Robert Kurz 

A crise que veio do Leste

Contra a ilusão da "vitória" do Ocidente e da sua economia de mercado

 

É famosa a profecia de Alexis de Tocqueville de há mais de 150 anos: "Há hoje dois grandes povos na Terra que – partindo de pontos diferentes – parecem avançar para o mesmo objectivo: os russos e os anglo-americanos [...] Para alcançar o seu objectivo, o americano confia no interesse privado e deixa a força e a razão do indivíduo trabalhar sem o dirigir. O russo, por assim dizer, congrega todo o poder da sociedade num só homem. A liberdade é o estímulo de um, a servidão o do outro. O seu ponto de partida é diferente, diferentes são os seus caminhos; e no entanto, de acordo com algum plano secreto da Providência, cada um parece chamado a dirigir os destinos de metade da Terra um dia".

Muitas vezes esta profecia foi citada com admiração na era pós-guerra das duas "superpotências". Agora, no final dessa época, o princípio americano parece ter prevalecido contra o russo, o ocidental contra o oriental. São apenas os Estados Unidos que doravante dirigem os destinos de toda a Terra? Será o impulso da liberdade em forma de mercado que regulará o One World do dinheiro total a partir de agora até à eternidade? Curiosamente, os americanos e os ideólogos ocidentais da liberdade de mercado parecem acreditar mesmo nesta opção, embora os acontecimentos possam ser lidos de forma bastante diferente.

Falar da vitória sistémica do Ocidente implica uma descrição incompleta, para dizer o mínimo, da situação real do mundo. Deveria ter dado que pensar que o fim do conflito sistémico Oeste-Leste não foi seguido pela paz eterna kantiana de uma sociedade mundial em forma de mercado, mas que a segunda Guerra do Golfo, a guerra civil jugoslava, os conflitos armados na União Soviética em colapso e os aleatórios movimentos mundiais de refugiados parecem antes anunciar uma era de guerra civil mundial (Carl Schmitt) com frentes confusas. Não foi apenas o Leste que foi atingido pelo colapso sistémico. Já uma década antes tinha começado o colapso do Sul, das grandes regiões descolonizadas que na era das superpotências eram tratadas como Terceiro Mundo e que na sua maioria eram dominadas por regimes desenvolvimentistas pró-ocidentais. Para a maioria da África, América Latina e Ásia, a integração no mercado mundial tornou-se uma catástrofe socioeconómica sem fim à vista e que já produziu condições apocalípticas. Apenas alguns "países emergentes" foram capazes de demonstrar sucesso, reconhecidamente não no sentido do desenvolvimento social global, mas apenas com fábricas de alta tecnologia orientadas para a exportação unilateral para o mercado mundial, que como meros corpos estranhos insulares são incapazes de integrar a maioria da população.

 

Pobreza mundial

As massas desenraizadas do globo já estão a tornar-se uma ameaça para as ilhas em declínio de normalidade e prosperidade do Ocidente. O fundamentalismo do mundo muçulmano humilhado não é um tradicionalismo, mas um fenómeno "pós-moderno": a inevitável reacção ideológica à falhada modernização ocidental. Não é apenas no Magrebe às portas da Europa que já começa a ouvir-se o estrondo de um terramoto social impossível de travar por quaisquer slogans de mercado livre. E se por enquanto não há produção ideológica anti-ocidental correspondente na América Latina, aí está a não menos temível máfia da droga, que com os seus milhares de milhões de dólares se tornou a única fonte de rendimento monetário para milhões de pessoas e o pilar de apoio no mercado mundial para os Estados andinos. É ridícula a indignação moral da sociedade oficial ocidental, que através dos seus próprios défices sociais e humanos criou o mercado da droga em primeiro lugar e que fez precisamente do rendimento monetário a única condição de vida (nos EUA até impressa no cartão de visita como um marcador de odor social).

Ao contrário das massas desiludidas do Sul, as do Leste ainda acreditam na promessa ocidental, porque até ontem estavam literalmente presas num suposto contra-sistema e aparentemente julgavam de forma muito ingénua o outro mundo pelas imagens da publicidade na televisão. Mas se se verificar que o Ocidente não os pode integrar de todo, que eles devem permanecer "fora de portas" de uma vida digna, como as massas do Sul, então a decepção inevitável poderá ser descarregada de formas ainda mais violentas do que as do fundamentalismo ou da máfia da droga. O entusiasmo inicial pela formalidade das eleições livres já desapareceu, e a participação nas mesmas na Hungria, por exemplo, caiu para o nível dos Estados Unidos (abaixo dos 30 por cento). A reunificação alemã ameaça tornar-se uma crise permanente em vez de uma "nova posição de potência mundial". E as cenas de Bari, perto das praias de férias, mostraram o furor da pobreza incontrolável, que não obedecerá a quaisquer "leis da economia de mercado". Quatrocentos milhões de pessoas famintas por um nível de vida não serão enganadas com uma camisa, um par de calças e o equivalente a 70 marcos por cabeça, como as autoridades italianas tentaram fazer.

Esperam-se melhorias, promete-se ajuda; a "década perdida" para a enorme massa de pobreza mundial na socialização mundial do dinheiro deve dar lugar à prosperidade da nova economia de mercado. Mas as palavras vazias podem em breve soar aos povos do Leste como as promessas do estalinismo de um futuro imaginário, com o qual os infinitos sofrimentos do presente eram justificados. Se o Sul global já sofreu um naufrágio cruel com a gloriosa economia global do Ocidente, por que razão deveria o Leste sair-se melhor agora, após a queda da Cortina de Ferro? Se as massas de milhões de África e da América Latina já não puderam construir "novos mercados", como não puderam as do subcontinente indiano, por que razão deveria a economia de mercado ser mais bem sucedida no Leste? Talvez esteja a emergir um cenário muito diferente do ingenuamente esperado: nomeadamente, a incapacidade absoluta da socialização capitalista moderna para absorver a esmagadora maioria da humanidade global no seu processo reprodutivo. A pretensão absolutista de que todo o mundo deveria seguir as leis ocidentais de mercado, concorrência, dinheiro e democracia teria então de se envergonhar da forma mais embaraçosa.

A ultima ratio de uma violenta administração policial do planeta, tal como foi tentada na acção da ONU contra o Iraque, dificilmente pode ser considerada como perspectiva de uma "família de nações". Em qualquer caso, esta foi talvez a última e em grande parte irracional demonstração de força de uma potência mundial em declínio, que se armou até à morte não menos que a sua contraparte oriental e só pode adiar a sua morte por mais tempo graças aos mercados financeiros internacionais. Por detrás da húbris dos EUA de querer ditar uma "nova ordem mundial" a toda a humanidade, da qual o seu presidente nem sequer conseguiu desenvolver uma vaga ideia, já não existe qualquer poder económico e técnico correspondente. Mas também nenhum outro centro está em posição de tomar o lugar dos EUA; muito menos uma Europa que já está visivelmente a ser arrastada para o turbilhão da crise do Leste e que não consegue lidar com o barril de pólvora islâmico nas margens do seu mar doméstico. Mesmo uma segunda demonstração de força como a que foi feita contra Saddam Hussein poderia ser ruinosa; mas o mundo está cheio de monstros autogerados do Ocidente que começam a assumir vida própria sob a pressão da desintegração e da falha da modernização.

 

A vitória de Pirro

Afinal, as fanfarras ocidentais da vitória mal conseguem abafar o facto de o verdadeiro poder integrador da economia de mercado também ter diminuído internamente há muito tempo, mesmo que por enquanto não pareça existir nenhuma alternativa formulável após o colapso do Leste. Desde a década de 1970, em contraste com a prosperidade do pós-guerra dos anos do milagre económico, o movimento do mercado mundial ocidental já não é capaz de integrar na sua totalidade as pessoas das regiões da OCDE. Cada vez mais "perdedores" estão a ser atirados para trás dentro do próprio Ocidente, para o nível de pobreza do qual o Leste está apenas a tentar escapar. Países e regiões inteiros já se tornaram o "Terceiro Mundo dentro do Primeiro Mundo", e milhões de cidadãos ocidentais diferem apenas marginalmente no seu nível de vida real das massas do Leste. Nunca antes o fosso social nos Estados Unidos foi tão grande como é hoje; os pontos de pobreza no mapa da Grã-Bretanha estão a crescer inexoravelmente. Mesmo no topo da pirâmide mundial, as figuras dos sem-abrigo estão a subir de mês para mês; e os supostos super-vencedores do Japão estão a viver na sua maioria quase como ratos de laboratório. A vitória da economia de mercado parece equivaler à favelização do mundo.

Tudo isto já não são meras manchas no One World da economia concorrencial ocidental. A celebração da vitória desmente-se si própria quando os cadáveres jazem entre as mesas. Não foi apenas a União Soviética que perdeu, mas foi a época das "superpotências" em geral que chegou ao fim. E não foi só a economia planeada do Leste que falhou, mas também a economia de mercado do Ocidente. Só uma consciência que teima em continuar a pensar em termos da velha constelação chegada ao fim pode querer proclamar aqui um "vencedor".

É pois possível que as "bases comuns do negócio" do sistema mundial moderno tenham começado a vacilar. Vale a pena reflectir sobre o "mesmo objectivo" para o qual Tocqueville realmente viu o Leste e o Oeste "avançarem" igualmente na sua visão político-económica. Não era a banalidade idêntica de meras reivindicações de poder, apoiadas por recursos em grande escala, que poderia ter sido entendida por um analista desta categoria, mas sim a forma básica comum, então ainda percebida como obscura, do que é hoje geralmente chamado de "modernidade". Não foram princípios mutuamente excludentes que se enfrentaram, mas apenas caminhos diferentes para uma e mesma forma de socialização da modernidade.

Como é bem sabido, os Estados Unidos não tinham nenhuma base feudal ou pré-moderna, pré-capitalista para desmantelar e remodelar. O "interesse privado" e a "razão do indivíduo" puderam operar directamente sobre as suas próprias bases. Esta situação de ponto zero, porém, estava ausente não só na Rússia, mas também na Europa e no resto do mundo em geral. Aqui, portanto, a "modernização" tomou sempre uma forma de "imposição" estatista, absolutista ou dirigista (e muitas vezes de economia estatal). As estruturas de economia coerciva e de economia de guerra do absolutismo mercantilista apenas se afundaram na história para regressar modificadas na era da guerra mundial no Estado social e de armamento keynesiano. Mesmo os Estados Unidos, no seu papel cada vez mais deficitário e parasitário de potência mundial, não foram poupados a isto após a Segunda Guerra Mundial (como é documentado pelo debate interno há muito inconclusivo sobre o fardo da "economia de guerra permanente"). A "Reaganomics" aparentemente radical do mercado criou mesmo adicionalmente uma "secreta economia estatal" de proporções gigantescas com o boom do armamento dos anos 80, que só poderia ser revertida ao preço das fricções mais severas. A servidão abstracta da economia estatal e a liberdade abstracta da economia de mercado são mutuamente dependentes e alternantes na acentuação histórica dos impulsos da modernização. A servidão "russa" no sentido de Tocqueville não seria, portanto, nada anti-ocidental, mas sim o modo russo de ocidentalização; e não apenas o modo russo, mas, historicamente, o modo não americano no seu conjunto. Por toda a Europa, a liberdade ocidental passou por camisas de força de terrorismo de Estado das mais diversas cores: de Cromwell a Robespierre, de Napoleão a Bismarck, sem esquecer Hitler, a propósito. Estaline de modo nenhum cai fora  desta série, que é uma série de estações diferentes e contraditórias, mas estações de algo idêntico. Se este idêntico fosse nomeado como tal, para além dos seus conceitos superficiais de "Estado" e "mercado" (ou "servidão" e "liberdade"), teria de ser definido, com o repetida e prematuramente declarado morto Karl Marx, como um sistema de trabalho abstracto.

Este estranho termo, nunca mobilizado na sua potência crítica pelo marxismo do movimento operário nem pelo marxismo soviético, mas assumido afirmativamente, aponta para esse "mesmo objectivo" vislumbrado por Tocqueville, para a verdadeira forma basilar da modernidade. Este trabalho abstracto da modernidade, determinado no seu mecanismo funcional como o "automovimento do dinheiro" (Marx), difere fundamentalmente de todas as outras formas históricas de reprodução. A riqueza já não é definida concretamente como "sensível", mas abstractamente como "não-sensível", tornada um espectro, até ao puro impulso da contabilidade electrónica. As necessidades sensíveis têm de submeter-se às leis abstractas da autovalorização do dinheiro. A exploração abstracta em economia empresarial da força de trabalho e dos materiais naturais, sem ter em conta o seu conteúdo sensível, exige o condicionamento dos seres humanos para este fim que lhes é exterior. A este respeito, a liberdade de mercado dificilmente é uma servidão menor do que a da burocracia estatal, porque a "razão do indivíduo" já está presa a priori nas leis coercivas do dinheiro (ideologicamente transformadas em "ser humano" por excelência). Não foi esta máquina social de abstracção enquanto tal que o marxismo do movimento operário criticou, sendo que ele mesmo ainda pertencia a este mundo, mas apenas o seu suposto mecanismo de distribuição "injusto", nesta forma pressuposta como natural. Certamente, esta modernidade teve os seus lados emancipatórios. Até expandiu tremendamente as próprias necessidades sensíveis, embora não de forma consciente, mas seguindo cegamente o propósito abstracto da valorização. Por esta razão, contudo, o mesmo processo foi sempre acompanhado de uma destruição tremenda desde o seu início. Só poderia correr "bem" (se este eufemismo for permitido) enquanto ainda tivesse margem de manobra para a produção e expansão, contra a pobreza de necessidades pré-moderna e o "subdesenvolvimento". Mas já a forma "russa" de servidão para a ocidentalização indica em retrospectiva a sua precariedade. Reconhecidamente, a economia soviética também seguiu a lógica básica do trabalho abstracto. Mas, ao contrário da Europa Ocidental, a forma  de imposição "absolutista", de economia de caserna, já não pôde ser sacudida ou modificada. A razão para isto parece residir no nível mais elevado de desenvolvimento do sistema global como um todo: cada "recém-chegado" tem de entrar com uma entrada de capital cada vez maior. Já no início do século XX, isto só era possível através de uma centralização cimentada e de longa duração dos "processos de criação de valor" abstractos. Visto a esta luz, contudo, o sistema soviético não deveria ser chamado "proto-socialismo" (Rudolf Bahro), mas sim, pelo contrário, "protocapitalismo", que, contudo, já não poderia atingir a maturidade da ocidentalização. A concorrência do mercado interno teve de permanecer excluída a fim de poder resistir temporariamente à concorrência externa do mercado mundial.

Mas um sistema de exploração abstracta em economia empresarial, despojado do seu próprio mecanismo regulador interno da concorrência no mercado, obviamente só é adequado para fazer surgir as estruturas mais cruas da industrialização nesta forma da modernidade (alfabetização, electrificação, indústrias do carvão e do aço, construção ferroviária, etc.). Depois disso, tem de passar à estagnação. Este foi o destino sofrido, mesmo antes da economia soviética, pelos países "em desenvolvimento" do Terceiro Mundo, que também nas suas versões pró-ocidentais tinham necessariamente confiado em planos quinquenais, economias estatais e projectos de industrialização subsidiados. O Ocidente que, nas suas próprias bases mais desenvolvidas, entretanto há muito se tinha apressado a afastar-se daí, não podia ser apanhado assim.

A maioria das tentativas de industrialização ou permaneceram abaixo do nível de produtividade global determinado pelos líderes desde o início, ou rapidamente voltaram a ficar para trás. Através do mercado mundial, contudo, as estruturas protomodernas ou "semimodernizadas" dos vários atrasados permaneceram forçosamente compatíveis com as economias ocidentais. O resultado foi devastador: através do declínio dos termos de troca (a relação entre os preços de exportação e importação), as economias subprodutivas mergulharam numa crise de dívida com a subsequente desindustrialização – primeiro as do Sul (politicamente menos isolado), agora também as do Leste.

É com um singular cinismo que os peritos ocidentais hoje exortam (ou forçam, através das instituições financeiras internacionais) as várias economias em colapso a "abrir-se", desmantelando o mais radicalmente possível a economia estatal, através da desregulamentação e da privatização. Esta "cura" só pode ser mais mortal do que a doença, porque as suas indústrias, que já não são competitivas com a protecção económica estatal, mais rapidamente são assim derrotadas e arrasadas. A revolução microelectrónica não reduziu a intensidade de capital da produção e, sobretudo, a entrada de capital necessária para os custos iniciais do desenvolvimento e das condições de enquadramento das infra-estruturas, mas aumentou-os vertiginosamente. As condições para participar ou começar a participar na concorrência global tornaram-se ainda piores para os mais fracos. Em vez de se poder finalmente passar ao consumo, após décadas de eterno investimento nas extensas estruturas básicas da indústria pesada, os enormes recursos de investimento para as estruturas de informatização e robotização em grande escala teriam de ser cortados das costelas das pessoas durante mais décadas. Isto não é sustentável. A lógica da concorrência ocidental conduz-se a si mesma ao absurdo, justamente na sua "vitória" como sistema mundial.

 

Colapso do Ocidente

Actualmente fala-se muito do "preço da modernidade", que tem de ser pago de uma forma ou de outra. Mas este preço tornou-se demasiado elevado para a maioria da população mundial. Se o capital monetário necessário fosse emprestado às economias em colapso, os custos dos juros teriam de exceder os retornos possíveis na maioria dos casos, como já foi praticamente provado. Mas este capital não pode continuar a ser-lhes emprestado, e muito menos ser-lhes dado, porque o Ocidente há muito que ultrapassou os seus próprios encargos internos (dívida nacional) e externos (défices da balança comercial e de capital) do princípio abstracto da valorização. O Ocidente também corre o risco de produzir as suas economias em colapso. Depois de África, América Latina e Europa de Leste, o mundo anglo-saxónico e os capitalismos do sul da Europa poderão em breve estar a afogar-se num oceano de falências. O fantástico sobreendividamento de indústrias inteiras, a insana superestrutura especulativa internacional (especialmente no Japão) e a fome incontrolável de capital monetário fresco estão também a levar o próprio "vencedor" à catástrofe monetária, talvez até ao final dos anos 90.

A cantiga da "partilha", popular entre todos os políticos do estado de necessidade do status quo do mercado livre, segue uma falsa melodia. Se houvesse muito pouco pão, ou poucos meios de produção para o produzir, então os bons cristãos poderiam cantar a sua cantiguinha. Mas a lógica ocidental da economia de mercado equivale a encerrar recursos técnicos perfeitamente intactos em cada vez mais países por falta de "rentabilidade". As pessoas devem passar fome e deixar os meios de produção existentes por utilizar, simplesmente porque a lei do dinheiro não pode ser satisfeita. Quanto tempo vão aguentar isto? A peritocracia ocidental, na sua celebração do mercado, ainda não notou que os fenómenos antes meramente temporários da crise do mercado se tornaram uma condição estrutural da sociedade mundial.

Mês após mês, os mecanismos de mercado estão cada vez mais fora de controlo, e as tentativas do Estado para reagir permanecem desamparadas. Os reformados polacos são forçados a viver na pobreza porque os seus rendimentos já não são suficientes para comprar produtos agrícolas polacos, cujos preços tiveram de ser aumentados. Agora estes produtos devem ser exportados para a União Soviética, mas, devido à falta de solvência, isto só pode ser conseguido com a ajuda de empréstimos ocidentais, cujos juros, por sua vez, podem ter um efeito negativo nos rendimentos soviéticos. Talvez os alimentos acabem por ser devidamente "eliminados"; um estado de coisas que há muito foi alcançado no louco sistema da agricultura da CE e que se tornou a norma.

 

O fim da modernidade

Seja em termos de economia estatal ("mercado planeado") ou de economia da concorrência ("mercado livre"): o sistema básico comum da modernidade, a exploração em economia empresarial de trabalho abstracto, para lá das necessidades sensíveis, parece estar historicamente no fim. Em vez de serem úteis e de facilitarem a vida, as forças produtivas cientificizadas, impulsionadas cegamente pela concorrência, mergulham o mundo na miséria, porque continuam compulsivamente acorrentadas à forma de produção de lucro abstracto. Em todas as suas variações, esta é uma forma de reprodução da sociedade que externaliza sistematicamente os seus custos sociais e ecológicos: das "empresas" no Estado, do dinheiro na natureza, dos vencedores nos vencidos. Mas, quando todo o mundo está coberto com unidades de exploração abstracta de economia empresarial, em níveis de produtividade e de intensidade de capital elevados e para a maioria insustentáveis, não há obviamente nenhuma maneira de continuar nesta forma.

Só no caso dos poucos vencedores é que os "custos do negócio" sociais e ecológicos do sistema podem ainda (e cada vez mais dificilmente) ser subsidiados. Cada "lucro" no mercado mundial está ligado a tanta destruição noutros locais que a reparação das fundações sociais e naturais no próprio território com ele financiada se torna inútil. Se metade da Amazónia tiver de ser destruída para manter a floresta alemã assim-assim, e se cem mil "postos de trabalho" na periferia tiverem de ser eliminados para preservar dez mil na Europa Central, então as contas já não podem bater certo.

A extrapolação ideológica das ligações globais e o descarado apelo aos desesperados perdedores permanentes para fazerem o mesmo que os supostos vencedores estão gradualmente a tornar-se um desaforo para o pensamento lógico. A economia de mercado também não é uma forma de sociedade para toda a eternidade. Mas, uma vez que não pode haver um regresso atrás da modernidade, e isso também não é desejável, a modernidade tem lamentavelmente de cancelar-se a si própria. A "pós-modernidade" (que ainda não tem nome próprio) não pode, contudo, continuar a ser apenas uma figura cultural ou teórica, mas irá inevitavelmente assumir também a forma económica básica. O processo de valorização da economia empresarial, meramente macaqueado pelo Leste de uma forma grosseira e de economia estatal, tem de ser paralisado e substituído por uma "organização social mundial das necessidades sensíveis".

Esta revolução, embora mais profunda do que todas as revoluções modernas, deixou há muito de ser uma questão de "utopia". Se as pessoas já não podem ajudar-se com dinheiro, têm de ajudar-se sem ele e contra ele. Do debate sobre as emergências e catástrofes crescentes, são inevitavelmente exigidas "medidas". Já foram feitas observações mordazes na imprensa ocidental, de que a máquina militar americana conseguiu enviar dezenas de milhares de caixões de plástico para o deserto saudita e voltar com eles para casa novamente por serem desnecessários, mas que supostamente faltam os "meios" para levar rações militares armazenadas para as áreas de fome africanas. O mesmo problema surge agora perante os lagos de leite invendáveis. Montanhas de manteiga e de carne de vaca nos entrepostos frigoríficos da CE em relação às vítimas da fome albanesa ou romena a algumas centenas de quilómetros de distância. Que não haja, porém, ilusões: Na situação mundial actual, acções de redistribuição grátis de tais dimensões deixariam de ser um cenário meramente temporário de ajuda humanitária de emergência, para se tornarem o início do fim da economia monetária abstracta. O fim da tão invocada modernidade, que começa a violar a sua própria lei formal.

Claro que também há outras maneiras. Uma foto duma agência noticiosa mostra uma criança soviética, num cruzamento no meio do smog, a limpar as janelas dos carros para ganhar alguns kopeks (uma imagem familiar na América Latina). A nojenta legenda diz: "O astuto rapaz de Moscovo compreendeu perfeitamente o espírito da Perestroika. O medo do mercado livre e os obstáculos burocráticos são desconhecidos para o jovem empresário". Um mundo cujo espírito se esgota em tão árida vulgaridade já não tem futuro. Se as "vitórias" do Ocidente continuarem nesta linha, ele a si próprio se derrotará até à morte.

 

 

Original Die Krise, die aus dem Osten kam. Wider die Illusion vom »Sieg« des Westens und seiner Marktwirtschaft” em https://www.exit-online.org. Primeira publicação em: Helmut Thielen (Hg.): Der Krieg der Köpfe – Vom Golfkrieg zur neuen Weltordnung [A guerra das cabeças - Da guerra do Golfo à nova ordem mundial], Bad Honnef 1991, p. 149–159. Tradução de Boaventura Antunes

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