Robert Kurz

A Mão Invisível

 

Com a "transvaloração dos valores", o liberalismo ganhou primeiro um ponto de partida (anti-)moral. Até mesmo Mandeville parece ter ficado um pouco assustado com o seu próprio avanço, especialmente porque foi levado a tribunal acusado de blasfémia, por divulgar os mais secretos pensamentos liberais. Assim, pelo menos ele (ao contrário de Sade, que foi preso por sua impiedosa divulgação em escalada) apressou-se a considerar, além da zombaria aberta dos "trabalhadores pobres", simultaneamente certas gratificações sociais que, por meio dos "vícios privados", deveriam não só beneficiar a abstracção do Estado, mas também um pouco a população com "benefícios sociais":

“Não há dúvida de que, se a honestidade e a frugalidade fossem nacionais, uma das consequências seria não construir mais casas novas nem usar materiais novos na medida em que houvesse velhos que ainda servissem; de modo que três quartos de mações, carpinteiros e pedreiros etc. estariam sem emprego; e estando arruinada a indústria da construção, o que seria da pintura, da decoração e de outras artes ao serviço do luxo, que foram cuidadosamente proibidas pelos legisladores que preferiram uma sociedade boa e honesta a outra grande e próspera e que se esforçaram para tornar seus súbditos virtuosos em vez de ricos?” (ibid., 229)

Também esta aparente concessão não se dá bem sem uma espécie de sorriso irónico na argumentação. Pois Mandeville aqui já assume uma imaturidade social das pessoas, que ainda não estava completamente imposta no seu tempo; ele finge como se, sem capitalistas "dadores de trabalho", elas ficassem completamente desamparadas, como crianças pequenas, sendo incapazes de construir casas para si mesmas, de acordo com suas necessidades e habilidades, de fazer obras de arte, etc.. Ele já pressupõe, portanto, a "privatização total do mundo", cujo reverso é a dependência salarial igualmente total das massas. O fim em si da valorização do capital intromete-se entre o ser humano e a natureza, expropria a capacidade de cooperar e transfere-a para a forma de capital, para que os indivíduos se habituem a não poder fazer mais nada por si e pelos outros sem a intervenção de um "ganhar dinheiro".

É claro que a própria capacidade de agir, os meios de produção e os recursos naturais devem ficar em pousio, ou mesmo ser destruídos, se não puderem ser utilizados "rentavelmente" para a produção de lucros abstractos. A construção de casas já não depende da disponibilidade de materiais, das habilidades e necessidades. Enquanto nas sociedades pré-capitalistas o espaço social de produção para a procura era imposto sobretudo externamente, por exigências dos senhores (por exemplo, na forma de tributos, impostos, corveia, etc.), Mandeville já propaga a estranha infiltração dessa exigência na reprodução pessoal directa, de modo que o acesso do "poder estranho" à vida torna-se completo, não podendo haver mais nenhum bem que não tenha sido transformado pelo seu moinho económico. As pessoas, isoladas pelo mercado do controlo das suas próprias condições de produção, transformam-se em seres economicamente paralisados e socialmente autistas que têm de suspirar por um "investidor" para que tenham "trabalho".

Este absurdo é o núcleo secreto de todo o pensamento iluminista do século XVIII. Na parte relevante da sua argumentação, Mandeville já vai além de uma mera legitimação moral. O facto de a vida das massas ser tolerada apenas como um produto residual da produção capitalista de lucro é trapaceado como um "momento de bem-estar" do capital; ao mesmo tempo, é sugerida a ideia de um "sistema" social, em que a complicada dialéctica de vícios privados e supostos benefícios públicos é transformada na engrenagem de uma máquina social (já sugerida por Sade). Isso resulta no próximo truque ideológico do liberalismo, que acompanha a consolidação e objectivação da economia de mercado. Immanuel Kant (1724-1804), talvez o filósofo mais influente da história da modernização, é uma das grandes mentes por detrás deste novo pensamento sistémico, e é também um apologista liberal da concorrência de indivíduos egoístas, que quase atribui a uma lei divina no seu ensaio Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita (publicado na Berlinische Monatsschrift em 1784):

O meio de que a natureza se serve para obter o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo destas na sociedade, na medida em que ele se torna, finalmente, causa de uma ordem legal das mesmas disposições. Entendo aqui por antagonismo a sociabilidade insociável dos homens, isto é, a sua tendência para entrar em sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência universal que, incessantemente, ameaça dissolver a sociedade… Ora, esta resistência é que desperta todas as forças do homem e o induz a vencer a inclinação para a preguiça e, movido pela ânsia das honras, do poder ou da posse, a obter uma posição entre os seus congéneres, que ele não pode suportar, mas dos quais também não pode prescindir. Surgem assim os primeiros passos verdadeiros desde a brutalidade para a cultura, que consiste propriamente no valor social do homem; desenvolvem-se a pouco e pouco todos os talentos, forma-se o gosto e, através de uma incessante ilustração, o começo transforma-se na fundação de um modo de pensar que, com o tempo, pode mudar a grosseira disposição natural em diferenciação moral relativa a princípios práticos determinados e, por fim, transmutar ainda, deste modo, num todo moral uma consonância para formar sociedade, patologicamente provocada. Sem as propriedades, em si decerto não dignas de apreço, da insociabilidade, de que promana a resistência com que cada qual deve deparar nas suas pretensões egoístas, todos os talentos ficariam para sempre ocultos no seu germe, numa arcádica vida de pastores, em perfeita harmonia, satisfação e amor recíproco: e os homens, tão bons como as ovelhas que eles apascentam, dificilmente proporcionariam a esta sua existência um valor maior do que o que tem este animal doméstico; não cumulariam o vazio da criação em vista do seu fim, como seres de natureza racional. Graças, pois, à Natureza pela incompatibilidade, pela vaidade invejosamente emuladora, pela ânsia insaciável de posses ou também do mandar! Sem elas, todas as excelentes disposições naturais da humanidade dormitariam eternamente, sem desabrochar. O homem quer concórdia; mas a natureza sabe melhor o que é bom para a sua espécie, e quer discórdia. Ele quer viver comodamente e na satisfação; a natureza, porém, quer que ele saia da indolência e da satisfação ociosa, que mergulhe no trabalho e nas contrariedades para, em contrapartida, encontrar também os meios de se livrar com sagacidade daquela situação. Os motivos naturais, as fontes da insociabilidade e da resistência geral, de que brotam tantos males, mas que repetidamente impelem também, todavia, a novas tensões das forças, portanto a novos desenvolvimentos das disposições naturais, revelam de igual modo o ordenamento de um sábio Criador; e não, por exemplo, a mão de um espírito mau que, por inveja, tenha estragado ou danificado a sua obra magnificente” (Kant, sem data/1784, 7s.)

Kant também argumenta completamente no espírito de Hobbes; por trás da fachada iluminista ele professa o mesmo ideal do "homem-cão" que ladra, e um liberal contemporâneo como Ralf Dahrendorf ainda pode citar esta passagem com aprovação e conforto (Dahrendorf 1992, 48). Como todos os ideólogos da história da modernização, Kant assume as formas encontradas do capitalismo, na medida em que elas, enquanto "realizações" negativas da modernidade, já se tinham afirmado como lei do desenvolvimento da humanidade por excelência. Ele também representa a inveterada presunção dos senhores de uma "preguiça inata" das massas, que teria de ser ultrapassada com a salutar pressão da concorrência. Sendo ainda hoje considerado no pensamento burguês como o venerável fundador dos princípios éticos da democracia, o próprio Kant denuncia o seu verdadeiro carácter quando vê o "todo moral" do conjunto capitalista emergir de uma "harmonia patologicamente provocada".

A suposição de Kant de que uma cooperativa, no sentido de modo cooperativo de produção sem a forma da mercadoria, colocaria seus membros "a dormir numa arcádica vida ovina" também equipara, como nos seus antecessores liberais, o "esforço superior" e a força de iniciativa humana com a auto-afirmação na trivialidade das relações de mercado. A coragem e a energia estão assim à mercê da banalidade da economia de mercado, só podendo ser mobilizadas pelos instintos mais baixos. Diga-se de passagem que o liberalismo deveria ter cuidado com a metáfora das ovelhas, porque, para a maioria do mundo, a economia de mercado nunca significou nada além de ser degradada a um rebanho de ovelhas de uma irracional ambição económica e regularmente tosquiada ou abatida.

O que é notável no hino de Kant à concorrência, porém, é sobretudo que, para lá das vagas alusões feitas por Mandeville, ele já não vê apenas uma harmonia moral de "vícios privados e benefícios sociais", mas algo como um abstrato sistema da razão em acção, que se representa a si mesmo e já não tem nada a ver com vícios ou benefícios. A razão de Kant é a monstruosa razão do capital. Este eleva-se assim acima do mero paternalismo social das classes dominantes para, enquanto força coerciva capitalista que "sabe o que é bom para a espécie", se fazer passar pela própria natureza e, em última instância, "pelo ordenamento de um sábio Criador". Aqui ocorre uma espécie de reversão na naturalização do social desde Hobbes: já não é apenas que o predador macaco capitalista do egoísmo abstracto é o "homem natural", e o mercado é um facto quase físico da existência humana, mas a lei interior deste grande todo aparece como um único grande plano da "segunda natureza" para além da natureza meramente subjetiva do ser humano, o enorme mecanismo do capital global como obra da "mão de Deus", que por sua vez dirige e guia o factor subjectivo do egoísmo individual "natural". Por outras palavras: o "benefício social" não é mais um mero resultado global coincidentemente positivo das muitas vontades individuais capitalistas, mas, justamente ao contrário, os muitos actos egoístas de vontade dos "indivíduos isolados" são o resultado de um contexto geral determinado pela providência divina, de uma "natureza superior" do sistema.

Esta expansão da teoria (e, até certo ponto, da teologia do capital), em que a ideologia liberal fecha sistemicamente e supera a justificação bastante precária e meramente (anti-)moral de Mandeville ou de Sade, reflecte o progresso social real das relações capitalistas de mercado, de um foco de novas imposições para um louco sistema objectivado fechado em si, que já tinha estabelecido condições axiomáticas. O "ordenamento de um sábio Criador" de Kant lembra muito a famosa e proverbial "mão invisível" da teoria de Adam Smith. Este conceito de "mão invisível" não se encontra apenas no principal trabalho económico sobre a Riqueza das Nações, mas já 17 anos antes, na Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith, publicada em 1759, ou seja, significativamente ainda no contexto da agitação moral do liberalismo, que caracteriza a sua apologia do modo de produção capitalista. Smith já aqui esboça o plano de um contexto sistémico autónomo, para lá da vontade humana:

“Encanta-nos, então, a beleza do conforto que reina nos palácios e na economia dos poderosos, e admiramos como tudo concorre para promover a sua tranquilidade, para evitar que lhes falte algo, e para divertir seus mais frívolos desejos. Se considerarmos por si só a satisfação que todas essas coisas são capazes de proporcionar, separada da beleza de disposição adequada para suscitá-la, sempre parecerá muito desprezível e trivial. No entanto, raras são as vezes em que as vemos sob essa luz abstracta e filosófica. Em nossa imaginação, naturalmente a confundimos com a ordem, o movimento uniforme e harmonioso do sistema, a máquina ou economia que a produzem. Os prazeres da riqueza e das honras, considerados desse ponto de vista complexo, atingem a imaginação como se se tratasse de algo grandioso, belo e nobre, cuja obtenção vale bem todo o cuidado que estamos dispostos a lhe dedicar. E é bom que a natureza se imponha a nós dessa maneira. É essa ilusão que dá origem e mantém em movimento a destreza dos homens. É o que primeiro os incitou a cultivar o solo, construir casas, fundar cidades e Estados, e a inventar e aperfeiçoar todas as ciências e artes que enobrecem e embelezam a vida humana; que mudaram toda a face do globo […] É em vão que o altivo e insensível senhor feudal vê seus amplos campos e, sem pensar nas carências de seus irmãos, consome em imaginação tudo o que ali está plantado. Nunca o provérbio popular e comum, de que os olhos são maiores do que a barriga, confirmou-se mais que nesse caso. A capacidade do seu estômago não tem nenhuma proporção com a imensidão de seus desejos, pois não poderá receber nada mais que o mais vil camponês. É obrigado a distribuir o que sobra entre os que melhor preparam o pouco de que ele faz uso […] Em todos os tempos, o produto do solo sustenta aproximadamente o número de habitantes que é capaz de sustentar. Os ricos apenas escolhem do monte o que é mais precioso e mais agradável. Consomem pouco mais do que os pobres; e a despeito de seu natural egoísmo e rapacidade […] apesar disso dividem com os pobres o produto de todas as melhorias. São conduzidos por uma mão invisível a fazer quase a mesma distribuição das necessidades da vida que teria sido feita, caso a terra fosse dividida em porções iguais entre todos os seus moradores; e assim, sem intenção, sem saber, promovem os interesses da sociedade, e oferecem meios para multiplicar a espécie. Quando a Providência dividiu a terra entre uns poucos orgulhosos senhores, não se esqueceu e tampouco abandonou os que tinham ficado fora dessa partilha. Também estes usufruíram sua parte em tudo o que a terra produz. No que se refere à verdadeira felicidade da vida humana, não são em nada inferiores aos que pareceriam estar tão acima deles. No conforto do corpo e na paz de espírito, todas as diferentes posições da vida estão quase ao mesmo nível, e o mendigo que se aquece ao sol junto da estrada possui a segurança por que se batem os reis. O mesmo princípio, o mesmo amor ao sistema, a mesma consideração da beleza da ordem, da arte e da invenção frequentemente servem para recomendar as instituições destinadas a promover o bem-estar público […] Sentimos prazer em contemplar a perfeição de tão belo e grandioso sistema, e nos sentimos intranquilos até removermos qualquer obstáculo que possa perturbar ou estorvar minimamente a regularidade de seus movimentos.” (Smith 1999/1759, 224ss.).

A ideia fixa da classe média rica de invocar a felicidade de um mendigo de "vida simples" ao sol, assim satisfazendo inofensivamente o seu próprio sentimentalismo social, não culmina só na afirmação paternalista de que através do activismo obsessivo dos "fazedores" capitalistas é alcançada a maior melhoria possível e a melhor distribuição possível (que, no entanto, naturalmente inclui a existência de mendigos!), de modo que qualquer crítica é supérflua. Mais que isso, Smith menospreza, em primeiro lugar, as necessidades sensoriais e a sua satisfação, a fim de glorificar a independente e por si existente "beleza da ordem" e o esplendor da "máquina" económica, "do movimento regular e harmonioso do sistema".

Os efeitos supostamente benfazejos da "mão invisível" são expressamente menos importantes para Smith do que a adoração desse Deus secularizado que não tolera nenhum outro além dele. E, assim, não pode faltar a ameaça surda de "remover qualquer obstáculo" que "possa perturbar ou estorvar a regularidade dos seus movimentos".

Este hino à "mão invisível" mostra como a visão de mundo da economia moderna é sistematicamente baseada na visão da física mecânica; uma conexão que os biógrafos e comentaristas de Adam Smith enfatizam unanimemente:

"A filosofia inglesa da sua época, o Iluminismo Escocês, estava [...] ansiosa para inserir a metafísica, ou seja, nossa psicologia e ética na cosmovisão mecânica fundada por Copérnico, Kepler, Galileu e Newton. Eles consideravam o universo como uma máquina gigantesca que, uma vez posta em acção, se regularia a si mesma. Assim, Smith utiliza a mesma metáfora […], para caracterizar modelarmente o processo económico" (Recktenwald 1993, XXXIV).

 

A mecânica economia de mercado de Smith corresponde ao universo mecânico de Newton. Assim, o pensamento capitalista avançou de uma mera ideologia de justificação para um conceito de sistema fechado. Kant e Smith herdaram do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) a ideia da "harmonia pré-establecida" do mundo através do plano de Deus, fixado antecipadamente desde o início, que criou todas as substâncias seculares "de tal modo que cada uma, seguindo apenas suas próprias leis que recebeu simultaneamente com sua existência, permanece de acordo com as outras, exactamente como se houvesse influência mútua, ou como se Deus sempre interviesse com a sua mão [...]" (Leibniz citado por Störig 1966, 293). Este raciocínio só precisava de ser relacionado com o mundo sangrento do "trabalho abstracto" que emergia da história para reinterpretar a modernização repressiva como um sistema "necessário" de razão universal. Apenas o processo do sistema cego do mercado total poderia produzir algo como o pensamento do sistema moderno em reflexão afirmativa, no início do qual estão Leibniz, Kant e Smith, e no final do qual estão as actuais teorias sociológicas dos sistemas (como as de Niklas Luhmann), cujas categorias objectivadas, que degradam o ser humano ao "ambiente" de seu próprio sistema social, apagaram todos os traços da sua génese histórica.

Assim, Adam Smith, depois de ter reconhecido a objectivação da economia de mercado e tê-la reflectido com o conceito de sistema, foi capaz de ter prazer em descobrir e descrever as leis internas desse sistema criado pela "mão invisível", descrevendo-as aos seres humanos como mandamentos para o seu comportamento. Este foi o nascimento real da chamada economia, ou economia nacional, que estuda um sistema histórico de alucinação da humanidade com a pretensão de ciência natural, e ao mesmo tempo "prova" sempre de novo a necessidade da sua existência.

Adam Smith, ainda em antecipação histórica no seu tempo (ainda que mais aplicável à Inglaterra), já pressupõe uma sociedade totalmente capitalizada e, portanto, um sistema abrangente de produção de mercadorias. Para este sistema ele postula, além de toda a ideologia da liberdade, o princípio da auto-regulação mecânica, independente da vontade das pessoas envolvidas. Aqui a raiz do pensamento do Iluminismo pode ser encontrada em "leis" sócio-históricas independentes, o que todavia é um postulado pseudonatural da economia de mercado objectivada, que estranhamente até o marxismo deveria ainda apresentar positivamente. De acordo com Smith, o mecanismo de relógio desta auto-regulação sem sujeito é o mecanismo dos preços, que controla o movimento da sociedade economificada. Como princípio regulador ele designa, nem poderia ser de outro modo, um "preço natural" dos bens em que o capital encarna:

“O preço de mercado de uma mercadoria específica é regulado pela proporção entre a quantidade que é efectivamente colocada no mercado e a demanda daqueles que estão dispostos a pagar o preço natural da mercadoria, ou seja, o valor total da renda fundiária, do trabalho e do lucro que devem ser pagos para levá-la ao mercado.” (Smith 1996/1776, 110)

Smith contrabandeia aqui como axioma o que era apenas um resultado histórico: a reprodução de todos os seres humanos apenas sob o signo das categorias capitalistas do ganho, que simplesmente têm de "render" sempre que um produto é fabricado; para Smith, evidentemente, este é de novo um resultado "natural" da divisão do trabalho por excelência, embora tenham existido formas de produção históricas altamente complexas sem qualquer categoria capitalista de ganho. Tendo assumido o pressuposto deste "preço natural", ele pode indicar seu mecanismo de auto-excitação através das flutuações dos preços de mercado, como resultado dos muitos milhões de acções da concorrência:

“O preço efectivo ao qual uma mercadoria é vendida denomina-se seu preço de mercado. Esse pode estar acima ou abaixo do preço natural […] Quando a quantidade colocada no mercado coincide exactamente com o suficiente e necessário para atender à demanda efectiva, muito naturalmente o preço de mercado coincidirá com o preço natural, exactamente ou muito aproximadamente […] A quantidade de cada mercadoria colocada no mercado ajusta-se naturalmente à demanda efectiva. É interesse de todos os que empregam sua terra, seu trabalho ou seu capital para colocar uma mercadoria no mercado, que essa quantidade não supere jamais a demanda efectiva; e todas as outras pessoas têm interesse em que jamais a quantidade seja inferior a essa demanda […] Consequentemente, o preço natural é como que o preço central ao redor do qual continuamente estão gravitando os preços de todas as mercadorias […] É dessa maneira que naturalmente todos os recursos anualmente empregados para colocar uma mercadoria no mercado se ajustam à demanda efectiva […] (Smith 1996/1776, 110ss.)

Esta estipulação de um mecanismo automático de preços permaneceu até hoje tanto a base da economia "científica" como o postulado da ideologia liberal, que rejeita a intervenção económica do Estado na "bela máquina" da auto-regulação sistémica. Esta é uma reviravolta brilhante em dois aspectos: Em primeiro lugar, as pessoas já não estão obrigadas a uma dominação pessoal, que é sempre de algum modo permeável, frágil e vulnerável, nem à pseudonaturalidade da exigência capitalista derivada de modo meramente abstracto e ideológico, mas à "dominação" de um mecanismo entretanto existente e completamente impessoal; e, em segundo lugar, através deste conjunto automático de regras, uma vez instalado socialmente, as pessoas, com seus próprios sentimentos e desejos, que em si mesmos são incompatíveis com a absurda lei do movimento do capital, podem ser conduzidas ao absurdo com um sorriso de esguelha e quase levadas a desistir da sua própria vida – sempre com referência à "lei natural" do mecanismo dos preços, que, naturalmente, também se aplica ao preço da força de trabalho transformada em mercadoria.

Ainda se pode argumentar contra a imagem pervertida do ser humano e contra a perversa antimoral do liberalismo como mera ideia; mas já não se pode argumentar contra o implacável mecanismo dos preços da lei sistémica que realmente funciona, uma vez que a própria pessoa se tornou uma cabeça de gado de trabalho com preço marcado. Assim que a forma de circulação do dinheiro foi totalizada e a armadilha histórica se instalou desta maneira, torna-se tremendamente difícil assumir uma metaposição de crítica, mesmo apenas em pensamento, e reconhecer a grotesca insolência das exigências capitalistas.

Aos "servos livres" da dependência salarial pode assim ser provado e atirado à cara que sempre só se prejudicariam a si mesmos, ou até mesmo actuariam "imoralmente" contra os outros, com qualquer motivação independente e de vontade própria que se desvie do ditame da "bela máquina". Quem não quer vender-se pode morrer de fome, pois já não há espaço fora do sistema. E quem se vende a si mesmo tem de aceitar o que a "mão invisível" do mecanismo dos preços lhe atribui. Se são exigidos salários "muito altos" no sentido desta mecânica, a máquina social auto-reguladora pune com o desemprego; e se o mecanismo de relógio do mercado de trabalho, depois de baixar o preço da força de trabalho, empurra para um padrão de vida miserável, então os servos assalariados resistentes serão repreendidos por serem "insolidários" com os já desempregados.

O menino que quer se tornar cientista ou enfermeiro pode ser ridicularizado com o lugar de vendedor de automóveis, e a menina que sonha formar-se como artista gráfica ou jornalista pode receber um fraco emprego na caixa de um supermercado. Mesmo uma mobilidade espacial heterodeterminada pode ser forçada pelo mecanismo dos preços do mercado de trabalho, desde as horas de viagem e a separação dos familiares durante a semana de trabalho até ao completo desenraizamento social e à vagabundagem no mercado de trabalho; a máxima do canto religioso luterano: "Vamos lá, com casa, mulher e criança/não se ganha nada" é ainda mais implacavelmente exigida pelo secularizado Baal do capital do que pelo Deus protestante no céu.

E a coisa mais bonita é que ninguém pode ser responsabilizado por tudo isto. Este é o grande passo em frente da invocação da lei sistémica objectivamente formada sobre o cinismo mais subjetivo de um Mandeville: Mesmo os administradores, burocratas, juízes e executores da irracionalidade da economia de mercado podem se identificar com as vítimas, mostrando fraqueza humana, e podem trazer a terreiro o comum estar à mercê de um poder do destino objectivamente real; sempre com o lamentável encolher de ombros de que a "mão invisível", infelizmente, assim o exige, e que "muito naturalmente" o ser humano tem de  se "adaptar  à procura efectiva" de acordo com a natureza da autoprostituição. C'est la vie.

Nas condições da máquina universal capitalista, as melhorias relativas na vida, os aumentos salariais, etc., só são possíveis em fases do seu curso rápido, ou seja, na prosperidade da exploração do "trabalho abstracto"; no entanto, podem ser revertidos a qualquer momento pelo mecanismo dos mercados. Mas mesmo quando a "mão invisível", até para o último crente, reconhecidamente já não distribui oportunidades nem gratificações, mas bate cegamente à sua volta na crise deixando atrás de si devastações, isto pode ser tratado como uma catástrofe natural, como um terramoto ou uma grande cheia, e também se pode apelar com lágrimas (e energicamente, na administração da crise) à "solidariedade" para com a indigência maciça e socialmente autoproduzida, sem sequer conseguir ter a ideia de pôr fim à actividade da "mão invisível".

 

 

Original Die unsichtbare Hand. Pags. 36-42 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf. Tradução de Boaventura Antunes

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