A síndrome neofascista da Fortaleza Europa
Em toda a Europa, a política
dos governos de centro-esquerda coincide com manifestações
neofascistas, e é favorecida a resolução da crise na forma de
uma primazia racista
Claro que a história não se repete. Mas o reprimido sempre
volta em nova roupagem, enquanto não é elevado à consciência
e superado junto com suas condições. Europa, a mãe da
modernidade capitalista, também deu à luz o fascismo e, com a
versão alemã do nacional-socialismo, inaugurou o crime contra a
humanidade. Nos registros oficiais esses crimes foram
excomungados da tradição européia do Iluminismo, do
liberalismo e da democracia. Mas os fascistas não nasceram sob
outra estrela; seu pensar sanguinário radicava na própria
modernidade européia. Todos os elementos da ditadura nazista
encontram-se dispersos nos países, épocas, instituições e
idéias da história da modernização: das penitenciárias com
trabalhos forçados do pré-capitalismo, do racismo e
anti-semitismo latentes ou manifestos da filosofia iluminista,
das fantasias de extermínio social de Sade e de Malthus, o
"teórico da demografia", até o darwinismo social de
cunho democrata do século 19. Os crimes nazistas foram
singulares; mas essa singularidade consistiu justamente em
concentrar em alto grau e levar a extremos todos aqueles
elementos de repressão, constrangimento, exclusão e
irracionalidade, tal como estes, de uma forma ou de outra,
acompanharam desde o princípio a história da expansão
européia. O pesadelo vivido pela Europa entre 1933 e 1945
parecia não deixar outra alternativa: fascismo nunca mais! No
entanto, como os fundamentos sociais desse pesadelo permaneceram
totalmente inalterados, as próprias raízes do terror fascista
não foram postas de lado. Na efêmera época do "milagre
econômico" após a Segunda Guerra Mundial, os demônios
desapareceram nos subterrâneos, mas com a crise socioeconômica
da terceira revolução industrial eles voltaram à tona. Desde
os anos 80, o novo desemprego estrutural de massas é acompanhado
pela ascensão de ideologias neofascistas e sentimentos racistas.
O potencial intimidativo com que se enriqueceram as sociedades
européias na crise estrutural ao fim do século 20 se descarrega
em sucessivas ondas de um "radicalismo de direita"
amplamente difundido, que ainda não assumiu contornos nítidos.
Não são apenas (e nem sequer são tantos) os rebaixados sociais
em quem se manifesta o potencial neofascista. O temor difuso que
pesa sobre toda a sociedade transmuta-se em selvagem agressão
precisamente naqueles setores populacionais que ainda não foram
excluídos. De um lado, é o temor de um futuro incerto que
define essa consciência. De outro, o agravamento dramático e a
selvageria da concorrência suscitam um novo
"mandonismo" de mercado. Quer-se a todo custo fazer
parte dos vencedores, que sabidamente "ficam com tudo",
ou pelo menos bancar o tipão de sucesso.
Juventude brutalizada
E consta do hábito da superioridade arrogante fazer praça de
uma crueldade racista e sociodarwinista, ou mesmo colocá-la em
prática. Não raro são jovens de posses, com carro e celular,
que depois da discoteca se juntam em bandos neofascistas para dar
caça a estrangeiros, pessoas de pele escura ou deficientes. Tais
fenômenos de negligência moral existem em todos os continentes;
mas na Europa eles se prendem a uma recaída no terror
especificamente fascista. De Moscou a Madri, mas sobretudo na
Alemanha, a cruz gamada e as runas da SS viraram símbolos
provocativos diletos de uma subcultura jovem, brutalizada. A
energia neofascista insinua-se a fundo nos meandros da sociedade,
embora essa "continuação da concorrência por outros
meios" ainda se esconda sob a fachada do bem-estar burguês
de funcionários públicos, advogados, médicos, trabalhadores
qualificados, engenheiros etc. Mas as violências e os
assassinatos dos bandos de jovens neofascistas são recebidos com
leniência visivelmente "compreensiva" (supostamente
por razões sociais), com a qual a antiga cultura de protesto da
juventude "radical de esquerda" jamais pôde contar.
Essa combinação dissimulada entre "centro" e
"direita" revela-se com particular virulência nas
gerações acima dos 60 e abaixo dos 30, enquanto a geração de
meia-idade, que cresceu durante o "milagre econômico"
e foi impregnada pelo movimento de 68, prega ideais democráticos
de forma um tanto untuosa, sem no entanto ser capaz de oferecer o
menor expediente contra a crise que degringola.
Fascismo pop-cultural
Em certo sentido, trata-se de uma união entre o avô fascista,
que nunca largou mão de sua ideologia soturna, e o neto
neofascista, que, numa espécie de versão pop-cultural, recai
nessa mesma ideologia. A nova consciência fascista de massas
possui também um lado sexual: ela é sustentada por
relativamente poucas mulheres -a maioria são homens, sejam
velhos cruéis ou jovens de intelecto corrompido. Não tardaria
para que essa constelação social se sedimentasse também em
termos políticos. O papel da política em relação à dinâmica
econômica na terceira revolução industrial decresceu
objetivamente, é verdade, mas para a maioria, ao menos por
enquanto, a forma do partido político e a respectiva
"atitude eleitoral" restam como a única possibilidade
de expressar suas opiniões e dar nome à sua elaboração
ideológica da crise. Assim, desde o início dos anos 80, a
terceira revolução industrial foi acompanhada em toda a Europa
pela ascensão de partidos "populistas de direita" ou
neofascistas, que nesse meio tempo ganharam considerável peso
parlamentar. Devagar, mas sempre, os tradicionais partidos
moderadamente conservadores do pós-guerra rompem com suas alas
direitistas e perdem sua força de integrar os demônios
fascistas à consciência de massas. Mas tal processo não é
imposto à democracia a partir de fora, antes se alimenta das
contradições internas do próprio mundo democrático. Foi na
Itália que o bloco da democracia oficial cedeu passo, pela
primeira vez, ao rebento neofascista por ele próprio gerado.
Após décadas de domínio conservador da "Democracia
Cristã", a corrupção escrachada e o conluio da classe
política com a máfia assumiram proporções tais que o
conservadorismo italiano dissolveu-se vertiginosamente. Seu
espólio foi açambarcado pelo sincrético partido de direita de
Berlusconi, o magnata da mídia, pelos populistas de direita de
Bossi, o líder separatista do norte da Itália, e pelos
neofascistas ávidos de poder. Mas o processo de erosão dos
partidos conservadores agravou-se também na Inglaterra, Alemanha
e França. A "rendição da guarda" pareceu primeiro
dar uma guinada política para a "esquerda". No lugar
dos regimes conservadores, corroídos por seus escândalos,
surgiram governos predominantemente de centro-esquerda; essa
tendência também foi seguida pela Itália.
Mutação das esquerdas
Para observadores desavisados, volvia-se inesperadamente à
"era social-democrata". A verdade é bem diversa,
porém. Isso porque a erosão do conservadorismo foi acompanhada
por uma mutação das esquerdas estatais. Da mesma maneira que a
doutrina econômica neoliberal passou a ser perfilhada por todos
os partidos, numa espécie de mestiçagem com suas respectivas
ideologias originárias (havia muito empalidecidas), assim
também um bafejo das ideologias e dos humores neofascistas
varreu o ambiente partidário; e nisso a "nova
social-democracia" de Blair ou de Schroeder constitui tão
pouco uma exceção quanto os comunistas franceses ou os diversos
partidos verdes do movimento ecológico.
Esse caráter neofascista de toda a classe política pode ser
designado como "nacionalismo interno" e, no tocante à
União Européia, como política da "Fortaleza Europa".
Sob as condições da globalização, perdeu todo sentido um
expansionismo político agressivo.
O próprio impulso da ideologia neofascista não consiste mais
num nacionalismo conquistador voltado para fora, senão num
nacionalismo excludente voltado para dentro, que se alia à
concorrência no mercado mundial sem barreiras. É assim que os
vários milhões de trabalhadores imigrantes provenientes da
Turquia, do norte africano etc. e os refugiados das regiões em
colapso do Leste Europeu viram alvo do ritual de ódio dos
neofascistas. Os partidos democráticos, norteados pelos índices
de opinião pública, condenam os "pogroms" mais
atrozes com palavras ocas, porém de olho no potencial
eleitoreiro desse racismo "implosivo". Eximindo-se da
responsabilidade social, o Estado ao mesmo tempo faz concessão
à atmosfera "xenófoba". Entre os governos
social-democratas regidos pelo chamado "novo centro"
essa tendência se aguçou ainda mais. Batidas da polícia em
centros de "ilegais" e ameaças de repatriação
acham-se mais do que nunca na ordem do dia. O atual ministro do
Interior do governo social-democrata alemão estuda uma drástica
ampliação do direito de asilo, embora a própria Alemanha, em
razão de sua história, tivesse todos os motivos para ser mais
aberta, nesse ponto, do que qualquer outro país.
Política de adaptação
Mesmo o "ius sanguinis", que desde 1913 define a
cidadania segundo critérios de "ascendência", foi
modificado apenas superficialmente no mandato de Schroeder, mas
não revogado um ato qualificado de "compromisso
democrático" com a direita racista. Em toda a Europa, a
política dos governos de centro-esquerda coincide nos pontos
decisivos com as manifestações surdas da síndrome neofascista.
De caso pensado é favorecida a resolução da crise estrutural
da sociedade na forma de uma primazia racista e sociodarwinista,
para que nenhum movimento emancipatório extraparlamentar possa
nascer. Oficialmente essa política de adaptação à atmosfera
neofascista é justificada pelo fato de que só se quer evitar o
pior e "apaziguar" a agressividade racista; mas é
justamente assim que os demônios se metem em brios, sedentos de
sangue, prestes a fugir ao controle. Um surto social nesse
sentido ocorreu na Áustria, onde os conservadores formaram uma
coalizão com o partido abertamente racista e anti-semita do
populista de direita Joerg Haider. Quebrou-se, assim, um tabu das
democracias européias do pós-guerra. A síndrome Haider é mais
perigosa do que as demais tendências neofascistas -e por
diversas razões. Paradoxalmente, o potencial intimidativo é
tanto maior na Áustria pelo fato mesmo de lá a crise ter sido
até agora represada e o desemprego ter permanecido relativamente
baixo. A grande coalizão decenária de socialistas e
conservadores não só gerou uma "avarocracia"
corrupta, mas também cercou o capitalismo austríaco com uma
redoma nacionalista contra a globalização: os grandes bancos e
as indústrias siderúrgica e petrolífera são propriedade
majoritária do Estado e são subvencionados -e também nos
demais setores a participação estatal é a maior de todos os
países da União Européia. Em compensação, a Áustria tem o
maior déficit de toda a união monetária. Essas são relações
estruturalmente análogas aos países socialistas do Leste, antes
do colapso dos anos 80. Assim todos sabem, ou presumem, que é
iminente a "virada" na Áustria e que as vítimas das
privatizações e fusões estão por um fio. O partido de Haider
serve de catalisador da crise porque, ao contrário da maioria
dos outros partidos de direita radical na Europa, não é
economicamente retrógrado. Pelo menos a Frente Nacional francesa
e os diversos neonazistas alemães defendem, sob o influxo da
crise, velhos programas econômicos estatais, enriquecidos de
lemas nacionalistas; no fundo se trata à semelhança,
ironicamente, da oposição de esquerda, sem teoria nem programa,
de uma débil reciclagem de idéias keynesianas. O Partido da
Liberdade, de Joerg Haider, por sua vez, é uma mutação do
liberalismo austríaco e sustenta o programa econômico
neoliberal. Certos aspectos dessa orientação se acham também
em Berlusconi; mas a especificidade do partido de Haider é a
união de um severo radicalismo de mercado com um racismo aberto,
de laivos anti-semitas.
Soltar os instintos
À diferença das ditaduras fascistas do entre-guerras, não se
trata mais se moldar a sociedade com um espartilho
econômico-estatal em benefício de uma política externa
agressiva e imperialista, mas, pelo contrário, de conferir à
sua ruína interna um curso igualmente agressivo. Haider diz com
todas as letras à consciência de massas: suas antigas garantias
sociais têm de ser sacrificadas à globalização, mas em
contrapartida vocês podem soltar seus instintos mais baixos
contra o "Outro" na sua vizinhança. Neoliberalismo e
neofascismo fundem-se aqui numa perfeita identidade.
O boicote dos Estados da União Européia contra a participação
no governo do partido de Haider não é de tônica
substancialmente diversa, pois as mesmas facetas do programa de
Haider encontram-se em Blair, Schroeder, Jospin e companhia. O
súbito alvoroço deriva antes do fato de que Haider pôs em
evidência o seu próprio "programa secreto" e tornou
direto o conluio até agora indireto entre globalização e
perseguição etno-nacionalista, entre economicismo neoliberal e
racismo da direita.
Mas, enquanto a classe política da União Européia teme no
"fenômeno Haider" o estopim de um processo
incontrolável, a maioria da imprensa econômica liberal faz
vista grossa e inventa piadas sobre o boicote indeciso e
meramente protocolar contra o governo austríaco, apostando que o
time de Haider implementará as "necessárias reformas
socioeconômicas". No final das contas, as democracias vão
ter de capitular aos demônios que elas mesmas alimentaram. A
Europa se cobre de trevas, porque a cega economia de mercado não
consegue aprender nada com a história.
S.Paulo, Domingo, 14 de Maio 2000
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da
Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos
Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção
"Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.