(Robert Kurz, Ler Marx)

 

2. O ser estranho e os órgãos do cérebro:

Crítica e crise da sociedade do trabalho

 

Introdução

O outro Marx, o Marx esotérico da crítica radical categórica, distingue-se muito menos claramente no que diz respeito à crítica do trabalho. Sobre este ponto, Marx parece geralmente de acordo com o marxismo positivista do movimento operário. Em longos trechos, a sua argumentação pode ser interpretada no sentido da evidência, da eterna necessidade natural do trabalho, ou do trabalho como essência supra-histórica do ser humano. Marx segue aqui o movimento operário histórico que vê o trabalho como condição humana, a qual seria deformada pelo capital (pela classe capitalista) de modo simplesmente externo e usurpador. No entanto, não é por acaso que Marx nunca se deixou levar pela glorificação do trabalho, das mãos calejadas, da ética protestante do trabalho e da "criação de valor" através do trabalho, como foi comummente o caso depois nos sindicatos, nos partidos operários social-democratas e comunistas, com toda a respectiva iconografia e simbólica. Pois em muitos textos de Marx o trabalho evolui discretamente para algo negativo em si mesmo. A crítica do trabalho capitalista é formulada de tal modo que parece incrível que logo de seguida se venha aplicar esse mesmo conceito de trabalho como condição humana positiva supra-histórica contra o capitalismo.

O problema reside na natureza abstracta do conceito de trabalho. Trabalho em si, trabalho em geral, trabalho como dispêndio abstracto de energia humana: este conceito só tem sentido como forma de actividade do moderno sistema capitalista de produção de mercadorias para mercados anónimos. Não se trata aqui, de modo nenhum, como o próprio Marx demonstrou já na análise da mercadoria, apenas de uma abstracção no sentido mental e verbal, mas de uma "abstracção real" social. O cálculo da economia empresarial e as pessoas que produzem sob a influência dessa lógica de valorizar o dinheiro abstraem, mesmo na prática, do conteúdo sensível e material, do sentido ou falta de sentido humano e das consequências da sua actividade incessante para a sociedade e para as bases naturais da vida. Trata-se apenas do sempre igual fim em si mesmo: a energia humana é transformada em dinheiro e o dinheiro sempre em mais dinheiro. A equiparação abstracta e sem conteúdo dos mais diferentes conteúdos reais (mesmo destrutivos) reside na indiferença do dinheiro como fim em si, que surge novamente como indiferença do trabalho abstracto no processo de produção de capital. Simbolicamente e com involuntária clareza, um conselho de empresa apontou essa indiferença abstraidora com um lema paradoxal: "Para teres sucesso, tens de acreditar em alguma coisa, não importa o quê"

Ao expressar negativamente o carácter abstractamente indiferente da produção capitalista com o conceito de "trabalho abstracto", Marx na verdade também já pronunciou a sentença sobre o conceito positivo de trabalho em geral, porque a abstracção "trabalho" não significa em última análise nada mais. O trabalho assalariado dos empregados dependentes está incluído neste conceito de trabalho (abstracto) que nele não se esgota. Inclui também a actividade dos capitalistas e gestores, ou seja, estende-se a todas as classes e grupos da hierarquia funcional capitalista. Os proprietários do capital no sentido original e os meros gestores ou "capitalistas funcionais" não são ociosos, eles também despendem energia humana que, como a dos trabalhadores assalariados, se aplica directa ou indirectamente na produção de mercadorias do processo de valorização e, portanto, também assume o carácter de trabalho abstracto. Tal como a forma da concorrência, também a forma do trabalho abstracto é um sistema de referência comum e abrangente da humanidade determinada pelo capitalismo, independentemente das diferenças de posição funcional, do salário e da riqueza ou pobreza pessoal em dinheiro.

Marx mencionou muitas vezes esta identidade, mesmo que na sua forma de oposição social. E mesmo onde essa oposição ainda aparece nele em termos de trabalho e "não-trabalho", na linguagem do marxismo do movimento operário, exprime-se nela o que os dois conceitos têm em comum internamente. Porque Marx não quer fazer entrar novamente o "não-trabalho" no mundo eterno de trabalho, mas sim ultrapassar o sistema de referência do "sujeito automático" comum a capitalistas e trabalhadores assalariados. Se o trabalho abstracto, tal como a concorrência, representa a forma de actividade do capitalismo que se estende a toda a sociedade, não é possível estabelecer uma suposta oposição ao capital a partir do "ponto de vista do trabalho". Este ponto de vista acaba por se revelar uma ilusão, porque trabalho e capital são apenas dois estados de agregação diferentes da mesma relação fetichista irracional: um em forma líquida (trabalho) e outro em forma coagulada (dinheiro).

É precisamente neste ponto que o “duplo Marx” se torna particularmente claro, pois o crítico do valor e do fetichismo revela-se aqui totalmente incompatível com o Marx do movimento operário. Juntamente com a noção positiva e supra-histórica de trabalho, também o motivo para a luta de classes conduzida no invólucro capitalista se torna questionável, pois qualquer crítica, uma vez que vise o sistema de referência comum abrangente na sua forma coagulada de dinheiro, também tem de se referir à comunidade com o trabalho abstracto. Nas passagens respectivas da sua argumentação, Marx qualifica os representantes do capital não simplesmente como "máscaras de personagens” do dinheiro (inimigas), mas também os rebaixa a meros funcionários ou "oficiais e sargentos" do capital, tornando-se assim flutuantes as fronteiras com o trabalho assalariado, mesmo em sentido sociológico.

Para os últimos moicanos do marxismo do trabalho, a negação radical do trabalho talvez seja a mais intolerável de todas as reinterpretações da teoria de Marx. Na verdade, ela toca no cerne do constructo identitário do marxismo, ligado a uma noção positiva e enfática de trabalho, uma vez que o movimento operário, sendo em si “apenas” a "máscara da personagem do capital variável", se tinha identificado apaixonadamente com o estado de agregação vivo e líquido do capital, sem nunca se dar conta dessa ilusão. Talvez por isso, o que resta da esquerda e permanece de algum modo ligado às formas que se desintegram do marxismo do trabalho ou do movimento operário gosta de gritar particularmente alto sobre o tema do "trabalho" e denunciar publicamente como sacrilégio filológico quando a maior parte da massa de textos de Marx conhecida é deitada fora sem cerimónias, para pôr a descoberto as passagens negadoras que apontam para um Marx completamente estranho, logo que separadas do contexto do século do movimento operário.

Mas é a nossa realidade no início do século XXI que torna tão vivamente actual o momento da crítica do trabalho em Marx até agora escondido, enquanto o Marx "amigo do trabalho" já só tem um interesse histórico. Pois tudo o que Marx disse sobre a natureza do trabalho abstracto como uma forma comum e abrangente de socialização capitalista se realizou para além das suas formulações. Enquanto, durante a segunda revolução industrial, desde Henry Ford, a gestão perdeu o carácter corporativo e tornou-se carne da carne da classe operária, como parte de uma simples hierarquia funcional, hoje, na esteira da terceira revolução industrial, os trabalhadores assalariados flexibilizados transformam-se agora em empresários da sua força de trabalho. Os gestores da grandes empresas mundiais, tal como a geração fundadora do capitalismo da Internet, já não são não-trabalhadores barrigudos, mas robots funcionais bem treinados e fanaticamente viciados no trabalho do "seu" capital. Por outro lado, os trabalhadores com empregos permanentes, tal como as vítimas compulsivamente flexibilizadas do outsourcing e o amplo espectro dos empresários de miséria com o seu nu capital humano, fazem os seus cálculos como num inventário de fábrica: o "eu" é uma gestão empresarial. Quando, no final da década de 1990, os trabalhadores metalúrgicos alemães marcharam na área financeira de Frankfurt, empunhando cartazes com a palavra de ordem "Nós somos o capital", com isso ratificaram o fim negativo da luta de classes entre o trabalho e o capital. Este plano da concorrência entre as diferentes categorias funcionais do capital passou para trás da concorrência entre as empresas e os Estados (debate sobre a localização do investimento) e entre os indivíduos atomizados (mesmo dentro do trabalho assalariado).

Se essas pessoas hoje parecem ficar plenamente absorvidas nas suas funções capitalistas, como um animal selvagem em seu ambiente natural, na verdade eles não podem negar essa profunda alienação do homem de si mesmo, que Marx analisou como uma característica essencial do trabalho abstracto. Esta alienação não corresponde a uma superficial pobreza financeira dos muitos humilhados e ofendidos do capitalismo, nem mesmo à miséria física. Na vanguarda do desenvolvimento, justamente, por exemplo, nas pequenas software houses dos "novos mercados", a consciência economificada das gerações pós-modernas assumiu traços de uma auto-redução funcionalista que ainda há poucas décadas seria considerada impossível. O sofrimento com esta auto-imolação económica paranóica e com o infantilismo da maioria dos seus produtos está inscrito no rosto dos "escravos do computador", mesmo que eles não o queiram reconhecer.

Mas o “outro” Marx escondido celebra o seu verdadeiro triunfo teórico por ter previsto um limite interno objectivo da forma social assente no trabalho abstracto. O que, após a II Guerra Mundial, surgiu como um vago pressentimento da aproximação de uma "crise da sociedade do trabalho" (Hannah Arendt) não só é hoje uma realidade palpável, mas já ​​há muito tempo fora previsto e analisado teoricamente por Marx. Este feito da teoria de Marx, talvez o mais surpreendente, resulta da dedução lógica da autocontradição interna que caracteriza o modo de produção capitalista, ao colocar, por um lado, o dispêndio de energia humana como fim em si, e, por outro, ao tornar supérfluo o trabalho no processo de produção do capital, numa escala crescente, por meio da concorrência anónima. Esta contradição é a causa mais profunda das crises capitalistas e, portanto, o pressuposto da teoria da crise de Marx. Este é também o contexto em que Marx usa explicitamente a ominosa palavra "colapso": as rupturas estruturais periódicas, onde o capital ansiando pela "substância de trabalho" tem de ficar insaciado, acabam finalmente numa situação sem saída, porque, devido às suas próprias condições, o capital já não está em posição de consumir rentavelmente quantidades suficientes de trabalho.

Todos os indícios apontam no sentido de que esta situação deduzida por Marx está à vista com a revolução microelectrónica. Nesta fase do desenvolvimento, pela primeira vez a "força produtiva ciência" torna continuamente supérfluo mais trabalho do que é possível reabsorver rentavelmente, através do embaratecimento dos produtos e da consequente expansão dos mercados. As auto-empreendedores da sociedade do conhecimento podem virar-se e revirar-se tão hiperflexivelmente quanto quiserem, que não escaparão ao beco sem saída capitalista do desaparecimento permanente da substância do trabalho. Em Marx eles podem descobrir não só o absurdo e o perigo público da sua furiosa azáfama laboral, mas também o fim definitivo dela. A sociedade do conhecimento realizada já não pode ser capitalista, pois já não pode basear-se na quantificação de quantidades de trabalho social abstracto. Os limites da sociedade do trabalho são os limites do capitalismo. O trabalho alienado está a destruir-se a si mesmo.

 

 

 

 

 

 

O trabalho alienado

Não vamos colocar-nos num estado primitivo imaginário, como faz o economista nacional quando quer esclarecer alguma coisa. Tal estado primitivo não explica nada; simplesmente afasta a questão para uma distância remota e enevoada. Supõe como facto ou acontecimento o que deveria deduzir, ou seja, a relação necessária entre duas coisas, por exemplo, entre a divisão do trabalho e a troca. É assim que a teologia explica a origem do mal pelo pecado original, isto é, ela supõe como um facto, na forma da história, aquilo que deve explicar.

Vamos partir de um facto da economia nacional, presente. O trabalhador fica tanto mais pobre quanto mais produz riqueza e a sua produção cresce em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadorias produz. A desvalorização do mundo dos humanos aumenta na razão directa da valorização do mundo das coisas. O trabalho não produz apenas mercadorias, ele produz-se a si mesmo e ao trabalhador como mercadoria, e isto na medida em que produz mercadorias em geral.

Esse facto não exprime senão isto: o objecto produzido pelo trabalho, o seu produto, opõe-se-lhe agora como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objecto, que se coisificou, é a objectivação do trabalho. A realização do trabalho é a sua objectivação. A realização do trabalho aparece, no estado de economia política, como desrealização do trabalhador, a objectivação aparece como perda do objecto e sujeição a ele, a apropriação aparece como alienação, como renúncia.

A realização do trabalho aparece tanto como desrealização que o trabalhador é desrealizado até morrer de fome. A objectivação aparece tanto como perda do objecto que o trabalhador é despojado dos objectos mais necessários, não só dos objectos da vida, mas também dos objectos do trabalho. O próprio trabalho se torna um objecto do qual ele só se pode apossar com os maiores esforços e com as mais imprevisíveis interrupções. A apropriação do objecto aparece como alienação a tal ponto que quanto mais objectos o trabalhador produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado pelo seu produto, o capital.

Todas essas consequências residem na determinação de o trabalhador se relacionar com o produto do seu trabalho como com um objecto estranho. Pois, segundo este pressuposto, está claro que quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho, tanto mais poderoso se torna perante ele o estranho mundo de objectos por ele criado, tanto mais pobre se torna ele próprio, a sua vida interior, e tanto menos ele pertence a si próprio. É tal e qual como na religião. Quanto mais o homem atribui a Deus, menos lhe resta. O trabalhador põe a sua vida no objecto; então ela já não lhe pertence a ele, mas ao objecto. Quanto maior for esta actividade, portanto, mais inválido é o trabalhador. O que é o produto do seu trabalho não é ele. Quanto maior for o produto do seu trabalho, por conseguinte, tanto menos ele é. A renúncia do trabalhador ao seu produto significa não apenas que o trabalho dele se torna um objecto, uma existência externa, mas ainda que existe fora dele, independente dele e a ele estranho, e que se torna um poder autónomo perante ele, que a vida que ele conferiu ao objecto o confronta de maneira hostil e estranha.

Examinemos agora mais de perto a objectivação, a produção do trabalhador e nela a alienação e perda do objecto, do seu produto. O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Ela é a matéria em que o trabalho se realiza, em que ele actua, com a qual e por meio da qual produz. Mas, tal como a natureza oferece os meios de vida do trabalho, no sentido de que este não poder viver sem objectos nos quais se exerça, também oferece os meios de vida em sentido mais restrito, ou seja, os meios de subsistência física do próprio trabalhador.

Assim, quanto mais o trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais se despoja dos meios de vida em dois aspectos: primeiro, o mundo exterior sensível cada vez mais deixa de ser um objecto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, cada vez mais deixa de ser um meio de vida em sentido imediato, um meio de subsistência física do trabalhador.

Sob os dois aspectos, portanto, o trabalhador se torna um servo do seu objecto: primeiro, por receber um objecto de trabalho, isto é, receber trabalho, e, em segundo lugar, por receber meios de subsistência. Para que possa existir, portanto, primeiro como trabalhador e depois como sujeito físico. O cúmulo desta servidão é que ele só (pode) manter-se como sujeito físico enquanto trabalhador e só como sujeito físico é trabalhador.

(A alienação do trabalhador no seu objecto expressa-se nas leis da economia nacional de tal modo que quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valores cria, tanto menos valioso e mais indigno se torna; quanto mais civilizado o seu objecto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tão mais impotente o trabalhador; quanto mais espiritualmente rico o seu trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador.)

A economia nacional oculta a alienação na natureza do trabalho porque não considera a relação imediata entre o trabalhador (o trabalho) e a produção. Sem dúvida que o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas tugúrios para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas atira alguns trabalhadores para um trabalho bárbaro e converte outros em máquinas. Produz inteligência, mas produz imbecilidade e cretinismo para o trabalhador.

A relação imediata entre o trabalho e os seus produtos é a relação entre o trabalhador e os objectos da sua produção. A relação do abastado com os objectos da produção e com a própria produção é apenas uma consequência dessa primeira relação. E confirma-a ... Portanto, quando perguntamos qual é a relação essencial do trabalho perguntamos pela relação do trabalhador com a produção.

Até aqui considerámos a alienação, a renúncia do trabalhador somente sob um aspecto, o da sua relação com os produtos do seu trabalho. Porém, a alienação não aparece só no resultado, mas também no acto de produção, dentro da própria actividade produtiva. Como poderia o trabalhador confrontar-se alienadamente com o produto da sua actividade se não se alienasse a si mesmo no acto da produção? O produto é, de facto, apenas o resumo da actividade, da produção. Consequentemente, se o produto do trabalho é alienação, a própria produção deve ser alienação activa a alienação da actividade e a actividade da alienação A alienação do objecto do trabalho simplesmente resume a alienação, a renúncia na actividade do próprio trabalho.

Ora em que consiste a renúncia no trabalho?

Primeiro, o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não faz parte da sua natureza, e, por conseguinte, ele não se afirma no seu trabalho, mas nega-se nele, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve energias físicas e mentais livres, mas mortifica o seu físico e arruína o seu espírito. Está à vontade quando não trabalha, quando trabalha não está à vontade. O seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer necessidades fora dele. O seu carácter alienado evidencia-se claramente no facto de, não havendo compulsão física ou qualquer outra, se fugir do trabalho como da peste. O trabalho externo, o trabalho em que o ser humano renuncia a si mesmo, é um trabalho de auto-imolação, de penitência. Finalmente, a renúncia do trabalhador no trabalho surge no facto de este não ser seu, mas de outro, de o trabalho não lhe pertencer, de ele no trabalho não pertencer a si mesmo mas a outro. Tal como na religião a actividade espontânea da fantasia, do cérebro e do coração humanos actua independentemente do indivíduo, ou seja, como uma actividade alheia de deuses ou demónios sobre o indivíduo, assim também a actividade do trabalhador não é a sua auto-actividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo.

Chega-se assim ao resultado de que o ser humano (o trabalhador) já só se sente em actividade livre nas suas funções animais comer, beber e procriar, ou, quando muito, também habitação, embelezamento etc. enquanto que nas suas funções humanas se sente mais um animal. O animal torna-se humano e o humano, animal.

Comer, beber e procriar, evidentemente, também são funções genuinamente humanas. Mas, na abstracção que as separa do restante círculo da actividade humana e faz delas fins últimos e exclusivos, são funções animais.

Examinámos o acto de alienação da actividade humana prática, o trabalho, sob dois aspectos. 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objecto estranho e que o domina. Esta relação é, ao mesmo tempo, a relação com o mundo exterior sensível, com os objectos naturais, como um mundo estranho que se lhe opõe com hostilidade. 2) A relação do trabalho com o acto de produção dentro do trabalho. Esta é a relação do trabalhador com sua própria actividade como actividade estranha, que não lhe pertence, actividade como sofrimento, força como impotência, procriação como castração, a própria energia física e espiritual do trabalhador, a própria vida pessoal pois o que é a vida senão actividade como uma actividade voltada contra ele, independente dele e não pertencente a ele. A alienação de si, tal como acima a alienação da coisa.

Temos agora de inferir ainda uma terceira determinação do trabalho alienado, partindo das duas já vistas.

O ser humano é um ser-género, não apenas no sentido de que ele, na prática e na teoria, toma como objecto seu o género, tanto o próprio como o das outras coisas, mas também e isto é simplesmente outra expressão para a mesma questão no sentido de relacionar-se consigo mesmo como um género presente e vivo, como um ser universal e consequentemente livre.

A vida do género, para o ser humano assim como para o animal, consiste fisicamente desde logo no facto de o ser humano (como o animal) viver da natureza inorgânica, e quanto mais o ser humano é mais universal do que o animal, tanto mais universal é o âmbito da natureza inorgânica de que ele vive. Assim como plantas, animais, minerais, ar, luz, etc. constituem teoricamente uma parte da consciência humana, em parte como objectos das ciências naturais, em parte como objectos da arte a sua natureza inorgânica espiritual, os alimentos espirituais que ele tem de preparar primeiro para a fruição e digestão assim também constituem praticamente parte da vida humana e da actividade humana. Fisicamente, o ser humano vive apenas desses produtos da natureza, apareçam eles sob a forma de alimentação, aquecimento, vestuário, habitação, etc. A universalidade do ser humano aparece, na prática, na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que é 1) um mantimento imediato, bem como na medida em que é 2) a matéria, o objecto e o instrumento da sua actividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do ser humano, nomeadamente a natureza que não é o corpo humano. O ser humano vive da natureza, isto é: a natureza é o corpo dele, com o qual tem de se manter em processo contínuo para não morrer. A afirmação de que a vida física e espiritual do ser humano está ligada com a natureza simplesmente significa que a natureza está ligada consigo mesma, pois o ser humano é parte dela.

O trabalho alienado, ao mesmo tempo que aliena do ser humano 1) a natureza, 2) o próprio ser humano, a sua própria função activa, a sua actividade vital, assim também aliena dele o género humano, torna para ele a vida do género num meio da vida individual. Primeiro, ele aliena a vida do género e a vida individual, e, segundo, faz da última, na sua abstracção, a finalidade da primeira, também na sua forma abstracta e alienada.

Pois o trabalho, a actividade vital, a vida produtiva, aparecem primeiramente ao ser humano apenas como meio para a satisfação de uma necessidade, da necessidade de manter a sua existência física. A vida produtiva, contudo, é a vida do género humano. É vida criando vida. No tipo de actividade vital reside todo o carácter de uma espécie, o seu carácter como género, e a actividade livre, consciente, é o carácter do género humano. A própria vida surge apenas como meio de vida.

O animal é imediatamente um com a sua actividade vital. Não se distingue dela. É ela. O ser humano faz da sua actividade vital mesma um objecto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem actividade vital consciente. Esta não é uma determinação com a qual ele coincida imediatamente. A actividade vital consciente distingue o ser humano imediatamente da actividade vital animal. Justamente e apenas por isso ele é um ser-género. Ou ele apenas é um ser consciente, isto é, a sua própria vida é objecto para ele, precisamente porque ele é um ser-género. Só por isso a sua actividade é actividade livre. O trabalho alienado inverte a relação a tal ponto que o ser humano, justamente porque é um ser consciente, faz da sua actividade vital, da sua essência, unicamente um meio para sua existência.

A construção prática de um mundo objectivo, a elaboração da natureza inorgânica é a confirmação do ser humano como ser-género consciente, isto é, um ser que se relaciona com o género como o seu próprio ser e consigo enquanto ser-género. É verdade que o animal também produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, o castor, a formiga etc. Mas só produz o que necessita imediatamente para si ou para a sua cria; só produz unilateralmente, enquanto o ser humano produz universalmente; só produz sob o domínio da necessidade física imediata, enquanto o ser humano produz mesmo livre da necessidade física e, na verdade, só produz na liberdade de si próprio; só se produz a si mesmo, enquanto o ser humano reproduz toda a natureza; o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o ser humano se confronta livremente com o seu produto. O animal só dá forma de acordo com a medida e a necessidade da espécie a que pertence, enquanto o ser humano sabe produzir de acordo com a medida de qualquer espécie e sabe considerar em toda a parte a medida inerente ao objecto; por isso o ser humano também dá forma de acordo com as leis da beleza.

Por isso é justamente apenas na elaboração do mundo dos objectos que o ser humano realmente se comprova como um ser-género. Essa produção é a sua vida de género em actividade. Através dela, a natureza aparece como obra sua e sua realidade. O objecto do trabalho, portanto, é a objectivação da vida de género do ser humano: pois ele não se duplica apenas intelectualmente, como na consciência, mas activamente e em sentido real, contemplando-se por isso a si mesmo num mundo por si criado. Por isso, quando o trabalho alienado arranca do ser humano o objecto da sua produção, também lhe arranca a sua vida de género, a sua real objectividade de género, e transforma a sua vantagem em relação ao animal na desvantagem de lhe ser retirado o seu corpo inorgânico, a natureza.

Do mesmo modo, quando o trabalho alienado reduz a auto-actividade, a actividade livre, a um meio, também faz da vida de género do ser humano um meio da existência física.

A consciência que o ser humano tem do seu género é transformada por meio da alienação, de modo que a vida de género torna-se para ele num meio.

Então, o trabalho alienado converte:

3) o ser-género do ser humano, tanto a natureza como as suas capacidades intelectuais de género, num ser que lhe é estranho, num meio para a sua existência individual. Ele aliena do ser humano o seu próprio corpo, tal como a natureza fora dele, tal como a sua essência espiritual, a sua natureza humana.

4) Uma consequência imediata disso, de o ser humano estar alienado do produto do seu trabalho, da sua actividade vital e do seu ser-género, é a alienação do ser humano perante o ser humano. Quando o ser humano se defronta consigo mesmo, defronta-se com outro ser humano. O que se aplica à relação do ser humano com o seu trabalho, com o produto do seu trabalho e consigo mesmo, também se aplica à relação do ser humano com outros humanos, tal como com o trabalho e com os objectos do trabalho dos outros humanos.

Em geral, a declaração de que o ser humano está alienado do seu ser-género, significa que cada ser humano está alienado do outro, e cada um deles está alienado da essência humana.

A alienação do ser humano, e em geral qualquer relação na qual o ser humano está perante si mesmo, só se realiza, só se expressa na relação do ser humano com outros seres humanos.

Assim, na relação do trabalho alienado, cada ser humano encara os demais de acordo com o critério e a relação em que ele se encontra como trabalhador.

Partimos de um facto da economia nacional, a alienação do trabalhador e da sua produção. Expressámos o conceito desse facto, o trabalho alienado, a que se renunciou. Analisámos esse conceito, analisámos por conseguinte apenas um facto da economia nacional.

Continuemos agora a analisar como tem de se enunciar e expor esse conceito de trabalho alienado, a que se renunciou. Se o produto do trabalho me é estranho e me enfrenta como um poder estranho, a quem pertence ele então?

Se a minha própria actividade não me pertence, é uma actividade alienada, forçada, a quem pertence ela então?

A outro ser, que não eu. E quem é esse ser?

Os deuses? É evidente que nos tempos primitivos, tanto a produção principal, por exemplo, a construção de templos etc. no Egipto, na Índia, no México surge ao serviço dos deuses, como também o produto lhes pertence. Mas os deuses sozinhos nunca foram os senhores do trabalho. Nem tão-pouco a natureza. E que contradição seria também se, quanto mais o ser humano subjugasse a natureza com o seu trabalho, quanto mais as maravilhas dos deuses fossem tornadas obsoletas pelas da industria, mais o ser humano tivesse de renunciar à alegria da produção e à fruição do produto por amor a esses poderes!

O ser estranho a quem pertence o trabalho e o produto do trabalho, a cujo serviço está o trabalho e que tem a fruição do produto do trabalho, só pode ser o próprio ser humano.

 ... A relação do trabalhador com o trabalho dá origem à relação do capitalista (ou como quer que se denomine ao dono do trabalho) com o trabalho. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a consequência inevitável do trabalho a que se renunciou, externalizado, da relação externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo.

A propriedade privada, portanto, deriva-se através da análise do conceito de trabalho externalizado, isto é, de ser humano externalizado, de trabalho alienado, de vida alienada, de ser humano alienado.

Certamente que obtivemos o conceito de trabalho externalizado (de vida externalizada) da economia nacional, como resultado do movimento da propriedade privada. Mas evidencia-se da análise deste conceito que, se a propriedade privada aparece como a base e a causa do trabalho externalizado, ela é mais uma consequência dele, tal como os deuses não são originalmente a causa, mas o efeito do erro do entendimento humano. Mais tarde essa relação transforma-se em efeito recíproco.

Só no último ponto culminante deste desenvolvimento da propriedade privada volta a vir à tona o seu segredo, nomeadamente, primeiro, que é o produto do trabalho externalizado, e, segundo, que é o meio através do qual o trabalho se externaliza, a realização dessa externalização

A economia nacional parte do trabalho como a verdadeira alma da produção e, no entanto, não dá nada ao trabalho e dá tudo à propriedade privada. Proudhon, defrontando-se com esta contradição, decidiu a favor do trabalho contra a propriedade privada. Vemos, contudo, que essa aparente contradição é a contradição do trabalho alienado consigo mesmo e que a economia nacional apenas formulou as leis do trabalho alienado.

Por isso também vemos que salário e propriedade privada são idênticos: pois o salário, onde o produto, o objecto do trabalho, paga o próprio trabalho, é apenas a consequência necessária da alienação do trabalho

Um aumento do salário imposto (abstraindo de todas as outras dificuldades, abstraindo de que como anomalia também só poderia ser mantido pela força) não passaria de uma assalariação melhor dos escravos, e não teria conquistado nem para o trabalhador nem para o trabalho a sua determinação e dignidade humanas.

Mesmo a igualdade de salários que Proudhon exige só modificaria a relação do trabalhador de hoje com o seu trabalho na relação de todos os seres humanos com o trabalho. A sociedade seria então concebida como um capitalista abstracto.

O salário é a consequência imediata do trabalho alienado e o trabalho alienado é a causa imediata da propriedade privada. Por isso, com um dos lados tem de cair também o outro

Em primeiro lugar, é de notar que tudo o que aparece ao trabalhador como uma actividade de externalização, de alienação, aparece no não-trabalhador como estado de externalização, de alienação.

Em segundo lugar, a atitude prática real do trabalhador na produção e face ao produto (como estado de espírito) afigura-se ao não-trabalhador, que com ele se defronta, como uma atitude teórica.

Em terceiro lugar, o não-trabalhador faz contra o trabalhador tudo que este faz contra si mesmo, mas não faz contra si mesmo o que faz contra o trabalhador.

  Assim, o que existe subjectivamente no trabalhador é que o capital é o ser humano completamente perdido para si mesmo, tal como o que existe objectivamente no capital é que o trabalho é o ser humano perdido para si mesmo. Contudo, o trabalhador tem a infelicidade de ser um capital vivo, um capital com necessidades, que no momento em que não trabalha perde os seus juros, e com eles a sua existência. Como capital, o valor do trabalhador varia conforme a procura e a oferta, e, mesmo fisicamente, a sua existência, a sua vida, foi e é considerada como uma oferta de mercadoria, como qualquer outra. O trabalhador produz o capital e o capital produz o trabalhador, assim, ele próprio, e o ser humano como trabalhador, como mercadoria, é o produto de todo o movimento. Para o ser humano que não passa de trabalhador as suas qualidades humanas só existem na medida em que existem para o capital que lhe é alheio. Mas como são alheios um ao outro, estando portanto numa relação de indiferença exterior e acidental, esse carácter de alienação tem de surgir como real. Logo que ocorre ao capital necessária ou voluntariamente deixar de existir para o trabalhador, este deixa de existir para si mesmo: não tem trabalho, nem salário, e como existe exclusivamente como trabalhador e não como ser humano, pode perfeitamente deixar-se enterrar, morrer à fome etc. O trabalhador só existe como trabalhador quando existe como capital para si próprio, e só existe como capital quando existe um capital para si. A existência do capital é a sua existência, a sua vida, visto determinar o conteúdo da sua vida de modo indiferente para com ele. A economia nacional, portanto, não reconhece o trabalhador desempregado, o ser humano do trabalho colocado fora dessa relação de trabalho. Patifes, ladrões, mendigos, os desempregados, o ser humano do trabalho faminto, indigente e criminoso, são figuras que não existem para ela, mas apenas para os olhos de outros, para os olhos dos médicos, juízes, coveiros, burocratas, etc., são fantasmas fora do seu reino. As necessidades do trabalhador, portanto, são para ela a necessidade de mantê-lo durante o trabalho, e apenas para que não desapareça a estirpe dos trabalhadores. Consequentemente, o salário tem exactamente o mesmo significado que a conservação e manutenção de qualquer outro instrumento de produção, que o consumo de capital em geral, necessário para que este possa reproduzir-se a si mesmo com juros, como o óleo aplicado a uma roda para mantê-la em movimento

A produção produz o ser humano não apenas como uma mercadoria, a mercadoria humana, o ser humano determinado como mercadoria, produ-lo, de acordo com essa determinação, como um ser desumanizado tanto espiritual como corporalmente. Imoralidade, deformação, escravidão de trabalhadores e capitalistas. O seu produto é a mercadoria com consciência própria e actividade própria, a mercadoria humana ... Grande passo de Ricardo, Mill, etc., contra Smith e Say, declararem a presença do ser humano a maior ou menor produtividade humana da mercadoria como indiferente, ou mesmo prejudicial. O verdadeiro objectivo da produção não é o número de trabalhadores sustentados por determinado capital, mas o volume de juros que ele rende, a soma das poupanças anuais ... A produção da actividade humana como trabalho, isto é, como actividade alheia a si mesma, ao ser humano e à natureza, e portanto igualmente alheia à consciência e à expressão da vida, a existência abstracta do ser humano como um mero ser humano do trabalho que, por conseguinte, diariamente pode saltar da sua acabada nulidade para a nulidade absoluta, para a sua não-existência social e por isso real tal como, por outro lado, a produção do objecto da actividade humana como capital, onde toda a determinação natural e social do objecto é dissolvida, onde a propriedade privada perdeu a sua qualidade natural e social , e onde o mesmo capital também permanece o mesmo nas mais diversas vivências naturais e sociais, completamente indiferente ao seu conteúdo real esta contradição levada ao cúmulo é forçosamente o apogeu e o declínio de toda a relação.

  Na indústria, etc., pelo contrário da propriedade fundiária imóvel, exprime-se apenas o modo originário e a oposição em que a indústria se desenvolveu face à agricultura. Como um tipo particular de trabalho, como diferença essencial, importante, abarcando a vida, esta diferença apenas subsiste na medida em que a indústria (vida urbana) se estabelece em oposição à propriedade da terra (vida feudal aristocrática), e ainda leva em si o carácter feudal da sua oposição na forma do monopólio, do grémio, da guilda, da corporação etc., no interior de cujas determinações o trabalho ainda tem um significado aparentemente social, ainda tem o significado da efectiva vida comunal, e ainda não evoluiu para a indiferença face ao seu conteúdo e para o completo ser para si mesmo, isto é, para a abstracção de qualquer outro ser, nem portanto ainda para capital liberto.

Mas, o desenvolvimento forçoso do trabalho é a indústria liberta, constituída somente para si mesma, e o capital libertado

A relação de propriedade privada é trabalho, capital e a relação entre ambos.

O movimento que estes elementos têm de percorrer é:

Primeiro unidade imediata ou mediada de ambos.

Capital e trabalho primeiramente ainda unidos; depois, com efeito, separados e alienados, mas aumentando-se e promovendo-se reciprocamente como condições positivas.

Oposição entre os dois excluem-se mutuamente; o trabalhador identifica o capitalista como a sua própria não-existência e vice-versa; cada um procura arrancar ao outro a sua existência.

Oposição de cada um contra si mesmo. Capital = trabalho acumulado = trabalho. Decompondo-se enquanto tal em si e nos seus juros, e estes novamente em juros e lucro. Sacrifício completo do capitalista. Ele cai na classe trabalhadora, tal como o trabalhador mas só excepcionalmente se torna capitalista. Trabalho como momento do capital, seus custos. Portanto o salário um sacrifício do capital.

Dividir o trabalho em si e no salário. O próprio trabalhador um capital, uma mercadoria.

Colisão de oposições recíprocas

 

A essência subjectiva da propriedade privada, a propriedade privada como actividade para si, como sujeito, como pessoa, é o trabalho. Compreende-se, portanto, que apenas a economia nacional, que reconheceu o trabalho como seu princípio Adam Smith , ou seja, já não viu a propriedade privada apenas como um estado exterior ao ser humano, que essa economia nacional possa ser considerada tanto um produto da energia e do movimento efectivos da propriedade privada (ela é movimento independente da propriedade privada tornado para si na consciência, a indústria moderna como si mesma), um produto da indústria moderna, quanto por outro lado ela acelerou e glorificou como um poder da consciência a energia e o desenvolvimento desta industria ... Engels chamou com razão Adam Smith o Lutero da economia nacional. Assim como Lutero reconheceu a religião, a fé como a essência do mundo exterior e por isso a contrapôs ao paganismo católico, assim como ele anulou a religiosidade exterior enquanto fazia da religiosidade a essência interior do ser humano, assim como ele negou o padre existente fora do leigo porque deslocou o padre para o coração do leigo, assim também é anulada a riqueza existente fora do ser humano e dele independente portanto que só pode ser mantida e afirmada de modo exterior , ou seja, esta sua objectividade impensada exterior é anulada pelo facto de a propriedade privada ser incorporada ao próprio ser humano e o próprio ser humano ser reconhecido como a sua essência mas assim o próprio ser humano é posto na determinação da propriedade privada, como em Lutero é posto na determinação da religião. Assim, sob a aparência de um reconhecimento do ser humano, a economia nacional, cujo princípio é o trabalho, é, pelo contrário, apenas a realização consequente da negação do ser humano, na medida em que ele já não está numa tensão externa com a essência externa da propriedade privada, mas ele próprio se tornou essa essência tensa da propriedade privada. O que antes era ser exterior a si mesmo, externalização real do ser humano, tornou-se agora o acto de externalização, a alienação. Se por conseguinte esta economia nacional parece a princípio reconhecer o ser humano com a sua independência, a sua actividade pessoal, etc., e se quando transfere a propriedade privada para essência mesma do ser humano não pode ser condicionada pelas determinações locais ou nacionais da propriedade privada como ser existente fora dela mesma; se, portanto, desenvolve uma energia cosmopolita, universal, que remove qualquer limite e qualquer vínculo, colocando-se a si mesma como a única política, única universalidade, único limite e único vínculo então, na continuação do desenvolvimento, terá de rejeitar esta hipocrisia e mostrar-se em seu completo cinismo; o que ela faz, sem se preocupar com as contradições aparentes a que a sua doutrina a conduz, revelando duma maneira muito mais exclusiva e por isso mais nítida e consequente o trabalho como a única essência da riqueza; e demonstrando que, pelo contrário da concepção original, essa doutrina é hostil ao ser humano; finalmente, ela aplica o golpe de morte à última forma individual e natural da propriedade privada e fonte de riqueza existente independentemente do movimento do trabalho, a renda da terra, expressão da propriedade feudal incapaz de resistir à economia nacional e tornada completamente desta Não só o cinismo da economia nacional aumenta relativamente a partir de Smith, passando por Say, para chegar a Ricardo, Mill, etc., uma vez que as consequências da indústria se apresentam mais desenvolvidas e contraditórias para estes últimos, mas ainda, em temos positivos, estes vão sempre e conscientemente mais longe na alienação contra o ser humano, e isto apenas porque a sua ciência se desenvolve com mais consequência e verdade. Uma vez que fazem da propriedade privada em sua configuração activa o sujeito, e fazem ao mesmo tempo do ser humano a essência e ao mesmo tempo do ser humano como miséria-de-não-ser a essência, assim a contradição da realidade corresponde plenamente à essência totalmente contraditória que reconheceram como princípio. A realidade dilacerada da indústria confirma o seu princípio em si dilacerado, muito longe de o refutar. O seu princípio, com efeito, é o princípio deste dilaceramento.

Manuscritos económico-filosóficos, 1844

 

A classe possuidora e a classe do proletariado representam a mesma auto-alienação humana, mas a primeira sente-se bem e confirmada nesta auto-alienação, reconhece a alienação como o seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada na alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana.

A sagrada família ou crítica da crítica crítica, com Friedrich Engels, 1845

 

Os efeitos que as coisas têm como momentos objectivos do processo de trabalho são-lhes atribuídos no capital como possuídos por elas, na sua personificação. Autonomia face ao trabalho. Elas deixariam de ter esses efeitos se deixassem de se comportar em relação ao trabalho nesta forma alienada. O capitalista como capitalista é apenas a personificação do capital, a criação do trabalho dotada de vontade e personalidade próprias em oposição ao trabalho. Hodgskin concebe isto como uma ilusão puramente subjectiva, atrás da qual se esconde a mentira e o interesse das classes exploradoras. Ele não vê que o modo da concepção emana da própria relação real, não é a última que é a expressão da primeira, mas pelo contrário.

Teorias sobre a mais-valia, escrito em 1861-1863

 

Que se estabelece com o salário? A vida do operário. Com ele estabelece-se ainda que o operário é escravo do capital, que é uma mercadoria, um valor de troca, cujo nível mais ou menos elevado, cuja subida ou descida depende da concorrência, da procura e da oferta; estabelece-se, assim, que a sua actividade não é uma exteriorização livre da sua vida humana, mas sim um desbaratar das suas forças, uma venda (ao desbarato) de capacidades parciais do mesmo ao capital, num palavra, que ele é trabalho. Esqueçamos agora isso. O trabalho é a base viva da propriedade privada, é a propriedade privada enquanto fonte criadora de si mesma. A propriedade privada mais não é do que trabalho objectivado. Se se quiser desferir um golpe mortal contra a propriedade privada, é preciso atacá-la não apenas enquanto estado de coisas objectivo, mas também enquanto actividade, enquanto trabalho. É um dos mais graves equívocos falar de trabalho livre, humano, social, falar de trabalho sem propriedade privada. O trabalho é pela sua essência a actividade não humana, não livre, não social, condicionada pela propriedade privada e criando a propriedade privada. Portanto, a abolição da propriedade privada só se tornará realidade quando for concebida como abolição do trabalho, abolição que naturalmente só se torna possível através do próprio trabalho, ou seja, só se torna possível através da actividade material da sociedade, e de modo nenhum pode ser entendida como substituição de uma categoria por outra. Por isso uma organização do trabalho é uma contradição. A melhor organização que o trabalho pode conseguir é a organização actual, a livre concorrência, a dissolução de todas as anteriores organizações aparentemente sociais do trabalho.

Sobre o livro de Friedrich List "O sistema nacional da economia política, 1845

 

O azar de ser trabalhador produtivo

O facto de o quantum de trabalho ser assumido como medida do valor, sem se considerar a qualidade, supõe por sua vez que o trabalho simples se tornou o fulcro da indústria. Supõe que os trabalhos se igualam pela subordinação do homem à máquina, ou pela divisão extrema do trabalho; que os homens se curvam diante do trabalho; que o pêndulo do relógio se torna a medida exacta da actividade relativa de dois operários, como o é da velocidade de duas locomotivas. Assim, já não se deve dizer que uma hora de um homem vale uma hora de outro homem, mas sim que um homem durante uma hora vale tanto como outro homem durante uma hora. O tempo é tudo, o homem já não é nada; ele é quando muito a carcaça do tempo. Não se trata mais de qualidade. A quantidade decide tudo sozinha: hora por hora, dia por dia. Mas esta igualação do trabalho não é obra da justiça eterna do sr. Proudhon. É simplesmente a consequência da indústria moderna.

Na fábrica a trabalhar com máquinas, o trabalho de um operário quase já não se distingue do trabalho de outro operário: os operários só podem distinguir-se entre si pela quantidade de tempo que empregam no trabalho. Entretanto, esta diferença quantitativa torna-se, de um certo ponto de vista, qualitativa, na medida em que o tempo a ser empregado no trabalho depende, em parte, de causas puramente materiais, tais como a constituição física, a idade, o sexo; em parte, de causas morais, puramente negativas, tais como a paciência, a impassibilidade, a assiduidade. Enfim, se há uma diferença de qualidade no trabalho dos operários, é quando muito uma qualidade da pior qualidade, que está longe de ser uma especialidade distintiva. Eis qual é, em última análise, o estado de coisas na indústria moderna.

Miséria da filosofia. Resposta à Filosofia da miséria de Proudhon, 1847

 

A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria, é essencialmente produção de mais-valia. O trabalhador não produz para si, mas para o capital. Não basta, portanto, que produza em geral. Ele tem de produzir mais-valia. Apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista, ou serve à autovalorização do capital. Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, então um mestre-escola é um trabalhador produtivo se não apenas trabalha as cabeças das crianças, mas se mata a trabalhar para enriquecer o empresário. O facto de este último ter investido o seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de numa fábrica de salsichas, não altera nada na relação. O conceito de trabalho produtivo, portanto, não encerra de modo nenhum apenas uma relação entre actividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social, formada historicamente, a qual marca o trabalhador como meio directo de valorização do capital. Ser trabalhador produtivo não é, portanto, sorte, mas azar.

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

O capital como monstro animado do trabalho

De facto, no processo de produção do capital o trabalho é uma totalidade uma combinação de trabalhos cujos componentes singulares são estranhos entre si, de modo que o trabalho total como totalidade não é a obra do trabalhador singular, sendo a obra de diversos trabalhadores conjunta exclusivamente se eles são combinados, e não porque em seu comportamento recíproco eles combinam seus trabalhos. Em sua combinação, esse trabalho aparece servindo a uma vontade e inteligência estranhas, e dirigido por tal inteligência tendo sua unidade anímica fora de si, assim como sua unidade material subordinada à unidade objectiva da maquinaria, do capital fixo, que, como monstro animado, objectiva o pensamento científico e é, de facto, a sua síntese, e de maneira nenhuma se comporta como instrumento em relação ao trabalhador singular, trabalhador que, pelo contrário, existe nele como pontualidade singular animada, como acessório singular vivo.

O trabalho combinado, desse modo, é combinação em si em duplo sentido; não é combinação como relação mútua dos indivíduos trabalhando em conjunto nem com o seu controlo, seja sobre sua função particular ou isolada, seja sobre o instrumento de trabalho. Por essa razão, se o trabalhador se relaciona com o produto do seu trabalho como um produto alheio, ele também se relaciona com o trabalho combinado como um trabalho alheio, mesmo com o seu próprio trabalho, uma manifestação vital que certamente faz parte dele, mas que lhe é alheia, imposta

O próprio trabalho, assim como o seu produto, é negado como trabalho do trabalhador particular, individualizado. Na verdade, o trabalho individualizado negado é de facto o trabalho posto como trabalho colectivo ou combinado. Todavia, colocado desta maneira, colectivo ou combinado, o trabalho seja como actividade, seja convertido na forma imóvel do objecto é posto simultânea e imediatamente como algo distinto do trabalho singular efectivamente existente como objectividade alheia (propriedade alheia), bem como subjectividade alheia (do capital). Por conseguinte, o capital representa tanto o trabalho quanto o seu produto como trabalho individualizado negado e, em consequência, como propriedade negada do trabalhador individual. Por isso, o capital é a existência do trabalho social sua combinação como sujeito e como objecto , mas essa própria existência como autónoma em relação aos seus momentos efectivos ou seja, ele próprio como existência particular ao lado do trabalho social. Por seu lado, o capital aparece consequentemente como o sujeito dominante e proprietário do trabalho alheio, e sua própria relação é uma relação de uma contradição tão completa quanto a da relação do trabalho assalariado O pôr do indivíduo como um trabalhador, nessa nudez, é em si um produto histórico

A associação dos trabalhadores cooperação e divisão do trabalho como condições fundamentais da produtividade do trabalho aparece, como todas as forças produtivas do trabalho, isto é, forças que determinam o grau da sua intensidade e, por isso, a sua realização extensiva, como força produtiva do capital. A força colectiva do trabalho, o seu carácter como trabalho social, é, por conseguinte, a força colectiva do capital. Como a ciência. Como a divisão do trabalho, tal como ela aparece enquanto divisão dos empregos e respectiva troca. Todas as potências sociais da produção são forças produtivas do capital e, consequentemente, o próprio capital aparece como seu sujeito. Por isso, a associação dos trabalhadores, tal como aparece na fábrica, tampouco é posta por eles, mas pelo capital. Sua união não é a sua existência, mas a existência do capital. Perante o trabalhador singular, ela aparece como fortuita. Ele relaciona-se com a sua própria união com outros trabalhadores e com a cooperação com eles como algo estranho, como modos de acção do capital

O capital que se consome no próprio processo de produção, ou capital fixo, é, no sentido enfático do termo, meio de produção. Em sentido amplo, todo o processo de produção e cada momento dele, bem como da circulação na medida em que for materialmente considerado é somente meio de produção para o capital, para o qual só existe o valor como fim em si mesmo ... Enquanto continua sendo meio de trabalho no sentido próprio do termo, tal como levado directa e historicamente pelo capital para dentro do seu processo de valorização, o meio de trabalho experimenta unicamente uma mudança formal, no sentido de que, agora, do ponto de vista material, ele aparece não só como meio de trabalho, mas ao mesmo tempo como um modo de existência particular dele, determinado pelo processo total do capital como capital fixo. Incorporado no processo de produção do capital, o meio de trabalho passa por diversas metamorfoses, das quais a última é a máquina ou, melhor dizendo, um sistema automático de maquinaria (sistema da maquinaria; o automático é apenas a sua forma mais adequada, mais aperfeiçoada, e somente o que transforma a própria maquinaria em sistema), posto em movimento por um autómato, por uma força motriz que se movimenta por si mesma; tal autómato consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros conscientes dele.

Na máquina e mais ainda na maquinaria como sistema automático, o meio de trabalho é transformado quanto ao seu valor de uso, isto é, quanto à sua existência material, em uma existência adequada ao capital fixo e ao capital como um todo, e a forma em que foi incorporado como meio de trabalho imediato no processo de produção do capital foi abolida numa forma posta pelo próprio capital e a ele correspondente. Em nenhum sentido a máquina aparece como meio de trabalho do trabalhador individual. A sua differentia specifica não é de modo nenhum, como no meio de trabalho, a de mediar a actividade do trabalhador sobre o objecto; pelo contrário, esta actividade é posta de tal modo que tão somente medeia o trabalho da máquina, a sua acção sobre a matéria-prima supervisionando-a e mantendo-a livre de falhas. Não é como no instrumento, que o trabalhador anima como um órgão com a sua própria habilidade e actividade e cujo manejo, em consequência, dependia de sua virtuosidade. pelo contrário, a própria máquina, que para o trabalhador possui destreza e força, é a virtuosa que possui a sua própria alma nas leis mecânicas que nela actuam, e que para seu contínuo automovimento consome carvão, óleo etc. ... da mesma maneira que o trabalhador consome alimentos.

A actividade do trabalhador, limitada a uma mera abstracção da actividade, é determinada e regulada em todos os aspectos pelo movimento da maquinaria, e não o inverso. A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem adequadamente como autómatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas actua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina. Na produção baseada na maquinaria, a apropriação do trabalho vivo pelo trabalho objectivado da força ou actividade valorizadora pelo valor existente por si inerente ao conceito de capital é posta como carácter do próprio processo de produção, inclusive de acordo com os seus elementos materiais e o seu movimento material. O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no sentido de processo dominado pelo trabalho como unidade que o governa. pelo contrário, o trabalho aparece unicamente como órgão consciente, disperso em muitos pontos do sistema mecânico em forma de trabalhadores vivos individuais, subsumido ao processo total da própria maquinaria, ele próprio só um membro do sistema, cuja unidade não existe nos trabalhadores vivos, mas na maquinaria viva (activa), que aparece como organismo poderoso perante a actividade isolada, insignificante do trabalhador.

Na maquinaria, o trabalho objectivado contrapõe-se ao trabalho vivo no próprio processo de trabalho como poder que o governa, poder que, pela sua forma, é o capital como apropriação do trabalho vivo. A incorporação do processo de trabalho como simples momento do processo de valorização do capital também é posta quanto ao aspecto material pela transformação do meio de trabalho em maquinaria e do trabalho vivo em mero acessório vivo dessa maquinaria, como meio de sua acção. A relação de capital como valor que se apropria da actividade valorizadora é posta no capital fixo, que existe como maquinaria, ao mesmo tempo que a relação do valor de uso do capital com o valor de uso da capacidade de trabalho; o valor objectivado na maquinaria aparece, além disso, como um pressuposto, diante do qual o poder valorizador da capacidade de trabalho individual desaparece como algo infinitamente pequeno na forma como o produto é produzido e nas condições em que é produzido já está posto que ele é produzido exclusivamente como portador de valor A acumulação do saber e da habilidade, das forças produtivas gerais do cérebro social, é desse modo absorvida no capital em oposição ao trabalho, e aparece consequentemente como qualidade do capital, mais precisamente do capital fixo, na medida em que ele ingressa como meio de produção propriamente dito no processo de produção O saber aparece na maquinaria como algo estranho O trabalhador aparece como supérfluo desde que a sua acção não seja condicionada pelas necessidades do capital

O tempo de trabalho como medida da riqueza põe a própria riqueza como riqueza fundada sobre a pobreza e o disposable time como tempo existente apenas na e por meio da oposição ao tempo do trabalho excedente, ou pôr todo o tempo do indivíduo como tempo de trabalho, com a consequente degradação do mesmo a mero trabalhador, a sua subsunção ao trabalho. Por isso, a maquinaria mais desenvolvida força o trabalhador a trabalhar agora mais tempo do que o fazia o selvagem ou ele próprio com as suas ferramentas mais simples e rudimentares.

Linhas gerais da crítica da economia política [Grundrisse]. Rascunho. 1857-1858

 

Os oficiais e sargentos do capital

Com a cooperação de muitos trabalhadores assalariados, o comando do capital converte-se numa exigência para a execução do próprio processo de trabalho, numa verdadeira condição da produção. As ordens do capitalista no campo de produção tornam-se agora tão indispensáveis como as ordens do general no campo de batalha

A cooperação dos assalariados é mero efeito do capital, que os utiliza simultaneamente. A conexão das suas funções e a sua unidade como corpo total produtivo situam-se fora deles, no capital que os reúne e os mantém unidos. A conexão dos seus trabalhos confronta-os assim idealmente como plano, na prática como autoridade do capitalista, como poder de uma vontade alheia que subordina a sua actividade ao objectivo dela.

Assim, se a direcção capitalista é dúplice quanto ao seu conteúdo, em virtude da duplicidade do próprio processo de produção que dirige, o qual por um lado é processo social de trabalho para a elaboração de um produto, e, por outro, processo de valorização do capital, ela é despótica quanto à forma. Com o desenvolvimento da cooperação em maior escala, esse despotismo desenvolve suas formas peculiares

Do mesmo modo que um exército precisa de oficiais e sargentos militares, uma massa de trabalhadores que cooperam sob o comando do mesmo capital necessita de oficiais (dirigentes, managers) e sargentos (capatazes, foremen, overlookers, contre-maîtres) industriais, que durante o processo de trabalho comandam em nome do capital. O trabalho de superintendência cristaliza-se na sua função exclusiva

Como pessoas independentes, os trabalhadores são indivíduos que entram em relação com o mesmo capital, mas não entre si. A sua cooperação começa só no processo de trabalho, mas no processo de trabalho eles já deixaram de pertencer a si mesmos. Com a entrada nele são incorporados ao capital. Como cooperadores, como membros de um organismo que trabalha, eles não são mais do que um modo específico de existência do capital.

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

A autoridade que o capitalista assume no processo imediato de produção como personificação do capital, a função social de que ele se reveste como condutor e dominador da produção é essencialmente diferente da autoridade na base da produção com escravos, servos etc.

Enquanto, na base da produção capitalista, à massa dos produtores imediatos se contrapõe o carácter social da sua produção na forma de uma autoridade rigorosamente reguladora e de um mecanismo social do processo de trabalho articulado como hierarquia completa autoridade que, no entanto, só é devida aos seus portadores como personificação das condições de trabalho perante o trabalho e não, como em formas anteriores de produção, como dominadores políticos ou teocráticos , entre os portadores dessa autoridade, os próprios capitalistas, que só se defrontam como possuidores de mercadorias, predomina a mais completa anarquia, dentro da qual o nexo interno da produção social só como lei natural de poder superior se impõe à arbitrariedade individual.

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, Hamburgo, 1894

 

As empresas por acções em geral desenvolvidas com o sistema de crédito têm a tendência a separar cada vez mais esse trabalho de direcção como função da propriedade do capital, seja ele próprio ou emprestado; exactamente do mesmo modo que, com o desenvolvimento da sociedade burguesa, as funções jurídicas e administrativas se separam da propriedade fundiária, da qual eram atributos na época feudal. Mas, uma vez que, por um lado, o capitalista funcionante confronta o mero proprietário do capital, o capitalista monetário, e com o desenvolvimento do crédito esse mesmo capital monetário assume carácter social, sendo concentrado em bancos e emprestado por estes e não por seus proprietários directos; e, por outro lado, o mero dirigente, que não possui o capital a título nenhum, nem por empréstimo nem de qualquer outra maneira, exerce todas as funções reais que cabem ao capitalista funcionante como tal fica apenas o funcionário, e o capitalista desaparece do processo de produção, como pessoa supérflua.

O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, Hamburgo, 1894

 

O capital aparece no processo de produção como director do trabalho, como comandante deste (captain of industry) e desempenha assim um papel activo no próprio processo de trabalho. Mas na medida em que estas funções resultam da forma específica da produção capitalista portanto da dominação do capital sobre o trabalho considerado como o seu trabalho, e consequentemente sobre os trabalhadores considerados como seus instrumentos, da natureza do capital que aparece como a unidade social, o sujeito da forma social do trabalho, que se personifica nele enquanto poder sobre o trabalho este trabalho ligado à exploração (que também pode ser confiado a um gerente) é um trabalho que também entra no valor do produto, como o do trabalhador assalariado, tal como no caso da escravidão o trabalho do vigilante dos escravos também tem de ser pago como o do próprio trabalhador ...

A função de direcção, o labour of superintendence também pode agora ser comprado no mercado, sendo relativamente barato produzi-lo, e portanto também comprá-lo, como qualquer outra capacidade de trabalho. Foi a própria produção capitalista que nos trouxe até este ponto em que o labour of direction, completamente separado da propriedade do capital, seja este próprio ou alheio, se apresenta disponível. Tornou-se perfeitamente inútil que este  labour of direction seja exercido pelos capitalistas. Ele existe na realidade separado do capital.

Teorias sobre a mais-valia, escrito em 1861-1863

 

A destruição da Terra pelo trabalho

Com a preponderância sempre crescente da população urbana que se amontoa em grandes centros, a produção capitalista, por um lado, acumula a força motriz histórica da sociedade, mas, por outro, perturba o metabolismo entre o homem e a terra, isto é, o retorno à terra dos componentes da terra consumidos pelo homem sob forma de alimentos e vestuário, ou seja, a eterna condição natural de fertilidade permanente do solo. Com isso, ela destrói simultaneamente a saúde física dos trabalhadores urbanos e a vida espiritual dos trabalhadores rurais. Mas, ao destruir as condições desse metabolismo desenvolvidas espontaneamente, obriga simultaneamente a restaurá-lo de maneira sistemática, como lei reguladora da produção social e numa forma adequada ao pleno desenvolvimento humano. Tanto na agricultura como na manufactura, a transformação capitalista do processo de produção aparece ao mesmo tempo como martirológio dos produtores, o meio de trabalho como um meio de subjugação, exploração e pauperização do trabalhador, a combinação social dos processos de trabalho como opressão organizada da sua vitalidade, liberdade e autonomia individuais ... Tal como como na indústria urbana, na agricultura moderna o aumento da força produtiva e a maior mobilização do trabalho são conseguidos mediante a devastação e o empestamento da própria força de trabalho. E cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso na arte de saquear o trabalhador, mas ao mesmo tempo na arte de saquear o solo, pois cada progresso no aumento da fertilidade por certo período é simultaneamente um progresso na ruína das fontes permanentes dessa fertilidade. Quanto mais um país, como por exemplo os Estados Unidos da América do Norte, parte da grande indústria como fundamento do seu desenvolvimento, tanto mais rápido é esse processo de destruição. Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social ao minar simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador.

O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890

 

O poder das instâncias científicas e o colapso do valor de troca

O pleno desenvolvimento do capital só acontece ou o capital só implanta o modo de produção que lhe corresponde quando o meio de trabalho não só é determinado formalmente como capital fixo, mas abolido em sua forma imediata, e o capital fixo se defronta com o trabalho como máquina no interior do processo de produção; quando o processo de produção no seu conjunto, entretanto, não aparece como processo subsumido à habilidade imediata do trabalhador, mas como aplicação tecnológica da ciência. Por isso, a tendência do capital é conferir à produção carácter científico, e o trabalho directo é rebaixado a um simples momento desse processo. Como na transformação do valor em capital, o exame mais preciso do desenvolvimento do capital mostra que, por um lado, ele pressupõe um determinado desenvolvimento histórico das forças produtivas entre estas forças produtivas, também a ciência , por outro lado, as impulsiona e força

No entanto, se é somente na maquinaria e noutras formas materiais de existência do capital fixo ... que o capital confere a si mesmo a forma adequada como valor de uso no interior do processo de produção, isso não significa de modo nenhum ... que a sua existência como maquinaria seja idêntica à sua existência como capital ... Do facto de a maquinaria ser a forma mais adequada do valor de uso do capital fixo não se segue de maneira nenhuma que a subsunção à relação social do capital seja a melhor e mais adequada relação social de produção para a aplicação da maquinaria.

Na mesma medida em que o tempo de trabalho o simples quantum de trabalho é posto pelo capital como único elemento determinante, nessa mesma medida desaparece o trabalho imediato e a sua quantidade como princípio determinante da produção a criação de valores de uso , e é reduzido tanto quantitativamente a uma proporção insignificante, quanto qualitativamente como um momento ainda indispensável, mas subalterno frente ao trabalho científico geral, à aplicação tecnológica das ciências naturais, bem como à força produtiva geral resultante da organização social na produção total que aparece como dom natural do trabalho social (embora seja um produto histórico). O capital trabalha, assim, para a sua própria dissolução como forma dominante da produção

O capital fixo, em sua determinação como meio de produção, cuja forma mais adequada é a maquinaria, só produz valor, isto é, só aumenta o valor do produto em dois aspectos: 1) desde que ele tenha valor; ou seja, que ele próprio seja produto do trabalho, certo quantum de trabalho em forma objectivada; 2) na medida em que ele aumenta a proporção do trabalho excedente em relação ao trabalho necessário, ao capacitar o trabalho, por meio do aumento da sua força produtiva, a criar uma massa maior de produtos necessários para a manutenção da capacidade de trabalho viva em menos tempo Na verdade, por meio desse processo o quantum de trabalho necessário para a produção de certo objecto é reduzido a um mínimo, mas só para que, com isso, um máximo de trabalho seja valorizado num máximo de tais objectos. O primeiro aspecto é importante, porque o capital aqui de forma inteiramente involuntária reduz o trabalho humano, o dispêndio de energia, a um mínimo

Por um lado, é a análise originada directamente da ciência e a aplicação de leis mecânicas e químicas que possibilitam à máquina executar o mesmo trabalho anteriormente executado pelo trabalhador. Contudo, o desenvolvimento da maquinaria por essa via só ocorre quando a grande indústria já atingiu um estádio mais elevado e o conjunto das ciências já se encontra cativo ao serviço do capital; por outro lado, a própria maquinaria existente já proporciona elevados recursos. A invenção torna-se então um negócio e a aplicação da ciência à própria produção imediata, um critério que a determina e solicita. Porém, esta não é a via que deu origem à maquinaria no geral, e menos ainda a via pela qual ela avança no detalhe. Tal via é a análise pela divisão do trabalho, que transforma as operações dos trabalhadores cada vez mais em operações mecânicas, de tal modo que a certa altura o mecanismo pode ocupar os seus lugares. (Ad economy of power) Por conseguinte, um modo de trabalho determinado aparece aqui directamente transposto do trabalhador para o capital na forma da máquina, e por meio dessa transposição a sua capacidade de trabalho própria é desvalorizada. Daí a luta dos trabalhadores contra a maquinaria. O que era actividade do trabalhador vivo torna-se actividade da máquina. Assim, a apropriação do trabalho pelo capital, o capital absorvendo em si o trabalho vivo, apresenta-se perante o trabalhador de maneira cruamente perceptível como se tivesse amor no corpo

A troca de trabalho vivo por trabalho objectivado, isto é, o pôr do trabalho social na forma de oposição entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O seu pressuposto é e continua a ser a massa do tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como o factor decisivo da produção da riqueza. No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efectiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que a sua poderosa efectividade , por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa a sua produção, mas depende, pelo contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção. (Por seu lado, o próprio desenvolvimento dessa ciência, especialmente da ciência natural e, com esta, todas as demais, está relacionado com o desenvolvimento da produção material.) A agricultura, por exemplo, torna-se simples aplicação da ciência do metabolismo material, de forma a regulá-lo do modo mais vantajoso possível para todo o corpo social.

A riqueza efectiva manifesta-se, pelo contrário e isso é o que revela a grande indústria na tremenda desproporção entre o tempo de trabalho empregado e o seu produto, bem como na desproporção qualitativa entre o trabalho reduzido à pura abstracção e o poder do processo de produção que ele supervisiona. O trabalho já não aparece tão envolvido no processo de produção quando o ser humano se relaciona com o processo de produção muito mais como supervisor e regulador. (O que vale para a maquinaria, vale igualmente para a combinação da actividade humana e para o desenvolvimento do relacionamento humano.) Não é mais o trabalhador que interpõe um objecto natural modificado como elo mediador entre o objecto e si mesmo; pelo contrário, ele interpõe o processo natural, que ele converte em processo industrial, como meio entre ele e a natureza inorgânica, da qual se assenhora. Ele coloca-se ao lado do processo de produção, em vez de ser o seu agente principal.

Nessa transformação, o que aparece como a grande coluna de sustentação da produção e da riqueza não é o trabalho imediato que o próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação da sua própria força produtiva geral, a sua compreensão e domínio da natureza pela sua existência como corpo social em suma, o desenvolvimento do indivíduo social que surge como base da produção e da riqueza. O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza actual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria. Logo que o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser a medida do valor de uso. O trabalho excedente da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não trabalho dos poucos deixa de ser condição do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano. Com isso, desmorona a produção baseada no valor de troca, e o próprio processo de produção material imediato é despido da forma da precariedade e da contradição. Dá-se o livre desenvolvimento das individualidades e, em consequência, a redução do tempo de trabalho necessário não para pôr trabalho excedente, mas para a redução do trabalho necessário da sociedade como um todo a um mínimo, que corresponde então à formação artística, científica etc. dos indivíduos por meio do tempo libertado e dos meios criados para todos eles.

O próprio capital é a contradição em processo, porque procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Por essa razão, ele diminui o tempo de trabalho na forma do trabalho necessário para aumentá-lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida crescente o trabalho supérfluo como condição question de vie et de mort do necessário. Por um lado, portanto, ele traz à vida todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do relacionamento social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer medir pelo tempo de trabalho essas gigantescas forças sociais assim criadas e encerrá-las nos limites requeridos para conservar o valor já criado como valor. As forças produtivas e as relações sociais ambas aspectos diferentes do desenvolvimento do indivíduo social aparecem somente como meios para o capital, e para ele são exclusivamente meios para poder produzir a partir de seu fundamento acanhado. De facto, porém, elas constituem as condições materiais para fazê-lo voar pelos ares. Uma nação é verdadeiramente rica quando se trabalha 6 horas em vez de 12. A riqueza não é comando de tempo de trabalho excedente (riqueza real), mas disposable time de cada indivíduo e de toda a sociedade, para além do usado na produção imediata (The Source and Remedy etc. 1821, p. 6)

A natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafos eléctricos, máquinas de fiar automáticas etc. São produtos da indústria humana; material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza, ou da sua actividade na natureza. São órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força do saber objectivada. O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber social geral, o conhecimento, se tornou força produtiva imediata e, em consequência, até que ponto as próprias condições do processo vital da sociedade ficaram sob o controlo do general intellect e foram reorganizadas em conformidade com ele. Até que ponto as forças produtivas da sociedade são produzidas, não só na forma do saber, mas como órgãos imediatos da práxis social do processo real da vida

A criação de muito disposable time para além do tempo necessário de trabalho, para a sociedade como um todo e para cada membro dela (isto é, espaço para o desenvolvimento das forças produtivas plenas dos indivíduos, logo também da sociedade), essa criação de tempo de não-trabalho aparece, da perspectiva do capital, assim como de todos os estádios anteriores, como tempo de não-trabalho, tempo livre para alguns. O capital acrescenta a isso que o tempo de trabalho excedente da massa aumente por todos os meios da arte e da ciência, porque a sua riqueza consiste directamente na apropriação de tempo de trabalho excedente; uma vez que a sua finalidade é directamente o valor, não o valor de uso

Mas a sua tendência é sempre, por um lado, criar disposable time, por outro lado, to covert it into surplus labour. Se tem muito êxito na criação de disposable time, ele sofre então de produção excedente e o trabalho necessário é interrompido porque nenhum surplus labour pode ser valorizado pelo capital

Da mesma maneira que, com o desenvolvimento da grande indústria, a base sobre a qual ela se sustenta, a apropriação do tempo de trabalho alheio, deixa de constituir ou de criar a riqueza, com tal desenvolvimento o trabalho imediato enquanto tal também deixa de ser a base da produção, ao ser transformado, por um lado, em uma actividade mais de supervisão e regulação; mas, por outro, também porque o produto deixa de ser produto do trabalho imediato isolado, aparecendo como produtor, pelo contrário, a combinação da actividade social.

Linhas gerais da crítica da economia política [Grundrisse]. Rascunho. 1857-1858

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