(Robert Kurz, Ler Marx)
8. Apropriação universal de uma totalidade de forças produtivas:
Critérios para a ultrapassagem do capitalismo
Introdução
Uma pessoa normal, socializada no capitalismo, vai ficar decepcionada quando constatar que Marx, para além da análise e crítica do modo de produção e de vida capitalista, não deixou qualquer descrição detalhada para a "construção do socialismo", como ainda há pouco tempo se dizia na esquerda e nos países do capitalismo de Estado, nenhuma indicação sobre como proceder "correctamente". Falta, pelo menos, aquilo a que essa pessoa julga ter direito em crítica social, ou seja, um folheto com um manual de instruções socioeconómicas. Isto deve-se simplesmente ao facto de ser impossível, mesmo com a melhor boa vontade, deduzir tal constructo da teoria crítica da sociedade. A teoria crítica pode explicar e definir manifestações negativas e destrutivas do capitalismo, que todas as pessoas sofrem de uma maneira ou de outra, analisá-las e assim fundamentar a crítica do capitalismo, bem como a necessidade de ultrapassá-lo. Mas esta fundamentação da crítica é algo completamente diferente dum manual de instruções para a correcta construção de uma sociedade "ideal" e, se possível, "sem contradições", um projecto feito no estirador para uma arquitetura social, com base num qualquer modelo de ser humano, como ele teria de ser.
Quem reclama tal manual de instruções está a exigir, inconscientemente, que a ultrapassagem da sociedade de mercado se faça também no modelo habitual e arraigado da compra e venda: vê a teoria crítica no papel de vendedor, a quem pede que faça uma oferta com garantia do direito de devolução, e vê-se a si mesmo no papel de consumidor exigente (e eternamente enganado), que pretende obter informações completas sobre o produto, para poder consumir sem problemas a mercadoria adquirida. Esquece que não se trata aqui de uma oferta de mercadorias, no mercado de opiniões e sugestões para mudar o mundo, etc., mas do sofrimento real na sua própria vida e dos desaforos sociais contra si impostos, de que só pode livrar-se ele próprio em unidade com outros seres humanos. A teoria crítica não é uma oferta nesse sentido, mas um espelho do conhecimento de si próprio, uma fúria de compreender e um "convite para dançar" com desfecho incerto.
O facto de a consciência normal exigir a crítica como utopia prontinha, que pudesse ser comprada ou deixada, como no supermercado, chama a atenção (mais uma vez inconscientemente) para a relação interna entre utopia e forma da mercadoria. Eis porque, ao tratar da ultrapassagem do capitalismo e da transição para outra sociedade, temos de insistir mais uma vez no carácter não utópico da teoria de Marx, e regressar à tese de que vivemos hoje na realidade bem no meio de uma verdadeira utopia negativa, pois outra coisa não é o capitalismo na sua maturidade de sistema mundial. Como designar de outra maneira o facto de, neste sistema, os indivíduos se tornarem "unidimensionais" (Herbert Marcuse), pela "compulsão silenciosa das condições" (Marx) e se necessário pela força pública, e de se verem obrigados a aplicar a si mesmos as leis cegas do sistema? O "homem novo" desde o início foi o postulado de uma nova forma de dominação objectivada. A obsessão por um "material humano” controlado “idealmente", também interiormente submetido a um fim em si abstracto pressuposto, já fazia parte das primeiras ideias de racionalidade capitalista. E hoje, como é sabido, o totalitarismo do mercado reclama, a um ritmo de certo modo anual, mensal e semanal, o "homem novo" completamente maleável e moldando-se a si mesmo, de acordo com os imperativos do mercado.
É como parte desta realização de uma reivindicação totalitária utópica sob a máscara da objectividade que se inscreve uma reavaliação de conceitos: a irracionalidade e unidimensionalidade utópicas do fim em si do capitalismo foram declaradas a "ordem natural das coisas", e a lógica de destruição da economia empresarial, que talha impiedosamente o universo do mundo sensível à medida da árida abstracção do dinheiro, foi declarada "trato pragmático" com as coisas. Inversamente, na utopia capitalista realizada, o facto de fazer valer as emoções e necessidades humanas mais elementares, assim como a razão mais simplesmente pragmática no trato com o mundo sensível tangível, foram falsamente chamados de utopia. Tendo declarado a ausência de lugar como o verdadeiro lugar do mundo, o capitalismo baniu a razão humana para um lugar realmente inexistente. Para citar apenas alguns exemplos: tornou-se "utópico" querer meter nos eixos o transporte rodoviário tornado um flagelo mortífero, ou não esperar 30 anos para parar as centrais nucleares que constituem um perigo público e uma hipoteca sobre muitas gerações; também utópico é "trabalhar" menos que os camponeses da Idade Média, quando se usam redes e robôs microelectrónicos que proporcionam a maior economia de trabalho de todos os tempos. No mundo do capital consumado apenas a franca insanidade é realista. Sob estas condições, o chamado pragmatismo assume necessariamente traços escatológicos.
A mensagem de Marx diz, em primeiro lugar, que não há nenhuma "nova Jerusalém" de qualquer espécie para construir, mas trata-se apenas de acabar com o completo absurdo do modo de produção dominante, que transformou todos as forças produtivas em forças destrutivas. E, em segundo lugar, que a tarefa da mudança prática neste sentido já não pode caber na área de responsabilidade da teoria crítica, só pode ser a acção de um movimento social prático, visando a apropriação e a abolição. A teoria pode, no máximo, indicar os objectivos gerais e certos critérios, resultantes da negação fundamentada do capitalismo; por conseguinte, em Marx mais não encontramos do que tais critérios. Aliás, estes já são explícita e implicitamente um elemento da própria análise crítica (são aqui apresentados na forma de extractos de textos seleccionados, de modo a facilitar às leitoras e leitores habituados ao esquema burguês o entendimento, na forma de conclusões explícitas; estas, no entanto, não devem ser confundidas com “instruções” positivas, enumeradas em anexo).
Portanto, não é possível deduzir das abstracções da teoria crítica uma relação razoável com as próprias coisas. A teoria crítica só pode servir de fundamento para que os indivíduos se juntem voluntariamente numa organização negatória, com o objectivo de fazer rebentar a anti-razão capitalista, apropriar-se dos potenciais sociais e, finalmente, descobrir verdadeiramente o uso razoável das coisas, através do estabelecimento de um trato prático com elas, livre dos constrangimentos irracionais da economia empresarial, ou seja, "seleccionar" de algum modo as forças produtivas que o capitalismo deixou numa forma destrutiva, reformulá-las, reagrupá-las de modo diferente, por vezes imobilizando-as, se comprovado o seu absurdo ou a ameaça que representam para a comunidade, etc. Enquanto o capitalismo adapta tudo segundo um único e mesmo princípio geral e abstracto, que é o princípio da valorização do valor ou do sempre mais, sem levar em conta a qualidade particular das coisas e das relações, nem a sua substância ou conteúdo específicos, nem a sua particularidade etc., o "princípio" do comunismo, no sentido de Marx, seria precisamente não ter nenhum princípio assim, mantendo, pelo contrário, um relacionamento pela primeira vez consciente e pragmático com o mundo.
O critério para isso consiste em que mais nenhum meio fetichista se interponha entre os indivíduos sociais e o mundo. Daí que nenhuma declaração teórica geral pode dar informações sobre isso, mas apenas a experiência prática de uma nova relação com as coisas e o processo desta mesma mudança o podem fazer. O conceito de “movimento de apropriação" é, talvez, o que melhor corresponde a este critério de Marx, porque concebe o carácter da apropriação revolucionária como um processo: não como a forma “jurídica” limitada e superficial de apropriação, a que em grande parte se reduzia essa ideia no marxismo do movimento operário, mas como a efectiva apropriação prática, material-sensível, intelectual, etc. da "totalidade das forças produtivas", ou seja, o poder de disposição, não no sentido de uma simples transmissão de títulos de propriedade burguesa ao "povo" ou à "sociedade", mas no sentido do domínio real do conteúdo da sua própria socialidade universal e dos seus potenciais.
Não basta arrancar as forças produtivas ao capitalismo, assim as despindo da sua forma jurídica burguesa geral, mas é preciso apropriá-las no sentido mais amplo do termo, e precisamente assim as transformar. Marx vira-se consciente e claramente, contra a "ilusão jurídica" de uma pseudo-abolição do capital no âmbito das formas jurídicas burguesas. Esta ilusão jurídica consiste precisamente em considerar a forma de propriedade do código civil (o suposto poder de disposição) como sendo o verdadeiro e o essencial, embora seja apenas a necessária consequência de determinadas relações de produção e relações sociais anteriores a ela. Seria, portanto, simplesmente absurdo pretender introduzir uma propriedade social directa, mantendo contudo a produção de mercadorias, o trabalho abstracto, etc. em que assenta a propriedade não social (como foi o caso no "socialismo real").
Não é difícil distinguir o Marx esotérico do Marx exotérico ao nomear os critérios para uma efectiva ultrapassagem do capitalismo. Com a sua "luta de classes", que, como o termo indica, já está submetida ao quadro determinado pelo capitalismo, o "proletariado" como tal não pode satisfazer os critérios de Marx para um movimento de abolição e apropriação que vá para além do capitalismo. É também por esta razão que o "socialismo do trabalho" sempre se manteve prisioneiro da sua forma jurídica e, portanto, da "ilusão jurídica" sobre o poder de disposição. O próprio Marx já sugere, em parte, uma outra lógica de abolição e apropriação, quando fala de vez em quando não de "proletariado", mas de "indivíduos". Na verdade, o suporte de um movimento social revolucionário no sentido do Marx esotérico não pode ser uma classe definida a priori pelo próprio capitalismo, que se reclama especificamente da posição que lhe coube involuntariamente no capitalismo, mas apenas uma associação voluntária de indivíduos, dependendo das suas convicções próprias, e não da sua posição objectivamente dada no sistema.
Enquanto, no interior das categorias capitalistas e do seu contexto, na aparência objectivamente pré-determinados e como que sujeitos às leis da natureza, a vontade dos indivíduos é uma mera ilusão, inversamente, o rebentar desta relação fetichista irracional só pode ser realmente função da vontade, designadamente da vontade dos indivíduos que, por causa da sua experiência e do seu próprio julgamento crítico, "não querem mais" (isto é, eles querem livrar-se da forma de vontade burguesa que antes era a deles e que se lhes tornou insuportável). Deste ponto de vista, uma sociedade livre do capitalismo e do fetichismo em geral seria, pela primeira vez, uma sociedade cuja configuração, vida e actividade dependeriam efectivamente da sua vontade livre. Tratando-se de uma ultrapassagem não meramente ilusória do capitalismo, não se trata de uma classe derrubar outra dentro do capitalismo, mas de uma união de indivíduos críticos (independentemente das respectivas posições dentro do capitalismo) que querem livrar-se do "sujeito automático", em confronto com a parte da sociedade que (também independentemente da sua posição dada) quer absolutamente mantê-lo e procura a salvação na concorrência sem escrúpulos. O "materialismo" da questão da abolição do capitalismo reside na maneira como são tratadas as experiências negativas da realidade capitalista num amplo sentido social global, e não na maneira como os indivíduos estão a priori fixados socialmente.
Neste sentido, a velha questão marxista de saber quem é o “sujeito” (objectivamente dado) da crítica do capitalismo, quem será ele já “em si”, independentemente da sua sorte histórica, está simplesmente mal colocada, e, portanto, não passa hoje de uma questão perdida. No mundo capitalista do século XXI, onde as categorias funcionais sociais outrora fixas se tornaram realmente fluidas, e onde os indivíduos estão real e palpavelmente atomizados (com a simultânea agudização da pobreza maciça global e dos múltiplos processos de pauperização), é muito mais evidente do que no século XIX que os critérios de ultrapassagem do capitalismo enunciados pelo Marx esotérico não podem ser apreendidos e activados por um movimento de classes pré-determinadas pelo sistema, mas apenas por um movimento feito livremente de "indivíduos associados" (ou associando-se no processo da própria crítica prática).
Embora possa parecer relativamente fácil fazer tal constatação em virtude da evidência empírica actual (excepto para os marxistas que restam da época passada, prisioneiros da sua identidade ideológica), os critérios a estabelecer estão eles próprios bloqueados e fechados à consciência, como ela se tornou no mundo capitalista. O conceito aparentemente plausível de apropriação rapidamente faz colocar vendas nos olhos, quando se torna evidente que este critério contradiz a forma jurídica. Pois, deste ponto de vista, os indivíduos que viveram sob o capitalismo, especialmente os da época pós-moderna, são todos "marxistas do movimento operário", porque o marxismo agora obsoleto coincide aqui com a consciência burguesa. Desde logo, o indivíduo burguês não pode conceber-se fora da forma jurídica, que é a sua forma subjectiva e, portanto, a forma da sua relação com o mundo. Mas, como Marx mostrou, a subjectividade jurídica burguesa só aparece, afinal, através da cisão do homem burguês em sujeito económico e sujeito cidadão, em "homo oeconomicus" e "homo politicus", em "bourgeois" e "citoyen”, em homem do dinheiro e homem do Estado. De acordo com Marx, no entanto, Estado e dinheiro são as duas formas polares de uma generalidade meramente abstracta e por isso inverídica, uma mera "comunidade ilusória". Para a falsa sociedade de indivíduos atomizados por leis cegas se tornar realmente uma sociedade, uma comunidade agindo deliberadamente, é necessário que os indivíduos "extraiam de si mesmos" as duas formas alienadas e irracionais de generalidade abstracta, nomeadamente o dinheiro e o Estado, abolindo-as e ultrapassando-as.
Esta tarefa, aparentemente tão plausível, que consiste em apropriar-se voluntariamente das forças produtivas tornadas destrutivas na sua forma capitalista, exige, portanto, nada menos que suprimir a forma jurídica que dá cobertura ao dinheiro e ao Estado, na qual os indivíduos apenas podem relacionar-se entre si como representantes da "mercadoria". É claro que a consciência de massas socializada no capitalismo antes de mais recua perante esta tarefa de ultrapassar na prática a sua própria forma de sujeito (e é precisamente isto que constitui o cerne da crítica social do Marx esotérico, que se pode designar abreviadamente por "crítica do valor").
Assim acontece, paradoxalmente, que os dinossauros intelectuais do marxismo do movimento operário que resta, na sua obsoletude, são aqueles que mais claramente formulam este bloquear da consciência burguesa, precisamente porque, conhecendo os critérios marxistas (que eles sempre truncaram, desfiguraram e puseram de lado, torcendo o nariz) são mais capazes de identificar o problema, para que possa ser posto de lado, enquanto o entendimento burguês oficial antes de mais não percebe “patavina”. A ironia da história é que o marxismo residual se torne precisamente o porta-voz da consciência burguesa comum, e puxe por todos os registos da hostilidade e da suspeita denunciatórias contra a "crítica do valor", procurando desqualificar o critério de abolição do meio fetichista, na verdade originário de Marx, como ideia de um “comunismo da idade da pedra" à la Pol Pot, e uma ameaça de recaída para trás da civilização. É o caso, por exemplo, de Wolfgang Fritz Haug, o papa emérito da pesquisa alemã sobre Marx, e de outros académicos marxistas. No meio da nova grande crise e do asselvajamento bárbaro do capitalismo globalizado, é a própria ideia de libertação da moderna sociedade do desaforo que é declarada barbárie, provando assim o marxismo, mesmo no seu último suspiro, que, em crassa oposição ao Marx esotérico, nunca conseguiu nem quis entender por civilização outra coisa senão a socialização alienada através do dinheiro e do Estado.
Na verdade, o capitalismo, com a sua falsa civilização dos "direitos humanos", que Marx já criticou radicalmente há 150 anos, está ele próprio a abolir o dinheiro para uma parte cada vez maior da população mundial, mas precisamente à sua própria maneira negativa. Nas grandes regiões globais em ruínas, onde cada vez mais países já abandonaram a sua moeda própria, vivem massas de pessoas sem qualquer rendimento monetário nem acesso a divisas. Esta situação é realmente bárbara, mas apenas porque foi abolido o dinheiro para as pessoas, mas não a forma de socialização, nem o critério do dinheiro como "compulsão silenciosa". Para Marx, a questão não é a abolição superficial, ou a retirada pura e simples do dinheiro, mantendo-se a forma burguesa do direito e do sujeito, mas sim a supressão desta mesma forma, tornando então inútil qualquer nova socialização enquanto economia monetária, e mostrando a sua irracionalidade.
Mas, onde a forma de sujeito burguesa permanece intacta, os dois pólos da alienação nunca podem ser jogados um contra o outro. O capitalismo apenas pôde evoluir, até à sua maturidade de crise, porque o Estado manteve em cheque o dinheiro ou o mercado, e vice-versa. Onde esta delimitação mútua deixa de funcionar, manifesta-se o cerne bárbaro desta civilização. Assim, o regime de Pol Pot estabeleceu o terror social total porque o Estado, na forma do aparelho do partido, se impôs absolutamente ao dinheiro e ao mercado, tal como, inversamente, onde o dinheiro ou o mercado se impõem absolutamente ao Estado, também a consequência é o terror social. Em ambos os casos, as pessoas são numa forma potenciada o que também são num capitalismo democrático normal: meros objectos, simples material de uma desgraça que se abate sobre elas. É mais uma ironia da história que a "crítica do valor" seja denunciada como interpretação inaceitável de Marx precisamente por uma posição política que sempre permaneceu não apenas um marxismo do trabalho, mas também um marxismo do Estado, ou seja, por um marxismo que inclui precisamente o elemento que assumiu um aspecto particularmente odioso no regime de Pol Pot. Em todo o mundo, hoje, dinheiro/mercado e Estado afastam-se de uma massa crescente dos seres humanos que vivem na Terra, sem contudo os libertar dos seus critérios. É o próprio amadurecimento das condições que exige a aplicação prática dos critérios desenvolvidos pelo Marx esotérico na conclusão da sua análise crítica: não continuar mais a jogar o dinheiro/mercado contra o Estado e vice-versa, mas procurar ultrapassar esse dualismo irracional pela auto-administração e auto-organização conscientes da sociedade, com participação de todos os seus membros, para além do mercado e do Estado.
Marx estava consciente de que fazer rebentar a forma de sujeito burguesa tornada obsoleta não será apenas uma coisa difícil em si mesma, mas também tem de ocorrer em condições completamente diferentes e não simultâneas. Tendo-se desenvolvido de modo diferente e em tempos diferentes, o capitalismo esbarra nos seus limites nesta falta de uniformidade. E ainda hoje, 150 anos depois de Marx, agora que tocamos realmente no horizonte das suas questões esotéricas, a ultrapassagem desta ordem social só pode ocorrer sob condições completamente diferentes. A simultaneidade forçada do sistema mundial através da globalização capitalista é meramente negativa, enquanto as ruínas da não simultaneidade constituem os pontos de partida reais de possíveis movimentos de abolição e de apropriação.
Assim, a última força produtiva capitalista, a microelectrónica, tornou-se uma condição universal da apropriação, que ultrapassou e levou ao absurdo a noção de socialismo concebida pelo Marx exotérico como "primeira fase do comunismo", em que ainda se teria de calcular e “planear” de acordo com os padrões de desempenho e tempos de trabalho individuais (em todo o caso, designado por Marx como resto da forma jurídica burguesa). Neste ponto, a quota parte de tempo e de desempenho de cada indivíduo já não tem qualquer papel na reprodução social real, perante os agregados sociais técnico-científicos.
Por outro lado, a apropriação real desta força só pode ter lugar sob condições e em agrupamentos sociais completamente diferentes nas diversas regiões do globo, de acordo com o estado em que foram deixados pelo cilindro compressor da globalização capitalista. A universalidade transnacional do movimento de apropriação e de abolição, referido por Marx como critério, inclui assim esta diversidade das situações de partida. A este propósito, Marx fez uma declaração que ainda pode ser importante para o século XXI, quando afirmou a possibilidade de a comuna agrária russa do seu tempo ser o ponto de partida para um revolucionamento emancipatório, desde que, em conexão com a apropriação das forças produtivas modernas, ela ultrapasse a sua tacanhez local e tome parte num movimento mundial transnacional, incluindo os centros industriais. Se hoje nada resta das antigas constituições agrárias "comunistas", tais formas poderão ressurgir em algumas regiões, sob novas configurações, através do processo de decomposição do sistema mundial capitalista. Um novo anticapitalismo no sentido do Marx esotérico terá de ser um movimento mundial universal, conscientemente não nacional (e, portanto, antinacional), globalmente ligado e comunicando em rede, simultaneamente capaz de desenvolver e abranger em si diferentes formas e condições de partida.
Sobre uma coisa Marx nunca deixou qualquer dúvida, e também esse é um critério decisivo: o capitalismo não pode ser abolido por "experiências" doutrinárias isoladas, por modelos em miniatura, que apenas seria preciso adicionar e propagar. Tal procedimento seria realmente uma recaída para trás do capitalismo, quando do que se trata é de uma apropriação consciente e racional das potências e agregados sociais, que não é possível miniaturizar. O grau de socialização não pode andar para trás e, por isso, a “associação de indivíduos” emancipatória não pode ocorrer em pequena escala, nem “ao lado” da sociedade. Também deste ponto de vista Marx abandonou o utopismo. O que é imediatamente possível são formas de organização da solidariedade, ou a operação de instituições colectivas sem objectivos comerciais nem estatais, projectos que, no entanto, não devem ser confundidos com uma apropriação abrangente das forças produtivas sociais.
Numa situação social mundial como a actual, em que, por um lado, o capitalismo está podre de maduro, pronto a estoirar, mas, por outro lado, não está à vista nenhum movimento de apropriação social, muito menos mundial, a reformulação da teoria crítica é em si um momento condicionante da emancipação futura. Para indicar os objectivos e critérios para a ultrapassagem do capitalismo, que já não têm nada a ver com as ideias do marxismo do trabalho, do Estado e da nação, talvez o mais frutuoso seja separar o Marx exotérico, historicamente esgotado, do Marx esotérico, apenas hoje tornado actual. O facto de a teoria crítica, precisamente na medida em que cumpre esta tarefa, não participar na inflação de cozinhados banais e baratos de conceitos e receitas, constituirá, por fim, a sua vantagem.
Não há receitas para as lojas de pronto-a-comer do futuro
As dificuldades internas parecem ser ainda maiores do que os obstáculos externos. Pois, se não há dúvidas sobre “de onde”, tanto maior é a confusão sobre “para onde” … No entanto, a vantagem da nova orientação é precisamente não ter de antecipar de maneira dogmática o mundo, mas pretender encontrar o novo mundo apenas a partir da crítica do antigo. Até agora os filósofos tinham soluções prontas para todos os enigmas, e o mundo estupidamente exotérico só tinha de abrir a boca para sorver o leite e o mel da ciência absoluta. A filosofia laicizou-se, e a maior prova disso é que a própria consciência filosófica se envolveu na tormenta da luta, não só exteriormente, mas também interiormente …
Nós não enfrentamos o mundo doutrinariamente, com um novo princípio: está aqui a verdade, ajoelha-te aqui! Nós desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos princípios do mundo. Não lhe dizemos: abandona as lutas, elas não passam de disparates; vamos dar-te a verdadeira palavra de ordem da luta. Apenas lhe mostramos por que luta ele na verdade, e a consciência é uma coisa de que ele tem de se apropriar, mesmo que não queira.
A reforma da consciência consiste unicamente em fazer que o mundo interiorize a sua consciência, que acorde do seu sonho e que se lhe explique os seus próprios actos …
A nossa divisa, portanto, tem de ser: reforma da consciência, não através de dogmas, mas através da análise da consciência mística que a si própria se ignora, manifeste-se ela religiosa ou politicamente. Veremos então que o mundo há muito que tem o sonho de uma coisa da qual ele tem de possuir a consciência para a possuir realmente. Veremos que não se trata de um grande traço de união entre o passado e o futuro, mas da realização das ideias do passado.
Cartas dos “Anais Franco-Alemães”, 1844
A Révue Positiviste de Paris censura-me, por um lado, que eu trate a economia de maneira metafísica, por outro, – adivinhem? – que eu me limite a uma simples análise crítica dos dados, em vez de ditar receitas ... para as lojas de pronto-a-comer do futuro.
O Capital. Crítica da economia política, Livro primeiro, Prefácio à segunda edição de 1873
O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade terá de se regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o actual estado de coisas. As condições deste movimento resultam dos pressupostos actualmente existentes.
A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846
É em geral errado dar maior ênfase à chamada repartição “justa”
Que é a “repartição justa”?
Não afirmam os burgueses que a repartição actual é «justa»? E, de facto, não é ela a única repartição «justa» na base do modo de produção actual? As relações económicas regulam-se por conceitos jurídicos ou, pelo contrário, não nascem as relações jurídicas das económicas? Não têm também os sectários socialistas as ideias mais diversas sobre a repartição «justa»? …
Abstraindo do até aqui desenvolvido, era de todo o modo errado fazer da chamada repartição algo de essencial e nela pôr a maior ênfase.
Em qualquer época, a repartição dos meios de consumo é apenas consequência da repartição das próprias condições da produção; esta última repartição, porém, é uma característica do próprio modo de produção … O socialismo vulgar (e, com ele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou dos economistas burgueses o hábito de considerar e tratar a distribuição independentemente do modo de produção, e de expor, portanto, o socialismo como girando principalmente em torno da distribuição.
Crítica do Programa de Gotha, escrito em 1875
Abstraindo (totalmente) da escravização geral que o sistema do salário implica, a classe operária não deve sobrestimar o resultado final destas lutas diárias. Não deve esquecer-se de que luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos; que logra conter o movimento descendente, mas não fazê-lo mudar de direção; que aplica paliativos, mas não cura a enfermidade. Não deve, portanto, deixar-se absorver exclusivamente por essas inevitáveis guerrilhas, provocadas continuamente pelos abusos incessantes do capital ou pelas flutuações do mercado. A classe operária deve saber que o sistema actual, mesmo com todas as misérias que lhe impõe, engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução económica da sociedade. Em vez do lema conservador "Um salário justo para uma jornada de trabalho justa!", deve inscrever na sua bandeira a divisa revolucionária "Abaixo o sistema do salário!".
Salário, preço e lucro, 1865
Contra não apenas condições particulares, mas contra o conjunto da actividade da sociedade até agora
(O proletariado) lança-se em parte em experiências doutrinárias, bancos de troca e associações operárias, ou seja, num movimento em que renuncia a revolucionar o velho mundo com os seus próprios grandes meios colectivos, e tenta, pelo contrário, salvá-lo nas costas da sociedade, de maneira privada, dentro das suas condições limitadas de existência, por isso fracassando necessariamente.
O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 1869
(A) soma de forças de produção, capitais e formas sociais de relacionamento, que cada indivíduo e cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos apresentaram como “substância” e “essência do ser humano”, daquilo que eles apoteosaram e combateram ... Essas condições de vida já encontradas pelas diferentes gerações decidem, também, se as agitações revolucionárias que periodicamente se repetem na história serão suficientemente fortes para subverter as bases do todo existente, e se os elementos materiais de um revolucionamento total, que são nomeadamente, por um lado, as forças produtivas existentes e, por outro, a formação de uma massa revolucionária que revolucione não apenas as condições particulares da sociedade até então existente, como também a própria “produção da vida” que ainda vigora, a “actividade total” na qual a sociedade se baseia –, se tais elementos não existem, então é bastante indiferente, para o desenvolvimento prático, se a ideia dessa subversão já foi proclamada uma centena de vezes, como mostra a história do comunismo.
A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846
Contra a ilusão jurídica: A propriedade e as relações universais têm de ser realmente subordinadas aos indivíduos unidos
No que se refere ao direito, afirmámos, entre muitas outras coisas, a oposição do comunismo ao direito, tanto político e privado como também na sua forma mais geral enquanto direito humano … e concebemos expressamente os axiomas do direito que devem levar ao comunismo como axiomas da propriedade privada, do mesmo modo que concebemos o direito de posse comum como pressuposto imaginário do direito de propriedade privada …
No direito privado, as relações de propriedade existentes são declaradas como resultado da vontade geral. O próprio jus utendi et abutendi denota, por um lado, o facto de a propriedade privada se ter tornado plenamente independente da comunidade e, por outro, a ilusão de que a própria propriedade privada assenta na simples vontade privada, na disposição arbitrária das coisas. Na prática, o abuti traz consigo limites económicos muito bem determinados para o proprietário privado, se este não quiser ver a sua propriedade, e com ela o seu jus abutendi, passar para outras mãos, já que a coisa, considerada simplesmente em relação com a sua vontade, não é coisa nenhuma, pelo contrário, é apenas na circulação e independentemente do direito a uma coisa que ela se torna uma verdadeira propriedade (uma relação, que os filósofos chamam uma ideia).
Esta ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, resulta necessariamente, no desenvolvimento ulterior das relações de propriedade, em alguém poder ter um título jurídico de uma coisa sem ter a coisa realmente …
Na grande indústria e na concorrência, o conjunto de condições de existência, de condicionamentos e de limitações individuais está fundido nas duas formas mais simples: propriedade privada e trabalho. Com o dinheiro, toda a forma de relacionamento e as próprias relações são postas para os indivíduos como algo acidental. Portanto, no próprio dinheiro já está presente o facto de que todas as relações anteriores eram somente relações de indivíduos sob determinadas condições, e não de indivíduos enquanto indivíduos. Essas condições encontram-se reduzidas a duas: trabalho acumulado ou propriedade privada e trabalho real. Desaparecendo ambas ou uma delas, interrompem-se as relações. Os próprios economistas modernos, por exemplo Sismondi, Cherbuliez etc., opõem a association des individus à association des capitaux. Por outro lado, os próprios indivíduos estão completamente subordinados à divisão do trabalho e, por isso, são conduzidos à mais completa dependência recíproca. Na medida em que, no interior do trabalho, a propriedade privada se defronta com o trabalho, ela desenvolve-se a partir da necessidade de acumulação e, de início, ainda conserva bastante a forma da comunidade; porém, em seu desenvolvimento ulterior, ela aproxima-se cada vez mais da forma moderna de propriedade privada. Por meio da divisão do trabalho, já está dada desde o princípio a divisão das condições de trabalho, das ferramentas e dos materiais, o que gera a fragmentação do capital acumulado em diversos proprietários e, com isso, a fragmentação entre capital e trabalho, assim como as diferentes formas de propriedade. Quanto mais se desenvolve a divisão do trabalho e aumenta a acumulação, tanto mais aguda se torna essa fragmentação. O próprio trabalho só pode subsistir sob o pressuposto dessa fragmentação.
Aqui se mostram, portanto, dois factos. Primeiro, as forças produtivas aparecem como plenamente independentes e separadas dos indivíduos, como um mundo próprio ao lado destes, o que tem a sua razão de ser no facto de os indivíduos, dos quais elas são as forças, existirem dispersos e em oposição uns aos outros, enquanto, por outro lado, essas forças só são forças reais nas relações e na conexão desses indivíduos. Portanto, de um lado, há uma totalidade de forças produtivas que assumiram como que uma forma objectiva e que, para os próprios indivíduos, não são mais as forças dos indivíduos, mas as da propriedade privada e, por isso, são as forças dos indivíduos apenas na medida em que eles são proprietários privados. Em nenhum período anterior as forças produtivas assumiram essa forma indiferente para as relações dos indivíduos na qualidade de indivíduos, porque as suas próprias relações eram ainda limitadas. Por outro lado, essas forças produtivas confrontam-se com a maioria dos indivíduos, dos quais essas forças se separaram e que, por isso, privados de todo conteúdo real de vida, se tornaram indivíduos abstractos, mas que somente são colocados nessa situação ao estabelecer relações uns com os outros como indivíduos.
O trabalho, único vínculo que os indivíduos ainda mantêm com as forças produtivas e com a sua própria existência, perdeu para eles toda a aparência de auto-actividade e só conserva a sua vida definhando-a. Enquanto, em períodos precedentes, a auto-actividade e a produção da vida material estavam separadas pelo único facto de que elas incumbiam a pessoas diferentes, e a produção da vida material, devido à limitação dos próprios indivíduos, era concebida ainda como uma forma inferior de auto-actividade, agora a auto-actividade e a produção da vida material encontram-se tão separadas que a vida material aparece como a finalidade, e a criação da vida material, o trabalho (que é, agora, a única forma possível mas, como veremos, negativa, da auto-actividade) aparece como meio.
Chegou-se a tal ponto, portanto, que os indivíduos têm de apropriar-se da totalidade existente de forças produtivas, não apenas para chegar à auto-actividade, mas simplesmente para assegurar a sua existência. Essa apropriação está primeiramente condicionada pelo objecto a ser apropriado – as forças produtivas desenvolvidas até formar uma totalidade e que existem apenas no interior de relações universais. Sob essa perspectiva, portanto, tal apropriação tem de ter um carácter correspondente às forças produtivas e às relações. A apropriação dessas forças não é em si mesma nada mais do que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção. A apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção é, precisamente por isso, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos próprios indivíduos. Essa apropriação, além disso, é condicionada pelos indivíduos que apropriam. Somente os proletários actuais, inteiramente excluídos de toda a auto-actividade, estão em condições de impor a sua auto-actividade plena, não mais limitada, que consiste na apropriação de uma totalidade de forças produtivas e no decorrente desenvolvimento de uma totalidade de capacidades. Todas as apropriações revolucionárias anteriores foram limitadas; os indivíduos, cuja auto-actividade estava limitada por um instrumento de produção e por um relacionamento limitados, apropriavam-se desse instrumento de produção limitado, com isso chegando apenas a uma nova limitação. Seu instrumento de produção tornava-se sua propriedade, mas eles mesmos permaneciam subordinados à divisão do trabalho e ao seu próprio instrumento de produção. Em todas as apropriações anteriores, uma massa de indivíduos permanecia subordinada a um único instrumento de produção; na apropriação pelos proletários, uma massa de instrumentos de produção tem de ser subordinada a cada indivíduo, e a propriedade subordinada a todos. O moderno relacionamento universal não pode ser subordinado aos indivíduos senão na condição de ser subordinado a todos.
A apropriação é, ainda, condicionada pelo modo como tem de ser realizada. Ela só pode ser realizada por meio de uma união que, devido ao carácter do próprio proletariado, só pode ser uma união universal, e por meio de uma revolução na qual, por um lado, sejam derrubados o poder do modo de produção e de relacionamento anterior e o poder da estrutura social, e que, por outro, desenvolva o carácter universal e a energia do proletariado necessária para a realização da apropriação; uma revolução na qual, além disso, o proletariado se despoje de tudo o que ainda restava da sua anterior posição social.
Somente nessa fase a auto-actividade coincide com a vida material, o que corresponde ao desenvolvimento dos indivíduos até se tornarem indivíduos totais e à perda de todo o seu carácter natural; e, assim, a transformação do trabalho em auto-actividade corresponde à transformação das relações anteriormente condicionadas em relações entre os indivíduos como tais. Com a apropriação das forças produtivas totais pelos indivíduos unidos, acaba a propriedade privada. Enquanto na história anterior uma condição particular aparecia sempre como acidental, agora o isolamento dos próprios indivíduos, o ganho privado particular de cada um é que se tornaram acidentais.
A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846
De manhã caçar, à tarde pescar, depois do jantar fazer crítica: já não há um círculo exclusivo de actividade
E, finalmente, a divisão do trabalho oferece-nos logo o primeiro exemplo de que, enquanto os seres humanos se encontram na sociedade natural e, portanto, enquanto há a separação entre interesse particular e interesse comum, enquanto a actividade, por consequência, está dividida não voluntariamente, mas naturalmente, a própria acção do ser humano se torna um poder estranho que lhe é contraposto, um poder que o subjuga em vez de por ele ser dominado. Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de actividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder o seu meio de vida – ao passo que, na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de actividade exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que quiser, a sociedade regula a produção geral, dando-me, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exactamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico …
Numa organização comunista da sociedade, é eliminada, de todo o modo, a subordinação do artista à estreiteza local e nacional que decorre puramente da divisão do trabalho, e a classificação do indivíduo nesta arte determinada, de modo que ele é exclusivamente pintor, escultor etc. e até mesmo o nome da sua actividade expressa continuamente a estreiteza do seu desenvolvimento social e a sua dependência da divisão do trabalho. Numa sociedade comunista não há pintores, mas, quando muito, pessoas que, entre outras actividades, também pintam …
O comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores porque revoluciona os fundamentos de todas as relações de produção e de todas as condições de relacionamento precedentes, e porque pela primeira vez aborda conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos seres humanos que existiram anteriormente, despojando-os de seu carácter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados. … O existente que o comunismo cria é precisamente a base real para tornar impossível tudo o que existe independentemente dos indivíduos, na medida em que o existente nada mais é do que um produto do relacionamento anterior dos próprios indivíduos …
A transformação, pela divisão do trabalho, de forças (relações) pessoais em forças reificadas não pode ser eliminada arrancando-se da cabeça a representação geral dessas forças, mas apenas se os indivíduos voltarem a subordinar essas forças reificadas a si mesmos e suprimirem a divisão do trabalho. Isso não é possível sem a comunidade. É somente na comunidade com outros que cada indivíduo tem os meios para desenvolver as suas aptidões em todos os sentidos; somente na comunidade, portanto, se torna possível a liberdade pessoal.
A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846
Têm de abolir o trabalho e deitar abaixo o Estado para impor a sua personalidade
Finalmente, da concepção de história que acabámos de desenvolver, obtemos ainda os seguintes resultados: … No desenvolvimento das forças produtivas chega-se a uma fase em que surgem forças produtivas e meios de relacionamento que, no quadro das relações existentes, causam somente malefícios e já não são forças de produção, mas sim forças de destruição (maquinaria e dinheiro) – e ... surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar das suas vantagens, que é expulsa da sociedade … Em todas as revoluções anteriores a forma da actividade permaneceu intocada, e tratava-se apenas de instaurar uma distribuição diferente dessa actividade, uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas, enquanto a revolução comunista volta-se contra o tipo de actividade existente até então, elimina o trabalho e suprime a dominação de todas as classes ao suprimir as classes … Tanto para a criação maciça dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa é necessária uma transformação maciça das pessoas, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução …
Os indivíduos partiram sempre de si mesmos, mas, naturalmente, de si mesmos no interior de condições e relações históricas dadas, e não do indivíduo “puro”, no sentido dos ideólogos. Mas no decorrer do desenvolvimento histórico, e precisamente devido à inevitável autonomização das relações sociais no interior da divisão do trabalho, surge uma divisão na vida de cada indivíduo, na medida em que há uma diferença entre a sua vida pessoal e a sua vida enquanto subsumida a um ramo qualquer do trabalho e às suas condições … No estamento (e mais ainda na tribo) esse facto permanece escondido; por exemplo, um nobre continua sempre um nobre e um plebeu continua um plebeu, abstracção feita das suas demais relações; é uma qualidade inseparável de sua individualidade. A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo da classe, a contingência das condições de vida para o indivíduo aparecem apenas juntamente com a classe que é, ela mesma, um produto da burguesia. Somente a concorrência e a luta dos indivíduos entre si é que engendram e desenvolvem essa contingência enquanto tal. Por conseguinte, na imaginação, os indivíduos são mais livres sob a dominação da burguesia do que antes, porque as suas condições de vida lhes são contingentes; na realidade eles são, naturalmente, menos livres, porque estão mais submetidos ao poder das coisas ... Sem dúvida, os servos fugitivos consideraram a sua servidão anterior como algo acidental à sua personalidade. Mas, com isso, apenas fizeram o que faz toda a classe que se liberta de um entrave: libertaram-se não como classe, mas isoladamente. Além disso, eles não saíram do âmbito do sistema de estamentos, mas apenas formaram um novo estamento e conservaram, em sua nova situação, o seu modo de trabalho anterior, elaborando-o na medida em que o libertavam de seus entraves anteriores, que não correspondiam mais ao desenvolvimento já alcançado.
Entre os proletários, pelo contrário, as suas próprias condições de vida, o trabalho e, desse modo, todo o conjunto das condições de existência da sociedade actual tornaram-se para eles algo acidental, sobre o qual os proletários isolados não possuem nenhum controlo e sobre o qual nenhuma organização social pode lhes dar nenhum controlo, e a contradição entre [...] a personalidade do proletário singular e sua condição de vida que lhe foi imposta, o trabalho, é revelada para ele mesmo, sobretudo porque ele é sacrificado desde a juventude e porque, no interior da sua classe, não tem a chance de alcançar as condições que o coloquem na outra classe.
Enquanto os servos fugitivos visavam apenas desenvolver livremente e afirmar as suas condições de existência já dadas e, por isso, não ultrapassavam, em última instância, os limites do trabalho livre, os proletários, para se afirmarem a si mesmos como pessoas, têm de suprimir a sua própria condição de existência anterior, que é, ao mesmo tempo, a condição de toda a sociedade anterior, isto é, o trabalho. Eles também se encontram, por isso, em oposição ao Estado, a forma pela qual os indivíduos se deram, até aqui, uma expressão colectiva, e têm de deitar abaixo o Estado para impor a sua personalidade.
O Estado moderno, o domínio da burguesia, assenta na liberdade do trabalho … A liberdade do trabalho é a livre concorrência dos trabalhadores entre si … O trabalho é livre em todos os países civilizados; não se trata, portanto, de libertar o trabalho, mas de suprimi-lo.
A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846
Não se trata de renunciar ao gozo, mas de desenvolver o tempo livre e a capacidade de gozo: o reino da liberdade e o reino da necessidade
A verdadeira economia – poupança – consiste na poupança de tempo de trabalho; mínimo (e redução ao mínimo) dos custos de produção; essa poupança, no entanto, é idêntica ao desenvolvimento da força produtiva. Portanto, não significa de modo nenhum renúncia à fruição, mas desenvolvimento de poder, de capacidades de produção e, consequentemente, tanto das capacidades como dos meios de fruição. A capacidade de fruição é condição da fruição, ou seja, seu primeiro meio, e essa capacidade é desenvolvimento de uma aptidão individual, é força produtiva. A poupança de tempo de trabalho é equivalente ao aumento do tempo livre, isto é, tempo para o desenvolvimento pleno do indivíduo, desenvolvimento este que retroage sobre a força produtiva do trabalho como a maior força produtiva … Aliás, é evidente por si só que o próprio tempo de trabalho imediato não pode permanecer na oposição abstracta ao tempo livre – tal como aparece do ponto de vista da economia burguesa … O tempo livre, que é tanto tempo de ócio como tempo para actividades mais elevadas, naturalmente transformou o seu possuidor em outro sujeito, e é também como este outro sujeito que ele entra depois no processo de produção imediato.
Linhas gerais da crítica da economia política [Grundrisse]. Rascunho. 1857-1858
A riqueza real da sociedade e a possibilidade de constante expansão do seu processo de produção não depende, portanto, da duração do mais-trabalho, mas de sua produtividade e das condições mais ou menos ricas de produção em que ela se efectua. O reino da liberdade só começa, de facto, onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; pela própria natureza da questão, transcende a esfera da produção material propriamente dita. Assim como o selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as suas necessidades, para manter e reproduzir a sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis. Com o seu desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, pois se ampliam as necessidades; mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas que as satisfazem. A liberdade nesta área só pode consistir em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, pondo-o sob seu controlo comunitário, em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. Mas este continua a ser sempre um reino da necessidade. Além dele é que começa o desenvolvimento das forças humanas que funcione como fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental.
O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894
A acção dos povos súbita e simultânea: a transformação da dependência geral em cooperação consciente na história mundial
… Por outro lado, esse desenvolvimento das forças produtivas (incluindo já, ao mesmo tempo, a existência empírica humana no plano da história mundial, em vez de no plano local) é um pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, assim, com a carestia, as lutas pelos géneros necessários recomeçariam e toda a velha porcaria teria de se restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forças produtivas é estabelecido um relacionamento universal dos seres humanos e, com isso, é produzido simultaneamente em todos os povos o fenómeno da massa “sem propriedade” (concorrência universal), tornando cada um deles dependente das revoluções dos outros; e, finalmente, indivíduos empiricamente universais, no plano da história mundial, são postos no lugar dos indivíduos locais. Sem isso, 1) o comunismo poderia existir apenas como fenómeno local; 2) as próprias forças do relacionamento não teriam podido desenvolver-se como forças universais e, portanto, incomportáveis; elas teriam permanecido como “circunstâncias” das superstições locais; e 3) qualquer ampliação do relacionamento suprimiria o comunismo local. O comunismo, empiricamente, só é possível como acção “súbita” e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o relacionamento mundial associado a esse desenvolvimento … Ou como é possível que o comércio, que não é mais do que a troca de produtos entre indivíduos e países diferentes, domine o mundo inteiro por meio da relação de oferta e procura – uma relação que, como diz um economista inglês, paira sobre a Terra como o destino dos antigos e distribui com mão invisível a felicidade e a desgraça entre os seres humanos, funda e destrói impérios, faz povos nascerem e desaparecerem – enquanto, com a supressão da base, da propriedade privada, com a regulação comunista da produção e com a conexa supressão da relação alienada dos seres humanos com seus próprios produtos, o poder da relação de oferta e procura reduz-se a nada e os seres humanos retomam o seu poder sobre a troca, a produção e o modo do seu relacionamento recíproco? …
Além disso, a massa dos simples trabalhadores – força de trabalho massiva, excluída do capital ou de qualquer outra satisfação limitada – e, com ela, a perda, já não apenas temporária, devida à concorrência, desse mesmo trabalho como fonte segura da vida pressupõem o mercado mundial. O proletariado só pode, portanto, existir no plano da história mundial, tal como o comunismo, a sua acção só pode ocorrer como existência “no plano da história mundial”; existência dos indivíduos no plano da história mundial, ou seja, existência dos indivíduos directamente ligada à história mundial …
Na história até aqui é sem dúvida um facto empírico que os indivíduos singulares, com a expansão da actividade no plano da história mundial, ficaram cada vez mais submetidos a um poder que lhes é estranho (cuja opressão eles também tomavam por uma astúcia do chamado espírito do mundo, etc.), um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em última instância, como mercado mundial. Mas é do mesmo modo empiricamente fundamentado que, com o desmoronamento do estado de coisas existente da sociedade por obra da revolução comunista ... e com a supressão da propriedade privada, supressão esta que é idêntica àquela revolução, esse poder, que para os teóricos alemães é tão misterioso, é dissolvido, e então a libertação de cada indivíduo singular é atingida na mesma medida em que a história se transforma plenamente em história mundial. De acordo com o já exposto, é claro que a efectiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente da riqueza das suas relações reais. Somente assim os indivíduos singulares são libertados das diversas limitações nacionais e locais, são postos em contacto prático com a produção (incluindo a produção espiritual) do mundo inteiro e em condições de adquirir a capacidade de fruição dessa multifacetada produção de toda a Terra (criações dos seres humanos). A dependência multifacetada, essa forma natural da cooperação dos indivíduos no plano da história mundial, é transformada, por obra dessa revolução comunista, no controlo e domínio consciente desses poderes, que, criados pela actuação recíproca dos seres humanos, a eles se impuseram como poderes completamente estranhos e os dominaram.
A ideologia alemã, juntamente com Friedrich Engels, escrito em 1846
Quando uma grande revolução social se tiver assenhorado dessas realizações da época burguesa, do mercado mundial e das forças modernas de produção, e os tiver submetido ao controlo comum dos povos mais avançados, somente então o progresso humano deixará de se parecer com esse horrível ídolo pagão que queria beber o néctar somente no crânio das suas vítimas.
Os resultados futuros da dominação britânica na Índia, 1853
Em determinadas circunstâncias, a comuna agrária pode desenvolver-se fora do jugo capitalista, se se apropriar das forças produtivas modernas e ultrapassar o isolamento local
Tratando da génese da produção capitalista, disse eu que ela tem subjacente «a separação radical do produtor dos meios de produção» ... e que «a base de toda esta evolução é a expropriação dos agricultores. Ela apenas se consumou de forma radical na Inglaterra... Mas todos os outros países da Europa Ocidental seguem o mesmo movimento» ...
Restringi expressamente, portanto, a «fatalidade histórica» deste movimento aos países da Europa Ocidental … A razão dessa limitação é dada … a seguir: “O processo de aniquilação … que transforma a minúscula propriedade de muitos na enorme propriedade de alguns … constitui a génese do capital ...”
Este movimento ocidental constitui, portanto, a transformação de uma forma de propriedade privada em outra forma de propriedade privada. No caso dos camponeses russos, pelo contrário, seria preciso transformar a propriedade colectiva em propriedade privada. Quer se aprove ou recuse o carácter inelutável desta transformação, as razões a favor ou contra não têm nada a ver com a minha análise da génese da ordem capitalista …
Do ponto de vista histórico, o único argumento sério a favor da inevitável dissolução da comuna dos camponeses russos é o seguinte: Remontando muito atrás, encontra-se por todo o lado na Europa Ocidental a propriedade comum de um tipo mais ou menos arcaico; por toda a parte ela desapareceu com o progresso social. Por que só na Rússia deveria ela escapar à mesma sorte? …
Gostaria de ter em conta este argumento apenas na medida em que se apoia nas experiências europeias. No que diz respeito, por exemplo, à Índia, ninguém ignora, excepto Sir H. Maine e outras pessoas da mesma índole, que a supressão forçada da propriedade colectiva das terras não passou de um acto de vandalismo da parte dos ingleses, que fez retroceder os indígenas em vez de os fazer progredir … Ao ler as histórias de comunidades primitivas escritas por burgueses, é preciso estar em guarda. Eles não recuam mesmo perante falsificações. Sir Henry Maine, por exemplo, que foi um colaborador ardente do governo inglês na sua obra de destruição violenta das comunas indianas, assegura-nos hipocritamente que todos os nobres esforços da parte do governo para manter estas comunas falharam, contra a força espontânea das leis económicas! …
A história da decadência das comunidades primitivas (cometer-se-ia um erro pondo-as todas ao mesmo nível; como nas formações geológicas, há nas formações históricas toda uma série de tipos primários, secundários, terciários, etc.) está ainda por fazer. Até agora não foram apresentados senão magros esboços. Mas, em todo o caso, a investigação está suficientemente avançada para afirmar: 1) que a vitalidade das comunidades primitivas era incomparavelmente maior que a das sociedades semitas, gregas, romanas, etc. e, a fortiori, que a das sociedades capitalistas modernas; 2) que as causas da sua decadência derivam de dados económicos que as impedem de ultrapassar um certo grau de desenvolvimento, de meios históricos de modo nenhum análogos ao meio histórico da comuna russa de hoje …
As comunidades primitivas não estão todas organizadas pelo mesmo modelo. Pelo contrário, constituem uma série de agrupamentos sociais que se distinguem entre si tanto pelo tipo como pela idade e marcam as etapas sucessivas da sua evolução. A comuna russa pertence a um desses tipos que se acordou chamar “comuna agrária” …
Vejamos agora as características que diferenciam a “comuna agrária” das comunidades mais arcaicas.
1. Todas as outras comunidades assentam em relações de parentesco de sangue entre os seus membros. Só se lhes pertence por parentesco ou adopção. A sua estrutura é a de uma árvore genealógica. A “comuna agrária” foi o primeiro agrupamento social de pessoas livres, não limitado aos laços de sangue.
2. Na comuna agrária, a casa e o seu complemento, o pátio, são propriedade do camponês. A casa comum e o alojamento colectivo constituíam, pelo contrário, a base económica das comunidades primitivas, e isto já muito antes de surgir a criação de gado e a agricultura …
Compreende-se que o dualismo inerente à comuna agrária possa trazer-lhe grande vitalidade. Libertada dos laços fortes mas estreitos da consanguinidade, a propriedade colectiva da terra e as relações sociais daí resultantes asseguram-lhe uma base sólida. Ao mesmo tempo, a casa e o pátio anexo, domínio exclusivo de cada família, a exploração de parcelas e a apropriação pessoal das suas colheitas estimulam o desenvolvimento da personalidade, o que é incompatível com o organismo das comunidades mais primitivas.
Mas não é menos evidente que este mesmo dualismo pode a prazo tornar-se um germe de decomposição. Independentemente de todas as influências nefastas vindas do exterior, a comuna traz no seu interior os elementos que a destroem. Com a casa e o pátio, é a propriedade privada de terras que já aí assoma; ela pode tornar-se uma praça forte a partir da qual se prepara o assalto às terras colectivas … Este é o elemento destruidor da igualdade económica e social inicial. Ele introduz elementos heterogéneos que atiçam no seio da comuna conflitos de interesses e paixões capazes de se lançarem primeiro às terras da colectividade, depois às suas florestas, pastagens, baldios etc. que, uma vez transformados em anexos comunais da propriedade privada, acabarão por ser integrados nesta …
Mas isso quer dizer que a comuna agrária deve forçosamente seguir esse rumo? De modo nenhum. A sua forma fundamental dá-lhe uma alternativa: ou o elemento de propriedade privada nela contido prevalece sobre o elemento colectivo, ou o inverso. Tudo depende do meio histórico em que ela se encontra: ambas as soluções são possíveis a priori, mas cada uma delas pressupõe obviamente um meio histórico completamente diferente …
Para poder desenvolver-se é preciso sobretudo viver, e não é segredo para ninguém que a vida da “comuna agrária” está actualmente ameaçada …
Depois da chamada emancipação dos camponeses, a comuna foi colocada em condições económicas anormais pelo Estado que desde então não cessou de a oprimir com a ajuda das forças sociais concentradas nas suas mãos. Enfraquecida com pressões fiscais, a comuna russa tornou-se o objecto sem resistência de exploração pelo comércio, pela propriedade fundiária e pela usura. Esta opressão vinda de fora suscitou o desencadeamento do conflito de interesses latente e o desenvolvimento rápido dos germes da decomposição. Mas não é tudo. A expensas dos camponeses, o Estado estimulou o desenvolvimento dos ramos do sistema capitalista ocidental que, sem desenvolverem de modo nenhum as forças produtivas da agricultura, são os mais apropriados para facilitar o roubo dos seus frutos por intermediários improdutivos. Contribuiu assim para enriquecer uma nova parasitagem capitalista que suga as últimas gotas do sangue duma “comuna agrária” já enfraquecida …
Este concurso de influências destruidoras, a não ser desmantelado por um forte movimento contrário, terá naturalmente de conduzir ao afundamento da comuna agrária …
Vamos abstrair por um momento da miséria que oprime a comuna russa para considerar apenas as suas possibilidades de desenvolvimento. Esta assume uma posição à parte, sem precedente histórico … Pois na Rússia, graças a um excepcional concurso de circunstâncias, a comuna agrária, ainda existente à escala nacional, pode desembaraçar-se progressivamente dos seus traços primitivos e transformar-se directamente em elemento da produção colectiva à escala nacional …
A Rússia é o único país da Europa em que a “comuna agrária” se manteve até hoje. Não foi tomada por um conquistador estrangeiro, como na Índia, e já não vive isolada do mundo moderno …
Se a Rússia estivesse isolada do mundo, se ela tivesse de conseguir por sua conta as realizações económicas que a Europa Ocidental apenas conseguiu à custa de uma longa série de evoluções, desde a existência das suas comunidades primitivas até à situação actual, sem dúvida que, pelo menos a meu ver, as comunas estariam irremediavelmente condenadas a desaparecer com a evolução da sociedade russa. Mas a situação das comunas russas é totalmente diferente da das comunidades primitivas do Ocidente …
Por um lado, a propriedade colectiva das terras permite-lhe transformar directa e progressivamente a agricultura de parcelas e individualista em exploração colectiva, o que os camponeses russos praticam já nos campos não emparcelados. A constituição física do terreno russo convida precisamente a uma cultura mecanizada em grande escala … logo que esta se torne a situação normal na sua forma actual, poderá torna-se o ponto de partida imediato … do sistema económico para que tende a sociedade moderna, e começar uma nova vida sem se suicidar primeiro …
Por outro lado, a simultaneidade da existência da produção ocidental que domina o mercado mundial permitirá à Rússia introduzir na comuna todas as realizações positivas do sistema capitalista sem ter de passar pelas forcas caudinas …
Apropriando-se dos resultados positivos deste modo de produção, a Rússia estará em condições de desenvolver e transformar a comuna agrária, em vez de a destruir. (Faço notar de passagem que a forma de propriedade comunista na Rússia é a forma mais moderna do tipo arcaico, o qual por sua vez passou por toda uma série de evoluções).
Caso os admiradores do sistema capitalista na Rússia neguem a possibilidade de tal combinação, eles que provem que a Rússia, para utilizar máquinas, teve de passar pelo período de incubação da produção de máquinas …
E a maldição que pesa sobre a comunidade agrária russa – o seu isolamento, a falta de contacto entre a vida da comuna e a das outras – , que até agora lhe impediu qualquer iniciativa histórica? Ela desapareceria no meio da agitação geral da sociedade russa …
O isolamento das comunas agrárias, a falta de contacto entre a vida de umas e outras, este microcosmos local não é em toda a parte o traço característico imanente do último dos tipos arcaicos; mas em toda a parte onde está presente suscita a instalação de um despotismo central a reinar sobre as comunas. Parece-me que na Rússia se poderá facilmente remediar este isolamento inicial devido à extensão do território logo que removidos os obstáculos postos pelo governo …
Do ponto de vista histórico, é extremamente favorável, para a manutenção da “comuna agrária” em vias de desenvolvimento, que ela não só seja contemporânea do modo de produção capitalista, podendo portanto apropriar-se das suas realizações sem ser obrigada a submeter-se ao seu modus operandi, mas também que tenha sobrevivido ao período em que o sistema capitalista ainda se mostrava intacto ...
A melhor prova de que este desenvolvimento da “comuna agrária” corresponde bem ao curso histórico da nossa época é a fatídica crise que se desenvolve na produção capitalista nos países europeus e americanos, onde esta tinha assumido um maior ímpeto, uma crise que …, com a reversão da sociedade moderna, conduzirá o tipo mais arcaico a uma forma superior – à produção e apropriação colectivas ...
Numa palavra, a comuna agrária encontra o capitalismo numa crise que só terminará com a sua abolição e com o regresso da sociedade moderna ao tipo “arcaico” da propriedade colectiva, ou, como diz um autor americano de que não se pode suspeitar de tendências revolucionárias e cujos trabalhos são apoiados pelo governo de Washington: o novo sistema para que tende a sociedade moderna “será um renascimento (a revival) de um tipo de sociedade arcaico numa forma superior (in a superior form)”. Não é preciso assustarmo-nos assim tanto com a palavra “arcaico” ...
O que ameaça a vida da comuna russa não é uma fatalidade histórica nem uma teoria, mas a opressão exercida pelo Estado e a exploração por intrusos capitalistas que se tornaram fortes através do mesmo Estado, à custa e a cargo dos camponeses …
Enquanto se sangra e tortura a comuna, se torna estéril a sua terra, esgotando-a, os lacaios literários dos “novos pilares da sociedade” qualificam ironicamente as feridas que lhe foram infligidas como sintomas de velhice natural. Diz-se que ela está a morrer de morte natural e que se fará bem em abreviar a sua agonia. Não se trata aqui de um problema a resolver, mas sim de um inimigo a abater. Para salvar a comuna russa é necessária uma revolução russa. De resto o governo russo e os “novos pilares da sociedade” fazem o que podem para preparar as massas para esta catástrofe. Se a revolução russa tiver lugar no tempo certo, se ela concentrar todas as suas forças para assegurar o livre desenvolvimento da comuna agrária, esta em breve se tornará um elemento de regeneração da sociedade russa e um elemento de superioridade sobre os países escravizados pelo regime capitalista.
Carta a V. I. Sassulitsch. A partir de vários rascunhos, escritos em 1881
No comunismo desaparece o valor, os produtores não trocam os produtos
A teoria do tempo de trabalho como unidade de medida directa do dinheiro foi desenvolvida sistematicamente em primeiro lugar por John Gray … Já que o tempo de trabalho é a medida imanente dos valores, porque juntar-lhe outra medida externa? Porque se desenvolve o valor de troca até ao preço? Porque estimam todas as mercadorias o seu valor numa mercadoria exclusiva que assim é transformada na forma adequada do valor de troca em dinheiro? Era esse o problema que Gray tinha de resolver. Em vez de resolvê-lo, entende que as mercadorias podem ser postas directamente em relação umas com as outras, como produtos do trabalho social. Mas elas só podem relacionar-se entre si como aquilo que são. As mercadorias são produtos imediatos de trabalhos privados isolados e independentes, que têm de confirmar-se como trabalho social geral através da renúncia a elas no processo de troca privado, ou seja, o trabalho, na base da produção de mercadorias, só se torna trabalho social através da renúncia generalizada aos trabalhos individuais. Porém, ao supor que o tempo de trabalho contido nas mercadorias seja imediatamente social, Gray supõe que é tempo de trabalho comum, ou tempo de trabalho de indivíduos directamente associados. Sendo assim, de facto uma mercadoria específica, como o ouro ou a prata, não poderia confrontar-se com as outras mercadorias como incarnação do trabalho geral, o valor de troca não se tornaria preço, nem tão pouco o valor de uso se tornaria valor de troca, nem o produto se tornaria mercadoria, e assim estaria suprimida a própria base da produção burguesa. Mas essa não é de modo nenhum a opinião de Gray. Os produtos devem ser produzidos como mercadorias, mas não devem ser trocados como mercadorias …
Qualquer mercadoria é imediatamente dinheiro. Essa era a teoria de Gray deduzida da sua análise incompleta e, portanto, falaciosa da mercadoria. A construção “orgânica” de “moeda-trabalho” e “banco nacional” e “armazéns de mercadorias” não passa de uma construção fantasiosa, em que o dogma é apresentado enganosamente como lei que governa o mundo … O que Gray não diz e constitui um segredo para ele mesmo, ou seja, que a moeda-trabalho é uma frase economicamente sonante que dissimula o desejo piedoso de desembaraçar-se do dinheiro, e, com o dinheiro, do valor de troca, e, com o valor de troca, da mercadoria, e com a mercadoria, da forma burguesa de produção, tem sido afirmado decididamente por alguns socialistas ingleses antes e depois de Gray. Mas estava reservado ao senhor Proudhon e à sua escola pregar seriamente a degradação do dinheiro e a ascensão aos céus da mercadoria como sendo o cerne do socialismo, e assim dissolver o socialismo num desconhecimento elementar da conexão necessária entre mercadoria e dinheiro.
Para a crítica da economia política, 1859
É … uma abstracção falaciosa considerar uma nação, cujo modo de produção assenta no valor e, além disso, está organizada à maneira capitalista, como sendo um corpo colectivo que trabalha apenas para as necessidades nacionais.
O Capital. Crítica da economia política, Livro terceiro, Primeira edição, editada por Friedrich Engels, 1894
Se pensarmos a sociedade como não sendo capitalista, mas comunista, então desde logo o capital monetário desaparece completamente, e por conseguinte também os disfarces das transações que através dele ocorrem.
O Capital. Crítica da economia política, Livro segundo, Segunda edição, editada por Friedrich Engels, 1893
No interior da sociedade cooperativa, fundada no património comum dos bens de produção, os produtores não trocam os seus produtos; tão-pouco aparece aqui o trabalho empregue nos produtos como valor desses produtos, como uma qualidade material possuída por eles
Crítica do Programa de Gotha, escrito em 1875
A emancipação só se realizará quando o ser humano real retomar em si o cidadão abstracto
Toda a emancipação é redução do mundo humano e das suas relações ao próprio ser humano.
A emancipação política é a redução do ser humano, por um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral.
Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o ser humano individual real tiver recuperado para si o cidadão abstracto, e se tiver tornado ser-género na qualidade de ser humano individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o ser humano tiver reconhecido e organizado as suas “forces propres” como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma de força política.
A questão judaica, 1844
O número, aqui, não é sem importância … A formação do poder legislativo exige que todos os membros da sociedade civil se considerem como singulares, e estes defrontam-se realmente como singulares. A determinação de “serem membros do Estado” é a sua “determinação abstracta”, uma determinação que não se realiza na sua realidade viva.
Ou tem-se a separação entre Estado político e sociedade civil, e nesse caso todos singularmente não podem participar do poder legislativo. O Estado político é uma existência separada da sociedade civil. Por um lado, a sociedade civil renunciaria a si mesma se todos fossem legisladores e, por outro lado, o Estado político, que com ela se defronta, pode suportá-la apenas de um modo que seja adequado ao seu formato, ou seja, a participação da sociedade civil no Estado político mediante deputados é precisamente a expressão da sua separação e da sua unidade somente dualística.
Ou inversamente. A sociedade civil é sociedade política real. E então é um absurdo colocar uma exigência que deriva apenas da concepção do Estado político enquanto existência separada da sociedade civil, uma exigência que deriva apenas da ideia teológica do Estado político. Nessa situação, desaparece totalmente o significado do poder legislativo como poder representativo. O poder legislativo é, aqui, representativo no sentido em que toda a função é representativa: o sapateiro, por exemplo, é meu representante na medida em que satisfaz uma necessidade social, assim como toda a actividade social determinada, enquanto actividade do género, representa simplesmente o género, isto é, representa uma determinação de minha própria essência, assim como todo o ser humano é representante de outro ser humano. Ele é aqui representante não através de outra coisa que ele represente, mas por aquilo que ele é e faz.
Crítica do direito do Estado de Hegel, escrito em 1843
Tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa, tornando-a pública; obrigar as relações a dançar, entoando-lhes a sua própria melodia: a radicalidade da crítica
Tem de se tornar a pressão efectiva ainda maior, acrescentando-lhe a consciência da pressão, e tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa, tornando-a pública. Tem de se retratar cada esfera da sociedade alemã como a partie honteuse da sociedade alemã, tem de se forçar essas relações petrificadas a dançar, entoando-lhes a sua própria melodia! Tem de se ensinar o povo a aterrorizar-se consigo mesmo para lhe incutir courage …
A crítica da religião termina com a doutrina de que o ser humano é o ser supremo para o ser humano, portanto, com o imperativo categórico de mandar abaixo todas as relações em que o ser humano é um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível ...
É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material logo que alcança as massas. A teoria é capaz de alcançar as massas logo que demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem logo que se torna radical. Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Ora a raiz do ser humano é o próprio ser humano.
Crítica da filosofia do direito de Hegel, Introdução, escrito em 1843/44
Se a nossa questão não é a construção do futuro nem a preparação para todos os tempos, tanto mais certo é o que temos de realizar no presente, refiro-me à crítica sem contemplações de tudo o que existe, sem contemplações no sentido de que a crítica não teme os seus resultados, nem tão pouco o conflito com os poderes estabelecidos.
Cartas dos “Anais Franco-Alemães”, 1844
Crítica impiedosa e exaustiva das primeiras tentativas, começar de novo repetidamente...
As revoluções burguesas ... avançam rapidamente de sucesso em sucesso, os seus efeitos dramáticos excedem-se uns aos outros, os homens e as coisas parecem diamantes fulgurantes, o êxtase é o estado permanente da sociedade; mas estas revoluções têm vida curta, logo atingem o auge, e uma longa modorra se apodera da sociedade antes que esta tenha aprendido a assimilar serenamente os resultados do seu período de lutas e embates. Por outro lado, as revoluções proletárias, como as do século XIX, criticam-se constantemente a si mesmas, interrompem continuamente o seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem impiedosa e exaustivamente das deficiências, fraquezas e misérias dos seus primeiros esforços, parecem derrubar o adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente perante a enormidade indeterminada dos seus próprios objectivos, até que se cria uma situação que torna impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias circunstâncias gritam:
Hic Rhodus, hic salta!
Aqui está a rosa, é aqui que se dança!
O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, 1869