O Livro Negro do Capitalismo
Capítulo 6
História da Segunda Revolução Industrial
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Secção 4
Crise económica mundial
Quase parecia que os anos vinte já estavam a dar à luz a nova época de um capitalismo mundial de produção e consumo de massas. A sedução do "socialismo branco" de Ford reflectiu-se numa incipiente cultura comercial de massas, que em muitos aspectos parecia ser uma antecipação do capitalismo ocidental do pós-guerra. De certo modo, o material humano "derretido" nas frentes da grande guerra começou nos "loucos anos vinte" a ensaiar em si próprio a nova roupagem, como homem da mercadoria totalmente capitalista. A atitude e o sentido da vida, a moda e os novos media produziram um espírito do tempo "de cultura técnica" profundamente capitalizado, e começaram a "modernizar" a vida quotidiana como um terreno quase sem falhas de valorização do capital, até aos poros e nichos de intimidade – pelo menos numa primeira grande tentativa. A par do automóvel, como elemento estrutural central da Segunda Revolução Industrial, o início dos novos meios de comunicação do cinema (a primeira longa-metragem em 1919, o primeiro filme sonoro em 1928) e da rádio causou sensação. Em 1923, a "rádio de entretenimento" geral foi introduzida na Alemanha, com apenas 1500 assinantes na altura; em 1928, já existiam 2,5 milhões de ouvintes.
Mas a nova religião do consumo apenas se agarrou à consciência social como um fino verniz. Isto não se deveu apenas, e nem sequer principalmente, à imperfeição técnica e ao alcance relativamente limitado das novas formas de produção de massas, consumo de massas e cultura comercial de massas. Em vez disso, à convulsão estrutural da Segunda Revolução Industrial sobrepôs-se a maior e mais devastadora crise de transformação socioeconómica até à data. Semelhante à transição para a Primeira Revolução Industrial cem anos antes, apenas com um poder de penetração consideravelmente mais forte e a numa escala muito maior (pela primeira vez verdadeiramente global), a crise económica mundial deitou abaixo todas as esperanças consumistas, por mais miseráveis, adaptadas e capitalistamente domesticadas que possam ter sido; o apogeu do consumo maciço fordista, em todo o caso breve, só esteve realmente na ordem do dia décadas mais tarde.
As causas da devastadora crise económica mundial no período entre guerras têm sido muito confundidas pelos ideólogos e teóricos do sistema de produção de mercadorias. No entanto, uma vez que os fundamentos categoriais do modo de produção capitalista são axiomaticamente pressupostos em toda a ciência oficial como "fundamentos naturais da sociedade", ou seja, não são objecto de discussão crítica (e foram mantidos pelos socialistas ou comunistas de modo apenas moderadamente diferente), este debate não podia deixar de ser tão superficial como todos os anteriores, mesmo que não fosse inconsequente. De facto, a catástrofe social da transformação da Primeira Revolução Industrial repetiu-se no essencial; embora numa escala de desenvolvimento muito superior, e daí também num sistema de referência diferente.
Ainda assim era a mesma inconciliável autocontradição interna do capitalismo que nunca poderia ser ultrapassada e que se encaminhava agora para um novo ponto culminante de crise: a sempre igual contradição entre o fim-em-si de acumular "quanta de trabalho" abstracto, por um lado, e o impulso forçado pela concorrência para tornar o "trabalho" supérfluo, por outro. Uma vez que a lógica desta contradição não tinha sido abolida pela sua liquefacção como sistema de bola de neve industrial, mas sim dinamizada, este sistema dinâmico de processamento cego, de acordo com a sua lógica interna, teve de continuar a dirigir-se para o colapso, que já se tinha anunciado repetidamente, em grandes crises e catástrofes parciais e temporárias na sua história anterior de ascensão. Se a dinâmica de expansão foi abrandada para um ritmo lento durante a "grande depressão" ou crise da época dos fundadores entre 1873 e 1890, dando origem a presságios de uma nova catástrofe, o pior que se podia imaginar tornou-se agora realidade no período entre guerras: o sistema de bola de neve desmoronou-se completamente, e à primeira "catástrofe seminal do século XX" político-militar seguiu-se a segunda económica.
Como foi possível, embora o fordismo parecesse, em princípio, ter resolvido o problema básico de uma nova qualidade e quantidade de consumo de massas através do "meio de investimento de consumo", o automóvel, e de um sugar multiplicado do material humano? "Em princípio", porém, de modo nenhum significa na pesada realidade social. Para um revolucionamento tão profundo no sentido de uma sociedade plenamente capitalista, era necessário um longo período de incubação. A Primeira Revolução Industrial e as suas indústrias de base tinham-se esgotado como veículos para uma maior expansão; esta época tinha sido finalmente encerrada pela guerra mundial e, de facto, abruptamente interrompida. O fordismo, no entanto, não poderia seguir sem problemas, pelo menos não imediatamente, em todo o mundo e a nível de toda a sociedade – nem mesmo nos próprios EUA.
Como sistema, a nova forma do modo de produção capitalista só se tinha generalizado e quase universalizado no debate teórico, no espírito do tempo e nas crescentes imaginações tecnoculturais do consumo de massas de mercadorias de alta qualidade, mas não na prática social. Para a grande maioria, os novos princípios fordistas eram apenas um horizonte de futuro, para o qual se moviam cautelosamente. A construção de estradas, o fornecimento de energia, as redes tecnológicas para os novos meios de comunicação e o automobilismo, por exemplo, estavam muito atrás dos métodos de produção da Ford, e os custos de investimento necessários para a sociedade no seu conjunto não puderam ser cobertos com rapidez suficiente, nem pelo sector privado nem pelos Estados esgotados com os custos da guerra. Por último, mas não menos importante, o fordismo precisava de um mercado mundial em funcionamento e de uma interdependência internacional mais ampla, a fim de poder explorar com flexibilidade as capacidades de uma indústria completamente racionalizada através de mercados mundiais de vendas, em vez de se limitar aos mercados domésticos nacionais. Mas foi precisamente a este respeito que as consequências da guerra estragaram os planos: o mercado mundial tinha diminuído drasticamente em comparação com o período anterior à guerra e não estava a recuperar assim tão rapidamente; as redes de comércio externo foram rompidas. Além disso, a desconfiança mútua estava demasiado enraizada, de modo que os sonhos de auto-suficiência económica nacional se tornaram influentes em termos de política económica. As fábricas estrangeiras de Henry Ford continuaram a ser casos excepcionais. O próximo grande impulso da globalização capitalista estava para vir décadas mais tarde.
Assim, abriu-se um "desfasamento" entre as inovações fordistas-tayloristas nos escalões superiores das novas indústrias e a implementação do fordismo na sociedade como um todo, que no entanto era um pré-requisito para o sucesso imediato da Segunda Revolução Industrial. Na medida em que os novos modelos de racionalização já se tinham instalado na vanguarda da indústria fordista, sobretudo nas próprias fábricas da Ford, não produziram, no entanto, o impulso esperado do novo dinamismo industrial, através de uma coerência de produção de massas, rendimento de massas e consumo de massas, mas produziram, pelo contrário, a rápida "libertação" de força de trabalho; se não directamente nas empresas fordistas, pelo menos desde logo através da concorrência de substituição na maior parte da indústria ainda não racionalizada. A este respeito, a racionalização fordista, na medida em que já tinha sido realizada, teve um efeito estrutural tão ruinoso como a máquina a vapor e o tear mecânico na Primeira Revolução Industrial. Pela primeira vez, a palavra-chave "desemprego tecnológico" fez carreira. Juntamente com a estagnação das antigas indústrias e a saturação dos seus mercados (sempre de acordo com critérios capitalistas de poder de compra, claro), foi assim libertada uma dinâmica de crise que já não podia ser controlada.
O facto de esta dinâmica de crise ter podido aumentar até ao ponto da catástrofe económica aberta, embora o factor de desemprego da racionalização não produzisse de modo nenhum efeito em tão grande escala, pode também ser explicado pela mudança do próprio sistema de referência capitalista, que, em certa medida, desenvolveu um "efeito de alavanca", através do qual a crise teve de aumentar. Por um lado, tratava-se simplesmente da "valorização" capitalista avançada de toda a reprodução social: embora ainda não fosse abrangente e total, o sector capitalista tinha-se expandido significativamente desde finais do século XIX, e o sector não capitalista no campo, em particular, tinha continuado a declinar. Isto significava que a crise capitalista poderia ser absorvida em muito menor grau do que, por exemplo, na "grande depressão" da época dos fundadores por um "regresso ao campo", pela produção de subsistência para as próprias necessidades, ou pelo menos pela assistência correspondente através de relações de parentesco ainda em funcionamento entre a população rural e a população urbana-industrial. Entretanto, não só a massa da população industrial urbana enormemente aumentada já não estava em qualquer relação correspondente com a população rural, quer em termos de laços pessoais quer puramente numéricos, mas também o carácter cada vez mais capitalista da própria agricultura (mesmo das economias camponesas de menor dimensão, para além dos latifúndios agrícolas), que estava cada vez mais orientada para o mercado mundial, tornava o campo ineficaz como "pára-choques" da crise. Assim, por exemplo, o movimento do "agrarianismo" no sul dos Estados Unidos, que procurou resolver o problema do desemprego nas décadas de 1920 e 1930 com o slogan "Back to the land!", permaneceu praticamente insignificante (Mattick 1969/1936).
Por um lado, a quota do trabalho capitalista tinha aumentado acentuadamente desde o final do século XIX; por outro lado, contudo, a quota do trabalho feminino não tinha aumentado de forma correspondente, e tinha enfraquecido de novo acentuadamente após a guerra mundial. Este contexto também produziu uma segunda alavanca de agravamento da crise: Não só o apoio rural e da economia de subsistência caiu em grande parte como posição de recurso, como de cada posto de trabalho industrial dependia agora o sustento de mais pessoas do que no passado. No conjunto, portanto, o enorme peso do sector capitalista alargado teve um efeito logicamente agravante na crise: quanto mais o capitalismo determinava a reprodução social, maior e mais irresistível tinha de ser a força da crise, que nas suas consequências também se repercutiu directamente no terreno do próprio capitalismo. Diferentemente da devastadora catástrofe de transformação da Primeira Revolução Industrial, agora já não foi a existência dos produtores artesanais pré-capitalistas que foi destruída, mas a das próprias massas de trabalhadores industriais.
A esta dinâmica interna da crise juntaram-se, naturalmente, os encargos e consequências da guerra, que o desastre da primeira "catástrofe seminal" do século XX tinha deixado para trás e que só agora se começavam a repercutir plenamente na economia; e não apenas através da contracção do comércio internacional. Contudo o factor das consequências da guerra, no seu conjunto, não pode ser interpretado como "extra-económico", no sentido de que a grande crise pode não ter tido nada a ver com as leis funcionais capitalistas e as suas autocontradições. Às consequências da guerra aplica-se o mesmo que já teve de ser dito para a preparação da guerra na política de armamento: não foram apenas os próprios liberais, no sentido ideológico, que elaboraram conceptualmente e armaram o imperialismo; pelo contrário, a guerra mundial tinha emergido precisamente da "continuação da concorrência por outros meios" entre as economias nacionais capitalistas. A lógica da concorrência tem sempre um lado político. A este respeito, a guerra mundial e as suas consequências estavam em muitos aspectos interligadas com a economia capitalista e as suas contradições, de modo que a "economia da morte", com as indústrias de armamento, a concorrência imperial e depois também os custos da batalha do material, tem de ser considerada parte integrante do modo de produção capitalista; para além do facto de que esta, até então a mais violenta de todas as guerras, tinha, estruturalmente e em termos da história das mentalidades, aberto literalmente a tiro a brecha para a Segunda Revolução Industrial. A guerra industrial mundial tinha engolido recursos tão enormes que, passados apenas alguns meses, já não podiam ser financiados a partir das receitas regulares do Estado (impostos e taxas) em qualquer dos países em guerra. Medido em relação ao poder de compra da época, era uma soma inimaginável que tinha de ser angariada:
"O custo directo da guerra para todos os países beligerantes foi de cerca de 260 mil milhões de dólares, dos quais para os aliados 176 mil milhões [...] A magnitude da despesa total pode ser aferida a partir do facto de que esta ascendeu a 6½ vezes a soma das dívidas nacionais de todo o mundo desde o final do século XVIII até ao início da Primeira Guerra Mundial (!) [...]" (Aldcroft 1978, 46).
O dilema monetário, que anteriormente só se tinha anunciado em menor escala à medida do financiamento dos programas da marinha de guerra através de empréstimos governamentais, cresceu em proporções imensas como resultado dos custos da grande guerra. A consequência foi uma medida no domínio da ordem monetária que era tão inevitável como drástica: a fixação das moedas, desde o século XIX exclusivamente ao ouro, teve de ser cortada. Nos primeiros meses da guerra, foram feitas tentativas para adiar esta intervenção, por exemplo na Alemanha, através da campanha "Eu dei ouro por ferro", na qual cidadãos patrióticos ofereceram os seus tesouros privados de ouro, incluindo alianças de casamento, à máquina de guerra e aos seus moinhos de sangue. Mas isto não foi mais do que uma gota de água no oceano. Assim, o caminho do empréstimo e do crédito governamental tinha de ser inscrito numa escala até então desconhecida. Nos quatro anos da guerra, só o Reich alemão emitiu nove títulos de guerra, no valor de quase 100 mil milhões de marcos. Os outros Estados beligerantes procederam de modo semelhante. Com a promessa de juros sobre estes títulos de guerra, os Estados endividaram-se a tal ponto perante os seus cidadãos que no final da guerra estava criado um enorme "represamento monetário" (Blaich 1985, 34).
Mas isso não foi suficiente. Mesmo os monstruosos empréstimos estatais estavam longe de ser suficientes para financiar a máquina de guerra industrial. Assim, os Estados recorreram a novos truques para poderem expandir a criação de dinheiro até ao infinito. No Reich alemão, por exemplo, foi o estabelecimento das chamadas caixas de crédito, que já tinha sido decidido por lei a 4 de Agosto de 1914, e que deveriam cobrir a crescente procura de crédito através da emissão de "bilhetes das caixas de crédito" contra a penhora de bens e, acima de tudo, de títulos. Embora estes bilhetes não tivessem qualquer função monetária oficial, eram utilizados como dinheiro.
Deste modo, foi injectado no ciclo económico dinheiro ou quase dinheiro que não tinha sido "ganho" regularmente através da produção capitalista, mas que tinha sido criado do nada pelo Estado. Este dinheiro feito aparecer por magia podia agora, por sua vez, gerar produção e, assim, rendimentos monetários adicionais, por exemplo, quando os trabalhadores do armamento pagos compravam alimentos com ele, ou os créditos com ele "cobertos" (através do poder de criação de dinheiro inerente ao sistema bancário) se tornavam a base de mais créditos. Como o ponto de partida já era fictício, os processos subsequentes também não tinham "chão debaixo dos pés". Tal reacção em cadeia de processos irregulares de criação de dinheiro tem a sua razão final no facto de os "custos gerais" sociais, incluindo os custos do armamento e da guerra, bem como os gastos sociais para a reprodução capitalista, aparecerem como meros factores de custo. É uma questão de mero consumo social, que já não regressa ao processo capitalista de valorização, mas "extingue-se como valor de uso" (como Marx tinha descrito o carácter do consumo pré-capitalista de mercadorias num sentido diferente), mesmo que este "valor de uso" consista na destruição e mutilação de seres humanos – sendo que a economia do valor abstracto, como "segunda natureza", é tão cega como as leis da "primeira natureza". Em termos capitalistas, o consumo militar é um factor que não reaparece na acumulação de capital, mas num certo sentido "desaparece" e, portanto, apresenta-se como não mais do que um oneroso factor de custo. No entanto, é uma componente necessária da reprodução capitalista, "necessária", é certo, apenas no sentido do carácter irracional de toda a organização. A perversa ironia é que, em termos puramente económicos, o maior amor do liberalismo pelo leviatânico consumo armamentista e repressivo é, de acordo com as leis da "bela máquina", em última análise tão negativo para o sistema como o mal-amado consumo social.
No longo período de paz e armamento desde 1871, este negativo carácter de custo do complexo militar-industrial pôde permanecer oculto; enquanto o crédito estatal para o consumo de armamento não excedeu uma "massa crítica", chegou mesmo a ser um factor de crescimento positivo (com o potencial de crise adiado para o futuro), tanto em termos de "emprego" como de lucros comerciais na indústria de armamento. No entanto, quando o "valor de uso" militar foi realizado e os custos da batalha do material de quatro anos dispararam para alturas astronómicas, o sistema foi apanhado pela sua própria lógica, e o aumento irreal da antecipação de receitas futuras pela máquina de dinheiro estatal teve de aparecer em termos reais como um factor de crise maciça. Após um período de incubação de vários anos, os lucros económicos exorbitantemente crescentes da indústria de armamento, alimentados por uma criação de dinheiro estatal que foi completamente desacoplada do processo económico global do capital, repercutiram sobre todo o sistema capitalista como uma crise monetária, que se fundiu com os outros elementos de crise e tanto intensificou como acelerou a dinâmica de crise do período entre guerras.
Que este potencial de crise tinha de aparecer ao nível do próprio dinheiro é óbvio: a criação desacoplada de dinheiro em grande escala, sem "cobertura" pela acumulação real capitalista, só poderia levar a uma desvalorização do próprio dinheiro – um processo chamado inflação. A inflação ocorre nos preços das mercadorias, mas não directamente de acordo com a lei de mercado da oferta e da procura, como um aumento da procura devido ao rendimento capitalista real "merecido". Para ser mais preciso: a procura adicional é paga com dinheiro "criado" a partir do nada económico, o que após algum tempo tem de reflectir-se na desvalorização deste dinheiro e, portanto, na inflação dos preços. Num certo sentido, isto é a criação de "capital fictício" pelo Estado, semelhante à onda especulativa de subida irreal dos preços das acções ou dos imóveis ao nível do capital privado. Em ambos os casos, o resultado é um choque de desvalorização, mas de formas opostas: O "capital fictício" privado é desvalorizado pelo crash (a queda dos preços das acções e/ou dos imóveis), e o "capital fictício" governamental é desvalorizado pela desvalorização geral da moeda (aumento inflacionário dos preços das mercadorias). Seja como for, ambos os casos envolvem sempre a destruição de grandes activos monetários; no caso da queda da bolsa de valores, a destruição de irrealistas "activos em bolha", no caso da inflação, a destruição de activos monetários originalmente "reais" (capital monetário, poupanças, etc.) através da desvalorização geral do dinheiro.
As inflações (bem como os crashes financeiros especulativos) já tinham ocorrido várias vezes na história capitalista; por exemplo, sob a forma dos chamados "assignats" durante a Revolução Francesa, ou do dólar de papel durante a guerra civil dos EUA em meados do século XIX. Em cada caso, a causa foi uma criação estatal de dinheiro desacoplado da economia real do sistema de produção de mercadorias (os "assignats" franceses, por exemplo, eram em princípio algo bastante semelhante aos "bilhetes das caixas de crédito" do Reich alemão); e, em cada caso, este procedimento servia para financiar armamentos e guerras que não eram cobertos pelas receitas regulares do Estado. Mas estes "custos mortos" do sistema em estado de guerra, na batalha industrial do material com o seu "laminador da frente", foram muitas vezes além de todos os custos de guerra anteriores, e não só; ao mesmo tempo, a consequência inflacionista teve de atingir a reprodução social muito mais dura e profundamente do que qualquer inflação anterior, porque dependia directamente do dinheiro uma parte muito maior da vida do que em fases mais antigas do desenvolvimento do sistema.
Na economia de guerra "socialista de Estado" a inflação pôde ser inicialmente contida. Mas, depois do fim da guerra, ela eclodiu ainda mais violentamente. Por um lado, a criação de dinheiro desacoplado reapareceu como poder de compra irregular sob a forma de salários e lucros da indústria de armamento, da logística militar, etc. Por outro lado, o reembolso e os juros dos empréstimos de guerra também apareceram como poder de compra adicional, que só foi realmente alimentado após o fim da guerra, uma vez que o Estado financeiramente arruinado procurou pagar as enormes dívidas aos seus cidadãos (e em parte também em países estrangeiros "amigos") através do arranque sem restrições da impressão de notas, a fim de manter o aspecto de um sistema de crédito organizado. Em contraste com isto houve um fornecimento drasticamente reduzido de bens civis (ao ponto de uma escassez de alimentos essenciais) devido aos encargos da guerra.
É claro que se podia saber de antemão que jogo se estava a jogar. Mas, sob a impressão da guerra industrializada, havia pouca consciência do problema. Além disso, todos esperavam que, como vencedores, pudessem transferir os custos da guerra para os vencidos. De facto, a Alemanha, que foi um dos belicistas mais agressivos e cuja política naval tinha desempenhado um papel importante na causa da constelação da guerra, foi obrigada a pagar enormes reparações no tratado de paz de Versalhes, mas estas nunca foram pagas na totalidade devido à crise económica e, apesar do seu montante, de qualquer modo não poderiam ter compensado os custos de guerra das potências ocidentais vitoriosas.
Assim veio o que tinha de vir: o "represamento monetário" transformou-se numa inundação de dinheiro irregular, que varreu a sociedade e fez subir os preços das mercadorias cada vez mais rapidamente. A crise inflacionista do dinheiro, esquecida mesmo pelos economistas no decurso do século XIX com a geral fixação das moedas ao ouro, dominou quase toda a Europa e outras partes do mundo; muito menos os Estados Unidos, que foram capazes de regressar ao padrão-ouro com relativa facilidade. Enquanto antes da guerra os EUA tinham tido quatro mil milhões de dólares de dívida externa, a relação inverteu-se agora na mesma escala; Inglaterra e França, em particular, tinham sido forçadas a pedir emprestado ao arrivista histórico para material de guerra e financiamento da guerra. O resultado foi que quase todas as outras moedas também sofreram enormes perdas no seu valor externo em relação ao dólar, que assim fez o seu primeiro ensaio para desempenhar o papel de nova moeda de reserva global. No entanto, mesmo os EUA não foram inteiramente poupados à inflação, que foi, ainda assim, consideravelmente mais elevada entre as "potências vitoriosas" europeias:
Pico da desvalorização monetária pós-guerra entre as principais potências ocidentais (medido pelo índice de preços por grosso, 1913=100)
Grã-Bretanha |
França |
EUA |
307 (1920) |
584 (1925) |
226 (1920) |
(Fonte: Ott/Schäfer 1984, 225)
A inflação entre os perdedores da guerra foi muito mais dramática. A Alemanha, imoderada como sempre, estabeleceu um recorde mundial absoluto que não foi igualado até hoje. Em poucos meses, entre 1922 e 1923, quase duas mil impressoras de notas derramaram uma avalanche de papel-moeda no país. Os preços subiram para dimensões grotescas. O termo "hiperinflação" foi cunhado para esta desmedida desvalorização do dinheiro, um processo que em dimensões um pouco menores mas ainda altamente potenciadas também afligiu os outros perdedores da guerra, e especialmente na Europa de Leste:
"No final deste processo os preços tinham aumentado 14 mil vezes na Áustria, 23 mil vezes na Hungria, dois milhões e meio de vezes na Polónia, quatro mil milhões de vezes na Rússia, e um bilião de vezes na Alemanha, em comparação com a base anterior à guerra" (Aldcroft 1978, 161s.).
O resultado, evidentemente, foi uma ruptura completa do sistema monetário. A profunda irracionalidade do capitalismo irrompeu na sua sagrada forma básica, expondo ao ridículo o fetichismo deste sistema social. Como num conto de fadas maluco, de repente todos se tornaram milionários e multimilionários, mas arruinados precisamente por causa disso. Um pãozinho custava milhares, por fim milhões e milhares de milhões de marcos. No auge da inflação, o dinheiro era desembolsado e transportado em carrinhos de mão. Esta catástrofe da forma do dinheiro levou as autoridades, empresas e particulares a um comportamento correspondentemente insano, para escapar às consequências da sua própria socialidade que se tinha tornado independente e fora de controlo:
"Fenómenos grotescos acompanharam a inundação crescente de papel-moeda. Os operários, empregados e funcionários públicos começavam agora também a fugir para bens corpóreos. Uma vez que os bens imobiliários, pacotes de acções e jóias não lhes eram acessíveis, eles contentavam-se com alimentos e mercadorias duráveis [...] Após o pagamento dos salários, o processo de trabalho era interrompido na maioria das fábricas. Carregados com maços de notas, os trabalhadores apressavam-se a entrar nas lojas circundantes para comprar qualquer mercadoria, antes do próximo aumento de preços que tornaria os salários inúteis. Como em tempo de guerra, longas filas formadas em frente das lojas [...] O comércio retalhista tentou armar-se contra a diminuição do poder de compra do dinheiro em papel, ajustando o nível dos seus preços de venda de acordo com a relação cambial entre o marco e o dólar dos EUA. Quando o 'câmbio do dólar' mudou várias vezes por dia no Outono de 1923, os preços nas lojas e restaurantes foram também frequentemente ajustados em conformidade [...] Portanto, podia acontecer que uma chávena de café, cujo preço tinha sido de 5000 marcos quando encomendada, já custasse 8000 marcos quando o empregado trazia a conta [...] Nas zonas rurais [...] regressava-se à troca primitiva em espécie. A corporação de barbeiros de Ochsenfurt am Main, por exemplo, decidiu cobrar dois ovos por uma barba e quatro ovos por um corte de cabelo. A paróquia em Pegnitz, Franconia, cobrava dez ovos por um simples enterro sem bênção. Para um funeral da primeira classe, com elogio ou sermão, os familiares do falecido tinham de pagar ao padre 40 ovos. Finalmente, a troca de bens naturais fez o seu caminho para a grande cidade. Uma ida ao cinema custava agora dois briquetes [...] e o médico ou o advogado preferiam aceitar uma garrafa de vinho ou uma libra de manteiga como honorários em vez de um maço de papel-moeda [...]" (Blaich 1985, 12ss.).
Mesmo nos "países vitoriosos" da Europa Ocidental, onde a inflação não foi de modo nenhum tão extrema como na Alemanha, Áustria e Europa de Leste, a crise do dinheiro marcou profundamente a vida quotidiana. Especialmente em França, que viveu o auge da crise inflacionista e ainda mais o declínio do franco no seu valor externo em relação ao dólar apenas em 1925/26, a ruptura do sistema monetário fez-se sentir na consciência das massas, como notou um observador contemporâneo:
"Qualquer merceeiro se punha a considerar o efeito da taxa de câmbio no café, qualquer estenodactilógrafa estava a tentar abrir uma conta poupança num país com o padrão-ouro. Não é possível exagerar a medida em que as amplas massas se preocupavam com tais questões. O preço do dólar era o tema de conversa em cada esquina, e dificilmente se podia fazer uma compra sem discutir de algum modo a taxa de câmbio [...]" (citado em: Aldcroft 1978, 172).
O nível de vida das massas, na sua maioria já próximo do mínimo de subsistência sob a anterior dominação do capitalismo e empurrado ainda mais para baixo pela guerra, permaneceu em grande parte num estado de miséria. Especialmente na Alemanha, a autodestruição do dinheiro, com condições de produção capitalistas ainda em vigor, ameaçou levar à catástrofe aberta da fome nas grandes cidades, porque os camponeses se recusavam cada vez mais a fornecer alimentos em troca de dinheiro sem valor e, por outro lado, a troca em espécie entre a cidade e o campo só podia funcionar de forma limitada; por exemplo, sob a forma de "um piano contra a entrega das ‘batatas para o Inverno’ [...]" (Blaich, loc. cit., p. 15). O nível de vida das grandes massas, naturalmente, não foi além do conhecido padrão da batata na crise monetária. Nas memórias de um ex-mineiro encontramos a velha e cansativa cantiga sobre isto:
"A miséria geral cresceu imensamente! O valor do marco tinha atingido um mínimo que já não podia ser ultrapassado. Recebíamos salários em biliões, com os quais mal conseguíamos comprar as necessidades da vida quotidiana. Um pão custava um bilião e meio de marcos! A amargura entre os trabalhadores assumiu formas ameaçadoras. Foi reportado o saque de mercearias em todas as cidades do Ruhr [...] Esta semana [...] as minas foram finalmente encerradas [...] Desempregado – nunca tinha adivinhado o que isso significava! Eu tinha pensado que o desemprego era um mal muito desagradável, mas afinal um mal suportável, uma vez que se recebia apoio [...] Recebemos apoio, mas que apoio! Uma vez por semana, em certos locais, realizava-se o pagamento. Nós, como moradores na casa dos solteiros, como tínhamos o almoço e o jantar entregues, recebíamos dois biliões e meio por semana. Um pão custava um bilião e meio, e para o bilião restante podíamos simplesmente comprar algo para barrar, compota, ou coisa do género. Isso teria sido suportável se os alimentos na casa dos solteiros tivessem sido satisfatórios. Ao meio-dia não havia [...] carne, mas apenas um monte de batatas meio podres com um sabor desagradável e adocicado e um pouco de couve para acompanhar. À noite, uma sopa aguada, que deitamos abaixo como água, sem a menor sensação de saciedade! Quatro ou cinco dias nesta dieta, e sentimos uma eterna sensação de fome, um ardor nas entranhas [...] Com saudade esperávamos o dia de pagamento do subsídio de desemprego [...] Apressei-me imediatamente a ir a um padeiro para comprar algum pão. Quando chegámos à casa dos solteiros, todos comeram avidamente. Alguns devoraram todo o seu pão ao mesmo tempo e depois tiveram de vomitá-lo, enquanto outros bebiam todo o seu dinheiro para fugir à miséria durante algumas horas! Normalmente comia meio pão para desfrutar conscientemente do estado de saciedade pelo menos um dia por semana [...]" (citado de: Abelshauser/Faust/Petzina 1985, 50ss.).
O efeito de "melhoria do bem estar" da maravilhosa economia de mercado – mais uma vez em plena acção, desde o padrão das cascas de batata até ao padrão das batatas podres! E estas não eram de modo nenhum condições excepcionais de uma população socialmente marginal de miséria (o que já seria escandaloso), mas sim o destino das massas. Acima de tudo, porém, já não eram apenas os estratos inferiores do material humano capitalista nas fábricas e favelas que eram afectados, mas também os estratos da pequena e média burguesia. A destruição de uma grande parte do património monetário burguês levou a uma ruína de massas sem precedentes dos estratos e meios de classe média até então "apoiantes do Estado":
"Um saldo bancário de 60 000 marcos, cujo rendimento em juros ainda possibilitava uma vida confortável na reforma em 1913, [...] em Agosto de 1923 já nem sequer era suficiente para comprar um jornal diário [...] Os reformados que já não podiam trabalhar ou que já não conseguiam encontrar emprego viram-se forçados a vender os bens pessoais, tais como mobiliário e objectos domésticos, pinturas, joalharia, porcelana ou a 'prata da família' ao interesseiro mais próximo [...] A impressão de notas empurrou impiedosamente estes cidadãos, outrora ricos e altamente respeitados, para o estatuto de beneficiários da assistência social, que tinham de se juntar à fila em frente da 'cozinha de emergência' municipal se quisessem receber uma refeição quente [...]" (Blaich 1985, 16s.).
Os "interesseiros mais próximos" eram os especuladores que começavam a surfar as ondas da crise do dinheiro. A inflação, com os seus efeitos perturbadores, mais uma vez, como tantas vezes na história das crises capitalistas, catapultou o tipo de pessoa de cavaleiro da fortuna e chico-esperto. Enquanto as massas e grandes secções da classe média se tornavam indigentes, uma pequena camada de ganhadores da crise especuladores estendia a exibição obscena da sua riqueza feita de ar; e foi precisamente esta camada de novos-ricos que, no meio da miséria de massas, foi capaz de realizar os primórdios do "consumismo" tecnocultural na maior medida possível, e determinou as imaginações do espírito do tempo.
Mas em parte nenhuma havia uma alternativa emancipatória ao insano sistema capitalista; os partidos socialista e comunista estavam e permaneceram ligados às categorias capitalistas básicas. Em vez disso, o ressentimento, os baixos instintos e as explicações irracionais da crise floresceram como numa estufa. O resultado não foi uma crítica emancipatória dos fundamentos do modo de produção capitalista, mas uma populista "caça aos especuladores" em todo o espectro partidário.
Especialmente na Alemanha, com a sua tradição, a mistura de medo da crise, projecções fantasmagóricas e caça aos especuladores despertou o velho e profundo demónio do anti-semitismo. Como tinha sido o caso durante a grande crise de transformação da Primeira Revolução Industrial nos motins Hep-Hep, e durante a grande depressão da época dos fundadores no movimento anti-semita com os seus pogroms, assim agora novamente a maré de anti-semitismo furioso estava a subir; e desta vez, de acordo com a dimensão muito maior da crise, estava a inundar o sistema político. Pela primeira vez na história da modernização, surgiu um movimento de massas radical de direita com uma autolegitimação fundamentalmente anti-semita, sob a forma do "Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães" (NSDAP), que não só rivalizou com os partidos socialistas-comunistas de esquerda, como foi mesmo capaz de os ultrapassar. Agora o anti-semitismo alemão, concebido pela velha social-democracia de Bebel, na sua ilusão, como irmão menor e mais burro da crítica do capitalismo, tinha-se transformado num verdadeiro monstro.
Adolf Hitler, o "Führer" deste monstruoso movimento, retomou e sintetizou a formação ideológica anti-semita alemã desde os tempos do iluminismo, as ilusões raciais de Chamberlain, Treitschke, Wagner, etc. e não só; no seu infame livro "A minha luta", publicado em 1925, também atribuiu directamente a derrota e a crise da guerra ao "envenenamento pelo sangue judeu" do "povo alemão", e acusou o império alemão de não ter agido consequentemente a este respeito:
"Se deixarmos desfilar diante dos nossos olhos todas as causas do colapso alemão, então a última e decisiva continua a ser a incapacidade de reconhecer o problema racial e especialmente o perigo judaico. As derrotas no campo de batalha, em Agosto de 1918, teriam sido facilmente suportadas. Estavam fora de qualquer proporção com as vitórias do nosso povo. Não foram elas que nos derrubaram, mas fomos derrubados pelo poder que preparou essas derrotas, tendo durante muitas décadas roubado sistematicamente ao nosso povo os instintos e as forças políticas e morais que permitem e também dão direito à existência dos povos. Ao passar descuidadamente pela questão da preservação dos fundamentos raciais da nossa nação, o velho Reich também ignorou o único direito que dá vida neste mundo [...] Todos os sinais realmente significativos de decadência do período pré-guerra remontam, em última análise, a causas raciais [...] Apenas um lutou com inabalável regularidade nestes longos anos, e esse foi o judeu [...]" (Hitler 1942/1925, 359ss.).
Por mais óbvio que seja o carácter contrafactual, irracional e projectivo desta interpretação da história e da crise, ela conseguiu apreender a consciência das massas na Alemanha. As partes interessadas tentaram muitas vezes (e voltam a tentar cada vez mais hoje) exonerar a população alemã do seu entusiasmo pela absurda explicação anti-semita do mundo, alegando que a histeria quase maciça do "hitlerismo" alemão tinha, por assim dizer, pegado fogo "apesar do" anti-semitismo, que talvez nem sequer deverá ter sido percebido decisivamente. Por outras palavras, a grande maioria dos alemães não eram "realmente" anti-semitas de todo, mas "compreensivelmente" caíram no partido de Hitler apenas por razões de crise social; talvez ainda tenham sido seduzidos por certos "fascínios" de propaganda de massas e pelas encenações quase wagnerianas que apareceram no NSDAP. Assim, por exemplo, o historiador Hans Mommsen afirma:
"A proporção de activistas anti-semitas pouco ultrapassou 20% dos membros do NSDAP, e muitos dos aderentes estavam bastante distantes do núcleo da visão do mundo nazi" (Mommsen 1991, 424).
Se aqui o movimento de massas, que levou à ascensão do NSDAP, é protegido contra o seu "núcleo" ideológico anti-semita (aparentemente oculto), recentemente o historiador Ernst Nolte, um apologista bastante aberto dos nazis, adopta exactamente a abordagem oposta, na medida em que procura colocar o vitorioso NSDAP, que se tinha tornado a vontade do Estado, sob protecção contra o anti-semitismo da massa dos seus apoiantes:
"[...] assim [...] as Leis de Nuremberga de 1935 foram certamente uma consequência do anti-semitismo nacional-socialista, mas foram ao mesmo tempo uma tentativa de refrear (!) os surtos violentos e caóticos deste anti-semitismo através da legislação estatal [...]" (Nolte 1993, 17s.).
Ambas as declarações se negam mutuamente, e não só; na sua complementaridade também mostram involuntariamente que os nazis e as massas alemãs se equivaliam entre si. A positiva "vontade de compreender" tenta exonerar a história alemã, que nunca poderá ser corrigida, em vez de a confrontar; conduz ao rasto de potenciais reincidentes. Pois a ilusória interpretação anti-semita da guerra mundial e da crise por Hitler e pelo NSDAP era tudo menos um "núcleo oculto" da sua ideologia, e não podia ser ignorada pelas massas; o anti-semitismo permeava não só o insuportavelmente estúpido calhamaço "A minha luta", mas toda a produção da máquina de propaganda nacional-socialista. Era a base e a autolegitimação de todo o movimento e devia ser elevado ao estatuto de doutrina do Estado. Quem se voltou para este partido e para este "líder" não o pôde fazer "apesar", mas apenas "por causa" do seu anti-semitismo, pois a mobilização nazi levantou-se e caiu com este constructo em todos os aspectos e em todos os campos.
A grande crise em todo o mundo deu origem a sentimentos anti-semitas, racistas e de darwinismo social, cujos fundamentos ideológicos tinham sido lançados pelos próprios pais fundadores liberais desde os tempos do iluminismo; mas só na Alemanha é que se constituiu um partido político de massas com genuína legitimidade anti-semita, que conseguiu chegar ao poder através de eleições democráticas. Não só grandes segmentos da burguesia alemã, arruinados pela inflação, assumiram cegamente o padrão anti-semita de interpretação, como este fantasma maligno foi propagado por todas as classes e estratos. Cheio de orgulho, Hitler poderia afirmar em 1925:
"Em todo o caso, no Inverno de 1918/19 algo como o anti-semitismo começou lentamente a criar raízes. Mais tarde, porém, o movimento nacional-socialista promoveu a questão judaica de uma forma completamente diferente. Conseguiu sobretudo levantar este problema para lá do círculo restrito dos estratos superiores e pequeno-burgueses, e transformá-lo no motivo promotor de um grande movimento popular" (Hitler, op. cit., 628).
De facto, ao longo da década de 1920 (especialmente mas não só em Munique e Berlim), motins anti-semitas de rua ocorreram "de baixo" e sem um contra-movimento maciço. Tal como no período do "crash" após 1873, os judeus foram espancados nas ruas e as lojas judaicas saqueadas no ano da hiperinflação de 1923. Entre 1924 e 1929, também os cemitérios judeus foram profanados repetidamente, houve numerosos ataques a sinagogas e outros actos de violência anti-semita; frequentemente perpetrados de forma bastante "espontânea" por jovens e mesmo por crianças em idade escolar (Walter 1999). Os nazis foram capazes de cavalgar a onda de anti-semitismo generalizada na sociedade.
Nesta altura, a crise capitalista mundial fez primeiro uma pequena pausa. Os governos conseguiram inicialmente fazer recuar a inflação com medidas drásticas de austeridade (ao preço da paralisação da "economia inflacionária"), com reformas monetárias (ao preço da destruição final de grandes massas de riqueza) e com um regresso parcial ao padrão-ouro (ao preço de uma limitação da capacidade do sistema de crédito). Em geral, o objectivo era o regresso ao padrão-ouro e, portanto, supostamente, à "normalidade" anterior à guerra. Se os EUA já tinham atingido este objectivo em 1919, a Grã-Bretanha seguiu o exemplo em 1925. Em 1924, a Alemanha introduziu pela primeira vez o chamado "Rentenmark" como uma nova unidade monetária, que era totalmente "coberto" por obrigações e compensado com o antigo marco numa escala de 1:1 bilião, e depois mudou para um "padrão monetário de ouro" limitado. Esta "versão diluída do padrão-ouro puro" (Aldcroft 1978, 152) prevaleceu na maioria dos países até 1928. Isto significava que o papel-moeda já não era convertível em ouro em nenhum momento, ou seja, a circulação de moedas de ouro desapareceu dos pagamentos diários; ao mesmo tempo, uma parte crescente das reservas do banco central já não era detida em ouro, mas em moedas estrangeiras (divisas), e o banco central intervinha no mercado cambial com o objectivo de alcançar uma taxa de câmbio fixa relativamente a outra moeda com o padrão-ouro (principalmente o dólar).
Esta dispendiosa estabilização só poderia fingir durante alguns anos que a crise tinha sido travada. De facto, esta suposta normalização resultou no endividamento forçado dos Estados aos seus cidadãos como credores, desencadeando assim um enorme surto de empobrecimento. Na Alemanha, o rendimento real tinha caído para metade do que tinha sido em 1913 (Aldcroft, op. cit., 166). Com a ilusão de que a grande e profunda ascensão começaria agora, os mecânicos e guardiões da "bela" máquina pregavam uma vez mais o optimismo secular, como se estivessem a gozar com a experiência real. De facto, o "boom inflacionário" já tinha sido um fogo rápido, tendo como pano de fundo uma grave quebra na produção e no comércio; e basicamente nada mudou após a estabilização monetária, como o historiador económico inglês Derek Aldcroft observa em retrospectiva:
"A tão apregoada actividade industrial febril do período existiu mais na aparência do que na realidade. A produção aumentou, mas apenas a partir de uma base muito baixa; ainda permaneceu muito abaixo dos níveis anteriores à guerra, enquanto a produtividade diminuiu" (Aldcroft, op. cit., 167).
A "aparência" aqui deve ser entendida literalmente, pois a ascensão teve lugar principalmente no reino da especulação. Se esta se tinha desenvolvido a partir da ruptura do sistema financeiro e monetário durante o período inflacionário, passou para os mercados bolsistas e imobiliários após a estabilização monetária. Por agora, tal como no tempo do embuste dos fundadores, apenas numa escala muito maior, a prosperidade esperada da Segunda Revolução Industrial foi antecipada numa escala completamente irreal para as condições factuais. O debate sobre a racionalização e o fordismo, longe de implementados na realidade industrial ou antes de mais com a consequência negativa de "libertar" força de trabalho, criaram ilusões sobre a iminente "onda longa" de uma nova ascensão secular de acordo com os princípios de Henry Ford. Parecia que esta onda só tinha sido temporariamente interrompida pelas consequências da guerra mundial. É claro que este optimismo histórico especulativo foi especialmente generalizado nos EUA, que aparentemente tinham todos os pré-requisitos para se tornarem a "locomotiva" de uma economia mundial da Segunda Revolução Industrial. O boom imobiliário (especialmente na Flórida) foi seguido por um boom sem precedentes nos preços das acções. O economista norte-americano liberal de esquerda John Kenneth Galbraith (n. 1908) descreveu, como testemunha contemporânea, esta maior onda de especulação até à data:
"De acordo com o clima nacional, surgiu uma imagem de grande, duradoura e merecida prosperidade, como o Presidente Coolidge a tinha tão admiravelmente retratado. Foi apoiada por uma visão de um novo mundo de indústria e tecnologia, dominado pela indústria automóvel com as suas sempre admiradas linhas de montagem e, acima de tudo, pelo novo mundo das comunicações de rádio. A especulação mais popular desses anos foi a da RCA, a Radio Corporation of America. Na verdade, tinha o seu futuro pela frente; a RCA nunca pagou um dividendo. Em relação a este sentimento, e sustentado por ele, houve [...] a força que se auto-reforçava do boom especulativo. Tal como os terrenos da Flórida, o aumento dos preços das acções atraiu compradores que compraram e, por conseguinte, fizeram subir os preços [...] Esta tendência foi reforçada no final dos anos vinte por numerosos peritos em acções que tinham compreendido o processo, e que se uniam para aumentar o preço de uma determinada acção, e ao comprarem e venderem em conjunto chamavam a atenção para essa acção. Tendo assim despertado o interesse dos inocentes, dos gananciosos e dos crédulos, vendiam as suas acções a preço consideravelmente mais elevado. Este era o consórcio da especulação" (Galbraith 1995, 81s.).
Em torno deste consórcio da especulação reuniu-se um exército crescente de pequenos especuladores, tal como na Alemanha antes do crash da época dos fundadores de 1873, só que em muito maior número. É verdade que, mesmo nos EUA, apenas uma parte da população podia recorrer à poupança; mas isso foi suficiente para criar uma mentalidade especulativa geral e para fazer do jogo na bolsa um "desporto popular", especialmente porque era possível participar nele com a ajuda de empréstimos se faltasse a própria liquidez. Sacudindo a cabeça, um corretor de bolsa na altura relatou: "Já vi engraxadores de sapatos comprarem 50 000 dólares de acções com apenas 500 dólares em dinheiro. Tudo foi comprado com boa sorte" (citado em: Terkel 1972, 14). Quando a arrogância especulativa atingiu o seu auge, o famoso tubarão da bolsa Jesse Livermore (que, fiel ao estatuto, pôs uma bala na cabeça na casa de banho alguns anos mais tarde) terá dito a um recém-chegado: "Jovem, de que servem 10 milhões se não se consegue arranjar o dinheiro realmente grande"? (op. cit., 17). Num esboço jornalístico sobre a presença da bolsa de valores em alta na vida quotidiana nos Estados Unidos da América diz-se:
"O motorista do homem rico conduz o carro com os ouvidos virados para trás, para receber a notícia de uma mudança significativa no preço da Bethlehem Steel, pois ele próprio possui 50 acções. O lavador de janelas no escritório do corretor faz uma pausa para observar o relógio, pois está a considerar se deve trocar os frutos do seu trabalho por algumas acções da Simmons. Edwin Levèfre, um inteligente repórter de mercado [...] fala de um criado dum corretor que ganhou quase um quarto de milhão no mercado, de uma enfermeira que ganhou 30 000 dólares com a ajuda de gorjetas dadas por pacientes agradecidos [...]" (citado em Galbraith 1989/1954, 89).
Mas a onda especulativa foi apenas um sinal de que, na realidade, o investimento real em larga escala nas estruturas imaturas da Segunda Revolução Industrial não se estava a materializar, e que o capital monetário estava, em vez disso, a precipitar-se para os mercados financeiros. Em vez de um boom global de investimento social em máquinas, linhas de montagem, fábricas, etc., o próprio futuro imaginário foi sumariamente capitalizado imediatamente nos mercados bolsistas. Claro que esta bolha de "capital fictício" rebentou, tal como em 1873 – só que o estrondo foi mais alto e as consequências mais devastadoras. A famosa "sexta-feira negra" de 24 de Outubro de 1929 (na realidade esta foi uma quinta-feira nos EUA, mas já sexta-feira na Europa, devido à diferença horária) assistiu ao colapso da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Foi o maior crash da história até hoje. Na sua monografia, John Kenneth Galbraith relata o drama do evento, cujas consequências haviam de arrastar de novo o mundo para o abismo:
"De repente, o registo automático das cotações ficou para trás. Os preços caíram mais forte e mais rápido, e o registo regrediu irremediavelmente. Por volta das onze horas o mercado tinha-se tornado num clamor selvagem [...] Por volta das onze e meia o mercado estava cheio de um medo cego e sem esperança. O pânico instalou-se. Ouviram-se gritos selvagens lá fora, na rua. Uma multidão estava a reunir-se. O comissário da polícia Grover Whalen mandou um destacamento de polícia para Wall Street para manter a ordem. Muitas pessoas vieram e esperaram, mas aparentemente ninguém sabia porquê. Apareceu um operário no telhado de um edifício alto. Devia lá estar a fazer algumas reparações. A multidão pensou que ele ia suicidar-se, e esperou impacientemente que ele acabasse por saltar [...] As acções foram vendidas por uma ninharia [...] Uma onda de suicídios ficou suspensa no ar. Dizia-se que onze especuladores muito conhecidos já se tinham suicidado [...] Para demasiados observadores isto significava que estavam feitos, e que o seu breve sonho de riqueza se tinha desvanecido, juntamente com a mansão, os carros, as peles, as jóias, e a reputação [...] Eram oito minutos e meio depois das sete horas da noite, quando o registo automático das cotações finalmente deixou de espalhar os infortúnios do dia. Nas salas da bolsa ainda estavam sentados os especuladores que tinham ficado arruinados desde a manhã, observando silenciosamente a fita de papel do registo da bolsa [...] O mercado tinha voltado a impor-se como um poder autocrático, fora do alcance de qualquer pessoa que o quisesse controlar [...]" (Galbraith 1989/1954, 110-120).
No início pensava-se que o pânico era apenas uma "correcção" temporária da exuberante fantasia dos preços, e que as coisas voltariam a subir. Mas, como as cotações caíram cada vez mais dramaticamente nas semanas e meses que se seguiram, tornou-se claro que o colapso era duradouro, e que não havia mais nada a salvar. A onda de especulação foi seguida por uma onda de suicídios sem precedentes que se prolongou por anos. O especulador arruinado a saltar da janela tornou-se uma espécie de figura mítica na consciência das testemunhas contemporâneas e da posteridade:
"Ivar Kreuger, o mais famoso dos especuladores internacionais, [...] saiu uma noite em Paris, comprou uma arma, regressou ao seu alojamento, onde se matou a tiro na manhã seguinte. Para evitar um efeito adverso nos mercados já fracos, a notícia da sua morte foi retida até que a bolsa de valores fechasse nesse dia. Reacções semelhantes à catástrofe não foram raras, embora a imprensa e o humor negro quase sempre exagerassem as consequências. Os empregados do hotel não perguntavam aos hóspedes que chegavam se precisavam do quarto para dormir ou para saltar; a história frequentemente contada de dois corretores de bolsa que saltaram pela janela de mãos dadas, porque tinham uma conta conjunta, não é certamente verdadeira" (Galbraith 1995, 87).
A "mão invisível" do mercado, outrora elogiada por Adam Smith como benéfica, desfez em pedaços a vida social, como um robô fora de controlo. Pois a ruína dos especuladores após a "sexta-feira negra" foi apenas o prelúdio para a maior depressão da história capitalista até à data. Os bancos americanos, duramente atingidos pelo crash, tiveram de retirar os seus investimentos financeiros do estrangeiro em série, especialmente da Europa, é claro. Assim, as cadeias de crédito internacionais quebraram-se. De repente, cada vez mais empréstimos se revelaram "maus", porque credores, aforradores e investidores temiam pelo seu dinheiro e tentavam cobrá-lo o mais rapidamente possível, enquanto que os devedores, por outro lado, já não conseguiam pagar os seus empréstimos devido a perdas especulativas e ao rápido declínio da produção real.
Este processo de espiral descendente desenrolou-se em várias fases, sucessivamente desencadeado por novos colapsos bancários. No Verão de 1931, por exemplo, o Österreichische Kreditanstalt, o maior banco da Áustria, teve de admitir a insolvência. Depois disso, a depressão tomou realmente forma na Europa. Particularmente afectada pela retirada de fundos estrangeiros foi a Alemanha, onde 50% dos investimentos líquidos nos anos anteriores a 1929 tinham sido financiados por empréstimos estrangeiros, principalmente dos EUA. Globalmente, os empréstimos de capital internacional caíram mais de 90%. O colapso da especulação e a crise geral do crédito que se seguiu expôs o verdadeiro estado da economia capitalista mundial. As empresas industriais foram à falência ou reduziram drasticamente a sua produção umas atrás das outras. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego subiu para 25%, na Alemanha para mais de 40%. Magnitudes semelhantes foram alcançadas em toda a parte no mundo capitalista industrializado. Mas os países agrícolas e produtores de mercadorias foram também arrastados para o turbilhão da crise pelo drástico declínio global da produção e do poder de compra. E em todo o lado o produto nacional caiu drasticamente; nos EUA 30% e na Alemanha mais de 50%.
Esta segunda e maior onda da crise económica mundial pós-inflação tomou exactamente a forma oposta à inflação, nomeadamente um choque deflacionista global. A deflação significa que os preços das mercadorias caem tão drasticamente quanto aumentam na inflação. Este processo é preparado pela recessão e estagnação da economia, porque as sobrecapacidades em relação ao poder de compra "regular" capitalista fazem com que os investimentos reais sejam cada vez menos compensadores. Esta foi a tendência capitalista básica de todo o período entre guerras de duas décadas (1919-1939), devido à interacção entre o esgotamento das antigas indústrias de suporte, as consequências da guerra e a falta de potencial para a rápida implementação da Segunda Revolução Industrial com as suas dispendiosas condições de enquadramento. Apenas temporária e parcialmente esta tendência básica poderia ser disfarçada pela formação de "capital fictício" sem potencial de criação real de valor (utilização de "trabalho abstracto" regular ao nível do padrão de produtividade): primeiro pela criação irregular de moeda pelo Estado, com a consequência do colapso inflacionário; depois pela inflação especulativa das acções e parcialmente dos valores imobiliários, com a consequência do colapso deflacionário, cujos efeitos tiveram de ser muito mais devastadores que os da inflação.
Um processo de crise deflacionista recebe o seu impulso decisivo do colapso dramático dos preços do imobiliário e das acções (ou seja, a inevitável desvalorização do capital fictício especulativo). Com a consequente ruptura das cadeias de crédito e subsequentes ondas de falências, o poder de compra da sociedade decai em dimensões cada vez maiores: As empresas já não podem obter crédito, porque os bancos estão cheios de enormes créditos malparados e não podem assumir quaisquer novos riscos; o aumento acentuado do desemprego está também a fazer com que o poder de compra do consumo de massas se deteriore rapidamente; as receitas do Estado provenientes dos impostos regulares estão a diminuir à mesma velocidade. Em resumo: existe uma falta geral de dinheiro, o que leva a que, após os preços das acções e dos imóveis, também os preços das mercadorias se afundem cada vez mais depressa.
A crise deflacionista, contudo, tem tão pouco a ver com a lei "clássica" da oferta e da procura nos mercados de mercadorias como a inflação. Pois, tal como a procura alimentada pela inflação já não é o resultado de uma expansão da produção e das necessidades reais, a redução deflacionista da procura também já não é o resultado de uma saturação das necessidades; bem pelo contrário. Se na hiperinflação as pessoas não podem sequer pagar uma refeição decente com os seus absurdos biliões de rendimentos, sofrem o mesmo destino na deflação com o sinal oposto, porque, apesar da queda drástica dos preços das mercadorias, já não têm nem um miserável marco nos bolsos. A força da crise deflacionista, no entanto, é muito maior, na medida em que os preços e salários, embora subam a níveis astronómicos na inflação e ainda mantenham pelo menos parte da produção, não podem cair na mesma escala na deflação: Em vez disso, uma parte dramaticamente crescente da produção é encerrada por completo, quer voluntariamente por falta de rentabilidade, quer involuntariamente através de falências em massa. Deste modo, o desemprego continua a aumentar, as receitas governamentais continuam a diminuir, e a espiral de crise já não pode ser travada.
A crise económica mundial depois de 1929 foi o maior choque deflacionista da história da modernização até hoje. Assim, a maravilhosa economia de mercado celebrou, mesmo para além das experiências catastróficas dos anos de inflação, recordes mundiais de "aumento do bem-estar" até à crise global da fome aberta. Nos Estados Unidos, massas quase indigentes vagueiam desamparadas pelo país nos seus carros Ford, os únicos bens que restam, à procura de trabalhos de ocasião para ganharem um pouco de comida e gasolina. O monte de sucata de lata como último lar de uma nova vagabundagem de miséria: que prelúdio para a era dourada prometida por Henry Ford! Para além destes bizarros bairros de lata ambulantes, surgiram também enormes novos bairros de lata nos subúrbios, para nunca desaparecerem completamente: "os sem-abrigo reunidos em colónias de barracas de estanho e tábua [...] no meio de terra e ratos" (Sautter 1994, 371). Estas favelas foram ironicamente baptizadas "Hoovervilles", em referência ao Presidente Herbert Clark Hoover (1874-1964), que governou durante os piores anos da crise económica mundial. Em todas as principais nações industrializadas, o número de pessoas famintas voltou a aumentar. Em Berlim, uma mulher trabalhadora é questionada sobre a situação alimentar da sua família:
"E como compra você comida para sete pessoas com 8 marcos e 20 por semana? 'Pão e batatas', respondeu ela. 'A maior parte pão. No dia em que recebemos o dinheiro, compramos salsichas. Uma vez por semana, as pessoas querem um pouco de carne. Mas para isso passamos fome nos últimos dois dias da semana' [...]" (citado de Abelshauser/Faust/Petzina 1985, 335).
Em Agosto de 1931, o Ministério do Bem-Estar prussiano tem de admitir condições vergonhosas de cuidados médicos e nutrição, especialmente para as crianças:
"O desemprego dos pais causa desnutrição, acumulação de doenças, indiferença às exigências higiénicas entre as crianças pequenas [...] As doenças infantis e as constipações estão a aumentar, pois o médico é frequentemente visitado demasiado tarde, ou não o é de todo, porque os honorários necessários para a receita médica e os medicamentos não podem ser pagos, pois não há dinheiro [...] As frequentes doenças das crianças nas escolas são muito claramente devidas à anemia e à fome. Tonturas e desmaios ocorrem muito, mesmo entre crianças mais velhas. Investigações nas famílias revelaram que a dieta é completamente inadequada, faltam de todo as vitaminas (fruta, legumes) porque não há meios para isso. Sinais de escorbuto (!) já são perceptíveis em certas favelas das grandes cidades" (citado de Treue 1967, 248).
A que preciosidade a simples batata se tinha erguido mais uma vez para grandes massas de pessoas é demonstrado pela acção de uma escola secundária de Berlim, com o nome apropriado do alto anti-semita da burguesia culta, Heinrich von Treitschke: cada descendente dos que ainda ganham melhor deve trazer uma batata de manhã para os lázaros do bairro! No Outono de 1931, um repórter do "Vossische Zeitung" relatou a difícil situação dos mais desfavorecidos, especialmente idosos, nos bairros ainda cuidados da classe média:
"O pior de tudo são aqueles que não falam de todo. Desde que amanhece, eles sentam-se abandonados nos bancos da rua larga; mais tarde, vagueiam pelas cercas dos restaurantes, param, olham para o restaurante sem falar, sem mendigar, sem se mexer" (citado em Treue 1967, 250).
Em muito pouco tempo, a crise económica mundial bombardeou os padrões sociais até aos níveis do século XVIII e início do século XIX. Este pesadelo capitalista, claro, não poupou a cultura nem mesmo as realizações civilizacionais mínimas. Piscinas, teatros e instituições culturais foram encerrados em série, os orçamentos das bibliotecas e de todo o sistema educativo, hospitais e cuidados médicos foram brutalmente cortados. A descivilização de todo o mundo capitalista assumiu proporções que ninguém teria pensado serem possíveis, mesmo na primeira fase inflacionista da crise.
Claro que os apologistas da economia oficial tentaram repetidamente atribuir a catastrófica crise económica mundial após 1929 não à destrutiva lógica interna do sacrossanto sistema capitalista, mas a uma alegada "política económica errada" da maioria dos governos da época, que só se aperceberam do perigo deflacionista quando já era demasiado tarde. Ainda teriam prosseguido uma "política monetária restritiva" quando a liquidez já deveria ter sido injectada na economia há muito tempo, a fim de evitar o colapso e a crise. Esta avaliação é triplamente errada e contrafactual.
Em primeiro lugar, nessa altura, a inflação e a hiperinflação tinham acabado de ser superadas com grande sacrifício, e a lição parecia ser a seguinte: Nunca mais ponha a impressão de notas a trabalhar para manter a ficção de uma economia em funcionamento! Era simplesmente impossível, depois desta experiência e do consenso monetário mundial que dela emergiu, cair simplesmente de novo no exacto oposto. Em segundo lugar, uma verdadeira mudança na política monetária ocorreu, embora cautelosa e hesitante – mais tardiamente na Alemanha, onde o trauma da hiperinflação teve o maior impacto. Como resultado, o padrão-ouro-divisas, que tinha acabado de ser estabelecido, teve de ser novamente abandonado. Apenas os EUA conseguiram finalmente regressar a uma ligação directa ao ouro e à obrigação de pagamento em ouro da sua moeda, estabelecendo assim finalmente o dólar como a nova moeda de reserva global, na senda da sua ascensão ao poder mundial.
Em terceiro lugar, a razão da crise não foi de modo nenhum originalmente uma falta de liquidez, que na realidade era abundante antes do colapso; embora, depois de 1925, não sob a forma de criação de dinheiro estatal, mas sob a forma da bolha especulativa de aumentos fictícios no valor das acções (e a associada criação comercial de dinheiro, através da inflação do dinheiro de crédito no sistema bancário). Mas esta liquidez tinha sido injectada na superestrutura financeira e especulativa, precisamente porque o investimento industrial real se tinha revelado relativamente pouco rentável, face às crescentes sobrecapacidades. O próprio esquema industrial em bola de neve da produção capitalista tinha atingido um limite interno, na medida em que o fosso entre o esgotamento das antigas indústrias, por um lado, e a implementação social das novas indústrias e métodos de produção fordistas, por outro, não podia ser fechado para uma maior acumulação. Este problema apareceu superficialmente ao nível financeiro e monetário, mas não foi causado a esse nível.
Na verdade, porém, o curso da catástrofe económica global no período entre guerras indica mais do que uma mera recessão cíclica. Esta crise mundial aponta para o facto de que o capitalismo em grande escala, que sujeita toda a reprodução social à sua lógica, só pode nascer numa forma extremamente híbrida e frágil, ou seja, sem perspectiva de longa duração histórica. Em termos económicos, a economia de guerra foi o prenúncio de um problema estrutural básico para o capitalismo total em plena aurora, também na sua forma civil: Os custos antecipados, os custos associados e os custos subsequentes de uma racionalidade económica empresarial socialmente totalizada aumentam a tal ponto que a relação entre a forma de dinheiro e a produção real de capital já não pode ser mantida mais ou menos congruente, mas desmorona-se em crise.
Um capitalismo plenamente desenvolvido, que eliminou ou marginalizou todos os outros sectores e domina todo o processo da vida social sem dominar a sua própria autocontradição interna, só pode basicamente mover-se numa espiral mais ou menos alongada de inflação e deflação, até atingir o seu fim sem saída. Já no período que antecedeu a sua totalização, o capitalismo tinha na realidade falhado neste obstáculo. Na forma civil, a transição para a Segunda Revolução Industrial já não teria tido lugar. Assim, nada restava senão a fuga para novas políticas de armamento e novas economias de guerra: "Foi a guerra, e não a sabedoria económica, que acabou com a depressão" (Galbraith 1995, 91).
Original Weltwirtschaftskrise, pags. 234-248 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (2.2021).
Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.