(Robert Kurz, Ler Marx)
4. Escorrendo sangue e sujeira por todos os poros:
O vilão capitalismo e a sua barbárie
Introdução
Nenhuma ordem social provocou tantas guerras, tão grandes e tão devastadoras, no decurso da sua história como o capitalismo na sua maravilhosa modernidade. Nenhuma ordem social lançou maior miséria material sobre uma parte tão grande da humanidade, e também nenhuma produziu simultaneamente maior riqueza. Também nunca existiu um sistema social que tenha conduzido a humanidade mais perto da destruição das suas bases naturais à escala global. Nunca as pessoas foram mais socializadas, mantendo entre si relações de dependência, de distribuição de funções e de mediação global, e nunca os indivíduos sociais foram simultaneamente tão atomizados estruturalmente, e se contrapuseram uns aos outros numa tal indiferença recíproca de mónadas do interesse abstracto.
Não se trata de teses e afirmações que ainda tivessem de ser provadas. Todas essas manifestações negativas, destrutivas e catastróficas estão à vista, são de uma evidência histórica e estrutural inegável. Isso não impede os tranquilos apologistas democráticos do capitalismo de contestarem mesmo o que foi provado mil vezes e reconhecido como óbvio, como criminosos reincidentes. Hoje, nos centros globais do "sujeito automático", faz parte do common sense de políticos, cientistas, ideólogos da economia e colunistas, à vista das massas de pessoas pobres de todo o mundo, dos países economicamente arruinados, dos continentes contaminados, das reservas naturais esgotadas e das relações de concorrência próprias de animais selvagens, sussurrar constantemente e com impressionante ignorância as palavras "civilidade" e "civilização".
O capitalismo nega a sua própria história, as devastações trazidas diariamente pelos "riscos e efeitos colaterais", o seu potencial de pobreza e destruição. Ele projecta a sua própria natureza negativa num “exterior” imaginário de ditaduras, abismos amorais da alma humana e de malícia subjectiva, fenómenos que supostamente nada teriam a ver com ele, mas que na realidade não cessam de sair do seu interior. Se há pobreza, miséria e violência neste planeta, nunca é devido a demasiado capitalismo, mas sempre a muito pouco capitalismo – tal a infame inversão dos factos. A ordem capitalista também é historicamente imbatível nas disciplinas da mentira pública, do descaramento e do auto-engano. O capitalismo bate o recorde mundial, o recorde histórico, o recorde da humanidade em crises, destruições e guerra social – uma verdadeira "História universal da infâmia" (Borges).
A "civilização do dinheiro" é uma contradição em si, pois o poder de coisas mortas, na figura do sujeito automático materializado, não pode fundar uma civilização humana e social. A maior parte do que vem das instituições e dos mandarins do capital como moral de fachada, normas abstractas e exortações permanentes ao respeito mútuo, à dignidade humana, à solicitude, etc. é retirado da religiosidade das sociedades agrárias pré-modernas, que – como Marx mostrou sagazmente – se tornou no capitalismo uma questão privada não vinculativa. No capitalismo o homem deve ser bom, não porque, mas apesar da ordem social estrutural baseada na concorrência mais vil de todos contra todos. O que o capitalismo apresentou como ideais próprios, como a liberdade individual e a soberania da razão humana, nunca passou de uma compilação de fórmulas pomposas para a "livre" dilaceração mútua na indigna concorrência económica e a "liberdade dos solventes", por um lado, e para a auto-submissão incondicional às leis pseudonaturais coisificadas do sujeito automático, por outro – ou seja, exactamente o oposto de liberdade, razão e soberania.
O homem capitalista foi libertado da estreiteza e das restrições de ordens agro-religiosas, de relações de parentesco de sangue, etc. não positivamente, mas negativamente, isto é, como sujeito abstracto e desinibido de uma luta contínua pela sobrevivência social atiçada artificialmente. Uma socialização tão forte com base na insociabilidade estúpida dos seus membros traz necessariamente consigo um potencial de barbárie, ou antes, ela já é per se barbárie nas suas próprias estruturas. Ironia do conceito: os impérios ocidentais do capital tomaram emprestada da antiguidade a ideia de barbárie e de bárbaro para denunciar, como os impérios arrogantes do passado, toda a socialidade que não correspondesse à sua própria natureza e dela se distanciar. No entanto, o capitalismo ultrapassa de longe em crueldade, desumanização e no mesmo tempo, infantilismo todas as culturas da Idade da Pedra, todos os chamados povos primitivos, todas as tribos e todos os grandes reis e reis-deuses da história .
E que teria dito Marx desta tirada? O Marx exotérico teria coberto a cabeça e invocado mais uma vez aquela instância inventada pela filosofia iluminista e pelo liberalismo burgueses: a "necessidade histórica". "Saboreamos o néctar nos crânios dos vencidos". Um progresso sobre campos de ruínas e de cadáveres, ainda hoje novamente designado, até à exaustão e ao vómito moral, como "custos sociais inevitáveis da modernização" deve ser pago o mais possível por "outros", seja eles quem forem. Mas também perante esta atroz festa burguesa da mitologia do progresso, o Marx esotérico se atravessa no caminho do teórico exotérico da modernização, não se deixando cegar por uma alegada inevitabilidade histórica e denunciando a barbárie do capitalismo sem qualquer paliativo.
Se levarmos a sério esta crítica da barbárie capitalista de certo modo ampliada para trás, que transparece em Marx através da indignação histórica tal como através da análise do conceito de fetichismo moderno, então o sistema de fim em si da produção de mercadorias capitalista não aparece como um passo inevitável, mesmo se negativo e destrutivo, nem como a única forma possível de maior desenvolvimento das forças produtivas no processo histórico teleológico, mas, em vez disso, como evolução falhada ou acidente grave, um dos maiores desastre imagináveis da história. A ultrapassagem do capitalismo seria então menos o coroamento da história de progresso e, portanto, o mero culminar da mitologia da história do iluminismo, liberal e burguesa, em suas próprias categorias (incluindo a realização do próximo nível superior "objectivamente" esperado, de acordo com as leis históricas abstractas), pelo contrário, seria antes o puxar do travão de emergência, uma metáfora que corresponde mais ou menos à filosofia negativa da história de Walter Benjamin.
No entanto, neste julgamento de princípio histórico indirecto do capitalismo, uma coisa é também excluída do Marx esotérico: a transfiguração romântica e literalmente reacionária das sociedades agrárias pré-capitalistas, com suas estruturas de dependência pessoal e suas formas de fetichismo social transmitido pela religião. Neste ponto, o Marx exotérico com sua herança liberal actua como uma espécie de correctivo que impede a crítica do capitalismo de cair no irracionalismo romântico e sobretudo autoritário. Só se pode dizer que uma continuação – talvez mais lenta, mas mais cautelosa – do desenvolvimento das forças produtivas, como já ocorreu antes do capitalismo, não teria precisado necessariamente da lógica insana de fim em si mesmo do capital; e que das muitas batalhas defensivas sociais do início da modernidade, que estiveram longe de deixar inalterados os homens dos movimentos sociais nelas envolvidos, também teria podido resultar, em princípio, outra mudança de via da história. A vitória do "fáctico" imposta pela força, com que temos de nos haver, não constitui argumento nenhum contra a possibilidade de uma alternativa que nunca teve uma oportunidade nem nunca entrou no fáctico da história. Certamente que a roda do tempo não pode nem deve andar para trás, mas talvez seja preciso negar qualquer legitimidade histórica ao capitalismo, negar totalmente o seu suposto carácter de progresso sob qualquer ponto de vista, para se poder livrar dele para sempre.
O nascimento do capitalismo esteve longe de ser idílico, humano e pacífico, é o que Marx mostra no famoso capítulo de O Capital sobre a chamada "acumulação original", que precedeu o modo de produção capitalista desde o século XVI e criou as condições para o seu aparecimento. Longe da mitologia da história oficial ainda hoje mantida, de que o capitalismo nasceu de uma extensão pacífica, amigável e "promotora da prosperidade" do comércio e da circulação do dinheiro, Marx desenha uma imagem completamente oposta: nomeadamente a história violenta, sanguinária e cruel da separação das pessoas dos seus meios de produção, a literal expulsão da população camponesa das suas casas e fazendas, para a transformar em desenraizados "pobres" e, finalmente, potenciais trabalhadores assalariados “livres”.
A história da fundação do capital é feita dos seus crimes fundadores. Aqui foi instalado o núcleo de violência da sociedade moderna, que também nas democracias do final do século XX não desapareceu e continua a existir na administração democrática das pessoas, assegurada em última instância pela força do Estado, e cujo conteúdo principal consiste em manter as pessoas separadas dos meios de produção há muito socializados, separação que dá ao capital a sua aparência objectiva. E o crime original capitalista como que "coagulado" nesta objectivação repete-se ainda hoje todos os dias nas grandes regiões mundiais da periferia capitalista, no "sul selvagem" e no "leste selvagem" do capital mundial. Esta violência imediata, directa e sem vergonha da acumulação original em proliferação constitui o primeiro nível da barbárie capitalista.
O segundo nível é determinado pela barbárie estrutural do capitalismo no curso "normal" das suas coisas, no terreno das suas relações já consolidadas e interiorizadas. Esta barbárie estrutural surge, por um lado, indirecta e involuntariamente do encadeamento cego dos mercados e da racionalidade da economia empresarial, como consequência dos riscos e efeitos colaterais na luta concorrencial universal e permanente. Todos os dias massas de pessoas têm de sofrer privações pela simples razão de que a sua existência não interessa aos mercados. A barbárie de fome e miséria, apesar de um fundo historicamente sem precedentes de meios de produção, de possibilidades técnicas, médicas e outras, é tanto mais terrível quanto é “sem sujeito”. Por outro lado, esta barbárie estrutural também tem um lado subjectivo, tanto os crimes legais (por exemplo, o trabalho infantil, que se manteve notoriamente no capitalismo global e hoje reaparece mesmo nos centros industriais) como o entrelaçamento do capitalismo com a criminalidade organizada, que apresenta uma tendência crescente ao longo da história capitalista e hoje parece atingir o clímax. Por ter feito do "lucro compulsivo" a quintessência da aspiração humana, e da concorrência de todos contra todos, o estado normal, o capitalismo não pode deixar de fazer crescer o crime de todas as cores, como numa estufa.
O terceiro nível da barbárie capitalista consiste no que é conhecido desde o século XIX como "estado de excepção", "estado de sítio" ou "estado de necessidade". Como um sistema fetichista assim paranóico provoca repetidamente crises e catástrofes, erupções sociais, choques internos e externos violentos etc., periodicamente ele tem de virar para o exterior e tornar manifesto o seu núcleo de violência. Quando se trata da substância, quando está ou parece estar em causa o próprio modo de produção capitalista, então os pilares capitalistas da sociedade, isto é, os notáveis burgueses não conhecem nem limite nem piedade, transformam-se numa besta feroz que esmaga debaixo dos pés a moralidade e mesmo a sua própria lei. Pinochet é o liberalismo em estado de excepção, pelo que é a sua verdadeira face. Esta história da barbárie capitalista em estado de excepção ou de crise tem sido tantas vezes produzida e reproduzida que dificilmente se pode esperar outra coisa no futuro. E é fraco consolo ver regularmente também os pilares da sociedade, as próprias elites funcionais serem devoradas pelos espíritos do capital que tinham invocado. Mas esses "fanáticos da valorização do valor" preferem ser massacrados por demónios a questionar a sua cegueira social.
Tudo isso levanta naturalmente a questão da responsabilidade. Na imagem simples do mundo do marxismo do movimento operário ainda havia a cuidadosa separação entre "nós" e os "outros", entre o "bom" a priori e o "mau" a priori, nas relações de vontade das classes sociais. Mas se o contexto formal comum de trabalho abstracto, forma da mercadoria, cidadania, etc. entra no campo de visão da crítica, onde está então a responsabilidade? Poderemos responsabilizar um contexto estrutural cego, o sujeito automático, por qualquer coisa, mesmo que seja o maior crime? E, inversamente, se a barbárie capitalista reside afinal nas coerções silenciosas da concorrência, não serão os actos bárbaros dos gestores maus, dos políticos sujos, dos burocratas administradores da crise, dos carniceiros sanguinários do estado de excepção de algum modo desculpados, porque sempre condicionados e na verdade causados por leis estruturais sem sujeito da "segunda natureza"?
Tal argumentação esquece que o conceito de sujeito automático é uma metáfora paradoxal para uma relação social paradoxal. O sujeito automático não é nenhum ser individual escondido algures lá fora, mas é o feitiço social sob o qual os seres humanos submetem as suas próprias acções ao automatismo do dinheiro capitalizado. Mas quem age são sempre os próprios indivíduos. A concorrência, a luta pela sobrevivência artificialmente estimulada, as crises, etc. promovem a potência de barbárie, no entanto, na prática, essa barbárie tem de ser executada por agentes humanos, assim passando também através da sua consciência. E por isso os indivíduos são subjectivamente responsáveis pelas suas acções, tanto o mau gestor e o político sujo, como, por outro lado, o desempregado racista e a mãe solteira anti-semita.
O enorme potencial de medo e ameaça desta sociedade tem de ser digerido diariamente, e a cada momento os indivíduos são confrontados com decisões que nunca são completamente sem alternativa – nem à pequena escala da vida quotidiana, nem na grande escala histórico-social. Ninguém é uma marionete sem vontade, mas todos têm de expressar as arrepiantes contradições, os medos e sofrimentos deste feitiço. Não há nenhum contra-senso em concentrar a indispensável crítica social no nível das estruturas sociais predominantes, no trabalho abstracto e no sujeito automático, e, ao mesmo tempo, responsabilizar os indivíduos agentes pelas suas acções, mesmo que a sua máscara de personagem social lhes sugira o estado de irresponsabilidade.
Marx trouxe à discussão todos os níveis da barbárie capitalista. Mas o que torna a leitura tão perturbadora é o facto de ser o Marx esotérico que combina a crítica categorial das formas sociais capitalistas com a indignação causada por actos de barbárie e acusa os responsáveis com uma rara violência. Pois aqui se torna inquietantemente claro que o capital, justamente porque não é uma simples relação subjectiva de vontade, é que gera, pela sua natureza fetichista irracional, simplesmente má fé – a irresponsabilidade dos responsáveis e a responsabilidade dos que não podem ser responsabilizados.
Inscrita nos anais da humanidade com caracteres de sangue e fogo
Viu-se como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital se faz mais-valia e da mais-valia se faz mais capital. Entretanto a acumulação do capital pressupõe a mais-valia, a mais-valia a produção capitalista, mas esta pressupõe a existência prévia de massas maiores de capital e força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. Todo este movimento parece assim girar num círculo vicioso, do qual só saímos supondo uma acumulação «original» (previous accumulation em Adam Smith) anterior à acumulação capitalista, uma acumulação que não é o resultado do modo de produção capitalista mas o seu ponto de partida.
Esta acumulação original desempenha na economia política mais ou menos o mesmo papel que o pecado original na teologia. Adão deu uma dentada na maçã e com isso o pecado desceu sobre o género humano. A origem do pecado é explicada contando como anedota do passado. Num tempo remoto havia, de um lado, uma elite diligente, inteligente, e sobretudo frugal, e do outro uma escumalha preguiçosa, que dissipava tudo o que tinha e não tinha. A lenda do pecado original teológico conta-nos como o homem foi condenado a comer o pão com o suor do seu rosto; mas a história do pecado original económico revela-nos como é que há pessoas que não precisam de o fazer. Não interessa. Assim aconteceu que os primeiros acumularam riqueza e os segundos acabaram por não ter nada para vender a não ser a própria pele. E deste pecado original datam a pobreza da grande massa, que continua a não ter nada para vender a não ser a si própria apesar de todo o trabalho, e a riqueza de uns poucos, que cresce continuamente apesar de eles há muito terem deixado de trabalhar. Tal puerilidade insossa ainda é mastigada em defesa da propriété, por exemplo pelo senhor Thiers, com o ar sério das solenidades de Estado, aos Franceses outrora de espírito tão vivo. Mas assim que a questão da propriedade está em jogo, torna-se dever sagrado manter o ponto de vista da cartilha infantil como o único justo para todas as classes etárias e etapas de desenvolvimento. Na história real é sabido que a conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, numa palavra, a violência, desempenham o papel principal. Na suave economia política reina desde sempre o idílio. Direito e «trabalho» foram desde sempre os únicos meios de enriquecimento, naturalmente com a excepção sempre repetida de «este ano». De facto, os métodos da acumulação original são tudo o que se quiser, só não são idílicos.
O dinheiro e a mercadoria não são desde o início capital, nem tão-pouco os meios de produção e de vida. Carecem da transformação em capital. Mas esta mesma transformação só pode processar-se em circunstâncias determinadas, que se condensam no seguinte: duas espécies muito diferentes de possuidores de mercadorias têm de se pôr frente a frente e entrar em contacto, de um lado proprietários de dinheiro, de meios de produção e de vida, aos quais o que interessa é valorizar a soma de valor por eles possuída por meio da compra de força de trabalho alheia; do outro lado trabalhadores livres, vendedores da força de trabalho própria e por isso vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido de que nem eles próprios pertencem imediatamente aos meios de produção, como os escravos, servos, etc, nem também os meios de produção lhes pertencem, como no caso do camponês que trabalha a sua propriedade, antes estão livres deles, livres e soltos. Com esta polarização do mercado das mercadorias estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação de capital pressupõe o divórcio entre os trabalhadores e a propriedade das condições de realização do trabalho. Logo que a produção capitalista se firma nos próprios pés, ela não só conserva esse divórcio, mas reprodu-lo numa escala sempre crescente. O processo que cria a relação de capital não pode, portanto, ser outra coisa senão o processo de divórcio entre o trabalhador e a propriedade das suas condições de trabalho, um processo que transforma, por um lado, os meios sociais de vida e de produção em capital e, por outro, os produtores imediatos em trabalhadores assalariados. A chamada acumulação original nada é senão o processo histórico de divórcio entre produtor e meios de produção. Ela aparece como «original» porque forma a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde.
A estrutura económica da sociedade capitalista saiu da estrutura económica da sociedade feudal. A dissolução desta libertou os elementos daquela. O produtor imediato, o trabalhador, só podia dispor da sua pessoa a partir do momento em que deixara de estar preso à gleba e de ser servo e vassalo de outra pessoa. Para se tornar vendedor livre de força de trabalho, que leva a sua mercadoria a toda a parte onde ela encontra um mercado, ele tinha além disso de ter escapado ao domínio das corporações, aos seus regulamentos sobre aprendizes e oficiais e aos preceitos inibidores do trabalho. Com isto surge o movimento histórico que transforma os produtores em operários assalariados, por um lado, como a libertação destes da servidão e da coacção das corporações; e só este lado existe para os nossos historiógrafos burgueses. Mas, por outro lado, estes recém-libertos só se tornam vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção e todas as garantias da sua existência proporcionadas pelas velhas instituições feudais. E a história desta sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com caracteres de sangue e fogo.
Os capitalistas industriais, estes novos potentados, tiveram por sua vez de desalojar não só os mestres artesãos corporativos, mas também os senhores feudais que estavam de posse das fontes de riqueza. Deste ângulo o seu ascenso apresenta-se como fruto de uma luta vitoriosa contra o poder feudal e seus privilégios revoltantes, bem como contra as corporações e os grilhões que estas colocavam ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Os cavaleiros da indústria, todavia, só conseguiram desalojar os cavaleiros da espada por meio da exploração de acontecimentos de que estavam completamente inocentes. Eles elevaram-se por meios tão vis como aqueles por meio dos quais o liberto romano se fez outrora senhor do seu patronus.
O ponto de partida do desenvolvimento que gera tanto o operário assalariado como o capitalista foi a servidão do trabalhador. O progresso consistiu numa mudança de forma desta servidão, na transformação da exploração feudal em capitalista. Para compreender o seu curso não precisamos de recuar muito. Embora os primeiros começos de produção capitalista se nos deparem esporadicamente já nos séculos XIV e XV em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista data apenas do século XVI. Ali onde ela aparece está a abolição da servidão há muito consumada, e o ponto mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há muito tempo a empalidecer.
Fazem época na história da acumulação original todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe dos capitalistas em formação; acima de todos, porém, os momentos em que grandes massas humanas, de súbito e violentamente, são arrancadas aos seus meios de subsistência e atiradas para o mercado de trabalho como proletários fora-da-lei. A expropriação da terra ao produtor rural, ao camponês, forma a base de todo o processo. A sua história assume coloração diversa nos diversos países e percorre as diversas fases em sequência diversa e em diversas épocas da história. Apenas em Inglaterra, que por isso tomamos como exemplo, ela possui a forma clássica …
Em Inglaterra a servidão desaparecera de facto na parte final do século XIV. A imensa maioria da população era então composta, e ainda mais no século XV, por camponeses livres que cultivavam as suas próprias terras, fosse qual fosse o título feudal atrás do qual se escondia a sua propriedade. Nas quintas senhoriais maiores, o bailiff (feitor), anteriormente ele mesmo servo, foi desalojado pelo rendeiro livre. Os operários assalariados da agricultura eram compostos em parte por camponeses, que valorizavam o seu tempo de ócio trabalhando para grandes proprietários, e em parte por uma classe autónoma, pouco numerosa em termos relativos e absolutos, de autênticos operários assalariados. Mesmo estes últimos eram de facto simultaneamente camponeses autónomos, pois além do seu salário recebiam terra arável, no montante de 4 e mais acres, bem como cottages. Além disso, gozavam, com os camponeses autênticos, do usufruto da terra comunal, no qual pastava o seu gado e que ao mesmo tempo lhes oferecia lenha, madeira, turfa, etc. Em todos os países da Europa a produção feudal está caracterizada pela divisão da terra pelo maior número possível de subtitulares. O poder do senhor feudal, como o de todo o soberano, assentava não na extensão da lista das suas rendas mas no número dos seus súbditos, e este dependia do número de camponeses que exploravam terra própria. Embora o solo inglês depois da conquista normanda tenha sido dividido em baronias gigantescas, das quais uma única muitas vezes incluía 900 das antigas senhorias anglo-saxónicas, ele estava semeado de pequenas explorações camponesas apenas aqui e além interrompidas por quintas senhoriais maiores. Foram essas relações, com o florescimento simultâneo das cidades característico do século XV, que permitiram aquela riqueza popular que o chanceler Fortescue pintou com tanta eloquência no seu Laudibus Legum Angliae [Dos Méritos das Leis de Inglaterra], mas elas excluíam a riqueza de capital.
O prelúdio do revolucionamento que criou a base do modo de produção capitalista desenrolou-se no último terço do século XV e nos primeiros decénios do século XVI. Foi lançada para o mercado de trabalho uma massa de proletários fora-da-lei pela dissolução dos séquitos feudais, os quais, como Sir James Steuart justamente observa, «por toda a parte inutilmente enchiam casa e castelo». Embora o poder real, ele próprio um produto do desenvolvimento burguês, tivesse, na sua ânsia de soberania absoluta, acelerado violentamente a dissolução destes séquitos, não foi de modo nenhum a única causa dela. Pelo contrário, na mais arrogante oposição ao rei e ao parlamento, também o grande senhor feudal criou um proletariado desigualmente maior, ao expulsar violentamente o campesinato da terra sobre a qual este tinha o mesmo título de direito feudal que ele próprio, e ao usurpar a sua terra comunal. O impulso imediato neste sentido foi dado em Inglaterra nomeadamente pelo florescimento da manufactura flamenga da lã e o correspondente aumento dos preços da lã. As grandes guerras feudais tinham devorado a velha nobreza feudal, e a nova era filha do seu tempo, sendo para ela o dinheiro o poder de todos os poderes. Transformação da terra arável em pastagem de ovelhas tornou-se, portanto, a sua consigna. Harrison, na sua Description of England. Prefixed to Holinshed's Chronicles [Descrição de Inglaterra. Anteposta às Crónicas de Holinshed], descreve como a expropriação dos pequenos camponeses arruinou o campo. “What care our great encroachers!” (Que importa isso aos nossos grandes usurpadores!) As habitações dos camponeses e as cottages dos trabalhadores foram violentamente arrasadas ou abandonadas à ruína. Diz Harrison:
«Se procurarmos os velhos registos de todos os senhorios feudais... veremos que inúmeras casas e pequenas propriedades camponesas desapareceram, que o campo alimenta muito menos gente, que muitas cidades estão arruinadas, embora algumas novas floresçam... Eu teria algo a contar sobre cidades e aldeias que foram destruídas para ceder lugar a pastagens de ovelhas e onde só restaram as casas dos antigos senhores.»
As queixas dessas velhas crónicas são sempre exageradas, mas assinalam com exactidão a impressão causada nos próprios contemporâneos pela revolução nas relações de produção. Uma comparação entre os escritos do chanceler Fortescue e os de Thomas More evidencia o abismo entre os séculos XV e XVI. Da sua idade de ouro, como Thornton justamente diz, a classe operária inglesa precipita-se sem quaisquer transições na de ferro.
A legislação aterrou-se perante este revolucionamento. Ela não se encontrava ainda no cume da civilização em que a «wealth of the nation», isto é, formação de capital e a exploração e empobrecimento brutais da massa popular valem como última Thule de toda a sabedoria de Estado. Na sua história de Henrique VII diz Bacon:
“Naquele tempo” (1489) “aumentaram as queixas sobre a transformação de terras de lavoura em pastagens” (para criação de ovelhas etc.), “fáceis de vigiar com poucos pastores; e as propriedades arrendadas temporária, vitalícia ou anualmente (das quais vivia grande parte dos yeomen) foram transformados em domínios senhoriais. Isso provocou uma decadência do povo, e daí uma decadência das cidades, igrejas, dízimos ... Na cura desse mal, foi admirável, naquela época, a sabedoria do rei e do Parlamento ... Adotaram medidas contra essa usurpação que despovoava os domínios comunais (depopulating inclosures) e o despovoador regime de pastagens (depopulating pasture) que o acompanhava.”
Uma lei de Henrique VII, 1489, c. 19, proibia a destruição de todas as casas de lavoura às quais pertencessem pelo menos 20 acres de terra. Numa lei, 25, Henrique VIII, é renovada essa mesma norma. Aí se lê, entre outras coisas, que
«muitas terras arrendadas e grandes rebanhos, em especial ovelhas, se concentram em poucas mãos; pelo que as rendas da terra subiram muito e a lavoura muito decaiu, igrejas e casas foram deitadas abaixo, massas espantosas de povo foram incapacitadas de se manter e às suas famílias».
A lei ordena por isso a reconstrução das quintas decaídas, determina a relação entre terra de cereal e terra de pastagem, etc. Uma lei de 1533 lamenta que muitos proprietários possuam 24 000 ovelhas e limita o número destas a 2000. O lamento do povo e a legislação ao longo de 150 anos a partir de Henrique VII contra a expropriação dos pequenos rendeiros e camponeses foram igualmente infrutíferos. O segredo do seu inêxito é Bacon quem no-lo diz sem disso se aperceber.
«A acção de Henrique VII», diz ele nos seus Essays, Civil and Moral [Ensaios Civis e Morais], secção 29, «foi profunda e admirável, ao estabelecer um padrão para quintas e casas de lavoura; isto é, mantendo-lhes uma proporção de terra de modo a poder viver um súbdito em conveniente desafogo, e não em condição servil, e a manter o arado nas mãos dos donos e não de alugados (to keep the plough in the hand of the owners and not hirelings).»
O que o sistema capitalista exigia era, pelo contrário, situação servil da massa do povo, a própria transformação desta em alugados e a transformação dos seus meios de trabalho em capital. Durante este período de transição a legislação procurou também conservar os 4 acres de terra junto da cottage do trabalhador assalariado rural e proibiu-lhe a aceitação de inquilinos na sua cottage. Ainda em 1627, sob Carlos I, Roger Crocker de Fontmill foi condenado devido à construção de uma cottage no senhorio de Fontmill sem 4 acres de terra como seu anexo permanente; ainda em 1638, sob Carlos I, foi nomeada uma comissão real para forçar a execução das velhas leis, nomeadamente também sobre os 4 acres de terra; Cromwell ainda proibiu a construção de uma casa a cerca de 4 milhas de Londres sem a dotação à mesma de 4 acres de terra. Ainda na primeira metade do século XVIII se lamenta quando a cottage do operário rural não tem uma pertença de 1 ou 2 acres de terra. Hoje em dia ele é feliz se ela for dotada de um pequeno quintal ou se ele puder arrendar longe dela um par de varas de terra.
«Senhores da terra e rendeiros», diz o Dr. Hunter, «agem aqui de mãos dadas. Alguns acres com a cottage tornariam os trabalhadores demasiado independentes.»
O processo violento de expropriação da massa do povo no século XVI recebeu um novo e terrível impulso da Reforma e, na sequência desta, do roubo colossal das propriedades da Igreja. A Igreja católica era, ao tempo da Reforma, proprietária feudal de uma grande parte da terra inglesa. A supressão dos conventos, etc, atirou os habitantes destes para o proletariado. As próprias propriedades da Igreja foram em grande parte oferecidas a favoritos reais rapaces, ou vendidas a um preço irrisório a rendeiros e citadinos especuladores que expulsavam em massa os antigos subfeudatários hereditários e juntavam as suas explorações numa só. A propriedade de uma parte dos dízimos da Igreja, garantida por lei aos rurais empobrecidos, foi confiscada implicitamente. «Pauper ubique jacet», exclamou a rainha Isabel após uma viagem pela Inglaterra. No 43.° ano do seu governo tornou-se finalmente forçoso reconhecer oficialmente o pauperismo pela introdução do imposto dos pobres.
«Os autores desta lei parece terem tido vergonha de declarar os fundamentos dela, pois [contrariamente ao uso tradicional] não tem qualquer preamble (exposição de motivos).» (William Cobett: A History of the Protestant Reformation [Uma História da Reforma Protestante], § 471)
… Estes efeitos imediatos da Reforma não foram os mais duradouros. A propriedade da Igreja formava o bastião religioso das relações de propriedade fundiária antigas. Com a queda daquela, estas já não eram sustentáveis. Ainda nos últimos decénios do século XVII a yeomanry era um campesinato independente, mais numeroso do que a classe dos rendeiros. Tinham formado a força principal de Cromwell e estavam, mesmo segundo a confissão de Macaulay, em oposição vantajosa aos sórdidos fidalgos bêbados e seus servidores, os padres do campo, que tinham de desposar a «criada favorita» do senhor. Mesmo os trabalhadores assalariados do campo eram ainda co-possuidores da propriedade comunal. Por volta de 1750 tinha desaparecido a yeomanry e nos últimos decénios do século XVII o último vestígio de propriedade comunal dos agricultores. Abstraímos aqui dos móbiles puramente económicos da revolução na agricultura. O que procuramos são as suas violentas alavancas.
Sob a restauração dos Stuarts, os proprietários fundiários consumaram legalmente uma usurpação que se completou também por toda a parte no continente sem formalidades legais. Suprimiram a organização feudal da terra, quer dizer: desembaraçaram-se das suas obrigações para com o Estado, «indemnizaram» o Estado através de impostos sobre o campesinato e restante massa do povo, reivindicaram uma propriedade privada moderna sobre patrimónios de que apenas possuíam um título feudal e, finalmente, outorgaram aquelas leis de domiciliação (laws of settlement) que, mutatis mutandis, agiram sobre o agricultor inglês como o édito do tártaro Boris Godunov sobre o campesinato russo.
A «glorious Revolution» (Revolução gloriosa) com Guilherme III de Orange trouxe ao poder os apropriadores de mais-valia, senhores da terra e capitalistas. Inauguraram a nova era exercitando numa escala colossal o roubo de domínios do Estado, até então só modestamente cometido. Estas terras foram doadas, vendidas a preços ridículos ou também anexadas a propriedades privadas por usurpação directa. Tudo isto aconteceu sem a mínima observação da etiqueta legal. A propriedade do Estado apossada assim fraudulentamente, juntamente com a espoliação da Igreja, na medida em que não se perderam durante a revolução republicana, formam a base dos domínios principescos de hoje da oligarquia inglesa. Os capitalistas burgueses favoreceram a operação, entre outras coisas, para transformarem a terra num puro artigo de comércio, para estenderem o domínio da grande empresa agrícola, para aumentarem o seu abastecimento de proletários fora-da-lei do campo etc. Além disso, a nova aristocracia fundiária era a aliada natural da nova bancocracia, da alta finança mal saída do ovo e dos grandes manufactureiros que se apoiavam então em tarifas proteccionistas ...
A propriedade comunal – bem distinta da propriedade do Estado que acaba de ser referida – era uma instituição vetero-germânica, que sobrevivia sob o manto da feudalidade. Vimos como a sua usurpação pela força, na maior parte das vezes acompanhada pela transformação da terra de cultivo em pastagem, começa no fim do século XV e continua no século XVI. Mas nesta altura o processo completou-se como acto violento individual, contra o qual a legislação há 150 anos que luta em vão. O progresso do século XVIII revela-se em que agora a própria lei se torna veículo do roubo da terra do povo, apesar de os grandes rendeiros também aplicarem os seus pequenos métodos privados independentes. A forma parlamentar do roubo é a das «Bills for Inclosures of Commons» (leis para a vedação de terrenos comunais), por outras palavras, decretos pelos quais os senhores da terra oferecem a si próprios terra do povo como propriedade privada, decretos da expropriação do povo. Sir F. M. Eden refuta as suas próprias alegações astutas de advogado, em que procura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada dos grandes proprietários fundiários que tomaram o lugar dos feudais, uma vez que ele próprio reclama uma «lei geral do Parlamento para a vedação dos terrenos comunais», admitindo assim que é preciso um golpe de Estado parlamentar para a sua transformação em propriedade privada, mas reclamando da legislatura, por outro lado, uma «indemnização» para os pobres expropriados.
Enquanto para o lugar dos yeomen independentes entravam tenants-at-will, pequenos rendeiros sujeitos a rescisão com pré-aviso de um ano, um bando servil e dependente do arbítrio do senhor da terra, o roubo sistemático da propriedade comunal juntamente com o roubo dos domínios do Estado ajudou a engrossar aqueles grandes arrendamentos a que no século XVIII se chamou arrendamentos de capital ou arrendamentos de comerciante, e a «libertar» o povo do campo como proletariado para a indústria.
O século XVIII, contudo, ainda não concebe a identidade entre riqueza nacional e pobreza do povo na mesma medida que o século XIX. Daí a polémica mais veemente na literatura económica daquele tempo acerca da «inclosure of commons». Apresento algumas passagens da grande quantidade de material que tenho comigo, porque assim as situações são ilustradas de um modo vivo.
«Em várias paróquias do Hertfordshire», escreve uma pena indignada,
«24 quintas, com uma média de 50-150 acres, foram fundidas em três quintas.» (Thomas Wright, A Short Address to the Public on the Monopoly
of Large Farms (1779), p. 2-3) «No Northamptonshire e Leicestershire, a vedação de terras comunais teve lugar numa escala muito grande, e a maior parte dos novos senhorios resultantes da vedação foi
transformada em pastagem, em consequência do que muitos senhorios em que anteriormente eram lavrados 1500 acres não têm agora 50 acres lavrados anualmente ... As ruínas de antigas moradias, celeiros, estábulos etc. são os únicos vestígios dos antigos habitantes. Uma centena de casas e
famílias em algumas aldeias de campo aberto... minguou para oito ou dez... Os detentores de terra na maior parte das paróquias que foram vedadas apenas há 15 ou 20 anos são muito poucos em comparação com o número dos que as ocupavam no seu estado de campo aberto. Não é uma coisa fora do
comum 4 ou 5 ricos criadores de gado açambarcarem um grande senhorio vedado que antes estava na mão de 20 ou 30 lavradores e outros tantos rendeiros e proprietários mais pequenos. Estes todos são atirados para fora do seu modo de vida com as suas famílias e muitas outras famílias que eram principalmente empregues e sustentadas por eles.» (Rev. Addington, Inquiry into the Reasons for or against Enclosing Open Fields
[Investigação sobre as Razões, a Favor e Contra, a Vedação de Campos Abertos],
London, 1772, pp. 37-43 passim)
Não foi apenas terra inculta, mas frequentemente terra cultivada comunitariamente ou mediante um determinado pagamento à comuna, que a pretexto da vedação foi anexada pelo senhor da terra limítrofe.
«Tenho aqui em vista vedações de terras e campos abertos já cultivados. É reconhecido, mesmo pelos escritores que defendem as vedações, que estas diminuem as aldeias, aumentam os monopólios das quintas, sobem os preços das provisões e produzem despovoamento... e mesmo a vedação de terras incultas (como actualmente prossegue) pesa muito sobre os pobres, privando-os de uma parte da sua subsistência, e apenas vai no sentido de aumentar quintas já muito grandes.» (Dr. R. Price, Observations on Reversionary Payments [Observações sobre Pagamentos Reversíveis], London 1803, vol. II, pp. 155, 156 ) «Quando», diz o Dr. Price, «esta terra for parar às mãos de poucos grandes rendeiros, a consequência será que os pequenos rendeiros» (antes designados por ele como «uma multidão de pequenos proprietários e rendeiros [tenants] que se mantêm a si próprios e às famílias com o produto da terra que ocupam, com ovelhas criadas em comum, com aves de capoeira, porcos, etc, e que, por conseguinte, têm pouca ocasião de comprar qualquer dos meios de subsistência») «serão convertidos num corpo de homens que ganham a sua subsistência trabalhando para outros e que estarão na necessidade de ir ao mercado para tudo o que quiserem... Haverá talvez mais trabalho, porque haverá mais coacção a ele. As cidades e as manufacturas aumentarão, porque mais gente será conduzida para elas à procura de residência e de emprego. Este é o sentido em que a absorção de quintas naturalmente opera. E este é o sentido em que, há muitos anos, está efectivamente a operar neste reino.» (l. c, pp. 147, 148 )
Ele apreende o efeito total das inclosures deste modo:
«No geral, as circunstâncias das camadas mais baixas de homens são alteradas, sob quase todos os aspectos, para pior. De pequenos ocupantes de terra são reduzidos ao estado de jornaleiros e mercenários; e, ao mesmo tempo, a sua subsistência em tal estado tornou-se mais difícil.» (l. c, pp. 159, 160)
De facto, a usurpação da terra comunal e a revolução da agricultura que a acompanha actuam tão agudamente sobre os trabalhadores agrícolas que, segundo o próprio Eden, entre 1765 e 1780, o seu salário começou a cair abaixo do mínimo e a ser complementado pelo socorro oficial aos pobres. O seu salário, diz ele, «dava apenas para as necessidades vitais absolutas».
Ouçamos, por um momento, um defensor das enclosures e adversário do Dr. Price.
«Não se pode concluir que há despovoamento porque não se vêem homens a gastar o seu trabalho no campo aberto... Se, convertendo os pequenos rendeiros num corpo de homens que têm de trabalhar para outros, se produz mais trabalho, isto é uma vantagem que a nação» (a que, é claro, os «convertidos» não pertencem) «deveria desejar porque... sendo maior o produto quando os seus trabalhos conjuntos são empregues numa quinta, haverá um excedente [surplus] para as manufacturas e, por este meio, as manufacturas, uma das minas de ouro da nação, aumentarão na proporção da quantidade de cereal produzido.» (J. Arbuthnot, An Inquiry into the Connexion between the Present Price of Provisions, etc. [Uma Investigação sobre a Conexão entre o Presente Preço das Provisões, etc], pp. 124, 129)
A estóica tranquilidade de alma com que o economista político considera a mais insolente violação do «sagrado direito de propriedade» e o feito violento mais grosseiro contra pessoas, desde que sejam exigidos para estabelecer a base do modo de produção capitalista, é-nos mostrada, entre outros, pelo além disso ainda conservadoramente colorido e «filantrópico» Sir F. M. Eden. Toda a série de roubos, horrores e atribulações do povo, que acompanharam a expropriação violenta do povo do último terço do século XV até ao fim do século XVIII, leva-o apenas à «confortável» reflexão conclusiva de que:
«Tinha de ser estabelecida a devida proporção entre terra arável e pastagem. Durante todo o século XIV e a maior parte do século XV, havia um acre de pastagem para 2, 3 e mesmo 4 de terra arável. Pelos meados do século XVI, a proporção tinha mudado para 2 acres de pastagem para 2, mais tarde, de 2 acres de pastagem para um de terra arável, até que, por fim, a proporção justa de 3 acres de pastagem para um de terra arável foi atingida.»
No século XIX, naturalmente, perdera-se a própria reminiscência da conexão entre cultivador e propriedade comunal. Para já não falar de tempos mais tardios, que farthing de compensação recebeu alguma vez o povo do campo pelos 3 511 770 acres de terra comunal que lhe foram roubados entre 1810 e 1831 e parlamentarmente dados de presente pelos landlords aos landlords?
O último grande processo de expropriação do cultivador da terra é finalmente o chamado Clearing of Estates (limpeza das propriedades, de facto, varrimento dos homens para fora delas). Todos os métodos ingleses até aqui considerados culminaram na «limpeza». Como vimos pela descrição da situação moderna na secção precedente, prossegue-se agora, onde já não há mais camponeses independentes para varrer, com a «limpeza» das cottages, de tal modo que o operário agrícola não mais encontre na própria terra por ele cultivada o espaço necessário para o seu próprio alojamento. O que, porém, «Clearing of Estates» em sentido próprio significa, só o aprendemos na terra prometida da literatura romanesca moderna, na Alta Escócia. Lá o processo assinala-se pelo seu carácter sistemático, pela grandeza da escala em que de um golpe ele é executado (na Irlanda, os senhores da terra levaram as coisas ao ponto de varrerem várias aldeias ao mesmo tempo; na Alta Escócia, trata-se de superfícies do tamanho de ducados alemães) – e, finalmente, pela forma particular da propriedade fundiária subtraída.
Os Celtas da Alta Escócia subsistiam em clãs, cada um dos quais era proprietário da terra por ele colonizada. O representante do clã, o seu chefe ou «grande homem», era apenas proprietário titular dessa terra exactamente como a rainha de Inglaterra é proprietária titular do conjunto da terra nacional. Quando o governo inglês conseguiu subjugar as guerras internas destes «grandes homens» e as suas constantes incursões pelas planícies da Baixa Escócia, os chefes dos clãs de modo nenhum desistiram do seu velho ofício de ladrões; apenas mudaram a forma. Por sua própria autoridade, transformaram o seu direito de propriedade titular em direito de propriedade privada e, como isso provocasse resistência por parte das gentes dos clãs, decidiram expulsá-las pela violência aberta.
«Um rei de Inglaterra também podia com o mesmo direito arrogar-se o direito de empurrar os seus súbditos para o mar»
diz o Professor Newman. (F. W. Newman, l. c., p. 132.) … No século XVIII, foi ao mesmo tempo proibida aos gaélicos expulsos do campo a emigração, para os impelir pela força para Glasgow e outras cidades fabris. Como exemplo dos métodos dominantes no século XIX, bastam aqui as «limpezas» da Duquesa de Sutherland. Esta pessoa instruída em economia decidiu, logo na sua entrada para o governo, empreender uma cura económica radical e transformar todo o condado – cuja população já anteriormente se tinha reduzido a 15 000 por processos semelhantes – em pastagem de ovelhas. De 1814 a 1820, estes 15 000 habitantes, aproximadamente 3 000 famílias, foram sistematicamente expulsos e exterminados. Todas as suas aldeias foram destruídas e reduzidas a cinzas, todos os seus campos foram transformados em pastagens. Soldados britânicos foram encarregados da execução e chegaram a confrontações com os naturais. Uma mulher de idade ardeu nas chamas da choupana que se recusou a abandonar. Assim, esta madame apropriou-se de 794 000 acres de terra, que desde tempos imemoriais pertenciam ao clã ... No ano de 1825, os 15 000 gaélicos já estavam substituídos por 131 000 ovelhas. A parte dos aborígenes atirada para a orla marítima procurava viver da captura de peixe. Tornaram-se anfíbios, como disse um escritor inglês, e viviam metade na terra e metade na água e, com isso tudo, só viviam metade de ambas.
Mas, os bons dos gaélicos ainda deviam expiar de um modo mais duro a sua idolatria romântica de montanheses pelos «grandes homens» do clã. O cheiro do peixe subiu ao nariz dos grandes homens. Farejaram algo de lucrativo por detrás e arrendaram a orla marítima aos grandes negociantes de peixe de Londres. Os gaélicos foram expulsos pela segunda vez ...
O roubo das propriedades da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, o roubo da propriedade comunal, a transformação, usurpatória e executada com um terrorismo sem cerimónia, da propriedade feudal e do clã em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação original. Eles conquistaram o campo para a agricultura capitalista, anexaram a terra ao capital e criaram para a indústria citadina o necessário aprovisionamento de proletariado fora-da-lei …
Os expulsos da terra pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação repetida e violenta, este proletariado fora-da-lei não podia ser absorvido pela manufactura nascente tão rapidamente quanto era posto no mundo. Por outro lado, estes homens subitamente catapultados para fora da sua órbita de vida habitual não se podiam adaptar tão subitamente à disciplina da nova situação. Transformaram-se massivamente em mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por inclinação, na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí uma legislação sangrenta contra a vagabundagem no fim do século XV e durante todo o século XVI em toda a Europa ocidental,. Os pais da classe operária actual foram, antes de mais, castigados pela transformação em vagabundos e pobres a que foram sujeitos. A legislação tratava-os como criminosos «voluntários» e pressupunha que dependia da boa vontade deles que continuassem a trabalhar nas velhas condições que já não existiam.
Em Inglaterra, essa legislação começou com Henrique VII.
Henrique VIII, em 1530: os mendigos velhos e incapazes de trabalhar recebem uma licença de mendigo. Em contrapartida, chicoteamento e encarceramento para os vagabundos robustos. Devem ser atados à parte de trás de uma carroça e fustigados até que o sangue escorra do seu corpo, fazem depois um juramento de regressarem ao seu lugar de nascimento ou aonde moraram nos últimos três anos e de «se porem ao trabalho» (to put himself to labour). Que ironia cruel! No ano 27 de Henrique VIII o estatuto precedente é repetido, mas reforçado com novos aditamentos. Ao ser apanhado pela segunda vez em vagabundagem, o chicoteamento deve ser repetido e metade da orelha cortada, à terceira vez, porém, o visado é executado como grande criminoso e inimigo da comunidade.
Eduardo VI: um estatuto do primeiro ano do seu reinado, 1547, ordena que, se alguém se recusar a trabalhar, deve ser sentenciado como escravo da pessoa que o denunciou como desocupado. O dono deve alimentar o seu escravo com pão e água, bebida fraca e os restos de carne que achar convenientes. Tem o direito de o obrigar a qualquer trabalho ainda que repugnante por meio de chicoteamento e de agrilhoamento. Se o escravo se ausentar por 14 dias, é condenado à escravatura por toda a vida e deve ser marcado a fogo com a letra S na fronte ou nas faces; se ele fugir pela terceira vez, é executado como traidor público. O dono pode vendê-lo, legá-lo, alugá-lo, como escravo, inteiramente como outro bem móvel ou gado. Se os escravos empreenderem algo contra os donos, devem igualmente ser executados. Por informação os juízes de paz devem perseguir o malandro. Se se verificar que um vadio não fez nada durante três dias, deve ser levado para o seu lugar de nascimento, marcado a fogo com um ferro ao rubro no peito com o sinal V, e aí, com cadeias, deve ser utilizado nas ruas ou em qualquer outro serviço. Se o vagabundo der um lugar de nascimento falso, como castigo deve ficar escravo por toda a vida desse lugar, dos moradores ou da corporação e ser marcado a fogo com um S. Todas as pessoas têm o direito de tirar os filhos aos vagabundos e de os manter como aprendizes – os rapazes até aos 24 anos, as raparigas até aos 20 anos. Se fugirem, deverão ficar escravos do dono até essa idade, o qual, consoante quiser, os poderá prender com cadeias, chicotear, etc. Cada dono pode pôr um anel de ferro à volta do pescoço, do braço ou da perna do seu escravo, para o conhecer melhor e estar seguro de que é seu. A última parte deste estatuto prevê que certos pobres devem ser empregados pelo lugar, ou pelos indivíduos que lhes queiram dar de comer e de beber e encontrar trabalho para eles. Esta espécie de escravos paroquiais conservou-se em Inglaterra até bem dentro do século XIX, sob o nome de roundsmen (circulantes).
Isabel, em 1572: mendigos sem licença e acima dos 14 anos de idade devem ser fortemente chicoteados e marcados a fogo na orelha esquerda, no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois anos; em caso de repetição, se estão acima dos 18 anos de idade, devem ser executados, se ninguém os quiser tomar ao seu serviço por dois anos; à terceira reincidência, porém, são executados sem piedade como traidores públicos. Estatutos semelhantes: no ano 18.° de Isabel, c. 13, e em 1597.
Jaime I: uma pessoa vadia e mendiga é declarada malandro e vagabundo. Os juízes de paz nas Petty Sessions têm o poder de os mandar chicotear em público e de os encarcerar, na primeira vez que forem apanhados, por 6 meses, na segunda, por 2 anos. Durante a prisão devem ser chicoteados tanto e tão frequentemente quanto os juízes de paz acharem por bem ... Os vagabundos incorrigíveis e perigosos devem ser marcados a fogo com um R no ombro esquerdo e postos a trabalhos forçados e, se forem de novo apanhados a mendigar, devem ser executados sem piedade. Estas ordenações, legalmente vinculativas até aos primeiros tempos do século XVIII, só foram revogadas por Ana no 12.° do seu reinado, c. 23.
Leis semelhantes em França, onde, por meados do século XVII, foi estabelecido em Paris um reino dos vagabundos (royaume des truands). Ainda nos primeiros tempos de Luís XVI (Ordenança de 13 de Julho de 1777), todo o homem sãmente constituído dos 16 aos 60 anos, se não tivesse meios de existência e exercício de uma profissão, era mandado para as galeras. Semelhante é o estatuto de Carlos V para os Países Baixos de Outubro de 1537, o primeiro édito dos Estados e Cidades da Holanda de 19 de Março de 1614, a proclamação das Províncias Unidas de 25 de Junho de 1649 etc.
Assim, o povo do campo, expropriado à força da terra, expulso e feito vagabundo, foi chicoteado, marcado a fogo e torturado por leis grotescamente terroristas, para a disciplina necessária ao sistema do trabalho assalariado.
Não é suficiente que as condições de trabalho apareçam num pólo como capital e no outro como homens que não têm nada que vender a não ser a sua força de trabalho. Também não é suficiente forçá-los a venderem-se de livre vontade. No decurso da produção capitalista, desenvolve-se uma classe operária que, por educação, tradição, hábito, admite as exigências daquele modo de produção como evidentes leis da Natureza. A organização do processo de produção capitalista constituído quebra qualquer resistência; a constante criação de uma sobrepopulação relativa mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o trabalho assalariado numa via que corresponde às necessidades de utilização do capital; a compulsão surda das relações económicas confirma a dominação dos capitalistas sobre os operários. Violência imediata, extra-económica, com efeito, é sempre ainda aplicada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso habitual das coisas, os operários podem permanecer abandonados às «leis naturais da produção», isto é, à sua dependência do capital, decorrente das próprias condições da produção por eles garantida e eternizada. Durante a génese histórica da produção capitalista foi de outra maneira. A burguesia ascendente precisa e emprega o poder do Estado para «regular» o trabalho assalariado, isto é, para o comprimir dentro dos limites que convêm à obtenção de mais-valia, para prolongar o dia de trabalho e para conservar o próprio operário num grau normal de dependência. Este é um momento essencial da chamada acumulação original.
A classe dos operários assalariados, que surgiu na última metade do século XIV, formava, então e no século seguinte, apenas uma parte constitutiva muito pequena do povo, que estava fortemente protegida na sua posição pela exploração camponesa autónoma, no campo, e pela organização da corporação, na cidade. No campo e na cidade, mestre e operário estavam socialmente próximos. A subordinação do trabalho ao capital era apenas formal, isto é, o próprio modo de produção não possuía ainda nenhum carácter especificamente capitalista. O elemento variável do capital prevalecia muito sobre o seu elemento constante. A procura de trabalho assalariado cresceu, portanto, rapidamente com cada acumulação de capital, enquanto a oferta de trabalho assalariado só lentamente a seguiu. Uma grande parte do produto nacional, mais tarde transformado em fundo de acumulação do capital, entrava então ainda no fundo de consumo do operário ...
O Statute of Labourers foi promulgado a urgentes instâncias da Câmara dos Comuns.
«Primeiramente», diz um Tory ingenuamente, «os pobres pediram salários tão altos a ponto de ameaçarem a indústria e a riqueza. Depois, os seus salários são tão baixos a ponto de igualmente ameaçarem a indústria e a riqueza – e talvez mais –, mas num outro sentido.» (J. B. Byles, Sophisms of Free Trade. By a Barrister [Sofismas do Comércio Livre. Por Um Advogado], Lond., 1850, p. 206)
Foi legalmente fixada uma tarifa de salários para a cidade e o campo, para trabalho à peça e à jorna. Os operários rurais devem alugar-se ao ano, os citadinos no «mercado aberto». Foi proibido, sob pena de prisão, pagar salários mais altos do que os estatutários, mas o recebimento de salário mais alto era mais fortemente castigado do que o seu pagamento. Assim, nas secções 18 e 19 do Estatuto de Aprendiz de Isabel, inflige-se uma pena de prisão de dez dias àquele que pagar um salário mais alto e, em contrapartida, uma pena de prisão de vinte e um dias àquele que o receber ... A coligação de operários foi tratada como crime grave, do século XIV até 1825, ano da abolição das leis anti-coligação. O espírito do Estatuto dos Operários de 1349 e dos que se lhe sucederam manifesta-se claramente em que, com efeito, foi ditado pelo Estado um máximo para o salário, mas de modo nenhum um mínimo.
No século XVI, como se sabe, a situação dos operários piorou muito. O salário em dinheiro aumentou, mas não em proporção com a depreciação do dinheiro e o correspondente aumento do preço das mercadorias. Portanto, de facto, o salário baixou. Todavia, as leis com vista à sua redução mantiveram-se, juntamente com o corte de orelhas e o marcar a fogo daqueles «que ninguém quisesse tomar ao serviço». Através do Estatuto do Aprendiz, do ano 5 de Isabel, c. 3, os juízes de paz foram autorizados a fixar certos salários e a modificarem-nos segundo as épocas do ano e os preços das mercadorias. Jaime I estendeu esta regulamentação do trabalho também a tecelões, fiandeiros e todas as categorias possíveis de operários; Jorge II estendeu as leis contra a coligação de operários a todas as manufacturas.
No período da manufactura propriamente dito, o modo de produção capitalista tinha-se fortalecido suficientemente para tornar a regulamentação legal do salário tão inexequível como supérflua, mas, em caso de necessidade, não se queria ficar privado das armas do velho arsenal ... As determinações dos Estatutos dos Operários, acerca de contratos entre mestre e operário assalariado, acerca de notificações de prazos e coisas parecidas, que só permitem uma acção civil contra o mestre que quebre o contrato, mas permitem uma acção criminal contra o operário que quebre o contrato, estão em pleno vigor até à hora actual.
As leis cruéis contra as coligações caíram em 1825 ante a atitude ameaçadora do proletariado. Apesar disso, só caíram em parte. Alguns lindos restos dos velhos Estatutos só desapareceram em 1859 ... Vê-se que, só contra vontade e sob a pressão das massas, é que o Parlamento inglês renunciou às leis contra as greves e as Trades' Unions, depois de ele próprio, durante cinco séculos, com desavergonhado egoísmo, ter apoiado a posição de uma Trades' Union permanente dos capitalistas contra os operários.
Logo no começo da tempestade revolucionária, a burguesia francesa ousou retirar de novo aos operários o direito de associação acabado de conquistar. Pelo decreto de 14 de Junho de 1791, declarava toda a coligação de operários como um «atentado à liberdade e à declaração dos direitos do homem», punível com 500 libras juntamente com a privação por um ano dos direitos activos dos cidadãos. Esta lei, que à maneira do Estado policial comprimiu a luta de concorrência entre capital e trabalho no interior de limites confortáveis para o capital, sobreviveu a revoluções e mudanças de dinastia. O próprio governo do Terror deixou-a intocada. Só muito recentemente foi riscada do Code Pénal …
A expropriação e expulsão do povo do campo, intermitentes mas sempre renovadas, forneciam, como vimos, à indústria urbana repetidamente massas de proletários que estavam totalmente fora das relações corporativas, uma sábia circunstância que leva o velho A. Anderson ... na sua história do comércio, a acreditar numa intervenção directa da Providência. Temos de nos demorar ainda um momento sobre este elemento da acumulação original. À rarefacção do povo do campo, independente e trabalhando para si, não correspondeu só a condensação do proletariado industrial, do modo como Geoffroy Saint-Hilaire explica a condensação da matéria do mundo aqui pela sua rarefacção além. Apesar do número mais pequeno dos seus cultivadores, a terra dava tanto ou mais produto do que antes, porque a revolução nas condições da propriedade fundiária foi acompanhada por métodos de cultura melhorados, maior cooperação, concentração dos meios de produção, etc, e porque os operários assalariados rurais não só foram aplicados mais intensivamente como também o campo de produção em que eles trabalhavam para eles próprios se contraiu cada vez mais. Com a parte do povo do campo libertada, foram também libertados os seus anteriores meios de subsistência. Transformam-se agora em elemento material do capital variável. O camponês posto na rua tem de comprar o valor deles ao seu novo senhor, o capitalista industrial, sob a forma de salário. O que acontece com os meios de subsistência, acontece também com a matéria-prima agrícola doméstica da indústria. Transforma-se num elemento do capital constante.
Suponhamos, por exemplo, uma parte dos camponeses da Vestefália que no tempo de Frederico II fiavam todos linho – se bem que nenhum seda –, expropriados pela força e expulsos da terra; e a parte restante transformada, porém, em jornaleiros de grandes rendeiros. Ao mesmo tempo, erguem-se grandes fiações de linho e tecelagens em que os «deixados livres» trabalham agora como assalariados. O linho tem precisamente o mesmo aspecto que antes. Nenhuma fibra se alterou nele, mas entrou-lhe no corpo uma nova alma social. Ele forma agora uma parte do capital constante do dono da manufactura. Repartido anteriormente entre uma quantidade enorme de pequenos produtores, que o cultivavam eles próprios e o fiavam em pequenas porções com as suas famílias, está agora concentrado nas mãos de um capitalista, que manda outros fiar e tecer para ele. O trabalho extra despendido na fiação de linho realizava-se anteriormente em rendimento extra de inúmeras famílias de camponeses ou também, no tempo de Frederico II, em impostos pour le roi de Prusse. Realiza-se agora em proveito de uns poucos capitalistas. Os fusos e teares, anteriormente repartidos pela superfície do país, estão agora reunidos em poucas grandes casernas de trabalho, como os operários, como a matéria-prima. E fusos e teares e matéria-prima estão doravante transformados de meios de existência independente para fiandeiros e tecelões em meios para mandar neles e para lhes chupar trabalho não pago. Quando se olha para as grandes manufacturas, assim como para as grandes quintas, não se percebe que estão organizadas a partir de muitos pequenos lugares de produção e se formaram pela expropriação de muitos pequenos produtores independentes ...
A expropriação e expulsão de uma parte do povo do campo não deixa apenas livres para o capital industrial, juntamente com os operários, os seus meios de subsistência e o seu material de trabalho; cria o mercado interno.
De facto, os acontecimentos que transformam os pequenos camponeses em operários assalariados e os seus meios de subsistência e de trabalho em elementos materiais do capital criam ao mesmo tempo para este último o seu mercado interno. Anteriormente, a família de camponeses produzia e preparava os meios de subsistência e matérias-primas que, depois, ela própria consumia na maior parte. Estas matérias-primas e meios de subsistência tornaram-se agora mercadorias; o grande rendeiro vende-os, eles encontram o seu mercado nas manufacturas. Fio, tela, tecidos grosseiros de lã – coisas cujas matérias-primas se encontravam ao alcance de toda a família de camponeses e por ela eram fiadas e tecidas para o seu uso próprio – transformam-se agora em artigos de manufactura, para os quais, precisamente, os distritos rurais formam o mercado de escoamento ...
… No entanto, o passo de tartaruga deste método não correspondia de maneira nenhuma às necessidades comerciais do novo mercado mundial, que as grandes descobertas do fim do século XV tinham criado …
O capital-dinheiro formado por usura e comércio foi dificultado, na sua transformação em capital industrial, pela constituição feudal, no campo, e pela constituição corporativa, nas cidades. Estes obstáculos caíram com a dissolução do séquito feudal, com a expropriação e parcial expulsão do povo do campo. A nova manufactura estava implantada em portos marítimos de exportação ou em pontos do campo, fora do controlo da antiga cidade e da sua constituição corporativa ...
A descoberta de terras de ouro e prata na América, o extermínio, escravização e enterramento da população nativa nas minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África numa coutada para a caça comercial de peles-negras, assinalam a aurora da era da produção capitalista. Estes processos idílicos são momentos principais da acumulação original. Segue-se-lhes de perto a guerra comercial das nações europeias, com o globo terrestre por palco. Inicia-se com a revolta dos Países Baixos contra a Espanha, toma contornos gigantescos na Inglaterra com a guerra antijacobina e prolonga-se ainda na guerra do ópio contra a China, etc.
Os diversos momentos da acumulação original repartem-se agora, mais ou menos em sequência temporal, nomeadamente, por Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Em Inglaterra, no fim do século XVII, eles são reunidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida do Estado, no sistema moderno de impostos e no sistema proteccionista. Estes métodos repousam, em parte, sobre o poder mais brutal, por exemplo, o sistema colonial. Todos eles utilizam, porém, o poder do Estado, o poder concentrado e organizado da sociedade para acelerar, como em estufa, o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e para encurtar a transição. A violência é a parteira de toda a velha sociedade que está grávida de uma nova. Ela própria é uma potência económica.
Do sistema colonial cristão diz um homem que fez do cristianismo especialidade, W. Howitt:
«As barbaridades e excessos desesperados da chamada raça cristã, através de todas as regiões do mundo e sobre todos os povos que foi capaz de submeter, não têm paralelo nas de qualquer outra raça, por mais selvagem, por mais inculta e por mais desprovida de piedade e vergonha, em qualquer idade da Terra.» ( William Howitt, Colonisation and Christianity: A Popular History of the Treatment of the Natives by the Europeans in ali their Colonies [Colonização e Cristianismo: Uma História Popular do Tratamento dos Nativos pelos Europeus em Todas as Suas Colónias], London, 1838, p. 9.)
A história da administração colonial holandesa – e a Holanda era a nação capitalista modelo do século XVII – «é um dos quadros mais extraordinários de traição, suborno, massacre e vileza» (Thomas Stamford Raffles, late Lieut.-Gov. of that island [ex-tenente governador dessa ilha], The History of Java [A História de Java], Lond., 1817 ). Nada de mais característico do que o seu sistema de roubo de homens nas Celebes para obter escravos para Java. Os ladrões de homens eram adestrados para esse fim. O ladrão, o intérprete e o vendedor eram os principais agentes deste comércio, príncipes nativos os principais vendedores. Os jovens roubados eram escondidos nas prisões secretas das Celebes até estarem prontos para envio para os navios de escravos. Uma relatório oficial diz:
«Só esta cidade de Macassar, por exemplo, está cheia de prisões secretas, qual delas a mais horrível, abarrotadas de infelizes, vítimas da ganância e da tirania, agrilhoados com correntes, separados à força das suas famílias.»
Para se apoderarem de Malaca, os holandeses subornaram o governador português. Deixou-os entrar na cidade em 1641. Precipitaram-se logo para casa dele e assassinaram-no, para «renunciarem» ao pagamento da soma da traição de 21 875 libras esterlinas. Onde quer que pusessem os pés, seguiam-se desolação e despovoamento. Banjuwangi, uma província de Java, em 1750, contava com mais de 80 000 habitantes; em 1811, já só tinha 8 000. Isto é o doux commerce (doce comércio)!
A Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, como é sabido, para além da dominação política nas Índias Orientais, o monopólio exclusivo do comércio do chá, assim como do comércio chinês em geral e do transporte de bens de e para a Europa. Mas a navegação costeira da Índia e entre as ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, tornaram-se monopólio dos funcionários superiores da companhia. Os monopólios do sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas inesgotáveis de riqueza. Os próprios funcionários fixavam os preços e esfolavam à vontade o infeliz hindu. O governador geral tomava parte neste comércio privado. Os seus favoritos obtinham contratos em condições em que, mais espertos do que os alquimistas, conseguiam ouro a partir de nada. Num dia, brotavam como os cogumelos grandes fortunas; a acumulação original avançava sem o dispêndio de um xelim. O processo judicial de Warren Hastings está cheio de exemplos desses. Eis aqui um caso. Um contrato de ópio foi atribuído a um certo Sullivan, no momento da sua partida – em missão oficial – para uma parte da Índia totalmente afastada dos distritos do ópio. Sullivan vendeu o seu contrato por 40 000 libras esterlinas a um certo Binn, Binn vendeu-o no mesmo dia por 60 000 libras esterlinas e o último comprador e cumpridor do contrato declarou que, depois disso, ainda tirou um ganho enorme. Segundo uma das listas apresentadas ao Parlamento, a Companhia e os seus funcionários, de 1757 até 1766, fizeram com que os indianos os presenteassem com 6 milhões de libras esterlinas! Entre 1769 e 1770, os ingleses fabricaram uma fome pela compra de todo o arroz e pela recusa da sua revenda a não ser por preços fabulosos.
O tratamento dos nativos era, naturalmente, o mais desenfreado nas plantações destinadas apenas ao comércio de exportação, como nas Índias Ocidentais e nos países ricos e densamente povoados abandonados ao assassínio seguido de roubo, como o México e as Índias Orientais. Contudo, mesmo nas colónias propriamente ditas o carácter cristão da acumulação original não se desmentia. Aqueles sóbrios virtuosos do protestantismo – os Puritanos da Nova Inglaterra –, em 1703, por decisão da sua Assembly, estabeleceram um prémio de 40 libras esterlinas por cada escalpe de índio e cada pele-vermelha capturado; em 1720, um prémio de 100 libras esterlinas por cada escalpe; em 1744, depois de Massachusetts-Bay ter declarado uma certa tribo como rebelde, os seguintes preços: por um escalpe masculino de 12 anos e mais, 100 libras esterlinas de novo valor monetário, por um prisioneiro masculino, 105 libras esterlinas, por mulheres e crianças prisioneiras, 50 libras esterlinas, por escalpes de mulheres e crianças, 50 libras esterlinas! Alguns decénios mais tarde, o sistema colonial vingou-se na descendência – entretanto tornada sediciosa – dos piedosos pilgrim fathers. Por instigação e a soldo dos ingleses foi tomahawked [morta com o machado de guerra]. O Parlamento britânico declarou que massacrar e tirar escalpes eram «meios que Deus e a Natureza tinham posto nas suas mãos».
O sistema colonial amadureceu, como numa estufa, o comércio e a navegação. As «sociedades monopolia» (Lutero) foram poderosas alavancas da concentração do capital. As colónias asseguraram um mercado de escoamento às manufacturas em crescimento e, pelo monopólio do mercado, uma acumulação potenciada. O tesouro capturado fora da Europa, directamente por pilhagem, escravização, assassínio seguido de roubo, refluiu para a mãe pátria e transformou-se aí em capital. A Holanda, que foi quem primeiro desenvolveu completamente o sistema colonial, já em 1648 estava no foco da sua grandeza comercial. Estava
«na posse quase exclusiva do tráfico da Índia Oriental e do comércio entre o sudoeste e o nordeste europeus. As suas pescarias, marinha, manufacturas, ultrapassavam as de qualquer outro país. Os capitais da República eram talvez mais significativos do que os do resto da Europa juntos» (G. v. Gulich, Geschichtliche Darstellung des Handels, der Gewerbe und des Ackerbaus der bedeutendsten handeltreibenden Staate unserer Zeit, [Exposição Histórica do Comércio, da Indústria e da Agricultura dos Estados Comerciantes mais Significativos do Nosso Tempo], Iena, 1830, t. I, p. 371)
Gulich esqueceu-se de acrescentar: a massa do povo da Holanda, em 1648, já estava mais sobrecarregada de trabalho, empobrecida e brutalmente oprimida do que a do resto da Europa junta.
Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período da manufactura propriamente dito, pelo contrário, é a supremacia comercial que dá a predominância industrial. Daí, o papel preponderante que o sistema colonial então desempenhou. Foi «o deus estranho» que se pôs no altar ao lado dos velhos deuses da Europa e que, um belo dia, com um empurrão e pontapé, os atirou a todos pela borda fora. Proclamou a realização de mais-valia como único e último fim da humanidade …
Com as dívidas do Estado surgiu um sistema de crédito internacional que, frequentemente, no caso deste ou daquele povo, esconde uma das fontes da acumulação original. Assim, as vilanias do sistema de roubo veneziano formam uma das tais bases escondidas da riqueza de capital da Holanda, a quem a Veneza decadente emprestou grandes somas de dinheiro. Passou-se do mesmo modo entre a Holanda e a Inglaterra. Já no começo do século XVIII, as manufacturas da Holanda estavam de longe ultrapassadas e ela tinha deixado de ser a nação dominante no comércio e na indústria. Um dos seus principais negócios, de 1701-1776, foi, portanto, o empréstimo de capitais enormes, especialmente à sua poderosa concorrente, a Inglaterra. Algo de semelhante se passa hoje entre a Inglaterra e os Estados Unidos. Muito do capital que hoje entra nos Estados Unidos sem certidão de nascimento, ainda ontem era, em Inglaterra, sangue de crianças capitalizado …
Sistema colonial, dívidas do Estado, massa de impostos, proteccionismo, guerras comerciais, etc, estes rebentos do período da manufactura propriamente dito dilataram-se gigantescamente durante o período de infância da grande indústria. O nascimento desta última foi celebrado pela grande matança heródica de crianças. Tal como a marinha real, as fábricas também faziam recrutamento forçado. Por muito insensível que Sir F. M. Eden seja ao horror da expropriação do povo do campo da terra, desde o último terço do século XV até ao seu tempo, o fim do século XVIII, por muito que ele se congratule, satisfeito consigo, com este processo «necessário» para «estabelecer» a agricultura capitalista e a «devida proporção entre a terra arável e a terra para pastagem», ele não demonstra, em contrapartida, a mesma penetração económica na necessidade do roubo de crianças e da escravatura infantil para a transformação da empresa manufactureira na empresa fabril e para o estabelecimento da verdadeira relação entre capital e força de trabalho. Diz ele:
«Pode talvez valer a pena a atenção de o público considerar se alguma manufactura – que, para ser conduzida com sucesso, requer que cottages e work-houses tenham de ser saqueadas para arranjar crianças pobres; que elas tenham de ser empregues por turnos durante a maior parte da noite e privadas do descanso … – contribuirá algo para a soma da felicidade individual ou nacional?» ( Eden, l. c., livro II, c. I, p. 421 ) «Nos condados do Derbyshire, Nottinghamshire e, mais particularmente, no Lancashire», diz Fielden, «a maquinaria recentemente inventada foi usada em grandes fábricas construídas nas margens de rios capazes de fazerem girar a roda hidráulica. Milhares de braços foram subitamente requeridos nesses lugares, longe das cidades; e, sendo, em particular o Lancashire, até então, comparativamente, pouco povoado e estéril, do que agora precisava era de uma população. Sendo os dedos pequenos e ágeis das criancinhas, de muito longe, o que mais era pedido, surgiu instantaneamente o costume de arranjar aprendizes (!) nas diferentes workhouses paroquiais de Londres, de Birmingham e de outros lados. Muitos, muitos milhares dessas pequenas e infelizes criaturas foram mandadas para o norte, desde a idade de 7 até à idade de 13 ou 14 anos. O costume era de que o mestre» (isto é, o ladrão de crianças) «vestisse os seus aprendizes e os alimentasse e alojasse numa "casa de aprendizes" perto da fábrica; foram contratados supervisores para vigiarem o seu trabalho e o interesse deles era fazer trabalhar as crianças ao máximo, porque a paga deles era em proporção à quantidade de trabalho que conseguissem extorquir. Claro que a consequência era a crueldade... Em muitos dos distritos manufactureiros, mas particularmente, receio, no condado cheio de culpas a que pertenço [Lancashire], foram praticadas as crueldades mais de cortar o coração sobre as criaturas inofensivas e desvalidas que estavam, assim, consignadas ao cuidado de mestres manufactureiros; eram fatigadas até à beira da morte por excesso de trabalho... eram açoitadas, agrilhoadas e torturadas com o requinte de crueldade mais apurado; ... em muitos casos, eram reduzidas pela fome até ao osso e açoitadas no seu trabalho e ... mesmo nalgumas ocasiões ... foram levadas a suicidarem-se ... Os vales belos e românticos do Derbyshire, Nottinghamshire e Lancashire, retirados do olhar público, tornaram-se as solidões sombrias da tortura e de muitos assassínios. Os lucros dos manufactureiros eram enormes; mas isso só aguçava o apetite que tinha de ser satisfeito e, por conseguinte, os manufactureiros recorreram a um expediente que parecia assegurar-lhes esses lucros sem qualquer possibilidade de limite; começaram com a prática daquilo que é denominado "trabalho nocturno", isto é, tendo cansado um grupo de braços fazendo-os trabalhar durante todo o dia, tinham outro grupo pronto para continuar a trabalhar durante toda a noite; indo o grupo diurno para as camas que o grupo nocturno tinha acabado de deixar e, por sua vez, de novo, indo o grupo nocturno, de manhã, para as camas que o grupo diurno deixara. É tradição corrente, no Lancashire, que as camas nunca arrefeçam.» ( John Fielden, The Curse of the Factory System [A Maldição do Sistema de Fábrica], London, 1836, pp. 5, 6 )
Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período da manufactura a opinião pública da Europa tinha perdido o último resto de sentimento de vergonha e de consciência. As nações gabavam-se cinicamente de cada infâmia que era um meio para a acumulação de capital. Leiam-se, por exemplo, os ingénuos anais do comércio do honrado A. Anderson. É aí trombeteado como um triunfo da sageza política inglesa que a Inglaterra, na Paz de Utrecht, tenha extorquido à Espanha, pelo Tratado de Asiento, o privilégio de poder exercer o comércio de negros – que até então só exercia entre a África e as Índias Ocidentais inglesas – agora também entre a África e a América espanhola. A Inglaterra obtinha o direito de fornecer a América espanhola até 1743 anualmente com 4800 negros. Isto concedia, ao mesmo tempo, uma cobertura oficial para o contrabando britânico. Liverpool engordou à base do comércio de escravos. Ele constituía o seu método de acumulação original. E, até aos dias de hoje, a «honorabilidade» de Liverpool permanece o Píndaro do comércio de escravos, o qual – compare-se com o escrito citado do Dr. Aikin de 1795 – «coincidiu com aquele espírito de corajosa aventura que caracterizou o comércio de Liverpool e que rapidamente a levou ao seu presente estado de prosperidade; ocasionou um vasto emprego para embarcadiços e marinheiros, e aumentou grandemente a procura das manufacturas do país» [p. 339]. Em 1730, Liverpool empregava no comércio de escravos 15 navios; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e em 1792, 132.
Enquanto introduzia a escravatura de crianças em Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da anterior economia esclavagista mais ou menos patriarcal dos Estados Unidos num sistema de exploração comercial. Em geral, a escravatura velada de operários assalariados na Europa precisava, como pedestal, da escravatura sans phrase no novo mundo.
Tantae molis erat [tanto esforço se tornava necessário] para trazer à luz as «leis naturais eternas» do modo de produção capitalista, completar o processo de separação entre operários e condições de trabalho, transformar, num pólo, os meios de subsistência e de produção sociais em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em operários assalariados, em «pobres trabalhadores» livres, esse produto artificial da história moderna. Se o dinheiro, segundo Augier, «veio ao mundo com manchas naturais de sangue numa das faces» (Marie Augier, Du crédit public [Do Crédito Público], Paris, 1842, p. 265), o capital veio a escorrer sangue e sujeira por todos os poros, da cabeça aos pés …
«O capital», diz o Quarterly Reviewer, «foge da turbulência e da briga, e é tímido, o que é muito verdade, mas não é toda a verdade. O capital tem horror à ausência de lucro ou a um lucro muito pequeno, como a Natureza ao vácuo. Com o lucro adequado, o capital é muito audaz. Uns 10 por cento certos assegurarão a sua aplicação em qualquer parte; 20 por cento certos produzirão avidez; 50 por cento, positivamente, audácia; 100 por cento, pô-lo-ão pronto a espezinhar todas as leis humanas; 300 por cento, e não haverá crime perante o qual tenha escrúpulos, nem um risco que ele não corra, mesmo com a possibilidade de o seu dono ser enforcado. Se turbulência e briga proporcionarem lucro, encorajará francamente ambas. Prova: o contrabando e o comércio de escravos.» (T. J. Dunning, Trades Unions and Strikes [Uniões de Ofícios e Greves], London, 1860 pp 35 36 )
O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
A casa de terror e a leveza dos dedos
Mas logo que os povos, cuja produção se move ainda nas formas inferiores do trabalho escravo, corveia etc., são arrastados para um mercado mundial dominado pelo modo de produção capitalista, o qual desenvolve a venda dos seus produtos no exterior como interesse preponderante, os horrores bárbaros da escravatura, da servidão etc. são coroados com o horror civilizado do mais-trabalho. Por isso, o trabalho dos negros nos Estados sulistas da União Americana manteve um carácter moderadamente patriarcal, enquanto a produção se destinava sobretudo ao autoconsumo directo. Mas na medida em que a exportação de algodão se tornou interesse vital daqueles Estados, o mais-trabalho dos negros, aqui e ali o consumo das suas vidas em sete anos de trabalho, tornou-se factor de um sistema calculado e calculista. Já não se tratava de obter deles certa quantidade de produtos úteis. Tratava-se, agora, da produção da própria mais-valia. Algo semelhante sucedeu com a corveia nos principados do Danúbio …
Nos principados do Danúbio, a corveia estava associada à renda in natura e demais complementos da servidão, mas constituía o tributo decisivo pago à classe dominante. Onde esse é o caso, raramente a corveia se originou da servidão, pelo contrário, a servidão originou-se da corveia. E assim foi nas províncias romenas. Seu modo original de produção baseava-se na propriedade comum, porém não a propriedade comum sob a forma eslava, ou menos ainda indiana. Parte das terras era cultivada independentemente pelos membros da comunidade, como propriedade privada livre; outra parte – o ager publicus – era cultivada em comum por eles. Parte dos produtos desse trabalho comunal servia de fundo de reserva para o caso de más colheitas e outras casualidades, parte de tesouro do Estado para cobrir os custos de guerra, religião e outras despesas comunais. Com o decorrer do tempo, dignitários militares e eclesiásticos usurparam a propriedade comunal e as prestações devidas à mesma. O trabalho dos camponeses livres sobre a sua terra comunal transformou-se em corveia para os ladrões da terra comunal. Com isso, desenvolveram-se simultaneamente relações de servidão, no entanto apenas de facto, não legalmente, até que a Rússia, libertadora do mundo, sob o pretexto de abolir a servidão, elevou-a à categoria de lei. O código de corveia proclamado pelo general russo Kisselev, em 1831, foi naturalmente ditado pelos próprios boiardos. A Rússia conquistou desse modo, com um só golpe, os magnatas dos principados danubianos e os aplausos dos cretinos liberais de toda a Europa.
Segundo o Règlement Organique, como se intitula o código da corveia, cada camponês valáquio deve ao chamado proprietário da terra, além de uma quantidade detalhada de pagamentos in natura o seguinte: 1) 12 jornadas de trabalho em geral, 2) uma jornada de trabalho no campo e 3) uma jornada para o transporte de lenha. Summa summarum 14 dias por ano. Com profunda visão da Economia Política, a jornada de trabalho não é considerada em seu sentido comum, mas como a jornada de trabalho necessária para a realização de um produto diário médio; determina, porém, o produto diário médio de maneira tão astuciosa que mesmo um ciclope não poderia completá-lo em 24 horas. Nas palavras secas de autêntica ironia russa, declara o próprio Règlement, portanto, que por 12 jornadas de trabalho deve-se entender o produto de um trabalho manual de 36 dias, por uma jornada de trabalho no campo 3 dias e por 1 dia para transporte de madeira do mesmo modo o triplo … O trabalho diário legal para actividades agrícolas individuais pode ser interpretado de tal modo que o dia começa no mês de maio e termina no mês de outubro …
Se o Règlement Organique dos principados danubianos foi uma expressão positiva da avidez por mais-trabalho, a qual cada parágrafo legaliza, as Leis Fabris inglesas são uma expressão negativa da mesma avidez. Essas leis refreiam o impulso do capital por sucção desmesurada da força de trabalho, por meio da limitação coerciva da jornada de trabalho pelo Estado e na verdade por um Estado dominado por capitalistas e landlords. Abstraindo dum movimento dos trabalhadores que cresce cada dia mais ameaçadoramente, a limitação da jornada de trabalho nas fábricas foi ditada pela mesma necessidade que levou à aplicação do guano nos campos ingleses. A mesma cega rapacidade que num caso esgotou a terra, no outro afectou pelas raízes a força vital da nação. Epidemias periódicas manifestam-se aqui tão claramente como a diminuição da altura dos soldados na Alemanha e na França …
O prolongamento da jornada de trabalho além dos limites do dia natural pela noite dentro serve apenas de paliativo, apenas mitiga a sede vampiresca por sangue vivo do trabalho. Apropriar-se de trabalho durante todas as 24 horas do dia é, por conseguinte, o impulso imanente da produção capitalista. Sendo porém fisicamente impossível sugar as mesmas forças de trabalho continuamente dia e noite, necessita pois, para superar esse obstáculo físico, do revezamento entre as forças de trabalho consumidas de dia e de noite, um revezamento que admite diferentes métodos, por exemplo, podendo ser ordenado de tal forma que parte do pessoal operário faça numa semana o trabalho diurno, na outra, o trabalho noturno etc. …
O capital, que tem tão “boas razões” para negar os sofrimentos da geração trabalhadora que o circunda, é condicionado no seu movimento prático pela perspectiva de apodrecimento futuro da humanidade e, por fim, do incontrolável despovoamento tanto ou tão pouco como pela possível queda da Terra sobre o Sol … O capital não tem a menor consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a não ser quando a isso é coagido pela sociedade. À queixa sobre degradação física e mental, morte prematura, tortura do sobretrabalho, ele responde: Deve esse tormento atormentar-nos, já que ele aumenta o nosso gozo (o lucro)? De um modo geral, porém, isso também não depende da boa ou da má vontade do capitalista individual. A livre-concorrência impõe a cada capitalista individualmente, como leis externas inexoráveis, as leis imanentes da produção capitalista …
Certamente que as pretensões do capital no seu estado embrionário, ainda em vias de crescimento e procurando assegurar o direito a absorver um quantum suficiente de mais-trabalho, não apenas pela simples força das condições económicas, mas também mediante a ajuda do poder do Estado, parecem até modestas, se as compararmos com as concessões que ele tem de fazer rosnando e resistindo, na sua idade adulta. Custou séculos para que o trabalhador “livre”, como resultado do modo de produção capitalista desenvolvido, consentisse voluntariamente, isto é, socialmente coagido, em vender todo o tempo activo da sua vida, até a sua própria capacidade de trabalho, pelo preço dos seus meios de subsistência habituais, e o seu direito à primogenitura por um prato de lentilhas. É natural, portanto, que o prolongamento da jornada de trabalho, que o capital procura impor aos trabalhadores adultos por meio da força do Estado, da metade do século XIV ao fim do século XVII, coincida aproximadamente com a limitação do tempo de trabalho que na segunda metade do século XIX é imposta pelo Estado aqui e acolá à transformação de sangue infantil em capital. O que hoje, por exemplo, no Estado de Massachusetts, até recentemente o Estado mais livre da República Norte-Americana, é proclamado como limite estatal do trabalho de meninos com menos de 12 anos, era a jornada normal de trabalho na Inglaterra, ainda a meio do século XVII, para artesãos em pleno vigor, para robustos servos do campo e para gigantescos ferreiros …
Ainda durante a maior parte do século XVIII, até à época da grande indústria, o capital na Inglaterra não tinha conseguido apossar-se de toda a semana do trabalhador mediante o pagamento do valor semanal da força de trabalho, constituindo excepção os trabalhadores agrícolas. A circunstância de eles poderem viver uma semana toda com o salário de quatro dias não parecia aos trabalhadores razão suficiente para trabalhar também os outros dois dias para o capitalista. Parte dos economistas ingleses ao serviço do capital denunciou furiosamente essa obstinação, outra parte defendeu os trabalhadores. Ouçamos, por exemplo, a polémica entre Postlethwayt … e o … autor do Essay on Trade and Commerce.
Postlethwayt diz entre outras coisas:
“Não posso encerrar estas breves observações sem registar o comentário trivial na boca de muitos de que quando o trabalhador (industrious poor) consegue obter o suficiente em 5 dias para viver ele não deseja trabalhar os 6 dias completos. Daí concluem pela necessidade de encarecer, por meio de impostos ou de qualquer outra medida, mesmo os meios de subsistência necessários a fim de forçar o artesão e o trabalhador da manufactura a trabalhar ininterruptamente 6 dias por semana. Tenho de pedir permissão para discordar desses grandes políticos que se batem pela perpétua escravização da população trabalhadora deste reino (the perpetual slavery of the working people); eles esquecem o provérbio de que all work and no play (apenas trabalho e nenhuma diversão) imbeciliza …”
A isso responde o autor do Essay on Trade and Commerce:
“Se se considera uma instituição divina descansar o sétimo dia da semana, isso implica que os demais dias pertencem ao trabalho” (ele quer dizer ao capital, como logo se verá) “e não pode ser considerado cruel obrigar-se ao cumprimento desse mandamento de Deus … Que a humanidade em geral tende por natureza para a comodidade e indolência é o que comprova a experiência fatal com o comportamento de nossa plebe da manufactura, que não trabalha em média mais que 4 dias por semana, salvo no caso de encarecimento dos meios de subsistência. (...) Espero que tenha dito o suficiente para tornar claro que o trabalho comedido durante os 6 dias da semana não é nenhuma escravidão … A cura não será completa até que os nossos pobres que trabalham se resignem a trabalhar 6 dias pela mesma soma que agora ganham em 4 dias”.
Para tanto, “para a extirpação da preguiça, da licenciosidade e das divagações românticas de liberdade”, assim como “para a redução da taxa dos pobres, para o incentivo do espírito da indústria e rebaixamento do preço do trabalho nas manufacturas”, o nosso fiel Eckart do capital propõe um meio eficaz, a saber, encarcerar os trabalhadores que passem a depender da beneficência pública, numa palavra paupers, numa “casa ideal de trabalho” (an ideal workhouse). “É necessário tornar tal casa uma casa de terror (house of terror).” Nesta “casa de terror”, neste “ideal de casa de trabalho”, devem ser trabalhadas “14 horas diariamente, incluindo porém o tempo adequado para as refeições, de modo que restem 12 horas completas de trabalho.”
Doze horas de trabalho diário na ideal workhouse, na casa de terror de 1770! Sessenta e três anos depois, em 1833, quando o Parlamento inglês reduziu a jornada de trabalho para menores de 13 a 18 anos em quatro ramos industriais a 12 horas inteiras de trabalho, parecia que o dia do juízo final tinha soado para a indústria inglesa. Em 1852, quando L. Bonaparte procurou firmar a sua posição junto da burguesia mexendo na jornada legal de trabalho, o povo trabalhador francês gritou a uma só boca: “A lei que reduz a jornada de trabalho a 12 horas é o único bem que nos restou da legislação da República!” Em Zurique, o trabalho de crianças com mais de 10 anos foi limitado a 12 horas; em Argóvia, 1862, o trabalho de crianças entre 13 e 15 anos foi reduzido de 12 1/2 a 12 horas, na Áustria, 1860, para crianças entre 14 e 16 anos igualmente a 12 horas. Que “progresso desde 1770" bradaria Macaulay com “exultation”!
A “casa de terror” para os pobres, com a qual ainda sonhava a alma do capital em 1770, ergueu-se poucos anos depois como gigantesca “casa de trabalho” para os próprios trabalhadores da manufactura. Chamou-se fábrica. E desta vez o ideal empalideceu em face da realidade …
Depois de o capital ter precisado de séculos para prolongar a jornada de trabalho até ao seu limite máximo normal de 12 horas e ultrapassá-lo, ocorreu então, a partir do nascimento da grande indústria no último terço do século XVIII, um assalto desmedido e violento como uma avalancha. Qualquer barreira imposta pela moral e pela natureza, pela idade ou pelo sexo, pelo dia e pela noite foi destruída. Os próprios conceitos de dia e noite, rusticamente simples nos velhos estatutos, confundiram-se tanto que um juiz inglês, ainda em 1860, teve de empregar argúcia verdadeiramente talmúdica para esclarecer “juridicamente” o que seja dia e o que seja noite. O capital celebrava suas orgias.
… Os trabalhadores tinham até então oferecido resistência passiva, embora inflexível e diariamente. Eles protestaram agora em comícios abertamente ameaçadores … Uma parte dos próprios fabricantes murmurava:
“Em virtude das decisões contraditórias dos magistrados reina uma situação totalmente anormal e anárquica ... O fabricante nas grandes cidades pode burlar a lei, o da área rural não encontra o pessoal necessário ...”
E igual exploração da força de trabalho é o primeiro direito humano do capital.
Nestas circunstâncias chegou-se a um compromisso entre fabricantes e trabalhadores, que foi consagrado pelo Parlamento na nova Lei Fabril adicional de 5 de agosto de 1850. Para “pessoas jovens e mulheres” a jornada de trabalho foi elevada de 10 para 10 1/2 horas nos cinco primeiros dias da semana e aos sábados foi limitada a 7 1/2 horas. O trabalho deve ser realizado no período das 6 da manhã até as 6 da tarde, com 1 1/2 hora de intervalo para refeições, a ser fixado ao mesmo tempo e de acordo com as determinações de 1844 etc. … Para o trabalho das crianças permaneceu em vigor a lei de 1844.
Uma categoria de fabricantes assegurou para si desta vez, como antes, direitos senhoriais especiais sobre as crianças proletárias. Foram os fabricantes de seda. No ano de 1833, tinham bramido ameaçadoramente “se acabasse a liberdade de esfalfar crianças de qualquer idade 10 horas diariamente, isso paralisaria suas fábricas” (“if the liberty of working children of any age for 10 hours a day was taken away, it would stop their works”). Ser-lhes-ia impossível comprar um número suficiente de crianças maiores de 13 anos. Eles extorquiram o privilégio desejado. O pretexto revelou-se, numa investigação posterior, como pura mentira, o que, entretanto, não os impediu de, durante uma década, fiarem seda 10 horas diariamente com o sangue de crianças pequenas, que para a execução do seu trabalho precisavam de ser colocadas em cima de cadeiras. A lei de 1844 “roubou-lhes”, na verdade, a “liberdade” de pôr a trabalhar crianças menores de 11 anos mais que 6 1/2 horas por dia, mas assegurou-lhes, em compensação, o privilégio de fazer trabalhar crianças entre 11 e 13 anos por 10 horas diárias e fez cessar a obrigatoriedade escolar prescrita para crianças de outras fábricas. Desta vez o pretexto:
“A delicadeza do tecido exige uma leveza dos dedos que somente pode ser assegurada com a entrada precoce na fábrica”. (Rep. etc. for 31st Oct. 1846. p. 20.)
As crianças foram inteiramente sacrificadas devido aos dedos delicados, como o gado no sul da Rússia por causa da pele e do sebo. Finalmente, em 1850, o privilégio concedido foi limitado aos departamentos de torcimento e enrolamento da seda, mas, como compensação dos danos causados pela “liberdade” roubada ao capital, o tempo de trabalho para crianças de 11 a 13 anos foi aumentado de 10 para 10 1/2 horas.
O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Quarta edição, 1890
Burgueses fanáticos da ordem fuzilados nas suas varandas por bandos de soldados bêbedos
As reivindicações do proletariado de Paris são devaneios utópicos a que é preciso pôr fim. A essa declaração da Assembleia Nacional Constituinte o proletariado de Paris respondeu com a Insurreição de Junho, o acontecimento de maior envergadura na história das guerras civis da Europa. A república burguesa triunfou. A seu lado alinharam a aristocracia financeira, a burguesia industrial, a classe média, a pequena burguesia, o exército, o lumpenproletariado organizado em Guarda Móvel, os intelectuais de prestígio, o clero e a população rural. Do lado do proletariado de Paris não havia senão ele próprio …
Durante as jornadas de Junho todas as classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem, contra a classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. Tinham "salvo" a sociedade dos "inimigos da sociedade". Tinham dado como mote aos seus exércitos as palavras de ordem da velha sociedade -"Propriedade, família, religião, ordem – e proclamado aos cruzados da contra-revolução:"Sob este signo vencerás". A partir desse instante, logo que um dos numerosos partidos que se haviam congregado sob esse signo contra os insurrectos de Junho tenta assenhorear-se do campo de batalha revolucionário em seu próprio interesse de classe, sucumbe perante o grito:"Propriedade, família, religião, ordem." A sociedade é salva tantas vezes quantas se contrai o círculo dos seus dominadores e um interesse mais exclusivo se impõe ao mais amplo. Qualquer reivindicação, ainda que da mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais corriqueiro, do republicanismo mais formal, da democracia mais superficial, é simultaneamente condenada como um "atentado à sociedade" e estigmatizada como "socialismo". E, finalmente, os próprios pontífices da "religião e da ordem" são derrubados a pontapé das suas cátedras de Pitonisa, arrancados dos seus leitos pela calada da noite, atirados em carros celulares, lançados em masmorras ou mandados para o exílio; o seu templo é totalmente arrasado, suas bocas são tapadas, suas pernas quebradas, sua lei reduzida a frangalhos em nome da religião, da propriedade, da família e da ordem. Os burgueses fanáticos da ordem são fuzilados nas suas varandas por bandos de soldados bêbedos, a santidade dos seu lares é profanada, e suas casas são bombardeadas como diversão em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem. Finalmente, a ralé da sociedade civil constitui a sagrada falange da ordem e o herói Krapulinski instala-se nas Tulherias como "salvador da sociedade" …
Os precursores dos "respeitáveis republicanos" haviam mandado seu símbolo, a bandeira tricolor, em excursão pela Europa. Eles próprios, por sua vez, produziram um invento que percorreu todo o Continente mas que retornava à França com amor sempre renovado, até que agora adquirira carta de cidadania na metade de seus departamentos – o estado de sítio. Um invento esplêndido, empregado periodicamente em todas as crises seguintes … Mas a caserna e o bivaque, que eram assim postos periodicamente sobre a cabeça da sociedade francesa para lhe comprimir o cérebro e reduzi-la à passividade; o sabre e o mosquetão, aos quais era periodicamente permitido desempenhar o papel de juízes e administradores, de tutores e censores, fazer de polícia e servir de guarda-noturno; o bigode e o uniforme, periodicamente proclamados como sendo a mais alta expressão da sabedoria da sociedade e seus guardiães – não deviam o quartel e o bivaque, o sabre e o mosquetão, o bigode e o uniforme acabar forçosamente por ter a ideia de salvar a sociedade de uma vez para sempre, proclamando o seu próprio regime como a mais alta forma de governo e libertando completamente a sociedade civil do trabalho de se governar a si mesma? O quartel e o bivaque, o sabre e o mosquetão, o bigode e o uniforme tinham forçosamente que acabar por ter essa ideia, com tanto mais razão quanto poderiam então esperar também melhor recompensa por esses serviços mais importantes, ao passo que através de um mero estado de sítio periódico e de passageiros salvamentos da sociedade, a pedido desta ou daquela fração burguesa, conseguiam pouca coisa de sólido, excepto alguns mortos e feridos e algumas caretas amigáveis da parte dos burgueses. Não deveriam finalmente os militares jogar um dia o estado de sítio em seu próprio interesse e em seu próprio benefício, sitiando ao mesmo tempo as bolsas burguesas? ...
Sempre que emudecia ... o barulho confuso do Parlamento e seus membros se dissolviam pela nação, tornava-se indubitavelmente claro que só faltava uma coisa para completar o verdadeiro carácter dessa república: tornar as suas férias permanentes e substituir a sua inscrição Liberté, Égalité, Fraternité pelas palavras inequívocas: Infantaria, Cavalaria, Artilharia!
O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 1869