O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
PRÓLOGO
A memória histórica das pessoas é curta. Até a própria biografia desaparece da lembrança. O que sabemos nós realmente das nossas vidas, dos nossos pensamentos, sentimentos e estados de alma de há 20, 30 ou 40 anos atrás? As pessoas em geral ficam surpreendidas quando acidentalmente se deparam com uma prova documental objectiva do seu passado, e depois têm de constatar como a realidade de então é muitas vezes diferente da imagem que guardavam na cabeça. Somos sempre diferentes e estranhos para nós mesmos. No entanto, não parece ser tanto a capacidade limitada do cérebro humano que causa tais falhas de memória. Pelo contrário, somos geralmente artistas do recalcamento, que pintam a própria história e a legitimam como convém à auto-estima. Cada pessoa afirma o seu ego, mesmo frágil, a fim de poder viver confortavelmente e sem disfarces na sua pele, sem ter de se questionar.
O mesmo se aplica, em maior escala, à memória colectiva da humanidade. Tudo o que vá para trás do horizonte inicial da própria história de vida é para nós uma escuridão ainda mais sombria do que o passado pessoal. Parece estranho lembrar que os pais e avós, que parecem tão familiares, tiveram uma vida antes das nossas vidas, que tem de permanecer sempre desconhecida para nós. E aqui já começa a história da sociedade, porque, para lá da simples organização tribal com base no parentesco de sangue, que no mundo moderno encolheu completamente até à família nuclear com cãozinho, e na versão pós-moderna foi reduzida ao indivíduo como átomo da sociedade, na história pessoal das gerações mistura-se a história cultural, política e socioeconómica. Abstraindo de que a atitude, as maneiras e as roupas do passado são sempre gritantemente cómicas, quase nada sabemos das reais circunstâncias. As histórias são fragmentárias, e elas próprias coloridas por recalcamentos, de modo que a história pode ser denominada "os bons velhos tempos" ou, inversamente, "os maus momentos"; ou as duas coisas juntas, pois o senso comum nunca se constrange com contradições não resolvidas. As histórias do "eu estava lá" são na prática as menos fiáveis.
Mas, tal como a pessoa singular se legitima em termos de história de vida, por maioria de razão o faz a estrutura dominante da sociedade. Nas memórias pessoais penetram, como agentes corrosivos, a autojustificação ideológica e a narrativa histórica transmitida pelos livros escolares das relações de poder existente, colocando o pensamento sob pressão e em risco de dissolução. À autocensura pessoal junta-se a censura social. O campeão mundial a este respeito é o capitalismo moderno. Nenhuma sociedade na história da humanidade se apresentou tão descaradamente como absoluta. O sistema total de mercado não só pinta em beleza a sua própria história, mas também apaga a maior parte dela. O "homo oeconomicus" vive quase no horizonte temporal de uma criança pequena; ou seja, no eterno presente das acções do mercado, que todas parecem ter lugar no mesmo plano atemporal. Se a mente conservadora invoca a história, para distorcê-la em nome da autoridade, o espírito do liberalismo económico vende ao desbarato a história, como vende cuecas, bombardeiros de combate, sopas instantâneas e outros itens do mercado, em que o mundo da experiência se vira indiscriminadamente. E, se a tradição oral já foi mitologicamente padronizada, os media capitalistas desistoricizam a própria história, dissolvendo-a na economia de mercado.
Este método é ideologicamente mais vantajoso do que todas as simples falsificações da história. Pois a aleatoriedade do colorido mundo das mercadorias engole qualquer verdade objectiva, e consequentemente a chamada pós-modernidade já chegou não só ao mercado total, mas também ao relativismo total, ou seja, a um paradoxo. "Tudo é apenas um filme". Assim se omite qualquer reflexão crítica sobre o devir histórico "daquilo que é". "É" simplesmente e ponto final. Para esse pensamento (ou melhor, para essa falta de pensamento), no entanto, a aparência mediática ou ideológica tem tanto conteúdo factual como o ser real; mais precisamente, parece não haver diferença entre a realidade e a encenação. A mentira é tão verdadeira como a verdade, e, assim, há muito vivemos, com a nossa liberdade democrática, num mundo orwelliano. "1984" já ficou para trás de nós, só que ninguém notou.
O ser humano do mercado, caído num realismo cínico, enquanto se imagina o ser mais esclarecido do mundo, deixa que dele façam quase tudo, aceita como uma fatalidade as imposições mais incríveis, como um místico oriental, e deixa-se enredar em absurdos maiores que os dum camponês medieval. Por ter perdido qualquer critério, não consegue mais distinguir branco e preto; e se algo o machuca, ele tem de aceitar o diagnóstico dos especialistas ou as estatísticas. Só este completo idiota, privado de razão crítica e incapacitado, é que está maduro para uma economia de mercado omnipresente, em cujas "leis" ele deve acreditar, como o servo da gleba feudal acreditava na existência real do inferno e do purgatório.
O último parco resto de um critério, na história do pós-guerra, parecia ser o facto do conflito sistémico entre Leste e Oeste. Era, evidentemente, um critério demasiado barato, com o qual o Ocidente capitalista podia medir-se. Pois sabemos que o socialismo de Estado burocrático não saiu da maturidade de crise do sistema capitalista, tendo saído, pelo contrário, de uma crise de "subdesenvolvimento" da periferia do mercado mundial, na primeira metade do século XX. É fácil de ver que os regimes de "modernização atrasada", no Leste e no Sul, apenas repetiram as primeiras formas ocidentais do capitalismo, há muito esquecidas e reprimidas, num disfarce ideológico simplesmente diferente, para pôr em marcha uma economia mercantil industrial moderna, em passo acelerado a partir do nada; mais ainda, também imitaram até ao ridículo as paixões e a mitologia das revoluções burguesas, os modos de vida capitalistas e até mesmo o design ocidental. Por isso desde o início que o Leste não constituiu nenhuma alternativa histórica, mas apenas uma grosseira e miserável versão barata do próprio Ocidente, versão que ficou a meio caminho. A superioridade económica e tecnológica do capitalismo ocidental mais não foi que a de um irmão mais velho que habitualmente esmaga o mais novo e ainda se orgulha disso.
Somente a mais completa cegueira histórica tornou possível que o colapso do antediluviano socialismo de Estado fosse proclamado como vitória final do capitalismo, e como solução final da questão social. Agora, mais que nunca, parece inconcebível que as bases comuns do moderno sistema produtor de mercadorias, com que os retardatários históricos tiveram de se deixar medir desde o início, estejam elas próprias obsoletas. O facto é que todas as promessas capitalistas desde 1989 provaram ser bolhas de ar. Os mercados abertos a Leste não trouxeram à sociedade ocidental nenhum novo milagre económico, mas apenas uma desesperada concorrência de baixos salários. E as pessoas do Leste estão esfregando os olhos sem acreditar, porque têm de constatar que até os ideólogos mais sinistros do comunismo de caserna, cuja propaganda mentirosa sobre a sua própria dominação era tão transparente e miserável, tinham descrito com precisão maliciosa e pleno acerto os deficits sociais da economia de mercado ocidental.
Mas a ideia está paralisada, as energias utópicas parecem consumidas. Após o fim da história, há confusão e esclerosamento interior. A esperança perde-se, porque não consegue mais pensar uma alternativa. Mesmo o reformismo moderado entra em colapso. O capitalismo está à solta e mostra um rosto tão maligno como poucos dele poderiam esperar. Começou uma vazia fabricação de conceitos, apresentando absurdas propostas baratas, uma atrás de outra, para evitar a crise social e económica aparentemente imparável, no terreno da economia de mercado "sem alternativa". A autocensura do homem capitalista, que é mais eficaz do que qualquer organização policial, levou ao fim do pensamento crítico. Nem mesmo a subcultura é mais de oposição.
Para poder pensar uma nova alternativa, a história tem de ser primeiro reabilitada. É preciso historicizar o capitalismo aparentemente a-histórico. Esta não é mais uma questão que pudesse ser confinada ao domínio facultativo do pensamento. Na verdade, chegámos ao limiar da dor histórica da economia de mercado, cujo totalitarismo económico começa a tornar-se insuportável. Enquanto os últimos guerreiros da guerra fria ainda vão tagarelando sobre o "mundo livre", o sistema planetário do capitalismo revela-se como uma sociedade "que se está a tornar literalmente louca" (Oskar Negt). Como é sabido, é este o destino de qualquer húbris. Uma auto-regeneração da sociedade, um retorno à base social e ambiental dos factos, um calmante para o progresso que deixou de ter inibições ou limites, uma vida social tolerável e um sentimento básico de segurança, como pressuposto da compaixão, da responsabilidade generativa e da reflexão de ideias, só serão possíveis se o sistema da concorrência total, tornado absurdo e um perigo público por indivíduos atomizados, for posto à frente do espelho da sua própria história, de modo que o autoconhecimento das pessoas capitalistas facilite um fim do capitalismo sem terror.
Não é apenas superficialmente que essa história é sobretudo uma história económica e social. Pois se "o meio é a mensagem" (Marshall McLuhan), então a história do "homo oeconomicus" moderno, de facto, apenas pode ser a história da sua economia, a história do "desenvolvimento das forças produtivas", a história dos ciclos económicos, das crises e da riqueza monetária abstracta. A violência e o tremendo potencial dessa história contrasta com a sua não menos tremenda trivialidade. Depois de as questões existenciais, metafísicas e epistemológicas da humanidade terem sido sufocadas pelas chamadas leis do mercado, resta apenas a trivial metafísica do dinheiro. As aventuras acabaram, porque, na banalidade total do mercado, não há nada para descobrir, nem nada para experimentar. Já não há desporto de risco ou turismo de aventura nos Himalaias que possa ajudar. O herói da semana é, por exemplo, Hartwig Piepenbrock, "dono de uma enorme equipe de limpeza", com 30 000 empregados de limpeza de baixos salários (Wirtschaftswoche 37/1996), cujo objectivo na vida é ser o maior no sector da limpeza de baixos salários. O histórico limiar da dor da economia de mercado é também o da sua visão de mundo, da sua "estética da mercadoria" (W. F. Haug) e da embaraçosa tacanhez da ambição humana.
Um limiar da dor não pode ser ultrapassado sem consequências. Para lá desse limiar, o paciente está morto, ou é outra pessoa. No entanto, a historicização do capitalismo, que já tarda, não pode mais ser feita a partir dos conflitos internos da história da modernização até hoje ocorrida. Ela tem de olhar para a coisa toda, isto é, a partir da análise daquilo em que se foi tornando, revelar o fim. A ironia da história poderá ser que, para o capitalismo, o triunfo absoluto e a crise final coincidam historicamente. O facto de esta crise inesperada parecer obviamente muito diferente do que se pensava resulta do colapso do próprio sistema de referência existente. O actual debate global sobre a "localização do investimento" é tão grotesco porque não quer perceber que, hoje, o sistema omnipresente de "postos de trabalho" da economia de mercado se destruiu e se tornou impossível. Claro que a questão dos postos de trabalho também chama a atenção para a história. A industrialização capitalista, iniciada no final do século XVIII, entra num beco sem saída. Só pode haver mais uma aventura: a ultrapassagem da economia de mercado, para lá das velhas ideias do socialismo de Estado. Depois disso, outra história pode começar.
Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf. Tradução de Boaventura Antunes