Robert Kurz 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 6

História da Segunda Revolução Industrial

 

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Secção 5

Ditaduras e "Guerra dos Mundos"

Faz parte do auto-engano e da falsificação da história da ideologia democrática burguesa ainda hoje dominante o facto de tentar separar, o mais possível, a terceira ronda da catástrofe mundial na transição para a Segunda Revolução Industrial das contradições internas do capitalismo. Se ainda se é obrigada a associar relutantemente a "catástrofe seminal" da Primeira Guerra Mundial ao processo genuinamente capitalista do colonialismo, do imperialismo e da corrida aos armamentos das jovens economias nacionais concorrentes (embora principalmente sob o aspecto de excessos de algum modo "condicionados pelo tempo", que nada teriam a ver com a verdadeira essência do capitalismo), o pensamento apologético burguês e liberal do Ocidente segue um padrão diferente para o período posterior a 1918, a fim de apagar os traços sangrentos da posterior história capitalista.

A partir de agora, o capitalismo "verdadeiro" vindo a si mesmo é ideologicamente identificado com a "boa" democracia ocidental e a sua economia de mercado suposta calma e pacífica, enquanto todo o mal deste mundo e todos os crimes da história cada vez mais esmagadora da modernização são imputados às ditaduras do século XX, surgidas na sequência da guerra mundial e da crise económica mundial, e simbolicamente representadas pelos nomes de Hitler e Estaline. Tal como a lógica da economia empresarial "externaliza" permanentemente os custos e os imputa aos perdedores sociais, à sociedade como um todo, a outros países, ao futuro e à natureza, o liberalismo (que, afinal, atravessa todos os partidos dos Estados ocidentais como uma ideologia de base), com as suas regras de linguagem orwellianas, consegue utilizar as várias ditaduras da modernização, de 1918 até às suas actuais derivas e aberrações, como uma espécie de lixeira ideológica, para depositar projectivamente os custos da continuação da plena capitalização do mundo.

Mas então tem de parecer enigmático de onde vieram estas ditaduras, em que base histórica o seu pensamento está enraizado, e em que relação interior se encontram com a democracia da economia de mercado ocidental. Em certa medida, são ideologicamente excomungadas do mundo capitalista e são simplesmente consideradas como o "outro" e o "estranho", que surgiu das profundezas da história e representa o lado negro e anti-civilizacional da humanidade em geral. A "queda de uma civilização de cunho ocidental numa barbárie sem igual" (Mommsen 1991, 424) como caracterização da ditadura nazi, como diz uma típica formulação consensual entre os historiadores contemporâneos e não só, bloqueia à partida a questão de um contexto interno, de um contexto comum ou uma base comum para a democracia da economia de mercado e os crimes nazis, ou em geral as ditaduras terroristas de Estado de crise e de modernização do passado recente, em que o próprio momento bárbaro da "civilização de cunho ocidental" terá podido aparecer.

Quando, por exemplo, o filósofo da RFA Hans-Joachim Lieber define o estalinismo como um sistema que apresenta como característica estrutural "a denúncia, a impiedosa perseguição, deportação e extermínio em massa dos ‘dissidentes [...]’ (Lieber 1993, 882), então bastaria um olhar por alto sobre a história da modernização dos últimos duzentos anos para questionar se esta "característica estrutural" não caracterizou já sempre as acções do liberalismo ou do conservadorismo liberal e de todos os seus regimes contra os movimentos sociais de recusa e emancipação. A diferença entre as tradições liberais ocidentais e as ditaduras do século XX não pode certamente residir nisto. Mesmo as primeiras tentativas de uma reavaliação teórica da era ditatorial na história da Segunda Revolução Industrial funcionam com construções igualmente apologéticas, como se pode ver, por exemplo, numa análise de Richard Löwenthal publicada (sob o pseudónimo Paul Sering) em 1946:

 

"O nacional-socialismo alemão, em particular, desencadeou uma explosiva força destruidora, uma raiva enlouquecida na negação dos valores aceites da tradição europeia, cujas raízes temos de procurar noutra dimensão dos acontecimentos históricos e sociais [...]. A tradição humanista, nas formas cristã, liberal ou socialista subjacente a todo o tipo de comunidade civilizada na Europa, está, como todas as conquistas da moral humana, repetidamente ameaçada pela irrupção do caos (!) [...]" (Sering 1984/1946, 412).

 

É notável que esta excomunhão da ditadura nazi da "tradição europeia" seja aqui formulada por um esquerdista, do mesmo modo como os conservadores e liberais têm tentado repetidamente lavar a nojenta mancha castanha da obra de arte total do capitalismo democrata iluminista. A história recente deve assim ser interpretada como conflito fundamental, como guerra da humanidade e luta final entre o bem e o mal, entre a democracia liberal ocidental e essas ditaduras; uma leitura que não deixa espaço para uma maneira alternativa de ver as coisas e uma análise crítica que possa descobrir uma relação diferente entre estes fenómenos históricos.

Este constructo é tão abertamente projectivo e maniqueísta que faz lembrar de forma suspeita a estrutura da própria ideologia nazi. De facto, o centro do anti-semitismo foi essa mitologização e biologização emanadas do liberalismo, com que as auto-contradições capitalistas e os potenciais de crise foram irracionalmente reinterpretados desde o século XIX, e sobrepostos a todas as possíveis imagens e visões do "estranho" e do "outro" – a ameaça representada pelo sistema internalizado de concorrência anónima a todos os níveis procurou a sua expressão imaginativa em numerosos disfarces, mesmo que (ou precisamente porque) a síndrome social subjacente já não pudesse ser consciente e racionalmente penetrada com reflexão crítica.

Uma das muitas manifestações desta "alteridade" mítica na literatura popular foi (e ainda é) a "invasão alienígena", inventada como um conto de fadas imperialista pela ficção científica que começou a surgir no final do século XIX.

Já em 1898, o nesta área famoso H. G. Wells (1866-1946) tinha descrito um ataque de seres muito superiores de Marte, no seu romance prototípico "A Guerra dos Mundos". O estranho, com o qual já não é possível comunicar, embora seja tão carne e sangue como os humanos, aparece aqui já de modo puramente fisionómico como um cliché da pura maldade:

 

"Tinha uma boca abaixo dos olhos, cuja borda tremia incessantemente e pingava saliva [...] A estranha boca em forma de V com lábio superior pontiagudo, a ausência de sobrancelhas, a ausência de queixo [...] causava [...] náuseas [...] Já neste primeiro encontro, neste primeiro olhar, fiquei assoberbado de repulsa e horror (Wells 1974/1898, 21).

 

A projecção da própria contradição social em monstruosidades "extraterrestres" é assim apenas a variante bizarra do mesmo mecanismo que aparece também nas projecções "terrestres" (especialmente anti-semitas). Nenhum dos participantes alguma vez pensaria que o que vê ali se deve a um olhar ao espelho. Normalmente, a consciência burguesa tenta banalizar esta perigosa projecção das contradições sociais sobre "seres extraterrestres" através da moralização protectora: todos devem ser "simpáticos uns para com os outros" – o nazi para o judeu, o comunista para o democrata liberal, o humano para o extraterrestre e vice-versa. Porque o trabalho de recalcamento da ideologia hardcore da democracia de mercado tem de permanecer limitado, o retorno do recalcado assume uma forma tão perversa quanto legitimadora: Todo o contexto socioeconómico que em primeiro lugar produziu a projecção paranóica é estabelecido como o "bem" verdadeiro e por excelência; e, na medida em que as semelhanças, pontos de contacto e intersecções entre a ditadura e a democracia da economia de mercado simplesmente não podem ser completamente ignoradas, são então instrumentalizadas para uma "desculpa" e uma legitimação histórica parcial da ditadura. Significativamente, porém, isto aplica-se (especialmente na Alemanha, desde a "disputa dos historiadores" dos anos 80) apenas à ditadura nazi, enquanto que a União Soviética bolchevique-estalinista sai muito pior.

Esta construção apologética foi desenvolvida por Ernst Nolte com franca virtuosidade. Antes de mais, compromete-se explicitamente em princípio com a democracia liberal ocidental, com o "progresso" capitalista burguês e com a "ocidentalização" do mundo. Assim, retoma meio afirmativamente a correspondente afirmação de base "de que a revolução verdadeira e modernizadora é a do capitalismo liberal ou da liberdade económica, que começou há 200 anos em Inglaterra e foi realizada pela primeira vez na América" (Nolte 1987, 20). E opõe-se veementemente a que a ditadura nazi se ligue num contexto interno negativo ao capitalismo e à democracia do pós-guerra: "Quem quer que critique o Terceiro Reich por querer basicamente atingir a República Federal ou o sistema capitalista tem de parecer como o tolo que é" (loc. cit., 33). A este respeito, o ponto de partida ideológico de Nolte não é diferente do dos seus opositores, como o filósofo democrático do Estado Jürgen Habermas, que diz no mesmo sentido: "A abertura sem reservas da República Federal à cultura política do Ocidente é a grande realização intelectual do nosso período pós-guerra, da qual a minha geração em particular se poderia orgulhar" (Habermas 1987, 75).

A argumentação adicional de Nolte, que atribui qualquer contra-movimento social radical e as ideias socialistas-comunistas na sua totalidade a uma reacção afinal "arcaica", ditatorial, utópica, em muitos aspectos "asiática" e completamente inaceitável das agora infelizmente inevitáveis vítimas da modernização, também não está tão distante do consenso da democracia liberal do capitalismo ocidental. A especialidade de Nolte, porém, é que ele quer "relativizar" e "historicizar" a ditadura nazi com uma abertura até agora inaudita, pelo menos nos círculos académicos "sérios", precisamente concedendo-lhe (em contraste com o comunismo estatal do Leste) certas afinidades positivas com o mundo ocidental, e pelo menos uma função de afastar o mal "verdadeiro", o comunismo:

 

"[...] e já não pode de modo nenhum ser evitada a questão de saber se ao nacional-socialismo não deve ser atribuído um certo direito histórico, (!) pelo menos na medida em que resistiu à extensa reivindicação da União Soviética com grande, embora provavelmente muito excessiva, energia. Se alguma vez houve um impulso de promoção da ciência, foi este (!) [...]" (Nolte 1993, 19).

 

A consequência é, evidentemente, que Auschwitz e o Holocausto também devem ser relativizados. De acordo com isto, os verdadeiros malfeitores da história devem ter sido os comunistas russos com as suas acções, que Nolte chama de "assassinato de classe". Tudo o resto, segundo Nolte, decorre desta "interrupção", de modo que "o chamado (!) extermínio dos judeus do Terceiro Reich foi uma reacção ou cópia distorcida, e não um primeiro acto ou o original" (Nolte 1987, 33). Hitler e os crimes nazis ocupam um lugar secundário em relação à "ameaça comunista":

 

"Não terão os nazis e Hitler talvez realizado um acto ‘asiático’ apenas porque se consideravam a si próprios e aos seus iguais como vítimas potenciais ou reais de um acto ‘asiático’? Não foi o ‘Arquipélago de Gulag’ mais original do que Auschwitz? Não foi o ‘assassinato de classe’ dos bolcheviques! o prius lógico e factual do ‘assassinato racial’ dos nacional-socialistas?" (Nolte 1987, 45).

 

Auschwitz quase desaparece assim no conceito de "compreensão" da "energia excessiva" com que a ditadura nazi resistiu "meritoriamente" e quase como um posto avançado da democracia ocidental à "extensa reivindicação da União Soviética". A indignação democrática perante esta pérfida argumentação, que de qualquer modo foi apenas abafada e feita passar por "discussão académica" entre historiadores honrados, teve, no entanto, por sua vez, de permanecer ambígua. Pois a questão é se a crítica liberal-democrática a Nolte tinha realmente como objectivo principal a relativização dos crimes nazis enquanto tal, ou se não se tinha antes exaltado porque esta relativização em si mesma reivindicava positivamente um ponto de vista capitalista e liberal-democrata ocidental abrangente, a partir do qual o nacional-socialismo deveria ser incorporado, pelo menos "até certo ponto", na família democrática do mercado livre ou na sua galeria de antepassados, enquanto que o comunismo, pelo contrário, deveria "ficar de fora para sempre". O desconforto com a argumentação de Nolte poderia advir do facto de ele negar involuntariamente a democracia capitalista ocidental, na medida e que, tal como os seus críticos democráticos, a pressupõe maniqueistamente como o "bem" absoluto da modernidade, mas ao mesmo tempo imputa e concede a uma certa manifestação do "mal", nomeadamente a ditadura nazi, elementos de afinidade com este "bem": O reconhecimento absoluto da democracia ocidental transforma-se assim, para ele, no reconhecimento relativo da ditadura nazi.

A resolução deste debate fantasmagórico não pode consistir em regressar a uma "purificação" da democracia da economia de mercado de todos os suspeitos pontos comuns com as ditaduras do século XX, a fim de preservar a excomunhão do "mal" sem quaisquer lacunas. Pelo contrário, ao considerar toda a história da modernização, é óbvio inverter a perspectiva e proceder exactamente ao contrário, como fez Nolte: nomeadamente, compreender o capitalismo, o liberalismo, e a democracia da economia de mercado não como tão positivos, mas, pelo contrário, como sendo o mundo, apenas encoberto pelo vocabulário orwelliano, dessa forçada socialização negativa e repressiva pela monstruosa "bela máquina" da "valorização do valor"; e, consequentemente, também os momentos comuns entre as democracias da economia de mercado e as ditaduras do século XX enraizadas no modo de produção capitalista. É por isso que é importante não apresentar as características comuns das democracias e ditaduras da economia de mercado do século XX enraizadas no modo de produção capitalista como um facto "desculpável", mas antes como a manifestação particular, realizada sob certas condições, dessa "revolução verdadeira e modernizadora do capitalismo liberal" em si mesma. Desta perspectiva negativa e crítica, Auschwitz em particular só pode ser entendido como a consequência extrema da ideologia liberal na tradição de Hobbes, Mandeville, de Sade, Bentham, Malthus et al., que já não pode ser ultrapassada, enquanto que, ao contrário de Nolte, uma certa relativização seria mais apropriada no que diz respeito ao regime de "modernização atrasada" na União Soviética.

O que é decisivo deste ponto de vista é a forma básica negativa comum, idêntica e global de todos os sistemas sociais do século XX, nomeadamente o sistema industrial produtor de mercadorias que surgiu no decurso do século XIX, com o seu domínio coercivo do "trabalho abstracto" e com a concorrência forçada das chamadas nações no mercado mundial. As diferenças entre a democracia da economia de mercado e a ditadura de modernização ou de crise, que surgiram como resultado da guerra mundial e da crise económica mundial, são, pelo contrário, secundárias e essencialmente o resultado de uma não simultaneidade histórica do processo de desenvolvimento capitalista nas várias regiões do mundo. As diferenças, tanto entre a democracia liberal capitalista ocidental e as ditaduras do século XX, como entre estas próprias ditaduras (sobretudo a diferença entre a dominação da União Soviética estalinista e a nacional-socialista) só podem ser trabalhadas no contexto desta base comum fundamental. O filósofo franco-russo Alexandre Kojève já tinha compreendido esta relação entre a identidade estrutural e a não simultaneidade histórica da democracia ocidental, do comunismo soviético e do nacional-socialismo na década de 1930; as suas palestras correspondentes foram publicadas imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Resumindo, Kojève declara:

 

"Vistas de uma perspectiva verdadeiramente histórica, as duas guerras mundiais e a multiplicidade de grandes e pequenas revoluções que as acompanharam tiveram apenas o efeito de alinhar as civilizações atrasadas das províncias periféricas com as posições históricas mais avançadas (reais ou virtuais) da Europa. Se a sovietização da Rússia ou a chegada ao poder do comunismo na China significa mais ou algo diferente da democratização da Alemanha imperial (com a fase transitória do hitlerismo) ou a libertação do Togo para a independência, mesmo mais do que a autodeterminação dos Papuas, então é apenas porque a actualização sino-soviética do bonapartismo à la  Robespierre está a levar a Europa pós-napoleónica a acelerar a eliminação dos restos mais ou menos anacrónicos do seu passado pré-revolucionário" (Kojève 1947, 436).

 

Até hoje, o pensamento democrático ocidental tem sido incapaz de adoptar esta perspectiva histórica dialéctica que reflecte a não simultaneidade na mesma base e, em particular, de compreender os regimes revolucionários soviético e chinês (e subsequentemente também os regimes revolucionários nacionais das antigas colónias) como um renascimento modificado da economia estatal dos primeiros regimes de imposição do capitalismo no Ocidente. De uma forma fantástica, esta ideia aparece mesmo antes da correspondente realidade histórica no romance visionário de Alfred Kubin "O Outro Lado" de 1909. Nele estão previstas ditaduras, guerras mundiais, cidades bombardeadas e não só. Patera, o ditador do reino dos sonhos numa Ásia média virtual, faz crescer um adversário no "rei da carne salgada" e multimilionário Hércules Bell, de Filadélfia, abreviadamente chamado "o americano", que invade o Estado de sonho com o propósito de libertação; a sua proclamação é embelezada com o simbolismo respectivo: "Uma deusa da liberdade com um diadema segura uma tábua, na parte de trás da qual estavam as palavras: liberdade, igualdade, fraternidade, sociedade, ciência, direito" (Kubin 1994/1909, 156). Em sequências de pesadelo, no entanto, revela-se que Patera e Bell são uma e a mesma pessoa, fundidos numa monstruosidade multiforme, que pode ser lida como uma metáfora da modernização surgida do inconsciente:

 

"Mesmo que eu não pudesse compreender ou resolver estas contradições – o que é que elas me importavam, afinal de contas? Todo o medo tinha desaparecido; a terrível visão que me fez compreender o duplo ser de Patera fechou os abismos das minhas dúvidas e medos [...] Patera e o americano estavam incrustados numa massa informe, o americano tinha crescido totalmente em Patera. Um corpo informe que não podia ser visto torcia-se para todos os lados. Este ser informe possuía uma natureza de Proteu, milhões de pequenos rostos em transformação formavam-se na sua superfície, tagarelavam, cantavam e gritavam entre si e voltavam a recuar [...] O fenómeno de Patera continua por resolver [...] O americano ainda hoje está vivo e todo o mundo o conhece" (Kubin, op. cit., 191, 238, 249).

 

Nesta fantástica identidade de Patera e Bell, surge algo do facto de estarmos perante uma espécie de identidade de Dr. Jekill e Mr. Hyde da democracia e da ditadura; ou, por outras palavras, que a democracia ocidental do pós-guerra, pré-formada nos EUA, nada mais é do que a ditadura mais desenvolvida, objectivada como "segunda natureza", de uma máquina social fetichista que, na verdade, faz troça da razão humana. Examinando mais de perto, também se pode facilmente ver que nas ditaduras do século XX apenas se repetiu o terror liberal do capitalismo primitivo, numa escala superior de desenvolvimento e com padrões ideológicos de legitimação deslocados. Já na doutrina de Hobbes está contida a identidade do liberalismo e da ditadura; e no primeiro democrata liberal Bentham torna-se um programa. Se nos lembrarmos do objectivo deste programa, a unidade interna da democracia e da ditadura torna-se totalmente clara: o "terror económico" do capitalismo deveria ser internalizado, até que finalmente o material humano amadurecesse para levar a cabo uma democrática execução deste terror sobre si mesmo. Enquanto este nobre objectivo não foi alcançado, todos os meios de coerção, incluindo a tortura, foram considerados legítimos pelo supremo liberal e primeiro democrata Bentham.

Se na fase inicial de Bentham a identidade da democracia e da ditadura sob as condições da máquina mundial capitalista ainda era imediatamente clara e postulada com uma abertura ingénua, no pensamento ocidental após 1945 esta identidade das duas faces da mesma moeda pôde ser obscurecida, na medida em que o projecto de Bentham se aproximava mais da sua realização e, assim, tornou-se possível jogar ideologicamente com um conceito orwelliano de "liberdade" contra os modos mais primitivos, estatais-autoritários e ditatoriais de imposição da mesma máquina social. A ameaça de repressão aberta e sanguinária permanece institucionalmente em vigor, e o liberalismo nunca deixou qualquer dúvida sobre isso (que está legalmente codificado em todos os Estados democráticos liberais ocidentais sob algum conceito de "estado de necessidade interna" ou "estado de excepção", para o caso de insubordinação importante do material humano). Contudo, com a internalização avançada das coerções sistémicas e imposições capitalistas, o material humano pode mesmo ser dotado de uma certa "auto-administração" e, em qualquer caso, participação nas modalidades da sua própria repressão, sendo assim entregue ao que Marx chamou de "coerção muda das relações" – e este cínico estado de coisas constitui a qualidade da democracia capitalista liberal em relação à ditadura capitalista estatal.

Numa fase assim avançada, a violência tem lugar principalmente na "representação de interesses" do Estado nacional / da economia nacional perante o exterior; e neste campo todas as democracias ocidentais, com o líder espiritual EUA à cabeça, nunca se comportaram de forma diferente dos carniceiros ditatoriais mais selvagens, dos violadores da lei e dos déspotas autocráticos, especialmente em relação aos chamados países "subdesenvolvidos". Na medida em que as maravilhosas democracias não quiseram sujar as próprias mãos no âmbito de medidas de maior envergadura (como na Guerra do Vietname), nunca se importaram de apoiar e alimentar ditaduras "brancas" da pior espécie e de as instalar como governantes. Foram e são aplicados dois pesos e duas medidas de acordo com os caprichos e interesses (hoje, por exemplo, no que diz respeito às aspirações de autonomia dos albaneses no Kosovo, por um lado, e dos curdos na Turquia, por outro). Os polícias mundiais (vulgo "comunidade democrática de Estados") negociam entre si o que é democraticamente legítimo, bem como o que tem de ser considerado ditadura e terrorismo.

Para além do poder arrogante de definir o que é agressão e o que é legítima autodefesa ou "defesa dos direitos humanos", a "democracia mundial" dos países capitalistamente desenvolvidos pode legitimar-se acima de tudo aproveitando a seu favor a disparidade da não-simultaneidade histórica, apontando para a violência interna e externa das ditaduras mais primitivas e capitalistamente atrasadas, enquanto não só disfarça ideologicamente a sua violência, como os seus principais crimes, para além do uso imediato da violência, surgem da "ditadura silenciosa" do mercado mundial e das suas cegas relações de concorrência, e por esta mesma razão não são vistos como crimes; não mais hoje do que no início da industrialização capitalista.

Embora a máquina mundial do capital, mascarada de "pacífica economia de mercado", nos seus efeitos objectivados tenha exigido (e continue a exigir) mais vítimas humanas e sobretudo crianças do que todas as evidentes repressões e guerras de todas as ditaduras modernas juntas, apenas estas últimas vítimas são contadas como tal, enquanto as primeiras nem sequer aparecem como vítimas nas estatísticas apresentadas de forma neutra. Como a ligação entre perpetrador e vítima apenas é imediata e directamente clara em caso de uso externo da violência, enquanto a violência económica desaparece nas suas mediações sociais e aparece na ideologia liberal como "lei natural", os perpetradores e executores da "mão invisível" podem mesmo fazer-se passar por moralistas políticos, que nem sequer se privam de apelar à compaixão e à ajuda do mundo às vítimas das suas próprias acções no seu cego resultado global. Ao fazê-lo, podem confiar na internalização em massa da pseudonatureza capitalista nas sociedades democráticas mais desenvolvidas à maneira de Bentham, e já não se reconhecem como criminosos e executores da coerção ditatorial que realmente são.

Na medida em que a não-simultaneidade histórica das sociedades do século XX não é percebida, e o passado próprio com a história sangrenta e repressiva da sua constituição é reprimido ou ideologicamente "externalizado", ao mesmo tempo que a forma económica "muda" da ditadura democrática permanece fora de qualquer reflexão crítica, as várias ditaduras do século XX aparecem então como antagonistas externos da democracia capitalista liberal. Na realidade, porém, não são, como afirma o liberal filósofo da história dos EUA Francis Fukuyama, "formas concorrentes de governo" (Fukuyama 1992, 11) desta democracia, mas sim o seu alter ego dessincronizado. Vista sob esta luz, a democracia ocidental do pós-guerra, proclamada como um "sistema vitorioso", não é o oposto externo da ditadura e o "objectivo finalmente alcançado da história" (Fukuyama), mas a forma de uma ditadura internalizada e de um projecto de Bentham mais avançado, que superou as anteriores formas directamente ditatoriais, incluindo as grandes ditaduras na sequência da guerra mundial e da crise económica mundial.

 

 

Original Diktaturen und »Krieg der Welten«, pags. 248-254 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (2.2021).

Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

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