Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 6

História da Segunda Revolução Industrial

 

… … ...

Secção 2

Henry Ford e o nascimento da sociedade automóvel

Uma das raízes da grande guerra tinha sido certamente o vago medo do futuro, não só das massas rendidas e subjugadas, mas também das próprias elites funcionais capitalistas. O longo período de estagnação da crise da época dos fundadores, que só chegara ao fim depois de 1890, tinha-se transformado num crescimento apenas moderado. Ainda se colocava a questão de saber se o modo de produção capitalista poderia ser totalizado num sistema socialmente abrangente. As últimas barreiras externas de natureza social e cultural tinham agora sido derrubadas pela guerra mundial. Mas o tipo democrático de massas que tinha sido derretido nos moinhos de sangue também tinha de ser trazido economicamente para uma nova fase de desenvolvimento do sistema capitalista. Isto exigia a transição para formas sem precedentes de produção e consumo de massas.

Para ultrapassar este obstáculo, o capitalismo teve de ultrapassar não só os restos de padrões culturais e sociais mais antigos, mas também um obstáculo particular da sua própria estrutura interna. Em princípio, toda a produção pode ser dividida em produção de meios de produção (máquinas, ferramentas, edifícios etc.) e produção de meios de consumo; Marx chamou a estes dois sectores "Departamento I" e "Departamento II". Ora a lógica do capital tende por si a favorecer o Departamento I dos meios de produção ou bens de capital e, inversamente, a limitar relativamente a produção de bens de consumo. O nome "capitalismo" já diz que o verdadeiro objectivo aqui é o investimento e não o consumo. A inversão do dinheiro de meio para fim-em-si mesmo corresponde logicamente à inversão do instrumento no sentido mais lato para um fim-em-si mesmo, que tolera o consumo apenas como um mal necessário. Que o ser humano acabe por funcionar absurdamente como instrumento do seu próprio instrumento é apenas o culminar desta inversão fetichista.

Esta tendência fundamental radica, em termos de história das mentalidades, na origem inicialmente religiosa da lógica capitalista: O protestantismo (especialmente na sua variante calvinista) mandou o ser humano, preocupado com a sua justificação perante Deus, por um lado, trabalhar no duro literalmente como um burro e amontoar tesouros como sinal da sua escolha por Deus, mas, por outro lado, não fruir pecaminosamente estes frutos, mas poupá-los com uma avareza crispada, e transformá-los em meios de novo "trabalho" como fim-em-si numa escala mais alta – ad infinitum. Esta dinamização compulsiva do velho vício da avarenta acumulação de tesouros, juntamente com a fome de dinheiro dos despotismos militares absolutistas, foi uma das forças motrizes essenciais da constituição capitalista.

Ao que também corresponde a racionalidade da poupança de custos da economia empresarial daí emergente, que se volta contra a conveniência e contra a fruição dos produtores, a fim de repetidamente sacrificar o tempo e os meios de produção poupados no altar do fim-em-si mesmo. O capitalismo representa assim, de certo modo, uma neurose económica compulsiva, que desenvolve enormes meios apenas para adiar cada vez mais o seu gozo, e transformar os meios em novos e maiores meios. E se o consumo já é inevitável, então deve ser retardado e sobrecarregado com restrições, ou de preferência assumir ele próprio um carácter de investimento. É por isso que as forças produtivas desencadeadas se manifestaram de forma desproporcionada no Departamento I e assumiram a forma de bate-estacas a vapor e grandes motores, locomotivas, linhas férreas e siderurgias, em vez de bens de consumo para as necessidades das massas; ou foi precisamente o consumo estatal de canhões e cruzadores blindados, aviões de combate e metralhadoras, prisões e instituições educativas etc. que o liberalismo sempre amou muito mais do que qualquer outro consumo, porque é parte integrante do perverso fim-em-si e permanece totalmente sem um momento de fruição para as massas. É claro que, apesar disso, era inevitável que parte do aumento da produtividade fosse para a produção de bens para consumo das massas; sobretudo na indústria têxtil, que tinha sido, afinal, um dos principais contribuintes para a descolagem da industrialização. Também em muitos outros ramos de produção os "produtos fabris baratos" para as necessidades quotidianas se tinham tornado correntes. Caso contrário, o capitalismo não poderia ter continuado a existir e a manter o seu sistema de bola de neve industrial. Mas, apesar disso, o consumo ficou muito atrás do desenvolvimento das forças produtivas e, em comparação com os recursos de investimento que tinham sido acumulados a grande altura, foi, por assim dizer, apenas uma pequena gota de água. Esta absurda auto-contradição do capitalismo de, por um lado, desenvolver os meios de produção sem limites, e por outro lado, sob o ditame imposto pela concorrência da "razão" da economia empresarial, manter os rendimentos da massa dos trabalhadores assalariados compulsivamente próximos do nível de subsistência, constitui até mesmo a causa última das suas inevitáveis crises, como Marx observou.

Mas esta auto-contradição era também um obstáculo interno ao desenvolvimento estrutural futuro do capital e à sua captura total do material humano. Pois, sendo cada vez maior o desfasamento entre o potencial produtivo e o consumo, não só o sistema de bola de neve corria o risco de ruir novamente, como as vidas das massas não poderiam ser totalmente absorvidas pela lógica capitalista. Enquanto os trabalhadores assalariados eram mais mal do que bem alimentados pelos seus salários, eles próprios necessariamente produziam em paralelo parte dos seus alimentos e objectos de uso. Estes momentos de economia de subsistência para as próprias necessidades recaíam principalmente sobre as mulheres, a quem, em princípio, ainda hoje é atribuído tudo o que não é mediado por "ganhar dinheiro" – e tais domínios são consideradas per se "inferiores", tanto pelas elites funcionais como pelos trabalhadores assalariados masculinos, porque não lhes cabe directamente a "nobreza" da actividade de valorização para a máquina mundial. A responsabilidade por isso recaiu sobre as mulheres, como um momento prolongado da sua vida de donas de casa ou, se elas próprias já estivessem "empregadas" no trabalho assalariado, como parte da sua dupla carga de emprego e família.

Para além desta diversificada economia de subsistência e da auto-actividade no contexto das famílias, a restrição capitalista do consumo também deixava um certo espaço para a produção local e regional não capitalista de produtos de origem camponesa e artesanal. Ao mesmo tempo, momentos culturais de auto-actividade e obstinação prenderam-se a estes sectores e nichos da sociedade que o capitalismo não conseguia ocupar, mesmo que fossem apenas memórias da cultura outrora rica e amplamente ramificada de produção e lazer das antigas sociedades agrárias. Em qualquer caso, estes momentos, na sua complexidade, constituíam um obstáculo à dissolução completa do espaço vital dos trabalhadores assalariados num ciclo de tempo mecânico de "trabalho" e "lazer" abstractos. A economia de guerra tinha criado uma espécie de protótipo de vida totalmente capitalista, mas a forma de vida totalmente capitalista praticada na frente tinha agora de ser implementada no estado civil normal.

O novo tipo democrático de massas teve, portanto, de ser "empregado" em conformidade, para além da mera produção, também no consumo. Não foi de modo nenhum por acaso que a correspondente vaga necessidade do sistema se fixou na forma da mobilidade industrial. Pois, em primeiro lugar, a mobilidade mecanizada era mais susceptível de transformar o consumo num fim-em-si estruturalmente independente, assim o alinhando com a lógica da máquina mundial: De facto, ao contrário da maioria dos objectos de prazer sensível ou cultural, este consumo não podia ser absorvido no uso do seu conteúdo, mas exigia uma logística material, organizacional e social tão extensa que era capaz de se tornar num "traço de comportamento" bentamiano compulsivo e internalizado, que prometia expandir o sistema de disciplinamentos para dimensões até então desconhecidas.

Em segundo lugar, de todas as formas de consumo, a mobilidade mecanizada era a mais semelhante ao carácter de um bem de investimento, e deste ponto de vista, também no sentido económico, o meio mais adequado para exorcizar qualquer teimosia das pessoas também no consumo, e para as tornar as ferramentas das suas ferramentas. No caso dos caminhos-de-ferro, porém, os dois elementos ainda se desintegravam: como forma directamente social de mobilidade industrial, os próprios equipamentos permaneceram um puro bem de investimento das sociedades de capital e foram cada vez mais (em parte devido a falta de rentabilidade, em parte devido a considerações logísticas da economia de guerra) transferidos para a propriedade estatal. O consumo privado em massa, por sua vez, permaneceu confinado à utilização de um mero serviço. A tarefa que o sistema enfrentava na lógica cega do seu desenvolvimento era, assim, fundir os dois elementos de meio de investimento e consumo de massas num só. Assim, num certo sentido, em vez de vender o bilhete para o "serviço de mobilidade", o capital teve de vender o próprio meio de produção – a cada ser humano capitalista a sua pequena locomotiva privada! Esta consequência absurda já tinha tomado forma com a invenção do automóvel com motor de combustão interna. O economista norte-americano George Katona foi um dos primeiros a reconhecer, no início dos anos 60, em retrospectiva, o significado económico deste "investimento do consumidor", tendo postulado: "O consumidor também investe" (Katona 1965, 36). Nesta perspectiva, em nome do progresso capitalista, criticou o velho pressuposto económico básico de uma separação fundamental entre consumo e investimento, sobretudo no que diz respeito ao automóvel:

 

"A ideia de que os consumidores consomem, ou seja, de que consomem utilizando o que a agricultura e a indústria produzem, atribui aos investimentos dos empresários o papel dominante na política económica, e ao consumidor, pelo contrário, uma função de segunda ordem. É verdade que o consumidor sempre foi elogiado em palavras; no século XIX foi chamado rei, e a máxima de que o objectivo da produção é o consumo é tão antiga como a própria economia. Mas a análise económica tradicional não pressupunha que as necessidades do consumidor e a procura que ele exerce estivessem entre os factores mais significativos. Pelo contrário, foi considerado como estabelecido que o consumidor não pode gerar rendimentos nem dirigir a sua aplicação [...] (Mas) a decisão de comprar um automóvel é bastante semelhante à de comprar uma casa. Assim, alguns automóveis propriedade de particulares [...] também servem para gerar rendimentos [...] Uma vez que os bens duradouros propriedade dos consumidores não se desgastam no ano de aquisição, mas servem, em média, tanto quanto as máquinas propriedade dos empresários, também representam uma parte poupada da produção e devem ser considerados como capital [...]" (Katona, op. cit., 37, 46).

 

Esta nova visão em retrospectiva da sociedade automóvel já desencadeada é, no entanto, traiçoeira: o fim-em-si da produção capitalista é simplesmente exposto, face à hipócrita afirmação oficial do objectivo final do consumo, ao incluir o próprio consumo na nobreza da racionalidade fetichista protestante, através da sua transição para bens de consumo "pesados" de longa duração como fim-em-si (com o automóvel como meio central) que não são absorvidos na fugacidade da fruição imediata. Mas o automóvel, evidentemente, permanece em termos económicos um mero meio de consumo; no seu consumo, o valor não é transferido nem gerado, a menos que funcione como meio de produção de um negócio. No entanto, o argumento de Katona não pode ser completamente descartado, pois, no sentido de uma integração da produção e do consumo no fim-em-si do capital, a automobilização representou um salto qualitativo: Só a sociedade automóvel, com todas as suas implicações, foi capaz de formar todo o contexto da vida como capitalista.

Aqui, porém, inicialmente ainda existia um fosso entre a oferta e a procura: os rendimentos das massas eram demasiado baixos e os automóveis construídos até à Primeira Guerra Mundial demasiado caros para que uma nova fase de "consumo de investimento de massas" neste campo estivesse dentro do leque de possibilidades: "Se os consumidores tiverem de gastar todo o seu dinheiro em bens de consumo de curta duração e apenas em certos serviços, como o arrendamento, não podem recuperar e acumular nenhuma parte do seu poder de compra" (Katona, op. cit., 36). O automóvel era um produto de luxo para os playboys dos "upper ten" e tinha um estatuto talvez semelhante ao de um avião privado hoje em dia.

Foram duas figuras lendárias que resolveram o difícil problema da transformação em produção de massas e consumo da massas, no sentido da máquina mundial: o famoso fabricante de automóveis Henry Ford e o pouco menos famoso engenheiro da racionalização Frederick Winslow Taylor; ambos não por acaso norte-americanos. Pois os EUA, com pezinhos de lã, tinham avançado lenta mas seguramente para a vanguarda capitalista, no sotavento das antigas potências mundiais europeias. À medida que o mundo se tornava mais industrializado, dois pesos desequilibraram a balança decisivamente a favor dos EUA: Primeiro, o carácter de certo modo "virgem" em termos capitalistas da sociedade norte-americana que, após o extermínio generalizado dos aborígenes, já não tinha de ultrapassar barreiras culturais e sociais pré-modernas, mas podia desenvolver-se sem tais fricções directamente no terreno do "trabalho" abstracto (como Marx já tinha previsto); segundo, a dimensão de um mercado interno continental único, que permitia capacidades produtivas e reestruturações tecnológicas a uma escala bastante diferente da que era possível nas economias nacionais europeias relativamente pequenas e limitadas. Este peso dos EUA tinha acabado por decidir a Primeira Guerra Mundial, e preparava os contornos de uma nova ordem mundial do capitalismo, da qual Ford e Taylor se tornariam os profetas.

Acima de tudo Henry Ford (1863-1947), um filho de agricultores ricos do Michigan, era mais do que um capitalista comum. Desenvolveu um zelo missionário, construiu o seu sucesso empresarial com base numa "filosofia" (um esforço inédito na altura) e, sem o saber, seguiu as pegadas de Bentham. Com Ford, a liderança liberal, ideológica e sobretudo industrial-prática passou da Grã-Bretanha para os EUA, muito antes de a mudança do poder político mundial estar completada. Enquanto que "lá longe na Europa os povos estavam em conflito" (os EUA não entraram oficialmente na guerra até 1917), o profeta ainda desconhecido introduziu na sua "Ford Motor Company", fundada em 1903, as inovações decisivas que iriam moldar o capitalismo industrial do século XX. Tal como Bentham, inteiramente filantropo e pregador da utilidade (não, porém, como mero produtor de teoria, mas directamente como empresário industrial), Ford anunciou as suas intenções filantrópicas devidamente programadas, como ele observa numa das suas numerosas memórias de "filosofia industrial":

 

"Eu tive a ideia de construir um automóvel para a multidão. Suficientemente grande para transportar a família, mas suficientemente pequeno para um único homem o guiar e cuidar. Será construído com o melhor material, feito pela melhor mão-de-obra, e construído pelos métodos mais simples que a engenharia moderna é capaz de conceber. No entanto, o preço será mantido tão baixo que qualquer pessoa que ganhe um salário decente poderá pagar um automóvel, para desfrutar com a sua família da bênção da recreação ao ar livre e puro de Deus" (Ford 1923, 84).

 

Evidentemente, não ocorre a Ford que sejam principalmente as restrições capitalistas de tempo, do urbanismo e das condições de vida que tornam os meios industriais de mobilidade em geral necessários para poder visitar zonas de "recreação". E o que seria do "ar livre e puro de Deus" por causa do automóvel de lata não precisava o ingénuo fetichismo da tecnologia no início do século XX de pensar. Para o sistema, a única preocupação era resolver as contradições entre lógica de investimento e lógica de consumo, produção em massa e relativo subconsumo por falta de poder de compra, no interesse do seu desenvolvimento futuro. Essencial para o programa de Ford a este respeito é a referência aos "métodos mais simples". Por detrás destas palavras está o que mais tarde foi chamado a Segunda Revolução Industrial. Ford especifica o traço essencial da sua abordagem na introdução à sua primeira obra (altura em que o sucesso prático já estava assegurado):

 

"Enquanto a maioria dos fabricantes decide mudar o produto em vez dos seus métodos de produção, estamos a seguir o caminho exactamente inverso [...] Exigir que se gaste mais força do que o absolutamente necessário em qualquer trabalho é desperdiçar [...] Neste processo de produção é igualmente meu objectivo distribuir o máximo de salários, ou seja, o máximo de poder de compra. Uma vez que este processo também contribui para um mínimo de custos [...], somos capazes de adequar o nosso produto ao poder de compra" (Ford, op. cit., 16ss.).

 

O que  Ford tem em mente, então, é a velha lógica de redução de custos, mas por novos meios e a tal ponto que o "desfasamento" entre a capacidade produtiva e o poder de compra das massas possa ser ultrapassado, sem comprometer a lógica de acumulação de capital como fim-em-si. Por outras palavras, os custos tiveram de ser tão drasticamente reduzidos que se tornou possível não só oferecer produtos mais baratos, eliminando assim os concorrentes, mas ao mesmo tempo até aumentar os salários, reduzir as horas de trabalho, e ainda fazer avançar o abstracto "fazer mais". Este feito, à primeira vista impossível, só poderia ser alcançado se se voltasse a atenção da racionalidade da economia empresarial para uma área até agora negligenciada: a própria organização do trabalho e as velocidades de fluxo dentro do seu processo. Neste ponto crucial, Ford encontra Taylor, que ao mesmo tempo estava a desenvolver esta mesma área como "scientific management" ou a chamada "ciência do trabalho". No prefácio da tradução alemã da obra principal de Taylor "Princípios de Administração Científica" (1911), que apareceu pouco antes da Primeira Guerra Mundial, o editor resume o problema de forma tão precisa como traiçoeira:

 

"Desde que a indústria de grande escala [...] ultrapassou a primeira infância, os esforços dos órgãos dirigentes e dos engenheiros foram dirigidos principalmente para o aperfeiçoamento das máquinas [...] o funcionamento da máquina foi cuidadosamente considerado de antemão, mas a questão de como os trabalhadores iriam resolver as suas tarefas foi deixada à sua própria responsabilidade [...] O sistema de Taylor [...] é simplesmente um caminho para a utilização mais económica possível da energia humana [. ...] Taylor nega enfaticamente que hoje em dia, na maioria dos casos, o trabalho realizado represente um equivalente para os salários pagos [...] Não pode haver qualquer questão de injustiça ou dificuldade se for exigido mais trabalho para o mesmo pagamento salarial que antes, em que […] o gerente não sabia quanto tempo o trabalhador ‘realmente’ necessitava para fazer o seu trabalho" (Roesler 1913, XIss.)

 

Aqui já é dito em resumo o que Ford também quis dizer com o postulado aparentemente inofensivo e razoável de que "mais força do que a absolutamente necessária" não deve ser gasta em qualquer trabalho. O texto simples é que "mais tempo do que o absolutamente necessário" não deve ser gasto em qualquer acção. Isto significa nada mais do que uma compressão quase monstruosa do trabalho, muito para além do grau anterior de compressão pelo sistema da máquina. Se a Primeira Revolução Industrial já tinha substituído as ferramentas manuais por um agregado de máquinas, que executou o alheio fim-em-si do capital sobre os produtores e afastou deles qualquer sensação de conforto, a Segunda Revolução Industrial, sob a forma da "ciência do trabalho", começava agora a iluminar todo o espaço entre o agregado de máquinas e a actividade dos produtores com a ofuscante lâmpada inquisidora da razão iluminista, a fim de devassar até os últimos poros e nichos do processo de produção, de criar o "trabalhador transparente" e de lhe atirar à cara cada desvio do seu desempenho objectivamente "possível" – numa palavra, de o transformar definitivamente num robô. O "milagre filantrópico" de um barateamento de produtos simultâneo com aumento de salários e redução do horário de trabalho pode assim ser explicado apenas pelo facto de, na realidade, ser consideravelmente desviada mais energia vital dos trabalhadores do que aquilo que recebem de volta em gratificações sob a forma de "benefícios" de consumo. O próprio Taylor não deixa qualquer dúvida sobre o motivo principal e ostentado da sua "gestão científica":

 

"Em vez de [...] se esforçar por realizar o máximo possível, ele (o trabalhador, R.K.) começará na maioria dos casos com a resolução de fazer o mínimo que puder sem chamar a atenção – muito menos do que seria capaz de fazer sem esforço especial – em muitos casos não mais do que 1/3 ou no máximo metade de um dia de trabalho honesto (!) [...] O acordo tácito ou aberto dos trabalhadores para se esquivarem ao trabalho, ou seja, trabalhar assim lentamente de propósito é tal que quase universalmente nenhuma produção diária realmente honesta [...] é comum nas empresas industriais [...] Sem dúvida que o homem médio em todas as profissões tende a trabalhar a um ritmo lento e lúdico, e só [...] sob a pressão das circunstâncias acelerará o seu ritmo" (Taylor 1913, 12ss.).

 

Taylor volta a este problema uma e outra vez; está praticamente obcecado por ele, desenvolve perspicácia de detective e concebe métodos para observar permanentemente as trabalhadoras e vigiar de perto todos os seus movimentos – um verdadeiro projecto benthamiano! A espionagem de jovens mulheres numa fábrica de rolamentos de esferas é relatada pelo novo "cientista do trabalho":

 

"Um inquérito feito de forma bastante discreta mostrou que uma grande parte das 10½ horas durante as quais se acreditava que as moças estavam a trabalhar eram realmente passadas em inactividade [...] Como este inquérito mostrou, até agora as moças passavam grande parte do tempo em semi-actividade, conversando e trabalhando ao mesmo tempo […]" (Taylor, op. cit., 91ss.).

 

A fim de se familiarizar com esta "fuga" e recolher dados precisos, Taylor introduz as belas noções de "estudos do tempo e estudos do movimento": Com o cronómetro, que desde então se tornou infame, todas as actividades são divididas em sequências parciais e verificadas com precisão, a fim de pôr fim à "ignorância dos empregadores quanto ao tempo mínimo exigido para o desempenho [...]" (loc. cit., 17) e de quebrar a "fraqueza de carácter" dos trabalhadores assalariados através da objectividade científica. Ao fazê-lo, Taylor tem até como objectivo as qualidades pessoais das suas cobaias involuntárias:

 

»Por exemplo, fiz estudos de tempo de um trabalhador naturalmente enérgico, que se deslocava de e para o trabalho a um ritmo de cerca de três a quatro milhas por hora, e até ia frequentemente em passo de corrida para casa à hora do fecho. Ao entrar na fábrica, contudo, abrandava imediatamente o ritmo para cerca de 1,5 km por hora. Se tivesse um carrinho de mão carregado para empurrar à sua frente, andava bastante depressa, mesmo a subir, a fim de terminar o trabalho o mais rapidamente possível. No caminho de volta, com o carrinho de mão vazio, caía imediatamente no ritmo lento de não mais de 1,5 km por hora e aproveitava todas as oportunidades para uma paragem, de tal modo que a qualquer momento se pensaria que ia sentar-se" (loc. cit., 19).

 

Isto, claro, não pode ser assim: qualquer pessoa que trabalhe numa empresa capitalista não deve poder "ir a passo de corrida" para casa no final do dia, mas no máximo rastejar, senão simplesmente não foi um "dia de trabalho honesto". O objectivo de Taylor neste sentido é que durante o processo laboral "todos os movimentos desnecessários devem ser eliminados, os movimentos lentos substituídos por movimentos rápidos e os movimentos não económicos por movimentos económicos" (loc. cit., 24). Para tal, no entanto, é necessário despojar os produtores dos seus naturais "conhecimentos do trabalho", que adquiriram através da tradição oral, da observação e experiência, a fim de concentrar esses conhecimentos numa nova forma objectivada por "classificação", tabelas etc. junto da gestão, limpando-os de todos os nichos de passeio. Como o sociólogo norte-americano Harry Braverman observou mais tarde, e com razão, na sua crítica ao taylorismo, pretende-se assim, com o gesto da objectividade científica, "ser uma ‘ciência do trabalho’, quando na realidade se destina a ser uma ciência da gestão do trabalho de outras pessoas sob condições capitalistas" (Braverman 1977, 76). Da forma mais bela, a semântica do termo management, derivado das palavras latinas manus (mão) e agere (conduzir), revela assim a sua verdade no ser humano: "O verbo inglês to manage [...] significava originalmente exercitar um cavalo em todos os andamentos, para o levar a realizar os exercícios no picadeiro [...]" (Braverman, op. cit., 61).

O problema deste benthamismo potenciado era simplesmente manter o fim-em-si capitalista numa nova relação de controlo de desempenho e gratificações de consumo, para fazer o material humano pagar um preço duplo e triplo em extorsão e controlo pelo seu consumo de mercadorias (necessário no interesse da capitalização total). Assim, o treino como ratos de laboratório humanos na frente de batalha tinha agora de ser continuado no processo de produção civil com a "ciência do trabalho", até que a "capacidade cerebral" em qualquer actividade, mesmo a mais primitiva, pudesse ser transferida dos produtores imediatos para os sargentos da "bela" máquina:

 

"O desenvolvimento de um método científico implica o estabelecimento de um conjunto de regras, leis e fórmulas que tomam o lugar do critério do trabalhador individual. Só podem ser aplicadas com sucesso quando são sistematicamente registadas e compiladas. A aplicação prática dos registos científicos requer também uma sala onde se possam guardar os livros, estatísticas etc., e uma mesa para o trabalhador intelectual responsável trabalhar. Todo o trabalho intelectual sob o antigo sistema era feito pelo trabalhador e era o resultado da sua experiência pessoal. De acordo com o novo sistema, deve necessariamente ser feito pela direcção, de acordo com as leis cientificamente desenvolvidas [...]" (op. cit., 40).

 

Nada deve ser deixado ao acaso, ou seja: ao julgamento dos próprios trabalhadores. Taylor chega ao ponto de falar de uma "ciência da pá" (op. cit., 68). Conseguiu provar o aumento de produtividade possível desta forma pela primeira vez na siderurgia Bethlehem, utilizando o memorável exemplo do carregamento de ferro-gusa por uma coluna de trabalho:

 

"Um carregador de ferro-gusa baixa-se, pega numa barra de ferro de cerca de 42 kg, leva-a a alguns passos, e depois atira-o ao chão ou empilha-o numa pilha [...] Descobrimos que nesta coluna cada indivíduo carregou uma média de cerca de 12½ t por dia; mas, para nossa surpresa, descobrimos numa investigação minuciosa que um carregador de ferro-gusa de primeira classe deve carregar não 12½, mas 47 a 48 t por dia [. ...] Tivemos ainda de ver que este trabalho seria feito sem greve, sem discussões com os operários, e que as pessoas ficavam mais felizes e contentes carregando 47 t por dia do que as 12½ t de outrora [...]" (op. cit., op. cit., p. 1), 45).

 

Uma tal objectificação extrema do ser humano tinha, naturalmente, de ser impingida com alguma cautela, ou mais precisamente: primeiro tinha de ser encontrado um especial idiota para fazer dele um exemplo. A relação entre a estupidez e a eficiência capitalista ao nível da produção directa (bastante contrária à concepção burguesa de "racionalidade") tem sido estabelecida repetidamente em estudos concretos de empresa. Assim, uma investigação na fábrica Western Electric, em Hawthorne, revelou que "o trabalhador com a menor produção de trabalho na sala [...] foi o primeiro no teste de inteligência e o terceiro no teste de habilidade; o trabalhador com a maior produção de trabalho [...] foi o sétimo no teste de habilidade e o último no teste de inteligência" (citado em Braverman, op. cit., 84). Taylor encontrou o seu melhor intérprete num alemão burro chamado Schmidt (por isso o cientista do trabalho já sabia de que canto do mundo vêm os maiores palermas do trabalho). O modo de proceder aqui fala por si e atinge um tal nível de ultraje que merece ser citado em pormenor:

 

"O novo sistema faz com que seja uma regra inflexível aceitar apenas um homem de cada vez quando se negoceia com os trabalhadores [...] O nosso primeiro passo, então, foi encontrar o homem certo para começar. Por conseguinte, observámos cuidadosamente os 75 homens em questão durante cerca de três ou quatro dias. Finalmente, chamaram a nossa atenção quatro pessoas que pareciam fisicamente aptas a carregar 471 barras de ferro-gusa por dia [...] Cada uma destas pessoas foi então objecto de um estudo cuidadoso. Rastreámos os seus antecedentes na medida do possível, foram feitas investigações detalhadas quanto ao seu carácter, hábitos e ambição. Finalmente, seleccionámos um [...] como o melhor para começar. Era um homem atarracado da Pensilvânia, de ascendência alemã [...] A este homem chamaremos Schmidt. A nossa tarefa agora era fazer com que Schmidt carregasse 471 barras de ferro-gusa por dia, mas não perturbar o seu gosto pela vida, pelo contrário, fazê-lo alegre e feliz com isso. Fez-se da seguinte forma. Schmidt foi chamado de entre os outros carregadores de ferro, e com ele foi feita mais ou menos a conversa que se segue: 'Schmidt, é um funcionário de primeira?' – 'Bem, não compreendo' -[...] 'Desate a língua! Quero saber se é um funcionário de primeira ou um funcionário como o resto dos trabalhadores baratos. Quero saber se quer ganhar 1,85 dólares por dia, ou se está satisfeito com os 1,15 dólares, isto é, com o que estas pessoas baratas conseguem' – '1,85 dólares por dia, será isso chamado de funcionário de primeira? Bem, então eu sou um desses...’ – 'Você deixa-me furioso. Claro que quer 1,85 dólares por dia, é isso que todos querem. Sabe muito bem que isso tem muito pouco a ver com o facto de ser um funcionário de primeira [...] Agora, se for um funcionário de primeira, então amanhã fará exactamente o que este homem lhe disser para fazer, de manhã à noite. Se ele lhe disser para pegar numa barra de ferro-gusa e andar com ela, então pegue-a e ande com ela! Se ele lhe diz para se sentar e descansar, sente-se! Faz isso correctamente ao longo do dia. E, além disso, não conteste! Um funcionário de primeira é um trabalhador que faz exactamente o que lhe é dito, e não contesta […]' [...] Esta provavelmente parece uma maneira um pouco rude de falar com alguém [....] No entanto, com um homem com o embaraço mental do nosso amigo, é inteiramente apropriado e não é nada indelicado, especialmente porque atingiu o seu objectivo de chamar a sua atenção para os elevados salários que lhe saltavam aos olhos, e o distraiu do que ele provavelmente teria chamado de trabalho impossivelmente árduo se lhe tivesse sido apontado (!) [...] Schmidt começou a trabalhar, e a intervalos regulares foi-lhe dito pelo homem que estava com ele como professor: 'Agora pegue numa barra e leve-a! Agora sente-se e descanse!' etc. Trabalhou quando lhe foi ordenado que trabalhasse e descansou quando lhe foi ordenado que descansasse, e às cinco e meia da tarde tinha carregado 47½ toneladas no vagão. Durante os três anos em que estive na Bethlehem, trabalhou sempre a este ritmo e fez a carga de trabalho necessária de forma impecável. Durante todo este tempo ele ganhou um pouco mais de 1,85 dólares, em média [...] Ele recebeu assim 60% mais salário do que os outros trabalhadores que não trabalhavam sob o sistema de carga de trabalho diária […]" (Taylor, op. cit., 45ss.).

 

É realmente necessário ser um alemão estúpido chamado Schmidt para não notar que um aumento salarial de 60% tem por contrapartida um aumento da carga de trabalho de mais de 370%. É claro que ainda havia espaço para várias reduções nas horas de trabalho, sem ter de interferir com a acumulação de capital como fim-em-si mesmo. Os "moinhos do diabo" tinham assim atingido uma nova qualidade – tinha-se tornado possível sugar um múltiplo de energia vital, e simultaneamente desviar a atenção dos produtores para os salários e o consumo de mercadorias, a fim de os anexar com maior segurança à máquina mundial da cabeça aos pés – uma perfídia diabólica, de facto. Henry Ford apenas teve de aplicar a "ciência do trabalho" de Taylor ao produto nuclear "certo" para tornar perfeita a Segunda Revolução Industrial. A sua nova fábrica de automóveis de Highland Park, em Detroit, avançou para se tornar o laboratório dos novos métodos. Uma sub-produção após outra foi analisada e reordenada, cada operação foi decomposta com precisão em sequências de movimentos. Ford descreve o processo de montagem da biela, por exemplo:

 

"Toda a operação é extremamente simples. O operário puxou a cavilha para fora do pistão, oleou-a, fez deslizar a haste na sua posição e a cavilha através da haste e do pistão, apertou um parafuso e desapertou o outro, e a coisa ficou feita. O capataz submeteu toda a operação a um exame minucioso, mas não descobriu porque ocupou três minutos completos. Por isso analisou os vários movimentos com um cronómetro, e descobriu que, num dia de nove horas de trabalho, quatro horas eram gastas a ir e vir. Os trabalhadores não se afastavam, mas tinham de andar para trás e para a frente para trazerem o seu material e empurrarem a peça acabada para o lado. Ao longo do processo, cada trabalhador tinha oito tarefas diferentes para executar. O capataz elaborou um novo plano, dividindo toda a operação em três tarefas, pôs um trenó na bancada, colocou três homens de cada lado, e um supervisor numa extremidade. Em vez de ser um homem a fazer todas as operações, ele agora executava apenas a terça parte – apenas o máximo possível sem se deslocar de um lado para o outro. O grupo de trabalho foi reduzido de 28 para 14 homens. A produção recorde dos 28 homens tinha sido de 170 peças por dia. Hoje, sete homens, trabalhando oito horas por dia, põem cá fora 2 600 peças por dia. É desnecessário, suponho eu, calcular a poupança!” (Ford, op. cit., 102s.).

 

Infelizmente, não é desnecessário apontar o que isto significa para os produtores. Qualquer pessoa que já tenha trabalhado numa fábrica sabe perfeitamente como são importantes as pequenas pausas e desvios quando se traz material, a troca de algumas palavras com pessoas de outra mesa de trabalho etc., a fim de encontrar elementos que "tornem as coisas suportáveis" no processo de produção alienado, por mínimos que sejam. Pelo contrário, o desespero de um processo determinado por ciclos de tempo, que prega os produtores aos seus lugares, empurra o material na sua direcção e exige incansavelmente os reduzidos movimentos das mãos, aumenta a agonia do trabalho até aos seus limites extremos – e mesmo esta nova qualidade de malícia benthamiana conseguiu ser ancorada como normalidade geral!

Métodos de reorganização da "ciência do trabalho" como os utilizados na montagem da biela já se encontravam no contexto de outra inovação na Ford: nomeadamente, a linha de montagem ou, como mais tarde foi chamada, a infame linha de fluxo. Este dispositivo não era, de modo nenhum, completamente novo. Ford tinha copiado notoriamente o princípio dos matadouros de Chicago; ele próprio diz que a sua linha de montagem "se assemelhava às trilhas deslizantes (utilizadas) pelos talhantes de Chicago no corte do gado" (op. cit., 94). Mas as linhas de montagem tinham sido comuns noutras áreas desde a viragem do século, tais como a produção de bebidas e a embalagem de alimentos. O famoso director de Hollywood, Frank Capra, filho de imigrantes pobres sicilianos da primeira geração, descreve vividamente nas suas memórias o trauma infantil de ter de assistir à desumanização da sua mãe na linha de montagem – muito antes dos dias de Henry Ford:

 

"Com os olhos de criança, olhei para a mamã. Ali ficou o dia inteiro de pé, sobre os seus pés cobertos de bolhas, e eu sabia que eles nunca iriam sarar; ficou o dia inteiro no vapor mal cheiroso da fábrica de azeite – dez horas por dia por dez dólares por semana – colando etiquetas com as mãos a voar nas latas que mecanicamente tirava de uma linha de montagem interminável: Latas, latas, latas que batiam ruidosamente, juntamente com o cacarejar de bruxa do chocalhar das correias transportadoras. Olhei para o rosto da mamã, para o seu rosto de camponesa forte, que agora brilhava humedecido com o esforço; ela acenou, acenou, acenou – um robô acorrentado ao ritmo de um monstro – e não ousou escovar o cabelo desgrenhado da testa, por medo de quebrar o feitiço daquela monotonia mortal" (Capra 1992/1971, 447).

 

A nova qualidade da linha de montagem na Ford, porém, foi que a produção em fluxo não se ficou por si só, mas foi incorporada no conceito global de racionalização da "ciência do trabalho" de toda a produção. Neste contexto, a linha de montagem móvel foi apenas um momento entre muitos outros, embora o próprio Ford tenha salientado a importância especial da montagem em fluxo, tal como Taylor não escondendo as palavras sobre a redução deliberada dos trabalhadores a um mecanismo sem vontade:

 

"O primeiro avanço na montagem foi movermos o trabalho em direcção aos trabalhadores em vez do contrário [...] As regras básicas seguidas na montagem são: 1. Dispor as ferramentas e os trabalhadores na ordem sequencial das operações, de modo que cada peça tenha de percorrer a menor distância possível durante o processo de montagem. 2. Fazer uso de corrediças ou outros meios de transporte para que, quando o trabalho estiver terminado, o trabalhador possa sempre colocar a peça em que trabalhou no mesmo local [...] 3. Fazer uso de linhas de montagem para que as peças a montar possam ser movimentadas para dentro e para fora dos espaços de trabalho. O resultado líquido destas regras básicas é uma diminuição das exigências de actividade de pensamento do trabalhador e uma redução dos seus movimentos ao mínimo. Se possível, ele tem de fazer uma e a mesma coisa com apenas um e o mesmo movimento [...] Por volta de Abril de 1913, fizemos a nossa primeira tentativa com uma linha de montagem. Foi na montagem de ímanes de volante [...] Antes, quando todo o processo de fabrico estava nas mãos de um único trabalhador, ele era capaz de completar 35 a 40 ímanes num dia de trabalho de nove horas, demorando cerca de vinte minutos por peça. Depois, o seu trabalho foi decomposto em 29 prestações individuais diferentes, reduzindo assim o tempo de montagem para 13 minutos e 10 segundos. Em 1914 elevamos a linha 20 centímetros, o que reduziu o tempo para sete minutos. Outros testes sobre a velocidade do trabalho a fazer reduziram o tempo de montagem para cinco minutos. Em resumo, o resultado é este: com a ajuda de experiências científicas, um trabalhador é agora capaz de executar quatro vezes mais do que há apenas alguns anos atrás" (Ford, op. cit., 93s.).

 

O resultado é praticamente o mesmo que o de Taylor com o seu estúpido carregador de ferro alemão: um aumento da produção de 300 a 400 por cento, espremido dos trabalhadores, dá a possibilidade de produção e consumo em massa de um novo tipo. Não foi, claro, apenas a "ciência do trabalho" (estudos do tempo e do movimento) de Taylor e a produção em linha por si sós que provocaram este "milagre". O método de produção da Ford também tornou possível incorporar numerosas máquinas-ferramentas novas, muitas das quais apenas tinham sido desenvolvidas na prática da produção em linha, no processo agora completamente controlado:

 

"O radiador é um assunto complicado e a soldadura exigia alguma perícia. Consiste em noventa e cinco tubos, e encaixá-los e soldá-los à mão era uma prova enfadonha de paciência e habilidade. Hoje em dia todo o trabalho é feito por uma máquina que em oito horas faz 1200 corpos ocos de radiadores; estes são passados por meios mecânicos através de uma fornalha, onde são soldados. Latoeiros e operários especializados tornaram-se supérfluos [...] Se for possível conseguir que uma máquina funcione automaticamente, é isso que se faz. Agora não acreditamos que nenhuma operação isolada esteja a ser definitivamente realizada da forma melhor e mais barata" (Ford, op. cit., 103s.).

 

Esta combinação de novas máquinas-ferramentas, máquinas automáticas e produção em linha já indicava o caminho futuro dos processos de produção industrial, que a dada altura tiveram de passar para a automação extensiva; enquanto o dispêndio de força de trabalho humana permaneceu o momento dominante, no entanto, cada nova máquina e cada passo na automação apenas serviu para comprimir ainda mais o desempenho do material humano: "Cada segundo necessário é-lhe concedido, nem mais um" (Ford, op. cit., 95). E o mesmo objectivo foi servido pela crescente normalização dos componentes dos produtos e modelos: já em 1909, as fábricas da Ford construíam apenas um carro, o famoso "Modelo T", que foi completamente estandardizado em todos os aspectos, abrindo assim mais reservas de produtividade. Ford comentou ironicamente: "O cliente pode mandar pintar o carro da cor que quiser, desde que seja preto" (loc. cit., 83). Foi apenas a combinação cada vez mais refinada de "ciência do trabalho", produção em linha, novas máquinas-ferramentas e normalização que tornou o modelo de produção da Ford imbatível, e estabeleceu esse novo paradigma industrial que, como todas as fases anteriores de desenvolvimento, em breve se tornaria a carne e o sangue da "classe operária automatizada".

Nesta objectificação do ser humano muito para além do anterior sistema de fábrica, com coerência lógica não só o tempo mas também o espaço é regulamentado e imposto com restrições – tal como aos ratos de laboratório. Não sem orgulho, Ford também descreve esta mecânica do "espaço racionalizado" no seu agregado científico de produção:

 

"Em cada operação é medida a quantidade exacta de espaço de que o trabalhador necessita; ele não deve, evidentemente, ser constrangido – o que seria um desperdício. Mas se ele e a sua máquina ocuparem mais espaço do que o necessário, isso também é um desperdício. Assim, acontece que as nossas máquinas são instaladas mais próximas do que em qualquer outra fábrica no mundo. Para um leigo, pode parecer que foram construídas em cima umas das outras; mas são construídas de acordo com métodos científicos, não apenas na ordem das várias operações, mas de acordo com um sistema que dá cada centímetro quadrado de espaço necessário a cada trabalhador, mas, se possível, nem uma polegada quadrada, e certamente nem um pé quadrado a mais. Os nossos edifícios fabris não estão dispostos como parques" (op. cit., 131s.).

 

Esta mania mesquinha de aproveitamento total, mesmo do último quantum de desempenho na estrutura capitalista do espaço-tempo, não desdenha nenhum potencial de desempenho humano que possa ser sugado, por mais pequeno que seja. Sem ter consciência disso, Ford não só repete as directivas de Bentham a um nível de desenvolvimento superior, mas também as considerações cínicas de um Mandeville, que já no século XVIII queria aproveitar arduamente até mesmo os cegos e os doentes, ainda que com palavras de boa consciência filantrópica da boca para fora – e com muito mais possibilidades de realização do que no capitalismo de dois séculos antes, uma vez que está agora disponível um agregado muito mais finamente organizado da "bela máquina":

 

"Há doentes e aleijados em toda a parte. Em geral, existe a opinião algo generosa (!) de que todos os incapazes de trabalhar fisicamente devem tornar-se um fardo para a sociedade [...] A pessoa cega ou aleijada, se colocada no lugar certo, pode realizar exactamente o mesmo trabalho e receber o mesmo salário que a pessoa completamente saudável [...] Este sistema económico de assistência e poupança pode ser ainda mais alargado. De um modo geral, considera-se como garantido que um trabalhador ferido é considerado inapto para o trabalho [...] Mas há sempre um período de convalescença, especialmente no caso de fracturas, durante o qual a pessoa em questão é bastante capaz de trabalhar [...] Fizemos experiências com pessoas acamadas (!) – com pacientes que conseguiam sentar-se direitos. Espalhámos cobertas pretas de oleado sobre a roupa da cama e pusemos as pessoas a apertar parafusos em pequenas cavilhas [...]" (loc. cit., 124ss.).

 

O princípio liberal-protestante da impiedosa "responsabilidade pessoal" de indivíduos irremediavelmente isolados pôde assim celebrar novos triunfos: quem não trabalha não come (só falta um pequeno passo para esboçar a consequência "racial-biológica" da aniquilação da "vida indigna de viver", formulada ao mesmo tempo que a filosofia industrial da Ford, no caso de uma completa "inutilidade" capitalista do material humano). E, impudentemente, está também implícito que a única forma de respeito próprio dos seres humanos deve consistir em servir o fim-em-si do monstro capitalista, e que só assim podem "ganhar" a vida. Uma tal mentalidade seria capaz de ter pessoas a "apertar parafusos em pequenas cavilhas" mesmo nos seus leitos de morte. Ford já nem sequer se preocupa minimamente em disfarçar a alienação de um tal processo de produção, com as suas torturas qualitativamente novas de compressão do desempenho, que até assombra os doentes e os deficientes graves com as suas imposições. Pelo contrário, esboça francamente um alegre programa de auto-alienação consciente, como convém a um "trabalho" adequadamente abstracto.

 

"As reuniões para proporcionar um bom entendimento entre personalidades ou departamentos individuais são completamente inúteis. Para se trabalhar de mãos dadas, não é preciso amarmo-nos uns aos outros. Demasiada camaradagem pode até ser nociva [...] Quando trabalhamos, temos de o fazer com seriedade; aproveitemos, então, também ao máximo. Não há qualquer utilidade em confundir uma coisa com outra. O único objectivo deve ser fazer um bom trabalho e ser bem pago [...] A nossa organização é tão detalhada e os vários departamentos tão interligados que é completamente impossível deixar as pessoas seguirem o seu caminho, mesmo temporariamente [...] Quase não há contacto pessoal entre nós – as pessoas fazem o seu trabalho e regressam a casa – uma fábrica não é um salão, afinal" (loc. cit., 107, 129ss.)

 

A franca infâmia do complexo Taylor-Ford pôde triunfar porque o material humano já estava demasiado esgotado e demasiado domesticado para poder rebelar-se fundamentalmente contra a nova qualidade da imposição que dificilmente se pensava ser possível, e não só. Na medida em que o salto na compressão do desempenho pela primeira vez tornou possível reduções de preços, aumentos salariais e uma certa redução das horas de trabalho, sem diminuir o objectivo capitalista, a relação do material humano sugado com os novos funcionários do seu vampiro sem sujeito tornou-se algo ambígua. Ford podia agitar a salsicha gorda de um inédito aumento de rendimento, cuja atracção transformou milhões de pessoas, por assim dizer, naquele primeiro alemão estúpido chamado Schmidt: parecia não haver alternativas, e no já exercitado curto horizonte temporal das relações capitalistas, o gozo instantâneo de gratificações na aparência exorbitantemente aumentadas podia fazer esquecer o preço em energia vital.

A primeira bomba socio-económica veio na Primavera de 1914, mesmo antes do início da guerra mundial na Europa: Ford anunciou que ia aumentar o anterior salário diário de 2,30 dólares para 5 dólares – por outras palavras, para mais do dobro. Ao mesmo tempo, anunciou para a sua empresa o início do dia de 8 horas, há muito exigido em vão pelo movimento operário, o que significava a semana de 48 horas, com 6 dias de trabalho semanais de 8 horas. Na década de 1920, introduziu mesmo breve e provisoriamente a semana de 5 dias; um padrão que só se generalizaria após a Segunda Guerra Mundial (e, mesmo assim, apenas em alguns países). Logo se verificou que o salário diário de 5 dólares não era universalmente válido, e que a semana de 5 dias foi rapidamente retirada. No entanto, a distância em relação aos padrões salariais e de tempo de trabalho anteriores era ainda tão grande que as inovações da Ford causaram confusão e quase uma espécie de frenesim, tanto entre os trabalhadores assalariados de todo o mundo como entre os gestores. Claro que Ford tinha todos os motivos para se apressar desta maneira: desde a introdução da linha de montagem em 1913, os trabalhadores tinham fugido dela em massa; a indignação com os seus métodos era grande, e muitos simplesmente não conseguiam suportar este "trabalho". Por outro lado, a produtividade e a compressão do trabalho, que tinham aumentado muitas vezes e de forma permanente, facilitaram a realização de tais avanços e ainda assim obtendo enormes lucros extra.

Claro que as criaturas da Ford sabiam que a sua vida estava a ser sugada. Em Detroit, gozava-se com os reis dos altos salários, porque as suas jovens esposas teriam de obter os prazeres do amor de outros homens, dado que os trabalhadores da Ford estavam demasiado apáticos para isso, mesmo no "longo" fim-de-semana. No entanto, a sedução do salário supostamente elevado permaneceu mais forte do que todos os escrúpulos e todo o raciocínio lógico: Os prazeres do consumo de mercadorias de valor mais elevado, apenas desfrutáveis a curto prazo em termos de história de vida, pareciam exercer uma atracção só comparável às promessas coloniais do passado – excepto que o objecto da nova colonização "interna", a um nível de desenvolvimento mais elevado, eram os corpos e os sentidos dos próprios trabalhadores assalariados atraídos.

E o carro, o monte de lata erótico e malcheiroso, tornou-se para a domesticada classe operária masculina assalariada uma sereia, mais bela e mais desejável do que todas as amantes humanas. Pois o sonho da própria mobilidade em máquinas de alta gama, até então um luxo das classes altas, estava agora realmente ao alcance do trabalhador comum da linha de montagem; pelo menos nos Estados Unidos. Ford não tinha prometido muito a este respeito. Não foi tanto o aumento dos salários, mas acima de tudo a redução abrupta dos custos de produção e a consequente queda abrupta no preço dos automóveis que fez deste "consumo de investimento" um consumo de massas pela primeira vez, naquele que já era o maior mercado interno do mundo. O aumento de produtividade da Ford na realidade lê-se nos áridos números como um conto de fadas. Enquanto a produção média anual de uma fábrica de automóveis convencional de dimensão comparável, antes da Primeira Guerra Mundial, não tinha sido superior a 15 000 automóveis, a fábrica da Ford em Detroit já tinha produzido nada menos que 248 317 automóveis no exercício financeiro de 1913/14, que podiam ser facilmente vendidos a preços correspondentemente reduzidos. E o aumento foi ainda mais longe: "Em 1925 tinha sido criada uma organização que produzia num único dia quase tantos carros como tinham sido produzidos num ano inteiro na história anterior do Modelo T" (Braverman, op. cit., 116).

Não admira que a estrela de Henry Ford se tenha erguido em breve por todo o mundo. A Ford Motor Company não floresceu só nos EUA, mas tornou-se – depois do império de armamento do Sr. Nobel – uma das primeiras grandes empresas internacionais com filiais também na Europa, não em último lugar na Alemanha. Sim, era realmente um conto de fadas, e um dos mais maléficos: pois, tal como no conto de fadas, as pessoas tinham começado, a um grau totalmente novo e superior, a vender as suas almas e a penhorar as suas vidas. A experiência do rato de laboratório nas frentes do grande matadouro de humanos tinha tido um sucesso admirável; o material humano estava pronto a trabalhar desalmadamente até à exaustão, a fim de obter ao som da campainha a tão desejada recompensa, sob a forma de uma barata mixórdia de consumo de mercadorias. Uma reportagem contemporânea sobre a República de Weimar descreveu sarcasticamente a nova qualidade do condicionamento nas fábricas da Ford em Berlim:

 

"O salário máximo é de 20 marcos por dia! Esta é a soma que numerosos trabalhadores à peça na indústria metalúrgica de Berlim recebem durante uma semana. Aqui reside o segredo por que os famintos trabalhadores metalúrgicos de Berlim se aglomeram na Ford, e lá se deixam degradar como autómatos de trabalho sem alma, pondo de lado toda a dignidade humana [...] O efeito deste sistema é mais bem visto durante o intervalo de meia hora para almoço. De mãos e caras todas sujas, todos correm a ritmo de marcha para a cantina de Westhafen, onde até os empregados de mesa já estão contagiados pelo sistema Ford. Nas mesas, os copos e talheres certos já se encontram nos locais certos. Enquanto as pessoas devoram as suas refeições, temos tempo para estudar as suas fisionomias. Existe um tipo Ford. Onde é que vimos aqueles rostos cinzentos em que o nariz, o queixo e as maçãs do rosto se destacam de forma pontiaguda, aqueles olhos febrilmente fixos e movimentos nervosos? Os alimentos são engolidos rapidamente. O resto do intervalo é apenas suficiente para fazer uma necessidade ou, fumando um cigarro, olhar fixamente para o espaço. Ninguém lê o jornal! 'Cadáveres da Ford', dizem os trabalhadores de Westhafen [...] (Diz um trabalhador da Ford): Estava antes na Neue Automobil Gesellschaft, ganhava uns escassos trinta marcos por semana como perfurador, foi despedido por 'falta de trabalho'. Durante três trimestres de um ano ficou fora até que, através de um conhecido, conseguiu entrar no paraíso Ford. Agora está no sétimo céu! Já pagou as dívidas, comprou um fato, a mulher e os filhos têm algo para o Inverno. Pode-se pagar alguma coisa, meio quilo de carne picada todos os dias – 'mas é preciso ter isso também', acrescenta, 'de outro modo não se consegue aguentar o serviço' [...] Ele costumava ser política e sindicalmente organizado, [...] agora abandonou tudo. A sua mulher cuida da leitura do jornal para ele [...] 'Fico satisfeito se me puder deitar durante uma hora quando chego a casa!' [...] Quando lhe perguntam por quanto tempo pretende continuar com isto, ele encolhe os ombros. ‘Por enquanto, estou a resistir. Eu também não teria durado muito no desemprego. Mas, meu Deus, tenho de ir a correr!' – Foi-se embora. Num momento, a sala ficou completamente vazia. E à medida que os vemos a sair a toda a pressa, lembramo-nos de onde já vimos antes rostos como aqueles. Na batalha do Somme, após uma barragem de fogo de 30 horas!" (citado de: Abelshauser et al. 1985, 48s.).

 

 

Original Henry Ford und die Geburt der Auto-Gesellschaft, pags. 205-217 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (2.2021).

Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

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