Robert Kurz

 

A frieza para com o próprio eu

 

e a pulsão de morte do sujeito sem fronteiras

 

 

A lógica da dissociação e a crise da relação entre os sexos

 

A relação social de coacção nascida de tais crimes fundadores sempre constituiu, em simultâneo, uma correspondente relação entre os sexos: Uma vez mais ao arrepio de todas as lendas iluministas, a modernidade produtora de mercadorias não amenizou a opressão da mulher, e muito menos a ultrapassou como pretende, pelo contrário, agudizou-a numa sistemática "relação de dissociação" (Roswitha Scholz), o que se explica pelas suas origens da revolução militar moderna. No seu âmago, o capitalismo não é outra coisa senão a militarização da reprodução social; e não só pela referência externa às exigências económicas da produção de armas de fogo, que caracterizou os seus primórdios, mas também pela formação quase militar de todo o modo de produção, na forma dos "exércitos do trabalho", na forma da concorrência universal, como uma guerra económica permanente de todos contra todos, etc. Todos os momentos da reprodução e da vida que não se enquadram nestas formas são conotados com o "feminino", dissociados, tornados "não-oficiais", definidos como inferiores e excluídos. O sujeito da mercadoria é, portanto, "masculino" pela sua essência, e um sujeito de violência latente ou manifesta, mesmo que parcialmente inclua mulheres. E neste sentido a sociedade capitalista contém o momento da predisposição para a violência até nos poros do quotidiano.

Este âmago violento do capital, que manifestamente caracterizou a história da colonização externa e interna, manteve-se presente até aos dias de hoje e através de todas as formas do regime capitalista. Não é por acaso que as democracias ocidentais contemporâneas dispõem de um arsenal militar e de capacidades destrutivas sem qualquer precedente histórico, enquanto o aparelho capitalista da administração interna de seres humanos, também sem precedentes, está policialmente armado até aos dentes e preparado para reagir instantaneamente com violência a quaisquer "perturbações da ordem interna", ou mesmo a qualquer oposição aos processos de decisão capitalistas.

A relação de violência que obriga as pessoas a uma actividade heterodeterminada e em muitos aspectos irracional, mas que estas ao mesmo tempo já há muito carregam consigo e "são" elas mesmas, na sua forma de sujeito burguesa, até no momento "feminino" dissociado da reprodução, consolidou-se em formas económicas e jurídicas tácitas, mas na sua latência é também perceptível no dia-a-dia, através da violência masculina directa. Nos centros capitalistas apenas se tornou mais velada e (também quanto à relação entre os sexos) se mascarou com a típica caricatura democrática da participação que, em boa verdade, não é senão a coacção ao escárnio de si próprio, uma vez que as decisões reais estão desde sempre pré-programadas pelo cego andamento dos processos do mercado e da concorrência. Nas regiões em derrocada, o carácter violento latente do capitalismo revela-se abertamente, uma vez que já não pode ser camuflado e provisoriamente pacificado pelos meios jurídicos e pelo recurso a políticas sociais. A violência da economia e a economia da violência são apenas as duas faces da mesma moeda.

Mesmo nas formas pós-modernas mais rebuscadas, volta a afirmar-se imediatamente o carácter masculino, patriarcal e violento da economia, por muito domesticado que possa ter parecido aos ingénuos propagandistas pós-modernos da democracia de ambos os sexos. Ainda as (ex-)feministas do "novo centro" estavam a festejar a suposta nova igualdade dos sexos como sinónimo da igualdade capitalista de oportunidades e, em vez disso, já era visível precisamente o referido "asselvajamento do patriarcado" nas estruturas da economia global de saque.

Nas precárias economias secundárias à margem do mercado mundial, que também já começam a proliferar no próprio centro, e que, na periferia, estão estreitamente interligadas com a economia de saque, o carácter dissociador da relação moderna entre os sexos volta também a manifestar-se, onde aparentemente as mulheres se vão tornando cada vez mais socialmente "masculinas", e os homens cada vez mais socialmente "efeminados" pela depravação: "O resultado final desta dissociação não superada, em vias de decomposição e mudança de forma, é e continua a ser visto no essencial como uma preterição da mulher na oposição ao homem, nomeadamente também em época de crise [...] Assim, acontece que hoje as mulheres são responsáveis 'pelo dinheiro e pela (sobre)vida’. O facto de as mulheres agora assumirem funções que tradicionalmente eram reservadas aos homens não se aplica apenas aos ‘países do Terceiro Mundo’, em consequência nomeadamente de vagas migratórias, mas também aos países altamente industrializados. Por exemplo, na Alemanha, as mães solteiras vêem-se muitas vezes obrigadas a desempenhar os papéis de mãe e de pai ao mesmo tempo [...] Entretanto, por muito que o desgaste do patriarcado produtor de mercadorias seja visível, o androcentrismo continua a fazer estragos [...] como ‘fenómeno psicogenético de base’, mesmo em modelos comportamentais, estados emocionais e códigos modificados que vêm de par com uma situação económica alterada" (Scholz 2000, pp. 132s.).

Se, por exemplo, nas regiões em crise e derrocada, são as mulheres quem assegura quase a 100 por cento o funcionamento das diversas organizações de auto-ajuda (cf. Scholz, ibidem, p. 125), tal não é acompanhado de uma valorização "política", mas é apenas expressão da desvalorização e dissolução da política, situação em que a "feminilidade" dissociada tem de tirar as castanhas do lume. O mesmo se aplica à assunção de funções económicas e sociais "masculinas" por mães solteiras, tanto no centro como na periferia: Também neste sentido não existe uma valorização do "feminino" dissociado, mas, sim, uma desvalorização da reprodução socioeconómica no seu todo, a favor da violência masculina imediata. O homem já não é um pater famílias, mas tal situação, em vez de reverter a favor das mulheres, apenas se traduz na sua constituição num sujeito concorrencial monádico e perfeitamente desenraizado que, como sujeito da violência, leva à manifestação do limite absoluto da constituição social moderna. É quase exclusivamente masculino o elenco dos "exércitos" da economia de saque; "vadios" sem qualquer espécie de responsabilidade, frequentemente ainda meio crianças, que, através do cano de uma Kalashnikov, reproduzem os códigos mais primordiais do patriarcado produtor de mercadorias, como se de um pesadelo absurdo se tratasse. A criança masculina armada como a derradeira figura de terror misógina da modernidade já é mais que uma ameaça anunciada.

Talvez em nenhum outro ponto a ideologia pós-moderna das "oportunidades" tenha sido tão cruelmente envergonhada como na relação entre os sexos. De facto, a tão invocada individualização no âmbito da "sociedade do risco" global apresenta-se bem diferente às mulheres e aos homens, a não ser que façam carreira no novo capitalismo financeiro e nas suas bizarras formas secundárias. O âmago do sujeito económico da modernidade mostra ser, afinal, um energúmeno masculino, tal como nos primórdios mais remotos dessa mesma forma de sujeito. O economismo real masculino pós-moderno responde à precária "feminização do emprego", ou até ao desmoronamento puro e simples da reprodução capitalista, de um modo anti-emancipatório, com crescente violência contra mulheres e crianças, com violações, assaltos e assassínios.

 

A frieza para com o próprio eu

 

Certamente que o economismo real de saque não deve ser entendido como contexto motivacional em falsa imediatidade. O que constitui o pano de fundo e a força motriz da economia de saque (masculina) é a motivação do dinheiro e da concorrência, que já não pode ser exercida senão com recurso à violência. Apesar disso, é necessária a "definição do inimigo" não imediatamente económica, mesmo que o conteúdo dessa definição seja aleatório, e a violência de modo nenhum se circunscreva à população definida como inimiga mais ou menos arbitrariamente. A ideologia, qualquer que seja a sua cor, asselvaja-se e abandalha-se do mesmo modo que a concorrência e a sua forma de sujeito, mas não desaparece.

Para mais, não existe apenas uma relação directa entre a proliferação da miséria e o poder dos bandos. A miséria produz o húmus social da violência, mas não se manifesta necessariamente, ela própria, como violenta, ou pelo menos não é a única a fazê-lo. As camadas verdadeiramente lazarentas na maior parte dos casos já nem são capazes de pegar numa arma. Já apenas servem de massa sacrificada ou ficam de todo reduzidas a um exangue estado vegetativo. As milícias recrutam-se, antes de mais, de entre uma juventude masculina que ficou sem perspectivas, proveniente do operariado industrial, que, até há pouco tempo, ainda podia ostentar uma certa fachada de normalidade, ou então da classe média. E há também um grande número de representantes da "juventude dourada", dos que, apesar da crise, ainda gozam de uma situação privilegiada, dos ricos e dos super-ricos, dos que retiram lucros da crise e da globalização.

Pois é, a miséria também assusta aqueles a cujas portas ainda não tocou, na medida em que representa uma ameaça para o próprio futuro. A miséria não produz necessariamente compaixão ou crítica social emancipatória, mas igualmente raiva aos miseráveis e uma degradação dos costumes, precisamente entre aqueles que ainda se encontram na mó de cima no seio da sociedade da miséria. Da "geração perdida" não fazem parte só os jovens desempregados de longa duração e "supérfluos", mas também os jovens não (ou ainda não) directamente afectados são marcados pelo clima de crise social e de asselvajamento em termos morais. Por conseguinte, a maioria das milícias e bandos nas regiões em crise e desmoronamento constitui uma estranha amálgama de desempregados barbarizados e representantes de uma "juventude dourada" igualmente barbarizada (cujos pais, não raramente, fazem de padrinhos e subpadrinhos).

Quando a reprodução social já não funciona como um todo, quando a quantidade de pobreza, miséria e desespero ultrapassa um certo limiar, já não pode haver qualquer imaculada ilha de decência. O fluido do medo e do ódio atravessa sem qualquer esforço todas as cercas de alta segurança, por detrás das quais se entrincheirou a obscenidade da riqueza de crise. O acoplamento de minorias "de sucesso" à globalização, mesmo até nas regiões arruinadas, não constitui qualquer espaço social que possa manter-se mental e psiquicamente como extraterritorial. Ao fim e ao cabo, a sociedade é sempre indivisível. O negócio e a violência, que nunca andaram de costas completamente voltadas, começam a fundir-se – e esta fusão do núcleo da razão capitalista alastra num abrir e fechar de olhos às zonas do mundo onde reina a suposta normalidade e legalidade.

No contexto da crise mundial, a concorrência transforma-se em concorrência de aniquilação económica e, assim, em concorrência pela vida no seio da sociedade, e degenera na imediata concorrência da força "masculinista". Se o risco da própria morte violenta se torna o pão de cada dia, agora na área micro do mundo do dia-a-dia como outrora nas trincheiras das guerras mundiais, tal não contradiz necessariamente o "interesse egoísta" e as cobiças de consumo de mercadorias. O que aqui se revela é a literalmente assassina autocontradição do sujeito da concorrência, na medida em que a contradição interna da lógica capitalista – agudizada pela crise – se reproduz nos próprios indivíduos; e sobretudo nos masculinos, devido à sua socialização. O beco sem saída da forma capitalista dilacera as motivações, os pensamentos e os sentimentos em contradições antagónicas, inconciliáveis e impossíveis de viver. A sede de sucesso, de consumo, etc. sob esta forma é contrariada pela total aridez e esterilidade mental do imperativo económico, cujos conteúdos se apresentam cada vez mais disparatados e, ao mesmo tempo, cada vez mais destrutivos.

No clima sufocante destas contradições levadas ao rubro, a consciência concorrencial facilmente degenera num estado que aponta para além do conceito do mero "risco" ou "interesse": A indiferença perante todos os outros converte-se na indiferença para com o próprio eu. Os primeiros indícios desta nova qualidade da frieza social como "frieza para consigo próprio" já se manifestaram nas grandes crises recorrentes da primeira metade do século XX, mesmo que essas experiências tenham parecido transitórias. Hannah Arendt, no seu famoso livro As Origens do Totalitarismo,constatou que o tempo entre as duas guerras mundiais se caracterizou por uma "atmosfera de decomposição generalizada", em que, a seu ver, teria nascido uma cultura da "perda de si próprio" (Arendt 1985/1951). E já nesses dias os principais afectados eram homens e, sobretudo, homens muito jovens.

Segundo Arendt, era muito mais que a mera perda da segurança profissional e material que fazia com que esses indivíduos estivessem no seu íntimo dispostos a sacrificar-se cegamente: "No entanto, mesmo esta amargura egocêntrica que, encarada sob o ponto de vista da psicologia individual, se tornou a imagem de marca de toda uma geração, não era algo que eles tivessem em comum, embora todas as diferenças individuais acabassem por se fundir num ressentimento generalizado; o egocentrismo não permitia que surgissem interesses comuns e, por isso, era muito frequentemente acompanhado de uma característica debilitação do instinto de autopreservação. A abnegação, não como bondade, mas como sensação de que a própria pessoa não tem importância, de que o próprio eu pode, a qualquer momento, ser substituído por outro, tornou-se um abrangente fenómeno de massas, bem capaz de levar o indivíduo a arriscar a própria vida, mas sem a mínima semelhança com o que se costuma entender por idealismo. Essa gente [...] já tinha perdido muito mais que a cadeia da miséria e da exploração quando o interesse por si própria lhe foi extorquido [...] Perante esta negação do mundo, os monges cristãos podiam considerar-se apegados ao mundo, quase que transbordando de interesse por assuntos terrenos. Desde o início do século XIX, muitos historiadores e homens de Estado importantes vaticinaram a chegada de uma época de massas [...] Todas essas profecias se realizaram agora de facto, mas, como costuma acontecer com as profecias na maior parte dos casos, de um modo que afinal não fora previsto pelos profetas. O que eles não previram ou, mesmo prevendo, não avaliaram acertadamente no que diz respeito às suas consequências verdadeiras, foi este fenómeno de uma perda radical de si mesmo, essa indiferença cínica ou aborrecida com que as massas encararam a sua própria morte ou outras catástrofes pessoais, e a sua surpreendente predisposição para aderir às ideias mais abstractas, essa obsessão por organizar a sua vida segundo conceitos destituídos de qualquer sentido, se isso lhes permitisse fugir ao quotidiano e ao bom senso, que acima de tudo desprezavam [...] A falta de uma verdadeira capacidade de discernimento anda aqui de mãos dadas com a estranha abnegação moderna, e ambas encontram uma correspondência por demais óbvia na atracção das massas por um mundo fictício [...]" (Arendt 1986/1951, pp. 510s., 539).

Tal como acontece em relação a numerosos outros momentos da sua análise do totalitarismo, Hannah Arendt não repara que aqui descreve muito mais que um determinado desenvolvimento histórico do totalitarismo político após a I Guerra Mundial, a "catástrofe primordial" burguesa do século XX. O momento totalitário residiu no interior do moderno sistema produtor de mercadorias desde o início; constitui o seu âmago, que é um âmago violento: a submissão total do homem em carne e osso, de corpo e alma, com armas e bagagens, ao abstracto princípio da valorização do capital, em si absolutamente sem conteúdo, e do qual o Estado moderno (o princípio da soberania) é uma mera expressão secundária. Porque os imperativos desta lógica irracional transformaram a sociedade num deserto natural secundário da luta pela sobrevivência, a auto-afirmação abstracta dos indivíduos apenas aparentemente se constituiu como princípio supremo dos indivíduos (na sua forma moderna, como sujeitos estruturalmente "masculinos"). Pelo contrário, por trás espreita a não menos abstracta abnegação de si próprio; melhor dizendo: a auto-afirmação e a abnegação, na sua total separação de qualquer comunhão social, são no fundo idênticas, e esta identidade também se manifesta em termos práticos nas grandes catástrofes sociais do capitalismo.

Elementos disso mesmo já se encontram nos primórdios da história da subjectividade moderna burguesa e masculina, no início da chamada modernidade, nos bandos de saqueadores da Guerra dos Trinta Anos e nos protagonistas dessas inúmeras guerras civis que formaram o sistema social moderno. A abnegação e a perda de si mesmas das massas na época de transição do totalitarismo político manifestou, a um alto nível de desenvolvimento, o mesmo âmago da subjectividade moderna que se revelou na segunda metade do século XX, nesse economismo real do sistema mundial em vias de se tornar aquilo que sempre foi, isto é, o totalitarismo económico.

Tal como todas as qualidades gerais do totalitarismo, que Hannah Arendt referiu como supostamente limitadas (segundo o seu entendimento) à forma política de imposição ou de disfarce do regime totalitário, podem ser reencontradas sob uma forma muito mais apurada no totalitarismo económico da relação de capital que se globaliza, o mesmo se aplica também, e não em último lugar, a essa cultura da abnegação, da perdição e do esquecimento de si mesmo, a essa perda total da capacidade de discernimento. Esta perda total de si mesmos dos indivíduos abstractos, implícita no imperativo económico total, expande-se no final do século XX, no seio da nova crise mundial no limite interno absoluto da relação de capital, com uma veemência e amplitude nunca antes vistas. O que no passado era apenas um estado temporário torna-se o estado normal e permanente; o próprio quotidiano "civil" se torna no estado de total perda de si mesmos dos seres humanos.

Que pessoas terão sido mais drasticamente "espoliadas do interesse por si mesmas", e mais constrangidas a sentir que "a pessoa em si não tem importância" e que todos os indivíduos podem ser substituídos a qualquer momento por indiferentes máscaras de carácter do movimento global de valorização, do que as massas "supérfluas" da terceira revolução industrial, como máscaras de carácter económicas do capital financeiro globalizado? E isso novamente atinge, em primeiro lugar, a imagem própria masculina, mesmo que este estado de perdição, em determinadas áreas da economia, não atinja menos as mulheres empíricas. Trata-se de uma perda de si que caracteriza os bandos de arruaceiros, saqueadores e violadores, do mesmo modo que os exploradores de si mesmos da new economy, ou os trabalhadores em frente ao monitor do investment banking.

 

A economia da autodestruição: A globalização e a "incapacidade de exploração" do capital

 

Hans Magnus Enzensberger tentou, de acordo com o pensamento de Hannah Arendt, descrever o denominador comum da abnegação que caracteriza as guerras civis da nova época de crise, tanto as generalizadas a todo um território como as "moleculares": "O que salta à vista repetidamente é, por um lado, o carácter autista dos autores de actos de violência e, por outro, a sua incapacidade de distinguir entre destruição e autodestruição. Nas guerras civis contemporâneas, desapareceu qualquer espécie de legitimação [...] A única conclusão possível é que a automutilação colectiva não constitui um efeito colateral aceite como inevitável, mas, sim, o objectivo propriamente dito. Os combatentes sabem muito bem que apenas podem perder, que não há vitória possível. Fazem o que podem para agravar ao máximo a sua situação. Não querem transformar em ‘escumalha’ apenas os outros, querem também fazer o mesmo a si próprios. Um funcionário da segurança social diz sobre as banlieues de Paris: ‘Já destruíram tudo, as caixas do correio, as portas, as escadarias. Vandalizaram e saquearam a policlínica, onde os seus irmãos mais novos recebiam tratamento gratuito. Não reconhecem qualquer espécie de regras. Reduzem a escombros consultórios de médicos e dentistas e destroem as próprias escolas. Se lhes fizerem um campo de futebol, eles cortam as traves às balizas’. As imagens das guerras civis, tanto moleculares como macroscópicas, assemelham-se umas às outras até ao mais ínfimo pormenor. Uma testemunha ocular relata o que viu em Mogadíscio. A pessoa em questão pôde assistir à destruição de um hospital por um grupo de homens armados. Não se tratava de uma acção militar. Ninguém ameaçava os homens; não se ouviam tiros na cidade. O hospital já estava gravemente danificado e equipado apenas com os apetrechos essenciais. Os arruaceiros procederam com uma violência meticulosa. Rasgaram os colchões às camas, partiram frascos com plasma sanguíneo e medicamentos; em seguida, os homens armados, nos seus camuflados imundos, atiraram-se aos poucos aparelhos existentes. Apenas se deram por satisfeitos depois de terem inutilizado o único aparelho de raios X, o esterilizador e a máquina do oxigénio. Qualquer desses zombies sabia que o fim dos confrontos não estava à vista; todos sabiam que as suas vidas continuavam a depender da existência de um médico que os tratasse, mas, pelos vistos, eles desejavam era mesmo a aniquilação da menor hipótese de sobrevivência. Tal poderia ser designado por reductio ad insanitatem [redução à insanidade]. No amoque colectivo, a categoria futuro desapareceu. Já só existe o presente. As consequências deixaram de existir. O elemento regulador da autoconservação foi desactivado" (Enzensberger 1993, p. 20, 31s.).

A descrição está certa, os factos são analisados com argúcia, e nem sequer falta a chamada de atenção para a caracterização sexual dos criminosos. Mas, tal como acontece, embora diferentemente, em Hannah Arendt, também Enzensberger não vai ao fundo do problema. É evidente o esforço para delimitar de algum modo a fenomenologia do horror da perda de si mesmo e da autodestruição como algo de estranho e exterior, para, assim, a excluir do próprio mundo do dia-a-dia, para não ter nada a ver pessoalmente com o assunto. Mesmo assim, Enzensberger não deixa de referir (ainda que o faça, antes de mais, como se de algo de acessório se tratasse) a conexão social exterior entre a globalização capitalista, as novas guerras civis e os protagonistas dos desacatos: "Sem dúvida que o mercado mundial, desde que deixou de ser uma visão de futuro para se tornar uma realidade global, produz cada ano que passa menos vencedores e mais perdedores, e não só no Segundo e no Terceiro Mundo, mas também nos países centrais do capitalismo. Se por lá países, e até continentes inteiros, acabam por se ver excluídos das relações de troca internacionais, aqui são partes crescentes da população que deixam de ser capazes de participar na competição das qualificações, que se agrava a olhos vistos" (Enzensberger, ibidem, p. 39).

É certo que este realismo dos factos, à primeira vista, se distingue agradavelmente do falso optimismo profissional da retórica oficial das "oportunidades", representada pela economia política académica ou pelos spin doctors do New Labour e do "novo centro". Mas Enzensberger vira o reconhecimento dos factos negativos do avesso, num volte-face afirmativo; o potencial socialmente destrutivo da globalização capitalista converte-se milagrosamente numa miserável apologética do Ocidente: "As consequências políticas previstas pelos teóricos marxistas, no entanto, não se verificaram. Comprova-se, assim, a falsidade das suas teses. A luta de classes internacional não se verifica [...] Os derrotados, longe de se unirem sob um estandarte comum, trabalham para a sua autodestruição, e o capital retira-se, sempre que pode, dos cenários de guerra. Neste sentido é necessário pôr um travão à arreigada convicção de que as relações de exploração podem ser reduzidas a um mero problema de distribuição, como se se tratasse da divisão justa ou injusta de um bolo de um determinado tamanho [...] Recorre-se (a este lugar-comum) afirmando-se, sobretudo que ‘nós’ vivemos à custa do Terceiro Mundo; supostamente, somos ricos, porque nós, isto é, os países industrializados, os exploramos. Quem bate no peito desta maneira deve ter uma relação perturbada com os factos. Basta referir um único indicador: a quota-parte de África nas exportações mundiais é de, aproximadamente, 1,3 por cento, a da América Latina anda à volta dos 4,3 por cento. Economistas que se ocuparam da questão acham que se as regiões mais pobres desaparecessem do mapa, a população dos países mais ricos nem sequer disso se aperceberia [...] As teorias que explicam a pobreza dos pobres baseadas apenas em factores externos, não só dão alimento barato à indignação moral, como ainda têm outra vantagem: ilibam os governantes do mundo pobre, imputando ao Ocidente a responsabilidade exclusiva pela miséria [...] Dos africanos que já se aperceberam deste truque ouvimos, entretanto, que só existe uma coisa pior que ser explorado pelas multinacionais, a saber, não ser explorado por elas [...]" (Enzensberger, ibidem, pp. 40s.).

Enzensberger tenta fugir à questão, projectando a problemática do novo capitalismo de crise universal, do limite interno absoluto do modo de produção e de vida capitalista tornado planetário, sobre a passada linha ascendente do capitalismo, sobre a história da sua imposição com as suas lutas internas. O conflito central neste sentido foi de facto a chamada luta de classes que, no entanto, pela sua essência e natureza, não foi outra coisa senão a "luta pelo reconhecimento" do trabalho assalariado nas formas jurídicas e políticas do capital (incluindo a relação capitalista entre os sexos) e, em segundo lugar, a luta económica pela distribuição de "quotas-partes", no interior do movimento de valorização do capital.

Em ambos os casos tratava-se de lutas de sujeitos constituídos à maneira capitalista, no interior das formas do sistema produtor de mercadorias, que não eram minimamente postas em causa. Por outras palavras: tratava-se de uma confrontação social "imanente" que, precisamente graças ao contínuo movimento de ascensão e expansão da forma capitalista, pôde desenvolver-se na "jaula de ferro" (Max Weber) dessa forma, sem ir para além dela; ou seja, não era precisamente (ainda) uma "imanência" que, devido à própria dinâmica de crise interna do sistema mundial, tivesse sido empurrada para além dos limites do mesmo, e obrigada a rebentar essa tal "jaula de ferro" da forma (e, com isso, da própria forma do sujeito).

O facto de a "luta de classes", que se mantém no âmbito da imanência, já não poder ocorrer no novo terreno de crise torna-se, para Enzensberger, o argumento para, às furtadelas, passar ao lado do problema da forma das relações sociais e da forma do sujeito, em vez de aí reconhecer o limite, a crise e a insustentabilidade dessa mesma forma. Pois porque já não pode a "luta de classes" ocorrer no interior das categorias burguesas, porque é que em especial os derrotados masculinos (e não apenas os derrotados notórios!) já trabalham apenas na sua autodestruição? Precisamente porque já não ocorre nenhum desenvolvimento sustentável no interior das formas categoriais da modernidade produtora de mercadorias, porque já não se pode ter uma perspectiva civilizatória, ainda que ilusória. Mas o que significa, afinal, o facto de partes cada vez maiores da população mundial já não serem sequer exploradas, tornando-se "supérfluas", e de continentes inteiros desaparecerem quase de todo do mapa da economia do capital? Não será outra coisa senão que a forma capitalista, a forma social da modernidade, ou seja, o próprio sistema produtor de mercadorias se torna incapaz de se reproduzir para a maioria global (e em última instância para todos); impondo-se, assim, a crítica e a suplantação da jaula da forma em que a defunta "luta de classes" ainda se podia mover.

Enzensberger, porém, faz do facto de as pessoas "já nem sequer serem exploradas" um argumento absurdo a favor do capitalismo, ou do centro ocidental do capitalismo. O facto de já não se tratar realmente de um mero problema de distribuição no interior da forma da riqueza produzida no capitalismo torna-se para ele a justificação dessa forma, o que evidentemente não quer dizer outra coisa senão que ele a encara como uma condição ontológica incontornável da existência humana em geral, em vez de uma formação histórica limitada no tempo. No entanto, a pobreza dos pobres apenas não pode ser reduzida a "factores externos" (esse foi o paradigma erróneo e redutor dos movimentos de libertação nacional meramente anticoloniais do passado) na medida em que o capitalismo se transformou, de uma relação colonial entre o centro e a periferia, num sistema mundial imediato, negativamente universal, que deixou de ter um "exterior".

Nas condições da terceira revolução industrial, que tornou esta imediatidade do mercado mundial uma realidade, as forças produtivas e os meios de produção da maior parte do mundo são paralisados por falta de rentabilidade em termos de economia empresarial, mas sem que as pessoas sejam dispensadas também da forma capitalista (que há muito constitui também a sua forma interior de sujeito), sendo que essa forma de sujeito também sempre sofre a carga da moderna relação entre os sexos, ou seja, é sexualmente modificada.

Onde não são pura e simplesmente desactivados, os meios de produção (não em último lugar, as terras agrícolas férteis) sofrem uma reorientação forçada para o mercado mundial universal, o que significa, por exemplo, no âmbito do agribusiness, a produção pouco exigente em termos de mão-de-obra de produtos de alta tecnologia, de bens de luxo como ramos de flores ou alimentos seleccionados para os centros ocidentais, sendo a população local expulsa das suas terras e privada dos seus recursos vitais, que não (ou já não) podem ser representados na forma do valor económico, sem poder ser integrada na produção para o mercado mundial no novo patamar das forças produtivas, nem sequer de modo meramente repressivo como "mão-de-obra".

É um facto que os fluxos de mercadorias e de dinheiro, em que se representam a produção agrária marginalizada ou situações pontuais de aproveitamento assalariado barato, são de uma dimensão negligenciavelmente reduzida face à totalidade do produto global e, em especial, face ao volume do capital financeiro vazio de conteúdo; mas é precisamente nesta dimensão relativamente microscópica da criação de riqueza "válida" a nível mundial que desaparece a vida de enormes massas populacionais de "supérfluos". A riqueza (ela própria apenas abstracta e destrutiva) dos países centrais do Ocidente não depende da massa de ramos de flores baratos, provenientes da Colômbia ou da África Central, que são levados por via aérea para as metrópoles; mas é por essa meia dúzia de ramos de flores que populações inteiras são sacrificadas socialmente, precisamente porque a existência no âmbito do mercado mundial está ferreamente estabelecida como a única forma de existência possível.

A argumentação de Enzensberger é transparentemente apologética, e ele deverá ser o primeiro a sabê-lo. Pelos vistos, ele opta por converter em cinismo uma impotência sem perspectivas. Da problemática historicamente concreta, ele refugia-se assim em supostas inevitabilidades antropológicas, num existencialismo e num nilismo a-históricos: "Nesta situação, velhas questões antropológicas colocam-se de uma forma nova" (ibidem, p. 11). No seguimento disto, a propósito da forma qualitativamente nova de aniquilação de indefesos, o discurso torna-se desgraçadamente autista e fala de uma "acumulação de energia da juventude, induzida pelos níveis de testosterona" (ibidem, p. 22). Deste modo, a relação entre a forma moderna do sujeito e a relação moderna entre os sexos, no limite da crise global, não é criticamente tematizada, mas ideologicamente antropologizada, para não ter de se enfrentar essa mesma crise. Como "verdadeiros culpados" perfilam-se então os bárbaros "governantes do mundo pobre" (ibidem, p. 41) etc. O Ocidente, o centro da forma universal da relação de capital que destrói o mundo, deve declarar-se não responsável pelo seu próprio sistema mundial, não devendo o público ocidental ser mais incomodado com as "motivações incompreensíveis" (ibidem, p. 78) das loucas facções assassinas desta ou daquela região exótica.

O eurocentrismo positivo da competência ocidental universal em nome do universalismo abstracto, que era sinónimo da possibilidade de exploração capitalista do mundo, converte-se em Enzensberger num eurocentrismo negativo da ignorância, que se esforça por exteriorizar e recalcar as catástrofes no interior do sistema mundial, precisamente porque este mundo se torna inexplorável com os meios capitalistas. O adeus às "fantasias de omnipotência moral" (ibidem, p. 86) converte-se assim na velha sabedoria anquilosada de uma política de campanário: "No entanto, toda a gente sabe no seu íntimo que, antes de mais nada, tem de se ocupar dos seus filhos, dos seus vizinhos, de tudo o que imediatamente o rodeia" (ibidem, p. 87). Tal constitui apenas a versão invertida da política ocidental de intervenção militar, mas não uma crítica das relações a ela subjacentes. Assim, Enzensberger pôde ser acusado por um filósofo intervencionista como André Glucksmann de "fugir à responsabilidade", consistindo a "responsabilidade", para Glucksmann, em bombardear as zonas de crise incontroláveis.

De um modo ou de outro, não parece estar na ordem do dia uma crítica alargada, que vise a forma do sistema moderno e da sua subjectividade, mas, como Enzensberger pensa, a "triagem", a selecção de emergência como "constrangimento" (ibidem, 88 s.) no quadro de condições existenciais ontológicas inalteráveis do sistema produtor de mercadorias. "O que deverá ser de Angola terá de ser decidido, em primeira linha, pelos Angolanos" (ibidem, p. 90) – como se a globalização não tornasse os bandos assassinos angolanos "vizinhos" tão imediatos como os bandos assassinos juvenis alemães em "Hoyerswerda e Rostock, Mölln e Solingen" (ibidem, p. 90). O "interior" universal não pode ser externalizado e particularizado.

 

A metafísica da modernidade e a pulsão de morte do sujeito deslimitado

 

Põe-se evidentemente a questão de como pode Enzensberger cair de uma análise que não deixa de ser lúcida numa ignorância de tal forma propositada e numa coexistência pacífica com a não resolução de "constrangimentos". Afinal, a alternativa à intervenção militar ocidental contra os processos de barbarização, induzidos pela própria relação de capital global, não é a retirada, sem perspectivas, para a suposta competência de resolução no próprio quintal, mas justamente o alargamento da crítica social, que já só pode ser formulada no contexto global, às formas tornadas insustentáveis do moderno sistema produtor de mercadorias e da sua subjectividade (estruturalmente "masculina"). O paradigma da luta de classes, imanente à forma, deverá ser substituído pelo paradigma de uma crítica do contexto formal comum, transversal às classes, de uma moderna socialidade negativa, baseada na monetarização e na concorrência anónimas, assim como na relação de dissociação sexual.

Qual é então a origem da relutância, e não só de Enzensberger, em adoptar essa crítica da forma? A razão deverá estar no facto de que tal crítica de maior alcance e de cariz categorial da modernidade teria de abandonar todo o terreno conhecido. Toda a crítica social anterior, e não só a do movimento operário em sentido mais estrito, no âmbito do movimento de ascensão e expansão do capitalismo, referia-se positivamente ao sistema de ideias do iluminismo burguês do século XVIII e, portanto, à constituição do sujeito burguês. Este sujeito, desde sempre pensado como primariamente masculino, devia actuar de modo emancipatório precisamente por via da sua forma, fosse qual fosse a capa ideológica. Não só a chamada nova esquerda herdou este mundo imaginário do velho movimento operário, como também, e em especial, a inteligentsia alemã do pós-guerra o invocou, contra a fatalidade da história alemã. Iluminismo, sujeito, política, democracia: foi isso que foram Marx e os profetas.

Tanto mais custa hoje chegar à conclusão de que a história alemã e o nacional-socialismo foram parte integrante da história do capitalismo mundial, que no interior dessa forma já não existe qualquer alternativa que possa ser conotada positivamente, e que o que está no centro da miséria mundial da actualidade é a própria forma do sujeito burguês moderno, que se tornou absolutamente disfuncional e sem solução possível. Agora, nos limites do iluminismo burguês e da reprodução na forma de mercadoria, a metafísica real da modernidade revela-se na sua maneira mais repugnante. Depois de o sujeito burguês esclarecido se ter despojado das suas vestes, torna-se evidente que sob essas vestes não se oculta nada: que o âmago desse sujeito é um vazio; que se trata de uma forma "em si", sem qualquer conteúdo. O que Enzensberger quer tornar exótico é a sua própria essência social, como sujeito do iluminismo burguês (e evidentemente masculino). Quando pensa estar a descrever o exotismo do "incompreensível", retrata a metafísica da própria modernidade ocidental: "O que confere à guerra civil da actualidade uma nova e assombrosa qualidade é o facto de ser conduzida sem qualquer empenho, de literalmente nada estar em causa" (ibidem, p. 35). Mas precisamente este horror não é o alheio, o exterior, pelo contrário, o que nele vem à luz é apenas o mais íntimo eu do sujeito da mercadoria, do dinheiro e da concorrência, a essência do cidadão democrático. O nada de que se trata é o vazio absoluto do "sujeito automático" (Marx) da modernidade, que se autovaloriza.

É que a forma do valor que se exprime no dinheiro, que, como abstracção real metafísica objectivada, domina a existência moderna como um deus secularizado e reificado, e da qual a metafísica da cidadania democrática mais não é do que o reverso, não tem "em si" qualquer conteúdo sensível ou social; está neste mundo como força negativa, mas não é deste mundo. É o vazio metafísico o que se oculta por detrás das lutas de interesses aparentemente tão racionais e da aparente vontade de auto-afirmação dos indivíduos abstractos. Gente como Beck e Enzensberger prefere não tomar nota desta cabeça de Górgona do vazio desligado do mundo no centro da modernidade. Mas é precisamente esta monstruosidade metafísica que surge saída de trás da máscara do alegremente individualizado "gestor de si mesmo" da pós-modernidade.

Num clima mundial de concorrência de aniquilação mútua, de ameaça permanente da existência social e, ao mesmo tempo, de uma precária riqueza monetária especulativa que a qualquer momento se pode desvanecer, viceja uma vontade de aniquilação difusa, que actua para além de "situações de risco" externas, e que é tão abstracta e vazia de conteúdo como a forma social que constitui a base do processo de valorização do capital. A forma "valor" e, assim sendo, a forma "sujeito" (dinheiro e Estado) pela sua essência metafísica é em si auto-suficiente e, ainda assim, tem de se "exteriorizar" no mundo real; mas fá-lo apenas para invariavelmente regressar a si própria. Esta expressão metafísica do movimento de valorização aparentemente banal (e, sob o aspecto sensível e social, de facto horrivelmente banal) constitui o verdadeiro tema de toda a filosofia do Iluminismo, o que é muito nítido em Kant e em especial em Hegel, que retratou exacta e afirmativamente a forma dialéctica do movimento deste "processo de exteriorização" de um vazio metafísico no mundo real.

Nesta auto-suficiência, todavia com necessário movimento de exteriorização, e, em última instância, auto-referencialidade da vazia forma metafísica chamada "valor" e "sujeito", está ancorado um potencial de destruição do mundo, uma vez que a contradição entre o vazio metafísico e a "obrigatoriedade da representação" do valor no mundo sensível só pode ser resolvida no nada e, portanto, na aniquilação. O vazio de conteúdo do valor, do dinheiro e do Estado tem de se exteriorizar em todas as coisas deste mundo sem excepção, para poder representar-se como real: da escova de dentes até à mais subtil emoção, do objecto utilitário mais simples à reflexão filosófica ou à transformação de paisagens e continentes inteiros. Vida e morte, toda a existência humana e toda a existência da natureza servem unicamente esta capacidade de auto-representação, à maneira de Proteu, do vazio social metafísico de capital e Estado.

Neste interminável movimento de fim-em-si metafísico (as finalidades dos desejos dos indivíduos em concorrência estão incluídas neste processo hierarquicamente superior de auto-reflexão do "sujeito automático"), as coisas deste mundo e o desejar dos indivíduos não são reconhecidos pela sua qualidade intrínseca, antes pelo contrário, esta é-lhes retirada, para os transformar em meras "gelatinas" (Marx) do vazio metafísico, assim os assimilando à forma do valor sempre igual a si própria (sob uma perspectiva superficial: "economificando-os", ou seja, tornando-os o mero e indiferente material do movimento de valorização).

Tal dá origem a um duplo potencial destrutivo: um "comum", por assim dizer quotidiano, tal como sempre resulta do processo de reprodução do capital, e outro por assim dizer final, quando o "processo de exteriorização" esbarra nos limites absolutos. A metafísica real do moderno sistema produtor de mercadorias destrói o mundo parcialmente, como "efeito colateral" da sua exteriorização "bem sucedida"; e torna-se uma vontade absoluta de destruir o mundo, mal deixa de conseguir retratar-se a si própria nas coisas do mundo. Poder-se-ia falar, assim, de uma pulsão de morte da humanidade moderna constituída à maneira capitalista, que também tem uma origem sexualmente especificada. No centro da filosofia do Iluminismo está a respectiva expressão ideal, a adoração da abstracção vazia de "uma forma enquanto tal" (Kant).

Esta lógica de aniquilação pode manifestar-se de modo banal no andamento perfeitamente normal dos negócios, por exemplo, na destruição das condições naturais da vida pela externalização de "custos" da economia empresarial, no abastecimento deficiente de grupos populacionais inteiros em alimentos e ajuda médica por falta de "capacidade de financiamento", na desnecessária morte em massa de lactentes e crianças pequenas nas regiões globais da pobreza, etc.

Mas a mesma lógica de aniquilação também pode manifestar-se imediatamente como explosão de violência e, nesse acto, provocar essa dissolução da consciência de si, que pôde ser observada não só nas frentes de batalha das guerras capitalistas, mas também nos grandes surtos de crise do século XX. Hoje esse desfazer do eu parece tornar-se o princípio que preside ao mundo. A vontade de aniquilação final do sujeito metafisicamente constituído dirige-se por fim contra esse próprio sujeito, na medida em que ele é deste mundo, ou seja, sensivelmente existente. E não é de modo algum por acaso que, nesta orgia da autodestruição, a essência "masculina" de tal sujeito volta a irromper bem obviamente à superfície.

Naturalmente que não é o vazio metafísico real do valor, da forma social do movimento do capital, que actua imediatamente "no" sujeito, mas esta actuação de crise, esta transição para a violência sem limites ocorre através da transmissão de formas de socialização e de mecanismos psíquicos. Neste contexto, precisamente a tão festejada individualização pós-moderna que, em boa verdade, é apenas a forma mais exacerbada da subjectividade abstracta (separada) do ser humano constituído de maneira capitalista, até ao grau do abandono total, revela-se como a forma de transição para a absoluta perda do eu, em que os mecanismos psíquicos da pulsão de morte se desenvolvem até à manifestação imediata, como o sociólogo e psicólogo prisional Götz Eisenberg descreve de modo eloquente: "Os conflitos sociais são reprivatizados e vão-se adensando num espaço anímico interior, que é inadequado à absorção de tais energias. É demasiado estreito. A infelicidade encarcerada não pode parar, procura uma saída [...] Por detrás das imagens de humilhações sofridas actualmente emergem imagens do passado da própria vida, obtidas na infância, mas só agora reveladas. Funcionando como amplificador, experiências de ofensas e rejeições muito antigas juntam-se às humilhações actuais e apenas assim conferem a estas o seu peso [...] A energia emocional recolhida no interior difunde-se, recompõe-se noutro lugar, desloca-se e forma novas ligas [...] O mundo interior transforma-se num caleidoscópio de fragmentos que se entrecruzam, criando imagens cada vez mais grotescas e assustadoras. Parcelas psicóticas da personalidade, que todos transportamos dentro de nós enquanto seres apenas ‘parcialmente socializados’ (Mitscherlich), passam para primeiro plano, ganhando assim uma espécie de hegemonia psíquica. Vai-se adensando um ódio arcaico a objectos que nos perseguem dentro e fora de nós, a percepção vai-se turvando, o mundo vai escurecendo até que, por fim, tudo se torna um objecto ‘maléfico e persecutório’. Agora, a calma e o domínio de si próprio já só funcionam com muito esforço; estão a chocar algo. Fantasias paranóicas começam a preencher a totalidade do campo visual interior. Agora já só falta um último impulso e a mecânica da desgraça entra em acção" (Eisenberg 2002, p. 24 s.).

A abstracção desta vontade de aniquilação reflecte a dupla autocontradição da relação de capital: Por um lado, ela visa a aniquilação dos "outros", aparentemente com a finalidade da autopreservação a qualquer preço, por outro lado, é também uma vontade de auto-aniquilação, que executa a falta de sentido da própria existência na economia de mercado. Por outras palavras: a fronteira entre o assassínio e o suicídio vai-se esbatendo. Trata-se, bem para lá do "risco" da concorrência, de uma fúria de aniquilação tão ilimitada que a distinção entre o próprio eu e o dos outros começa a desaparecer, o que, por seu lado, pode ser retratado como um mecanismo psíquico: "Para escapar à própria catástrofe narcisista e afastar insuportáveis sentimentos de medo, impotência e desamparo, o próprio interior é virado para fora, encenando-se de modo assassino e suicida. Pode acontecer que a preservação do valor próprio e da integridade da personalidade constitua uma motivação do comportamento humano com mais peso do que a protecção da própria sobrevivência menorizada. Antes que tensões internas rebentem o eu, o criminoso rebenta partes do mundo exterior numa espécie de defesa preventiva [...] A fúria destruidora da criancinha que se sente abandonada, desrespeitada e desesperada e gostaria de partir tudo em seu redor está limitada pela sua falta de força física; agora a mesma raiva explosiva habita o corpo de um adulto, que pode ter acesso a armas, automóveis ou mesmo aviões" (Eisenberg, ibidem, pp. 25s.).

O eu abstracto do sujeito do dinheiro dissolve-se na concorrência de crise final, trazendo à luz o essencial daquilo que desde sempre espreita no seu interior, que é o vazio da sua existência idêntico à autodestruição. Nos cada vez mais frequentes colapsos das relações socioeconómicas, induzidas como são pelo mercado mundial da globalização, no processo de decomposição de sociedades inteiras, já não é possível uma autodefinição dos indivíduos, enquanto estes continuarem a mover-se no interior da forma social dominante (o que até à data fazem de modo espontâneo). O palavreado democrático só pode aumentar e atiçar a raiva, porque ele próprio mais não é que uma expressão hipócrita e beata da mesma lógica de aniquilação virada contra o ser humano e contra a natureza.

Os fenómenos de perdição e aniquilação de si mesmo, tais como Enzensberger os descreve na juventude masculina, tornaram-se hoje em dia universais, sob vários aspectos. Por um lado, não são apenas os autores de actos imediatos de aniquilação e auto-aniquilação (mais frequentes de ano para ano) que representam esta perdição de si mesmos. Os autores evidentes de actos de violência constituem apenas a ponta do icebergue, o fenómeno manifesto de um estado da sociedade que é muito mais generalizado. A cada assassino suicida correspondem milhares e milhões com sentimentos semelhantes, mas que (ainda) não passaram aos actos, jogando antes com eles na sua imaginação, ou descarregando-os com produtos mediáticos a condizer (o simples facto de tais produtos, os chamados vídeos de grande violência e numerosas outras formas de glorificação mediática da violência, poderem ser fabricados em termos de lucrativa produção em massa é um sinal claro de quão profundamente este problema afecta a sociedade).

Em segundo lugar, acontece que não são apenas os vencidos declarados, como os das banlieues ou de Mogadíscio, que se matam uns aos outros, ou que cortam conscientemente o fio que os prende à vida. A guerra civil molecular desenrola-se também, e com particular incidência, entre a juventude isolada na pseudonormalidade dos que auferem salários acima da média, dos vencedores da crise e dos fanáticos da decência, cuja condição mental de sem-abrigo e de perda de si mesmos nada fica a dever à dos assassinos juvenis dos bairros degradados. O culto do assassínio e da violação, encarados como modalidade desportiva, tal como o culto do suicídio encenado, também grassa nos bairros de vivendas abastadas do Rio de Janeiro, de Nova Iorque ou de Tóquio. O já proverbial amoque com auto-execução subsequente nas high schools dos EUA é um fruto da imaginação dos rebentos das classes médias endinheiradas. E também os bombistas suicidas palestinianos ou do Sri Lanka são em regra provenientes de "boas famílias".

Finalmente, cabe esclarecer que não se trata da erupção de camadas mais antigas de uma cultura pré-moderna, que, sob a capa da modernidade capitalista e da universalidade global, se evidenciaria nos "excluídos", por exemplo, sob a forma do islamismo que prolifera no mundo muçulmano. Embora o sistema único, universal, global e metafísico real do capital tenha um colorido cultural diferente nas várias regiões do mundo, de acordo com os padrões de tradições ancestrais, concepções religiosas, comportamentos sociais e estéticos etc., esse colorido, essa diferença cultural, não constitui o essencial, o âmago profundo, não passando a constituição capitalista e a integração no mercado mundial de uma espécie de verniz meramente exterior. A situação é precisamente a inversa. Após séculos de história de ajustamento ao capitalismo e após a imposição da relação de capital como relação mundial imediata, a mesma e única forma universal de sujeito que "incarna" o vazio metafísico do valor idêntico em toda a parte é que constitui o eu interior dos indivíduos, como essência totalmente incolor e mesmo sem quaisquer qualidades, ao passo que a diferença cultural já apenas representa uma capa exterior, quase que folclórica.

É também por isso que as "bombas vivas" (Enzensberger, ibidem, p. 36) que erram pelo mundo do capital globalizado são os produtos mais genuínos desse mesmo mundo: sujeitos idênticos da mesma metafísica real, em que se tornou manifesta a pulsão de morte própria desta socialização negativa. Os perpetradores dos amoques nas high schools dos EUA e os bombistas suicidas islâmicos estão mais unidos pela sua forma de sujeito e, daí, pelos seus actos, do que separados pelos seus diferentes panos de fundo culturais.

O que é evidente nos autores dos amoques também se aplica aos bombistas suicidas, que aparentemente são mais influenciados por motivos ideológicos: Também entre eles, à semelhança do que Hannah Arendt já identificara na geração perdida do tempo entre as duas guerras mundiais, a predisposição para sacrificarem a própria vida não tem "a mínima semelhança com o que costumamos entender por idealismo". Os motivos religiosos que, não por acaso, substituíram as ideologias modernas propriamente ditas, são expressão dessa universal perdição de si mesmo, que desemboca na "predilecção apaixonada por organizar a sua vida segundo conceitos destituídos de qualquer sentido", acabando por deitá-la fora como um lenço de papel usado.

A loucura religiosa que grassa em todo o mundo e que também no Ocidente deu origem a um sem-número de seitas (incluindo mesmo "seitas suicidas" declaradas) já não possui qualquer tipo de coerência; ela compõe-se sincreticamente de todo o tipo de elementos religiosos desgarrados e enriquece-se com produtos da decomposição de ideologias passadas, desde o culto de Hitler até à "missa negra". O absurdo culto do mal corresponde à pulsão de morte no centro vazio da razão iluminista, que é posto a descoberto.

Esse processo já se tinha iniciado na era das guerras mundiais, tendo sido apenas interrompido pelo último surto de desenvolvimento fordista após 1945. Com efeito, o nazismo pode ser considerado uma espécie de precursor ou protótipo da venenosa mixórdia de ideias que hoje circula por todo o mundo, em receitas variadas. Também os nazis misturaram a sua patológica "mundividência" a partir de motivos pseudo-religiosos desconexos, mitos arcaicos sintéticos, ideologias modernas e produtos colaterais do pensamento das ciências da natureza associado à ascensão do capitalismo. Também os nazis se caracterizaram pelo culto da "masculinidade" violenta especificamente moderna e respectivos códigos. E também já para os nazis o que estava em causa não eram, ou pelo menos não eram apenas, os interesses imperiais mas, igualmente, uma fúria de aniquilação com todos os contornos de um fim-em-si, que culminou numa orgia de auto-aniquilação e auto-sacrifício.

Hoje, contudo, o mesmo contexto motivacional já não se apresenta nacional e especificamente alemão, mas global e universal; a vertigem assassina já não se organiza como um "Reich" nacional e imperial, mas, sim, no contexto do "imperialismo global ideal" e na dispersão molecular por todo o globo terrestre.

A enfatização exacerbada de actos cultuais exteriores, tanto nas seitas ocidentais como entre os islamistas, remete para o mesmo vazio de conteúdo. Se as religiões antigas sempre tiveram o pano de fundo reprodutivo de civilizações agrárias, já não se pode constatar nada do género para as ideias zombies destas novas "gerações perdidas", agora globais, para as quais não pode existir qualquer futuro na sua constituição capitalista. Por outro lado, o "pano de fundo dos interesses" das anteriores ideologias modernas, provenientes da história da ascensão do capitalismo, já não consegue estabelecer qualquer coerência ideal: O próprio "interesse" se asselvaja e decompõe, e com ele a ideologia, que igualmente é despojada de qualquer conteúdo coerente.

A avidez pelo sucesso no mercado entre os rebentos dos minoritários ganhadores da globalização e a avidez da economia de saque por "mercadorias ocidentais" nas regiões em derrocada transformam-se imediatamente na vácua e total falta de interesse do sujeito de amoque e suicídio, masculino e juvenil. O McDonald’s e a jihad [guerra santa] constituem de facto as duas faces da mesma moeda, ainda muito mais horríveis do que Benjamin Barber as representou no seu livro "Coca-Cola e Guerra Santa" (Barber 1996). A "sede de morte" não é um motivo especificamente islâmico mas, sim, o universal grito de desespero de uma humanidade que se auto-executa na sua forma do mundo capitalista. E os autores são, a 90 ou quase a 100 por cento, homens concorrendo com violência, no final não menos que no início desta maravilhosa"civilização".

BIBLIOGRAFIA

Arendt, Hannah  (1986, 1ª ed. 1951): Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft [Elementos e origens da dominação totalitária]; München. Trad. Port.: As origens do totalitarismo, Lisboa, D.Quixote, 2006

Barber, Benjamin  (1996): Coca-Cola und Heiliger Krieg. Jihad versus McWorld [Coca-cola e guerra santa. Jihad versus McWorld]; München.

Esienberg, Gotz  (2002): Gewalt, die aus der Kälte kommt. Amok-Pogrom-Populismus [A violência que veio do frio. Amoque-pogrom-populismo]; Giessen.

Enzensberger, Hans Magnus  (1993): Aussichten auf den Bürgerkrieg ; Frankfurt/Main. [Trad. port.: Perspectivas da guerra civil, Relógio D'Água, Lisboa, 1998]

Scholz, Roswitha  (2000): Das Geschlecht des Kapitalismus. Feministische Theorien und die postmoderne Metamorphose des Patriarchats [O sexo do capitalismo. As teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado]; Bad Honnef.

 Original DIE KÄLTE GEGEN DAS EIGENE SELBST UND DER TODESTRIEB DES ENTGRENZTEN SUBJEKTS. Publicado na Revista EXIT! Nº 14, Maio 2017, p. 50-69. Extracto do livro de Robert Kurz (2003) Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung [A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização], p. 56-7

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/