sociais reais apresentam-se como um meio circundante incómodo, e mesmo hostil, para esta metafísica real. Não é o fim-em-si vazio do capital, mas o mundo que deve desaparecer, dissolvendo-se definitivamente no “princípio vazio”. Por outras palavras: a mesma lógica que se manifesta no plano de perpetradores individuais de amoques, no âmbito micro, também espreita no plano macro da relação global. O capitalismo não é só um programa para a destruição sorrateira do mundo devido aos seus efeitos colaterais, mas está encaminhado para uma destruição e auto-destruição final pelas suas próprias instituições.

A vontade destrutiva sem sujeito no centro vazio da relação de capital, que se traduz em vários planos na acção destrutiva de sujeitos individuais e institucionais, já no passado se descarregou periodicamente nas catástrofes sociais e mundiais induzidas pelo capitalismo. Como, na terceira revolução industrial, a “externalização” da abstracção do valor no mundo real embate definitivamente com os seus limites internos, o programa de destruição do mundo é necessariamente accionado de um modo igualmente final.

Numa primeira etapa, que chegou ao fim com o colapso da new economy e com o mega-terror do 11 de Setembro, este desenvolvimento ainda se apresentava num movimento duplo, não uniforme e aparentemente em contraciclo. Por um lado, a abstracção do valor encurtou o seu movimento autista de fim-em-si à auto-referencialidade imediata (já não “externalizada” no mundo real) do capital monetário, sob a forma do capitalismo global das bolhas financeiras. Deste modo, simulou-se no centro, pela reciclagem do “capital fictício” em consumo e investimentos, um processo de valorização ulterior e uma daí derivada reprodução real da sociedade, mesmo que também já associado a restrições sociais cada vez mais brutais. Por outro lado, a pulsão de morte já se manifestava, nas regiões em colapso da periferia, de imediato e em grande escala como concorrência violenta, barbarização, “reductio ad insanitatem”, etc. Nas sociedades do centro democrático, a mesma tendência parecia limitar-se a indivíduos “passados”, a perpetradores de amoques, a uma rapaziada racista assassina, etc.

Numa segunda etapa, esta diferenciação começa agora a dissolver-se e o movimento de crise desemboca numa manifestação universal e imediata da pulsão de morte capitalista. Tal como a racionalidade interna e a irracionalidade sistémica coincidem imediatamente, assim também coincidem a auto-afirmação e a auto-destruição; mas agora no plano da própria representação democrática, e já não apenas nos seus fantasmas de crise. O próprio poder em vigor transforma-se no “perpetrador do amoque global ideal”.

Na medida em que o capitalismo das bolhas financeiras se desmorona e a produção real já não pode ser simulada secundariamente como sendo capitalista, a lógica capitalista tem de se dirigir directamente contra o mundo físico e social. E nessa mesma medida também a representação democrática é envolvida na anomização e nas formulações pós-políticas dos conflitos. Deste modo, a pulsão de morte traduz-se nas acções do próprio poder oficial, que se torna o maior e mais terrível de todos os fantasmas de crise. Os estragos que os perpetradores individuais de amoques podem causar são limitados pela sua própria natureza; e mesmo os processos de barbarização da periferia apenas conseguem mobilizar potenciais destrutivos relativamente primitivos, precisamente porque não se encontram à altura do desenvolvimento tecnológico. Agora, porém, o próprio poder democrático, armado até aos dentes, começa a render-se ao feitiço da pulsão de morte, e as consequências são arrasadoras a condizer.

É uma raiva destrutiva difusa, que não deixa de ser aparentada com a dos nazis (se bem que não idêntica), que começa a germinar no íntimo do poder democrático: se o mundo não pode ser dominado por nós, que se afunde connosco. Na sua amplitude, o amoque democrático destrói um sector da reprodução social após outro: deve ser “desactivado” e desaparecer tudo o que já não puder ser abrangido pela lógica do economismo real universal. Nesta medida, poderia falar-se metaforicamente de um amoque do “vazio” princípio de realidade capitalista. Mas aqui não se trata de modo nenhum de uma mera metáfora para processos secundários de destruição social. O conceito de amoque democrático agora bem pode ser levado à letra, no plano da acção militar.

Esta transformação da polícia mundial imperial democrática na loucura destrutiva assumida caracteriza-se por dois momentos essenciais: um é político e o outro, tecnológico-militar. Em termos políticos trata-se da inclinação crescente da administração dos EUA para acções unilaterais que quebram abertamente todas as regras, mesmo com relação aos seus “aliados”. Esta tendência está na natureza da coisa: quando mais a situação mundial se tornar insustentável e perigosa, mais o aspecto militar toma a dianteira e menor se torna o constrangimento em recorrer à violência de alta tecnologia em grande escala, sem sequer fazer grandes perguntas. Mas, na mesma medida em que vão saltando os fusíveis, a acção foca-se necessariamente na última potência mundial, que controla mais de 90 por cento da máquina militar ocidental.

Por isso, nos EUA, com o agravamento da crise também tem de crescer a inclinação para passar ao ataque com todos os meios da violência de alta tecnologia, precisamente por saberem estar nos comandos dessa violência e de outro modo porventura não tardarem a já não ter nada na mão. E, perante o limite interno objectivo, com causas sistémicas e por isso intransponível, do modo de produção e de vida capitalista, esta consciência do poder da violência começa a ser tomada por uma raiva destrutiva contra o mundo desobediente e contra o carácter elusivo dos problemas. Por outras palavras: no plano da psique administrativa da potência mundial replica-se precisamente o que acontece na psique dos perpetradores individuais de amoques.

O facto de o resto do mundo capitalista e democrático hesitar cada vez mais em acompanhar os EUA e preferir armar-se em mosca morta, por mais desenfreada que se torne a predisposição paranóica para a violência da administração dos EUA, deve-se precisamente à desigualdade da distribuição das armas. Se Schröder e Chirac não querem apoiar a agressão ao Iraque, se a UE em geral, mas também outros Estados tentam travar as acções unilaterais dos EUA e se abstêm da loucura destrutiva assumida, tal não tem nada a ver com os seus próprios interesses em termos de estratégia de poder, como preferem imaginar os incorrigíveis pensadores “geopolíticos”. Antes trata-se única e exclusivamente do desconforto daqueles que não são os que têm o dedo no gatilho.

Não é um resto de racionalidade que aqui se faz sentir, mas sim a paralisia dos subalternos, aos quais o “grande irmão” que parece estar a perder o auto-controlo começa a meter tanto medo como os insanáveis fenómenos de crise que levaram a esta situação. A astúcia da impotência não se transforma em astúcia da razão, porque nenhum dos lados compreende a problemática. Todos querem apenas fazer o que já não é possível, ou seja, continuarem a desenrascar-se no binómio da democracia e da economia de mercado; e, por isso, todos acabam por ter de aceitar e de algum modo apoiar a ultima ratio da irracionalidade capitalista. A pulsão de morte do capitalismo manifesta-se como um amoque do polícia mundial, que ameaça assumir dimensões capazes de destruir o planeta.

Esta nova qualidade da violência imperial também tem um lado tecnológico. Na era da guerra fria, o “equilíbrio do terror” entre as superpotências tinha evitado o conflito nuclear, que tinha sido declinado em todos os seus aspectos nas fobias e imaginações, da ficção científica até ao movimento pela paz. Depois do fim de uma época, neste aspecto parecia chegada a hora de levantar o alarme. Se os esperados “dividendos da paz” teimaram em não aparecer, ainda assim, o pesadelo da aniquilação nuclear parecia pertencer ao passado. Mas, com a agudização da crise, também este pesadelo regressa. De repente, o recurso às armas nucleares tornou-se mais possível que nunca. E isto não se aplica, em primeira linha, às novas potências nucleares, mutuamente hostis e abaladas por crises internas, que são a Índia e o Paquistão, por muito agudo que ali seja o perigo da escalada nuclear. A maior ameaça parte, isso sim, dos EUA que, sob a impressão da crise, entretanto deixaram claro que estão dispostos a recorrer unilateralmente às armas nucleares, mesmo contra potências não nucleares.

A última potência mundial prepara-se com toda a seriedade para trazer à razão o mundo, que está a ficar fora de controlo, com recurso a explosões nucleares: “No relatório secreto para a análise da estratégia nuclear, que o Pentágono entregou ao Congresso em Janeiro, refere-se expressamente a Líbia, a Síria, o Iraque e o Irão como alvos potenciais de armas nucleares americanas [...] O relatório, do qual o Los Angeles Times [...] publicou pormenores explosivos, também causou indignação noutras regiões do mundo. Pois o documento reunia numa ampla reorientação da estratégia nuclear americana o que até à data era conhecido no máximo como iniciativas isoladas de militares e políticos americanos. A nova ‘Nuclear Posture Review’ (NPR) faz temer que os EUA, após o fim da guerra fria, estão a adaptar a composição e os âmbitos de aplicação do seu arsenal nuclear ao objectivo de cimentarem a sua posição como única superpotência que resta [...] (O) NPR prevê para as forças de combate nuclear da superpotência três opções futuras de entrada em acção: em resposta a um ataque com armas de destruição maciça – nucleares ou mesmo biológicas ou químicas, contra ‘alvos capazes de resistir a ataques com armas não nucleares’, ou ‘no caso de desenvolvimentos militares surpreendentes’ [...] Já o primeiro ponto alarga o cerne da doutrina americana de dissuasão em vigor até à data e inclui pela primeira vez explicitamente uma resposta nuclear a ataques com armas biológicas ou químicas. As duas opções subsequentes contêm uma péssima nova estratégica: A superpotência, já hoje a contar com uma superioridade militar maior que a de qualquer Estado na história mundial, quer de futuro recorrer às armas nucleares como a quaisquer outras armas [...] A guerra nuclear finalmente deve tornar-se passível de ser conduzida [...] O facto de que depois da guerra fria o perigo de uma guerra nuclear não desapareceu, mas – uma vez que esta está a ser preparada nos seus aspectos concretos – até está a aumentar, não foi apenas comprovado pela revisão da estratégia nuclear americana que agora se tornou conhecida. A seriedade com que são encaradas estas novas opções já ressaltou das declarações que o ministro da defesa Donald Rumsfeld fez aquando da guerra aérea contra o Afeganistão. O chefe do Pentágono tinha anunciado que os EUA haveriam de perseguir os seus inimigos com recurso a todos os meios, ‘os EUA nunca excluíram a utilização de armas nucleares’. Uma vez que a NPR agora prevê expressamente que ‘operações de ataque nuclear de dimensão, extensão e opções variáveis’ devem ‘complementar as outras capacidades militares’, por exemplo Paul Rogers, cientista militar na universidade britânica de Bradford, teme que os EUA possam estar decididos a um ‘ataque nuclear preventivo’. Avisa: ‘Mesmo que os EUA apenas recorram a uma arma nuclear de fraca potência, tal significaria franquear um limiar – nesse caso, o génio terá saído da garrafa’ [...]” (Beste et al. 2002).

Tudo indica que o planeamento militar da administração dos EUA já deixou atrás de si a fronteira da paranóia. O Dr. Strangelove manda saudades [...] Entretanto pretende-se, com o conceito das “mini-bombas nucleares”, fazer passar por coisa de somenos a utilização de armas nucleares e aproximá-la do formato desses supostos “golpes de precisão cirúrgica” que, já no plano dos armamentos convencionais, se têm revelado o preciso oposto, ou seja, cega destruição em larga escala e assassínio em massa. Pelos vistos, os perpetradores de amoques nucleares no Pentágono não têm consciência de estarem em vésperas de por em marcha um programa de extermínio que rebenta com todas as proporções.

Uma utilização “limitada” de armas nucleares não pode existir, como todos os teóricos militares que possam ser levados a sério constataram há muito tempo, como é por exemplo o caso do historiador militar Martin v. Creveld: “No entanto, a verdade é esta: as armas nucleares são ferramentas do assassínio de massas. Contra elas não há defesa. Servem unicamente para uma chacina cega que superaria tudo o que existiu na história e que, com a maior das probabilidades, significaria o fim da história. Armas nucleares simplesmente não podem ser utilizadas para a condução de uma guerra que mereça essa designação, nem que seja de forma aproximada. Entre os apocalípticos efeitos colaterais das armas nucleares e a miserável tentativa de as ‘aproveitar’ para fins que tenham algum sentido abre-se um precipício profundo e insondável [...]” (van Creveld 1998/1991, p. 30).

O mero facto de “golpes preventivos” nucleares contra um regime carcomido como o do Iraque, contra “presumíveis esconderijos terroristas” na alta montanha afegã, e porventura contra outros “Estados vilões” ou contextos terroristas elusivos, não serem apenas equacionados, como são planeados de forma concreta, demonstra claramente o grau de embrutecimento da última potência mundial. A única resposta aos processos de crise impossíveis de resolver no âmbito da ordem vigente e ao cariz literalmente intangível e inconcebível das forças destrutivas interiores à sociedade mundial é o recurso a potenciais de destruição exterior cada vez maiores cujo ponto final lógico pode apenas ser a utilização de armas nucleares contra os fantasmas da crise.

Já no passado, os EUA provaram, com as bombas nucleares lançadas sobre Hiroxima e Nagasaki, que não se detêm perante esta consequência do extermínio em massa destituído de qualquer sentido: “Um ponto alto da violência foi alcançado em 1945, quando duas bombas nucleares foram lançadas sobre o Japão, matando 150.000 pessoas, ignorando o facto de na altura já estarem em curso negociações de paz em Moscovo.” (van Creveld, ibidem, p. 82). Na realidade, este acto não foi legitimado como legítima defesa, nem teve nenhuma influência decisiva sobre o resultado da guerra, sendo apenas expressão de uma vontade de vingança e extermínio (também alimentada pelo racismo), ou seja, um crime de guerra. Por pouco que este crime possa ser equiparado a Auschwitz, porque não passou de um fenómeno pontual e não teve por objectivo a extinção definitiva de um “princípio oposto” personificado de forma colectiva, este acto de destruição bárbara não deixou de se manifestar igualmente abstracto e como fim-em-si (sem qualquer sentido estratégico ou de algum modo utilitário).

Se os EUA já foram capazes de uma tal vontade de destruir enquanto potência mundial capitalista ascendente, ou no final de uma guerra já ganha, a real predisposição para um ataque nuclear preventivo apontado ao vazio, que só pode ser um assassínio de massas e nada de diferente, deve ser levado tanto mais a sério quanto surge nos limites do modo de produção capitalista e, assim, das capacidades de uma potência mundial moderna. Enquanto a matilha mediática democrática ainda imagina com calafrios a possibilidade de um ataque nuclear terrorista, que, por muito horrível que seja, apenas pode ser levado a cabo de uma forma pontual por comandos suicidas, a última potência mundial de “democracia e economia de mercado”, que age à escala planetária e está armada até aos dentes com ogivas nucleares, já equaciona a guerra nuclear como modo de proceder sistemático relativamente a todas as regiões mundiais mal-comportadas.

O conjunto de motivos, que aqui se adensa em paranóia, não se situa no plano de uma ideologia de crise universal, como é representada de forma central pelo anti-semitismo, embora haja ligações nesse sentido (por exemplo sob a forma da clientela anti-semita na orla direita do partido Republicano). O anti-semitismo constitui uma última reserva do sistema em termos de ideologias de crise, na medida em que oferece à consciência das massas uma explicação irracional para a irracionalidade da própria relação de capital que se manifesta na crise, e assim capta energia oposicionista para a desviar para o fantasma da “conspiração mundial judaica”. Nesta forma, a pulsão da morte capitalista pode manifestar-se como o fez na Alemanha: como um anti-semitismo eliminatório, como vontade de extermínio dirigida contra os judeus, que foi acompanhada pelo auto-extermínio. Para poder avolumar-se até à tentativa do extermínio do mundo, o anti-semitismo teve de se tornar a doutrina de Estado de uma potência do centro capitalista. A racionalidade interna do capital, a vontade de valorizar o capital monetário como única forma de reprodução pensável e o cálculo a ela associado continuaram a existir como se nada fosse, mas inseridas de forma secundária na transversal ideologia de crise do anti-semitismo, tornada violência imediata e poder constituinte.

De certo modo, as coisas passam-se precisamente ao contrário no cada vez mais evidente programa de destruição nuclear mundial da administração dos EUA. Aqui, a manifestação da pulsão de morte não toma o desvio pela ideologia de crise, mas nasce de forma imediata do próprio cálculo da racionalidade interna que, deste modo, exprime a sua própria irracionalidade de modo igualmente imediato. Ou, dito por outras palavras: a racionalidade sistémica e a sua irracionalidade coincidem de forma imediata. A vontade da racionalidade interna de valorizar o capital e nada de outro, já de si a doutrina de Estado dos EUA, enlouquece consigo própria; manifesta-se como desejo de extermínio que se dirige contra os elusivos “factores de perturbação” e contra a massa de milhares de milhões de “supérfluos”, que tem de acabar por também ir dar em autodestruição. A ideologia de crise anti-semita como última reserva relativamente à consciência das massas e como catalisador de impulsos racistas de exclusão mantém-se como dantes, mas agora integrada por seu lado na racionalidade interna do princípio da valorização, que ele próprio se converteu em violência paranóica imediata.

É a forma do sujeito capitalista idêntica a si própria que apenas se expressa de formas diversas em condições históricas diferentes, até chegar à manifestação da pulsão de morte que lhe é inerente. Neste âmbito, não só se faz sentir a diferença das histórias constitucionais nacionais (a Alemanha versus França, Inglaterra e EUA) ou do âmbito cultural religioso (islão versus cristianismo), mas igualmente a diferença entre a linha ainda ascendente do capitalismo (época das guerras mundiais) e o seu limite histórico absoluto (situação de hoje). Agora já não é possível tomar partido no plano de uma diferenciação interna histórica, porque a forma de sujeito enquanto tal está a converter-se em destruição do mundo e de si próprio. Se os nazis ainda sacrificaram a racionalidade interna capitalista à loucura destrutiva da ideologia de crise do anti-semitismo, hoje é essa mesma racionalidade interna que descamba imediatamente em loucura destrutiva. A violência da racionalidade interna torna-se congruente com a violência da loucura anti-semita da ideologia de crise na manifestação idêntica da pulsão de morte. A oposição de “valores ocidentais” à construção do “fascismo islâmico” já é, ela própria, um elemento desta paranóia social: uma tentativa louca em si mesma de salvar a forma do sujeito capitalista uma vez mais de si própria.

Saber em que extensão e a que velocidade se processará o amoque nuclear da potência mundial democrática depende literalmente da conjuntura do capitalismo das bolhas financeiras; ou seja, de ver por quanto tempo se vai arrastar a sua agonia e em que horizonte temporal serão libertados processos de crise irresolúveis da sociedade mundial para além do seu estado actual. As agulhas já estão acertadas. E não pode subsistir qualquer dúvida de que os EUA, com a primeira arma nuclear que utilizarem na guerra de ordenamento mundial impossível de ganhar contra os fantasmas da crise do capitalismo, também selam a sua autodestruição. A última potência mundial e o “imperialismo global ideal” do Ocidente (cujos componentes restantes, apesar da sua hesitação, terão de partilhar inevitavelmente o destino da sua potência hegemónica) assim apenas acelerarão a ruína do seu princípio de realidade; não serão capazes de manter afastados de si os efeitos secundários da destruição nuclear, ou mesmo de lidar com os mesmos de um modo “calculado”; e ficarão alvo do ódio ilimitado e implacável de uma maioria esmagadora da humanidade que encontrará meios de se vingar, nem que seja de uma forma igualmente desumanizada e infernal.

 

 

Por um renascimento da crítica social radical

 

A falta de perspectiva das alternativas que ainda emergem do moderno sistema produtor de mercadorias sugere com cada vez maior insistência a crítica do próprio nexo categorial, em cujos limites se moveu, até aqui, todo o pensamento e toda a acção da modernidade. Podemos contorcer-nos como quisermos: a modernidade equivale à metafísica da forma do valor ou à relação de fetiche do capital, não podendo de nenhum modo ser “reinventada”, mas já apenas ultrapassada. Urge uma antimodernidade emancipatória que apenas pode resultar de uma transformação da crítica social de esquerda. O desarmamento desta crítica foi precisamente o caminho errado. Mas foi igualmente errada a insistência num paradigma tornado anacrónico, apegado às categorias do moderno sistema produtor de mercadorias e à história de ascensão do mesmo.

A paralisia da crítica social radical tornou-se o pressuposto da possibilidade de uma conotação etno-racista e pseudo-religiosa dos imparáveis processos de crise. Neste âmbito, o perigo maior de um desvio assassino da energia da crise parte evidentemente do universalismo negativo da loucura religiosa de carga anti-semita, que se comporta de forma paralela ao universalismo negativo do capital. Se, nos anos 60 e 70, a análise crítica da religião ainda parecia fazer parte de uma história intelectual há muito passada dos séculos XVIII e XIX, ao passo que as correntes religiosas da história do pós-guerra se consideraram antes de mais como pertencentes à esquerda, sobretudo no contexto dos movimentos terceiro-mundistas (por exemplo, sob a forma da “teologia da libertação”), hoje uma regressão religiosa mundial tornou-se o detonador da barbarização. Isto aplica-se a todas as religiões sem excepção, tanto ao fundamentalismo católico da “Opus Dei” como às seitas protestantes, ao islamismo, aos messiânicos e teocráticos ultras judeus, ao movimento hindu de extrema-direita, aos budistas racistas do Sri Lanka, etc.

Não faz qualquer sentido conotar-se tais movimentos pós-políticos que, todos eles, não são capazes de formarem uma ordem social autónoma, não passando de produtos de decomposição do capitalismo, com o atributo anacrónico de “fascista”. Antes, a esquerda tem de se recordar de que “a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica” (Marx). Simplesmente, na situação alterada nos limites da modernidade, não se trata de uma crítica da religião à moda iluminista. O materialismo mundividencial primitivo de proveniência iluminista e marxista vulgar é completamente incapaz de lidar com o fundamentalismo religioso de crise de hoje (o mesmo também se aplica às correntes ditas esotéricas). Não é uma questão como a da essência da matéria ou a da essência da morte, ou seja, não é a ocupação com a metafísica tradicional dos “problemas transcendentais” que constitui a linha da frente de uma reformulação da crítica da religião. Antes é a tentativa bárbara de uma formulação religiosa da situação de crise da sociedade mundial.

Nesta medida, a crítica da religião regenerada tem de ser de ser idêntica a uma crítica igualmente radical da própria filosofia iluminista burguesa; requisito esse que corresponde exactamente à maturidade de crise da modernidade. O que está em causa não é a metafísica no sentido de questões transcendentais, mas a crítica da metafísica real terrena, ou seja, a crítica da constituição fetichista da sociedade, que começou com Marx, sem que o marxismo do movimento operário o soubesse seguir na mesma. O esclarecimento, ou iluminismo, foi, na sua essência, uma crítica da religião errónea, ela própria merecedora de uma crítica radical, que não tinha outro conteúdo senão o de substituir a metafísica real agrária da constituição religiosa tradicional da sociedade pela metafísica real capitalista da modernidade. O que é designado por “secularização” não foi outra coisa senão uma transformação no seio da metafísica social ou da formação fetichista da sociabilidade.

Este nexo revela-se no final catastrófico da modernidade: nem a representação democrática da metafísica real capitalista dominante é capaz de criticar de forma adequada a barbárie religiosa pós-política, porque esta é carne da sua carne; nem, inversamente, a formulação religiosa dos problemas da crise social é capaz de descer até ao fundo da miséria capitalista moderna, porque não representa senão uma regressão ideológica no seio de relações de fetiche sociais, esforço que cai todo ele em saco roto – a verdadeira constituição religiosa da sociedade estava vinculada às formas agrárias da constituição pré-moderna e não contém qualquer competência de resolução para a actual situação de crise da modernidade. Não há volta a dar, que a Bíblia, o Alcorão, etc. não servem de livros de receitas para a crise da sociedade do mercado mundial do século XXI; a não ser que se irrealize essa crise traduzindo-a em situações existenciais supra-históricas abstractas e se queira ficar a saber da sarça ou por inspiração divina o que apenas pode ser o resultado da análise crítica das formas sociais.

Provavelmente, uma crítica que vá além de Marx da constituição fetichista e irracional da sociedade (os recursos humanos e naturais são submetidos a um cego “princípio” de lemingue) também chegará a uma formulação alterada das questões “transcendentais” originais; mas a Humanidade apenas se poderá debruçar sobre a mesma com toda a consequência quando tiver feito os seus trabalhos de casa sociais e se tiver livrado da modernidade produtora de mercadorias juntamente com os seus fantasmas de crise. A crítica coerente da religião neste sentido e em nenhum outro é uma conditio sine qua non para uma forma emancipatória de se ultrapassar a crise mundial. E o que se aplica à religião, tanto mais tem de se aplicar às interpretações erróneas da crise de cariz etno-racista e, de um modo geral, culturalista pós-moderno, que trabalham a favor da barbárie.

Assim se torna visível, com cada vez maior clareza, uma tarefa dupla para a reformulação de uma crítica social radicalmente emancipatória de esquerda, à medida que progride a crise mundial que não pode ser resolvida com os meios da democracia capitalista: esta consiste em se negar por princípio às falsas alternativas do movimento imanente de auto-destruição e assumir uma “terceira” posição para lá das oposições entre “valores ocidentais” e “culturas anti-ocidentais”, entre Bush e Bin Laden, entre o iluminismo burguês e o contra-iluminismo igualmente burguês, entre o universalismo negativo do capital e o universalismo igualmente negativo da regressão religiosa, entre a globalização capitalista e o etnoparticularismo igualmente capitalista. No centro desta posição a conquistar, além das regressões bárbaras e da crítica aparente pós-moderna que não atinge a essência da ordem repressiva e auto-destrutiva, apenas pode estar a ruptura total e clara com a metafísica real capitalista, com o princípio de realidade economicista e com o nomos democrático da modernidade.

Esta “terceira” posição de uma antimodernidade emancipatória também é a única possível para se fazer frente à ideologia de exclusão racista e aos germes da ideologia de crise anti-semita. Uma defesa de Israel contra o anti-semitismo a isto associada apenas pode ser pensada como defesa simultânea do Israel secular e da esquerda israelita contra a barbárie racista e teocrática dos ultras. Quem celebra o fundamentalismo israelita de direita e político-religioso como o Israel que “se defende” contra o anti-semitismo árabe e mundial e denuncia a esquerda israelita como a “quinta coluna” do mesmo, comete um crime ideológico contra a existência de Israel, que é ameaçada tanto do interior como do exterior. Quanto mais se agudiza a situação na região mundial estrategicamente central do Médio Oriente, quanto mais os ultras israelitas impõem, à boleia da guerra de ordenamento mundial capitalista, a sua própria formulação agressiva da situação de crise, tanto maior se torna o perigo de esta agressão também se virar para o interior, fazendo com que os judeus seculares e de esquerda em Israel fiquem sujeitos a uma pressão persecutória manifesta. O assassínio de Rabin foi uma advertência nesse sentido, e a atmosfera social em Israel é cada vez mais atiçada precisamente nesse sentido, à medida que, ao mesmo tempo, a barbarização palestiniana se agudiza, e uma intervenção em grande escala dos EUA se torna iminente.

Por isso, uma defesa de Israel contra a ideologia de crise global (e em especial árabe-palestiniana) anti-semita apenas pode ser uma defesa do sionismo secular; não porque a ideologia sionista, originária do século XIX, esteja à altura da situação de crise, mas porque constitui o último baluarte contra a decomposição interna da sociedade israelita. Que “a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica” também se aplica neste contexto.

No entanto, é evidente que o desenvolvimento não pode parar neste ponto. A dupla crítica das duas formas de manifestação da subjectividade de crise capitalista apenas se pode tornar eficaz se for capaz de dotar a sua negação fundamental da moderna forma do sujeito, do princípio de realidade capitalista e do nomos democrático de uma perspectiva de revolução social. O limite objectivo da economia de valorização e a dissolução da soberania clamam por que se precise essa tarefa formulada por Marx de ultrapassar os poderes de alienação tanto do mercado como do Estado e de subsumir a reprodução social aos indivíduos sociais. No entanto, a ideia da autogestão sempre se manteve limitada às relações internas no seio do invólucro formal capitalista, ou seja, ao plano cooperativo da economia empresarial.

Esta limitação teria de ser ultrapassada no sentido de uma autogestão cooperativa no plano da totalidade da sociedade (com inclusão dos serviços e infra-estruturas públicos), ou seja, na relação mútua entre as unidades de produção e de reprodução. O mercado e o Estado, enquanto formas de fetiche, não são a solução, mas sim o problema. Para chegar a uma solução que abranja a sociedade no seu todo e a sociedade mundial, ou seja, para ultrapassar realmente a relação de capital e o seu fim-em-si irracional, a questão da autogestão cooperativa tem de ser retomada no plano superior e transversal do fluxo de recursos no seio da sociedade como um todo. Entre as tradições e os modelos melhores e que foram mais longe, que possam servir de inspiração, contam-se precisamente os kibutzim. Libertados das escórias do “terror da comunidade” de uma mera ideologia de colonos e elevados acima de um cooperativismo “empresarial” meramente particular, trata-se de um conceito de kibutz alargado, que abranja a totalidade da sociedade; indo até um kibutz transnacional, que deixe atrás de si todas as fronteiras.

Precisamente os habitantes da Palestina e dos países árabes, atormentados pelo poder dos senhores da guerra e pela resolução psicótica da crise, teriam todos os motivos para se debruçarem sobre este paradigma sócio-económico do suposto inimigo de morte, em vez de se dedicarem a ilusões de capacidade de concorrer no mercado mundial e de fundação de estados, em que, no fundo, eles próprios já não acreditam. Inversamente, tanto em Israel como no mundo inteiro, deveria trabalhar-se num desenvolvimento ulterior da ideia do kibutz, em vez de permitir que se estilhace entre o realismo de mercado e o fundamentalismo de crise.

No entanto, para que se torne possível o desenvolvimento de relações sócio-económicas qualitativamente novas para lá do mercado e do Estado, para lá do trabalho abstracto e da soberania, para lá da barbárie democrática e etno-religiosa, ou seja, para o nascimento de uma formação social realmente nova para lá da modernidade produtora de mercadorias, é necessário que se ultrapasse a relação concorrencial abstracta. Se a proclamação da solidariedade como ideia de sinal oposto por parte de sindicatos e partidos socialistas sempre esteve apenas organizada num quadro meramente particular (empresarial, sectorial, nacional) e, por isso, nos confins da modernidade, se dissolveu na dessolidarização de indivíduos abstractos e, por outro lado, na concorrência de crise violenta de novos sujeitos particulares (de cariz etno-religioso), hoje, a solidariedade tem de ser “reinventada” num sentido alargado que fure as categorias formais capitalistas.

Assim, também a relação moderna entre os sexos, como relação de dissociação, desloca-se para o centro de uma crítica social radical necessitada de ser renovada. A forma do sujeito da concorrência, tal como é constituída pela metafísica real capitalista, é e permanece na sua essência (tanto lógica como histórica) estruturalmente masculina, descendendo da constituição do despotismo militar das armas de fogo dos primórdios da modernidade. O que resta dela, no contexto da decomposição da racionalidade da economia empresarial e da soberania, é o sujeito de violência deslimitado e que continua a ser estruturalmente (e, na maior parte dos casos, também empiricamente) masculino. É por tais sujeitos de violência que é efectuada, em múltiplas gradações, a redução dos indivíduos (incluindo a maioria dos indivíduos masculinos) à “vida nua” no sentido de Agamben, a biomassa. O violento “prosseguimento da concorrência por outros meios”, que não vai a lado nenhum, manifesta-se tanto na forma dos bárbaros guerreiros tribais e de Deus, como igualmente na forma da máquina militar democrática. Até à ameaça do amoque nuclear, é a psique da dissociação sexual que executa a pulsão de morte do capital dessubstanciado.

Um movimento global e transnacional contra a guerra de ordenamento mundial democrática do “imperialismo global ideal” e contra o estado de excepção planetário apenas pode surtir efeito se o pensamento emancipatório se libertar dessa relação central de dissociação sexual. Não são as igualmente redutoras “virtudes femininas” que devem ser mobilizadas como reverso desta relação, antes a crítica do contexto transversal, tanto da “masculinidade” dissociadora como da “feminilidade” dissociada, tem de ser feita na prática; não em último lugar, contra a ideologia democrática de uma “libertação da mulher” intra-capitalista, que até ainda é instrumentalizada para a guerra de ordenamento mundial pelas feministas de carreira vermelhas e verdes. Na realidade, é a massa global das mulheres que tem de suportar a maior parte do fardo da crise mundial, e nas regiões em colapso tornam-se alvos fáceis das investidas das milícias aliadas com o Ocidente e da barbárie dos “socorristas” ocidentais.

É um contexto de encadeamento lógico o único que pode suportar o renascimento da crítica radical da sociedade: apenas a crítica fundamental da relação de dissociação sexual da modernidade produtora de mercadorias torna possível uma ressolidarização contra a subjectividade de violência pós-soberana; e apenas através desta ressolidarização num plano superior é possível ultrapassar-se positivamente a metafísica real capitalista e escapar-se à falsa alternativa do amoque mundial democrático e da barbárie fundamentalista religiosa.

Mesmo que esta “terceira” posição da recusa das alternativas aparentes dominantes possa parecer actualmente impotente, ainda assim pode ganhar um futuro. A força intelectual de uma antimodernidade emancipatória não tem de se aferir pela gravidade da situação de crise actual, mas pela miserabilidade intelectual e moral, tanto do poder capitalista democrático vigente, como igualmente dos seus fantasmas de crise. Neste sentido, a crítica até hoje existente, que já nem merece esse nome, não basta de modo nenhum à situação real, que se empurra para uma crítica muito mais radical.

 

[1]          Referência a uma promessa de Helmut Kohl relativamente ao futuro risonho do Leste alemão, uma vez absorvido pela RFA (Nt. Trad.)

(Cap.11 do Livro A GUERRA DE ORDENAMENTO MUNDIAL, Robert Kurz, Janeiro 2003)  BIBLIOGRAFIA

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