O Livro Negro do Capitalismo
Capítulo 6
História da Segunda Revolução Industrial
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Secção 7
O Sonho Perdido e o Furor Capitalista
A metamorfose capitalista da Segunda Revolução Industrial pode ser descrita como a formação de estruturas básicas idênticas, do mesmo modo para a União Soviética, a Alemanha Nacional-Socialista e os EUA, no contexto sistémico da irrupção do capitalismo fordista pleno. Neste contexto comum, no entanto, as diferenças históricas também se tornam claras. Isto aplica-se, em primeiro lugar e acima de tudo, à União Soviética capitalista de Estado. Em relação aos EUA e à Alemanha Nazi, esta sociedade pode ser considerada como historicamente não-simultânea em sentido estrito – como o protótipo da "modernização atrasada" com economia estatal no século XX. Aqui, como mais tarde na China e nas revoluções "nacionais" do Terceiro Mundo, pode ser sentido o páthos da Revolução Francesa. Como Revoluções Francesas do Leste e do Sul, estes regimes representaram uma verdadeira fase de juventude do moderno sistema produtor de mercadorias e do seu "trabalho abstracto", de certo modo um estado de agregação anterior em termos de relatividade temporal. Por conseguinte, no que diz respeito ao momento ditatorial, a União Soviética, em comparação com o nacional-socialismo alemão, não era uma ditadura de crise, mas uma ditadura de desenvolvimento. Vista na imanência, esta é uma diferença decisiva.
Incluída nesta constelação está uma certa situação histórica difícil para a "modernização atrasada" soviética. E é precisamente a este nível que uma relativização e uma "historicização" do chamado estalinismo, ou da ditadura soviética em geral, teria de começar, ou seja, exactamente ao contrário de Holte. Não para desculpar os crimes específicos do Estado soviético, mas para fazer justiça a uma situação problemática das regiões do mundo capitalistamente periféricas, que não pode ser afirmada precisamente para a Alemanha nazi. Esta situação difícil da União Soviética tinha duas vertentes.
Por um lado, já não podia seguir um caminho de desenvolvimento fundamentalmente diferente do traçado pelo capitalismo ocidental, mesmo que se legitimasse a si própria criticando o capitalismo. Mas esta legitimação só podia exprimir a concorrência da periferia "atrasada" contra o centro. Historicamente, o processo mundial já tinha sido decidido no século XVIII (e em alguns aspectos ainda mais cedo). Os últimos participantes do século XX partiram de condições que já se tinham tornado história noutros lugares, mas claro que não estavam realmente no século XVII ou XVIII, estavam a operar num mundo já transformado pelo capitalismo. E não era apenas o mundo "lá fora", lá longe no Ocidente, mas também a presença do Ocidente capitalistamente adiantado dentro destas sociedades, e não apenas em termos técnicos, ou como a há muito objectivada dependência da periferia relativamente ao mercado mundial e aos seus critérios. Pelo contrário, a "consciência do mundo" também já era uma consciência capitalista, que tinha transportado categorias e critérios capitalistas para a intelectualidade de todas as regiões do mundo através de meios de comunicação moldados pelo capitalismo. E, neste sentido, o marxismo podado da ideologia soviética não foi de modo nenhum apenas um produto do "subdesenvolvimento" russo sob o regime czarista, mas foi sobretudo uma manifestação da consciência socialista e operária capitalistamente domesticada em geral (daí a ênfase de Lenine e Estaline na "ocidentalização"). Como filial e parte integrante da ideologia estatal-socialista emanada do Ocidente, o bolchevismo russo já foi filtrado através da história ocidental de adaptação ao "trabalho abstracto" do sistema industrial produtor de mercadorias. De onde haveria de vir ali uma redefinição "inocente" contra a maré da história?
Acresce que esta não-simultaneidade num mundo determinado pelos padrões do capitalismo contemporâneo significava que, mesmo seguindo o caminho do desenvolvimento marcado pelo Ocidente, não se podia simplesmente repetir o mesmo processo à mesma velocidade, mas tinha de se entrar ao nível do século XX. Por um lado, portanto, a "acumulação original" de capital foi repetida nas formas de economia estatal dos séculos XVII e XVIII, com uma legitimação estatal modificada como socialista; por outro lado, este processo já tinha de ocorrer como um processo industrial, com uma elevada entrada de capital; e não apenas como um processo industrial, mas sob as condições e nas formas do protofordismo. O fardo imposto às massas era assim duplo: elas tinham de suportar não só os custos (e os horrores) da implementação de um moderno sistema produtor de mercadorias, mas também os custos de uma indústria surgida do nada com padrões de produtividade contemporâneos.
O que hoje é meticulosamente listado como "crimes do comunismo" na literatura apologética dos militantes ideólogos democráticos ocidentais nada mais foi do que a repetição temporalmente comprimida dos primeiros horrores do capitalismo. Definir os campos do Gulag como as consequências de uma alternativa supostamente anticapitalista (e assim, claro, exorcizar qualquer ideia de uma alternativa real), esquecendo simplesmente o inferno da história da imposição do capitalismo ao longo de vários séculos – apenas "historiadores científicos", treinados no trabalho de recalcamento democrático, podem chegar a essa ideia. A fome do início da década de 1930, com milhões de mortos, foi o resultado de uma rígida política de industrialização, cujos custos foram espremidos especialmente da grande massa da população rural. Uma década completa desta tremenda repressão teria de ser contrapesada, se se começar a contar meticulosamente, contra um ou dois séculos completos da mesma qualidade, acumulados na história da modernização ocidental. Mas as vidas humanas não podem ser contrapesadas assim. O que tudo isto quer dizer é apenas que o moderno sistema produtor de mercadorias não vale de modo nenhum o custo do sofrimento na história da sua imposição.
Os sacrifícios humanos da industrialização soviética, porém, não se deveram às consequências de uma crise capitalista, mas a uma construção violenta de sistemas industriais capitalistas (estatais) e à aplicação das normas do "trabalho abstracto". Ao mesmo tempo que o Ocidente mais adiantado estava a afundar-se no turbilhão da crise económica mundial, e a irracionalidade de um capitalismo desenvolvido estava a ser demonstrada pelo encerramento em massa da produção, a União Soviética experimentava elevadas taxas de crescimento. Os recursos espremidos da população foram transformados em capital monetário, que foi utilizado para comprar bens de capital no estrangeiro para a industrialização. O jornalista americano H. R. Knickerbocker até escreveu um best-seller sobre o assunto com o título "A ameaça do comércio vermelho" (1931). Isto envolveu grandes somas de milhares de milhões. É uma das ironias perversas da história que a industrialização forçada da União Soviética tenha assim realmente tido um efeito amortecedor (embora não decisivo) sobre a crise económica mundial no Ocidente:
"A União Soviética [...] tinha sido o único grande Estado a escapar à crise económica mundial [...] Um grande número de trabalhadores alemães qualificados estava empregado nas fábricas soviéticas, e os seus salários, como até os industriais admitiam, não eram 'nada desfavoráveis'. Mas isso não foi tudo; a União Soviética também garantiu empregos na Alemanha através da sua procura de bens industriais. Em 1931, 74% das máquinas-ferramentas exportadas pela Alemanha foram fornecidas a empresas soviéticas" (Blaich 1985, 75).
Enquanto o mundo ocidental de um capitalismo já envelhecido parecia ter atingido os seus limites, e já não conseguia gerir a transição para a Segunda Revolução Industrial, a União Soviética esperava poder colocar-se na vanguarda do desenvolvimento mundial com os métodos da crueldade capitalista precoce. Fê-lo com a ênfase de um "direito" histórico, a saber, a vontade dos atrasados de não ficarem reduzidos ao hinterland dependente e explorado dos centros capitalistas. Este impulso de sacrificar o presente ao futuro, em nome de uma entrada em pé de igualdade no mercado mundial industrial, ajudou a dar relativo "significado" aos sofrimentos e atrocidades, e a recalcar as suas consequências assassinas.
Mas não é só neste sentido que se mostra uma relativização e "historicização" da ditadura soviético-estalinista, uma relativização que tenha em conta o problema da não-simultaneidade histórica em vez de o ignorar. Além disso, é preciso mencionar um aspecto desta ditadura que aponta realmente para o futuro, mesmo que apenas de uma forma negativa. Nomeadamente, na medida em que a ditadura de desenvolvimento capitalista estatal também legitimou a "modernização atrasada" em relação de concorrência com o Ocidente com uma ideologia concorrente, como é sabido, o marxismo, continha uma autocontradição adicional na consciência. É claro que a teoria de Marx, que já tinha sido adoptada numa forma podada pelo marxismo do movimento operário ocidental, foi ainda mais distorcida, rigidificada e dogmatizada sob a pressão de uma "acumulação original" protocapitalista. Os próprios componentes da teoria de Marx outrora herdados do liberalismo, que tinham contaminado este pensamento de emancipação social radical com categorias capitalistas, formaram numa forma vulgarizada o núcleo da ideologia da modernização capitalista estatal; aqui os "exércitos do trabalho" do Manifesto Comunista tornaram-se o modelo legitimador de um protofordismo extremamente grosseiro e francamente primitivo.
Mas o "outro" Marx, o crítico do fetichismo moderno do "trabalho abstracto" e da autotélica "valorização do valor", não pôde no entanto ser completamente suprimido, mesmo neste contexto. Este pensamento de emancipação das imposições do moderno sistema produtor de mercadorias, ao encontro do qual já não vinha qualquer impulso de movimento social, assombrava a teoria da legitimação soviética como um fantasma, por assim dizer. A ideia marxista de abolir positivamente os dois pólos da capitalista generalidade abstracta da sociedade – dinheiro e Estado – através de uma "associação de pessoas livres" atormentou a ideologia soviética como a voz de uma má consciência teórica. Daí a literatura, proliferando como uma ténia e enchendo bibliotecas, que discutia a estranha questão de haver produção de mercadorias e "trabalho abstracto", mesmo sob o socialismo. Também não é sem horror que se lêem as alucinantes figuras de argumentação de um Estaline, que estava determinado a provar o absurdo de que o programa marxista de retirada do alienado aparelho estatal moderno para a auto-organização da sociedade tinha de tomar a justamente forma de uma máquina estatal particularmente rígida. Nada do género foi nem é o problema de um capitalismo comum, genuinamente ocidental, que nunca foi perturbado por uma consciência teórica nas suas crueldades.
Assim, na "modernização atrasada" soviética, e mais genericamente na ideologia do domesticado movimento operário e da esquerda em geral, houve (e ainda há) um momento não cumprido; aquele "sonho" de que Marx outrora tinha falado, e que só pode ser cumprido quando um movimento social, que já não possa ser definido como o gado que a si mesmo se vende nos mercados de trabalho, se juntar a uma crítica teórica do sistema fetichista moderno. O fosso entre estes dois pólos da emancipação, escancarando-se desde a desintegração histórica das antigas revoltas sociais e dos elementos da teoria de Marx que não puderam ser integrados, ainda hoje não foi colmatado.
Este sonho não cumprido, porém, não assombrava só como um espectro teórico; também estava contido na estrutura institucional da União Soviética. O termo "soviete" refere-se a um impulso social que rapidamente desapareceu e foi absorvido pelas brutalidades da "modernização atrasada", mas que, no entanto, não pode passar despercebido. "Sovietes" hoje em dia faz pensar automaticamente na defunta máquina estatal de Estaline e dos seus sucessores, no regime de uma ditadura de desenvolvimento. Como é sabido, porém, eram originalmente os "conselhos", os órgãos autónomos dos produtores, com uma reivindicação que já tinha aparecido nos princípios da Comuna de Paris: nomeadamente, submeter todos os assuntos sociais, a utilização dos recursos e das forças produtivas modernas a um processo de discussão e de tomada de decisões com a participação de todos os membros da sociedade.
Esta reivindicação de auto-organização abrangente fracassou na revolução russa não só devido a uma falta de desenvolvimento das forças produtivas, mas ainda mais porque a "consciência mundial", incluindo a do movimento operário socialista, já estava completamente contaminada pelo capitalismo. A ideia de autogestão através dos conselhos permaneceu assim (como na Comuna de Paris) limitada em termos de sociologia de classes e de organização, enquanto a forma social de economia monetária e "trabalho abstracto" para a produção de mercadorias aparecia como um quadro natural de referência, e não foi de modo nenhum entendida como incompatível com a reivindicação de uma auto-organização livre e consciente. Mas uma discussão consciente e uma decisão conjunta sobre a utilização de recursos, justamente nas categorias de uma máquina social cega e autotélica, é uma impossibilidade lógica e prática. A este respeito, não foi simplesmente a substituição dos conselhos pela "ditadura do Partido" que destruiu o projecto de autogestão social, como acreditavam alguns críticos do desenvolvimento soviético, eles próprios ainda limitados à sociologia organizativa, mas o próprio agrilhoamento da consciência das massas nas formas de reprodução capitalista.
No entanto, o horizonte da emancipação social continua a ser o de controlar as forças produtivas avançadas através de um processo abrangente de discussão social, e não através da pseudofísica dos mercados e das suas "leis naturais" não negociáveis. Foi justamente Henry Ford que sentiu na ideia dos conselhos o grande perigo para a máquina social capitalista:
"Assim que os conselhos tomaram conta das fábricas russas, tudo foi à ruína e destruído; a discussão ganhou vantagem sobre a produção" (Ford 1923, 5).
Claramente, do ponto de vista do fim-em-si capitalista, debates prolongados sobre o significado e a finalidade do que está a ser produzido, e em que condições, com que consequências etc. devem parecer uma completa perda de tempo, mera tagarelice e, em última análise, "ruína e destruição". Os produtores não devem discutir, mas sim gastar o melhor possível a sua energia de modo altamente condensado, para que ela possa ser transformada em dinheiro, e de resto manter a boca fechada no espaço funcional abstracto do capital. Uma vez que o fim-em-si da valorização é inapelavelmente anterior a qualquer ponto de vista qualitativo e ao bem-estar dos produtores, as pessoas não podem perguntar e esclarecer o que realmente obtêm da produção, mas, exactamente ao contrário, é a produção tornada independente que, por assim dizer, pergunta primeiro se obtém algo das pessoas (nomeadamente, excedente suficiente sob a forma de dinheiro).
Ford, no entanto, não precisava de se preocupar muito. Os conselhos rapidamente degeneraram numa mera simulação de auto-organização, sujeitando a reprodução social àquele objectivo fordista que os protagonistas do socialismo de Estado já tinham interiorizado – mesmo que a realização destes princípios ainda tivesse um longo caminho a percorrer. Pouco depois da Revolução de Outubro, Lenine usava quase as mesmas palavras que Ford para fustigar a "tendência para substituir a acção pela discussão, o trabalho pela conversa" (Lenine 1961/1917, 410). Em Julho de 1923, foi fundada na União Soviética, com toda a seriedade, uma chamada "Liga do Tempo" (!), a qual deveria impor os ditames do tempo de fluxo capitalista abstracto na consciência social através da educação fordista das massas. Traiçoeiramente, mas de forma bastante fordista e em termos de "socialismo de comando" ingénua, dizia: "A luta pelo tempo é uma luta por um novo modo de vida" (citado de: Süß 1985, 122). E os pronunciamentos correspondentes da "Liga do tempo", de resto, não deixavam nada a desejar em termos de clareza:
"A Liga do Tempo é um instrumento de propaganda colectiva para a introdução do americanismo no melhor sentido desta palavra: o nosso trabalho é a nossa vida! [...] Considerámos e consideramos os cartões de ponto como um meio útil de autodisciplina, de formação, de trabalhar a consciência do tempo. O cálculo do tempo, porém, não é necessário e valioso por si mesmo, mas apenas como um meio para o correcto planeamento do tempo [...]" (citado de: Süß loc. cit.).
Parece ter escapado aos bobos da corte da democracia da economia de mercado ocidental que precisamente os momentos de terrorismo de Estado da ditadura do desenvolvimento russo-"soviética" continham como parte integrante a propaganda do "americanismo", o que indica que era a própria "ocidentalização" que, sob condições russas, só poderia assumir a forma de uma ditadura. Ou, dito de outra maneira, foi a "ocidentalização", como industrialização capitalista estatal coerciva, que condenou à morte o impulso de auto-organização dos conselhos. Foi o próprio Estaline que resumiu esta adaptação à ideologia capitalista abstracta da performance:
"A determinação americana da performance é aquela força insuperável que não conhece nem reconhece nenhum obstáculo [...] A combinação do impulso revolucionário russo com a determinação americana da performance é o núcleo do leninismo [...]" (citado em Hughes 1991, 255).
No seu conjunto, a ditadura soviética foi, por um lado, carne da carne da Segunda Revolução Industrial fordista, no contexto de uma "modernização atrasada" e de uma "acumulação original" do capital. A sua diferença e historicização relativizante, por outro lado, pode ser justificada pelos momentos de não-simultaneidade tanto para o passado como para o futuro: Para o passado, como o "direito" dos estrategas históricos a resistir por todos os meios, mesmo os piores, a ter de permanecer para sempre periféricos, como o quintal e o caixote do lixo dos centros capitalistas ocidentais; para o futuro, como o momento emancipatório não cumprido da teoria de Marx e da ideia dos conselhos, mutilados até à irreconhecibilidade na ideologia soviética de legitimação.
Nada do género pode ser aduzido para a relativização da Alemanha nazi. Nolte, por exemplo, nem sequer tenta justificar os seus esforços nesse sentido a partir da posição estrutural e histórica do próprio nacional-socialismo e a partir do seu interior; pelo contrário, ele desviou-se desde o início para uma argumentação externa e projectiva, nomeadamente a alegada "antecedência" causal dos crimes do Estado soviético – o que mesmo a este nível é largamente falso, porque as piores atrocidades da industrialização forçada soviética só ocorreram após a ascensão de Hitler ao poder.
Também para os Estados Unidos não pode ser derivada qualquer historicização relativizante, no que respeita ao sofrimento e às catástrofes socioeconómicas da crise económica mundial. Este colapso mundial, tal como a "catástrofe seminal" da Primeira Guerra Mundial, foi uma expressão directa e uma explosão da irracionalidade capitalista desenvolvida na tentativa falhada da Segunda Revolução Industrial, sem qualquer vestígio dum elemento legitimador.
Se a crise económica mundial levou à ditadura de crise na Alemanha, enquanto a fachada democrática liberal permaneceu de pé nos Estados Unidos, isto deveu-se a uma não-simultaneidade diferente e relativa dentro do próprio Ocidente. Com efeito, é preciso fazer aqui algumas diferenciações. Por exemplo, deve ser esclarecida a razão pela qual o curso da crise ocidental paradigmaticamente chegou a um ponto alto nos EUA e na Alemanha. Antes de mais, estes dois países foram os mais duramente atingidos pela crise entre as nações industriais ocidentais desenvolvidas: a Alemanha, porque foi profundamente abalada pelas consequências económicas da guerra; os Estados Unidos, porque foram o centro da pseudo-expansão especulativa. A Inglaterra e a França, por outro lado, foram relativamente menos afectadas, embora, claro, não tenham deixado de o ser.
Neste contexto, um momento decisivo da não-simultaneidade entre a Europa e os EUA tornou-se particularmente drástico na Alemanha, nomeadamente a diferente relação entre as elites funcionais e a "classe operária". De ambos os lados do Atlântico, a domesticação de material humano tinha sido completada há muito tempo, mas de formas diferentes em cada caso. O capitalismo "virgem" dos EUA, em contraste com a Europa, não tinha nenhuma subestrutura de relações de dominação patriarcal anteriormente sedimentada. A ditadura democrática ou democracia ditatorial das relações generalizadas de mercado e dinheiro, sem grandes fricções estamentais, já tinha sido aqui o ponto de partida histórico. Por conseguinte, o novo igualitarismo negativo dos funcionários fordistas não encontrou grandes obstáculos e pôde afirmar-se muito mais facilmente do que na Europa. A "classe operária" domesticada já estava altamente individualizada. Como é bem sabido, um movimento operário organizado comparável às dimensões europeias nunca existiu nos Estados Unidos. Nem sequer era necessário na mesma medida, porque a força de trabalho nunca esteve ligada em termos estamentais e possuía desde o início os "direitos cívicos" de um átomo social capitalista. Esta individualização já avançada levou a que a crise fosse vivida muito mais como um assunto privado do que na Europa, e dificilmente poderia abalar o sistema político-estatal. No meio da crise económica mundial, o jornalista Richard Lewinsohn (Morus) relatou as suas observações a propósito em Nova Iorque:
"Um líder sindical [...] fornece-me uma prova do porquê de isto ser possível na América. À porta do asilo, ele aborda um homem que ainda está bastante bem vestido e pergunta-lhe como chegou aqui. 'Não poupei o suficiente, sou um burro', responde o sem-abrigo. Noutro ponto, no Bowery, o meu companheiro faz uma nova prova. Agora é um pouco mais explícito. 'Um país mau', diz ele a uma das pessoas que estão ao frio. 'Não, um bom país, mas um mau momento', é a resposta. Enquanto mesmo os desempregados pensarem assim, os senhores da América não precisam de se preocupar seriamente, apesar da crise [...] Esta base da visão americana do mundo ainda não foi abalada pelas dificuldades da crise [...] A fome é um assunto privado [...], não se deve derivar reivindicações políticas do facto de se estar do lado negativo da economia [...] A necessidade, tal como a riqueza, tem de ser sentida como um destino individual e como tal vista [...]" (Lewinsohn 1932, 231ss.).
Isto não quer dizer de modo nenhum que não tenha havido qualquer revolta contra a crise nos Estados Unidos. Mas esta revolta tinha pouca ou nenhuma dimensão ideológica, por mais militantes que fossem as acções, na sua maioria espontâneas:
"Marchas de protesto dos agricultores, manifestações contra a fome nas cidades, pilhagens e lutas de rua com a polícia faziam parte da vida quotidiana desde 1931. Em Chicago, em 1932, a polícia matou três manifestantes; em Dearborn, perto de Detroit, matou quatro pessoas e feriu cinquenta com metralhadoras. Mas era espantoso como os partidos de esquerda pouco conseguiam organizar as massas descontentes" (Sautter 1994, 393).
Já desde o século XIX, as disputas laborais nos Estados Unidos tinham, não raro, assumido formas violentas. Mas tais conflitos, frequentemente travados de ambos os lados com armas de fogo, estavam mais na tradição dos costumes dos pioneiros e da justiça por conta própria; continuaram a ser esporádicos e sem repercussões político-organizativas duradouras, que teriam sido contrárias à individualização capitalista. Foi possível participar em marchas da fome e ainda considerar ideologicamente a crise como um assunto privado, ou pelo menos como uma catástrofe natural comum, que de modo nenhum exigia uma mudança fundamental no modo de produção e de vida. Esta visão afirmativa unificou os vários níveis funcionais da máquina social, numa consciência igualitária que tinha sido historicamente praticada mesmo antes do fordismo.
Na Europa, pelo contrário, havia não só uma tradição patriarcal e estamental profundamente enraizada dos "governantes", que há muito tempo era anacrónica, mas também a vaga memória das velhas revoltas sociais contra o "trabalho abstracto", que tinham sido esmagadas. Desta história tinha permanecido aquela profunda desconfiança das elites capitalistas contra o seu próprio material humano, que já tinha levado Bismarck a julgar completamente mal a social-democracia. Também por esta razão na Europa, mesmo em Inglaterra e em França, os "direitos cívicos" das massas trabalhadoras só dificilmente puderam ser conquistados aos regimes liberais e liberais-conservadores; este processo só foi concluído após 1918. Durante todo este período, portanto, o movimento operário tinha-se formado como uma espécie de sociedade capitalista paralela, ou como um campo "fora das muralhas da cidade", embora ele próprio não quisesse mais do que "trabalho abstracto". Assim, desde o final do século XIX, não existia uma relação individual com a máquina social aos vários níveis funcionais, que pudesse agora ser transformada de maneira fordista, mas sim uma interacção, tendendo para uma escalada, entre o capitalismo "oficial" e um movimento operário domesticado mas, no entanto, organizado separadamente.
Por um lado, nesta constelação as elites oficiais tendiam a desenvolver sentimentos de pânico em cada crise e, com o propósito de supostamente "salvar a sociedade", a proceder com brutal pressão proibicionista contra até mesmo as associações de trabalhadores mais inofensivas e leais ao Estado, e a nem sequer hesitar em massacres, deportações e brutalidades policiais de todos os tipos (isto também existiu em casos isolados nos EUA, mas não como um padrão básico social global e, sobretudo, não como um padrão básico politicamente transformado). Por outro lado, através deste procedimento, a social-democracia leal ao Estado foi em certo sentido transformada de má vontade num "Leviatã alternativo", que estava de facto totalmente apanhado nas categorias capitalistas, mas que não fora "deixado entrar". Esta constelação tinha sido quebrada pela primeira vez com a guerra mundial, mas mesmo assim o velho pânico ameaçava ressurgir na crise económica mundial. E, na sociedade alemã mais assolada pela crise, isto aconteceu de facto. As ditaduras fascistas também surgiram, notoriamente, em Itália e em Espanha durante este período; regimes semelhantes vieram para o leme na periferia na Europa de Leste.
A "salvação da sociedade" capitalista de 1933 na Alemanha, contudo, ganhou o seu impulso ditatorial menos com a existência da social-democracia, que já estava em geral integrada, do que com o aparecimento do concorrente Partido Comunista (KPD), que no turbilhão do colapso económico parecia formar o verdadeiro contrapolo aos nazis. Na autolegitimação da democracia alemã ocidental do pós-guerra, daí veio, falsificando a história, a lenda de que a República de Weimar, como primeira democracia alemã, tinha sido ignominiosamente massacrada pela investida de fanáticos radicais de esquerda e de direita; e que, após a lamentável interrupção pela ditadura nazi, a República Federal, integrada no Ocidente, tinha sido capaz de retomar onde parara a pacífica democracia da economia de mercado do período entre guerras.
Esta interpretação oficial da história esbofeteia a verdade na cara. Para além do facto de uma construção tão apologética falhar naturalmente a identidade interna de democracia e ditadura na transição para a Segunda Revolução Industrial, nem sequer é verdade de um ponto de vista imanente. Pois não só o partido nazi chegou ao poder pela via legal das eleições democráticas e do procedimento parlamentar, mas a "lei de plenos poderes" foi aprovada por todos os partidos burgueses, sobretudo os liberais – incluindo o posterior Presidente Federal Theodor Heuss (1884-1963), que foi destacado após a guerra como uma figura representativa intelectual e política da democracia liberal. Isto correspondeu plenamente à vontade de todas as classes burguesas e de uma maioria da população, que não quis defender os direitos humanos e as supostas "liberdades" para todos, mas preferiu maciçamente a ditadura castanha, com o objectivo de "salvar a sociedade" do "perigo comunista".
Resumindo: não foi de modo nenhum a inocente "primeira democracia alemã" que se desmoronou sob os cruéis "golpes da esquerda e da direita". Pelo contrário, foi esta democracia, os seus estratos de apoio, as elites e os próprios representantes políticos que, nas condições de uma crise capitalista catastrófica, mostraram abertamente a sua verdadeira face ditatorial e transformaram a democracia a partir de dentro, de acordo com a sua própria lógica, na ditadura castanha. Aquela "força destrutiva e fúria louca", que Richard Löwenthal atestou ao nacional-socialismo face às ruínas fumegantes, foi a consequência última desta democracia em si, a sua própria natureza mais íntima. Em termos do seu modo de proceder (prender, torturar e matar "inimigos internos", proibir os sindicatos etc.), esta ditadura assemelhou-se, em muitos aspectos até à confusão, às várias medidas tomadas para "salvar a sociedade" pelos regimes liberais-conservadores desde o século XVIII. A diferença, contudo, foi que os nazis, de acordo com o horizonte fordista de desenvolvimento, apareceram eles próprios como um "partido dos trabalhadores" e proclamaram o "Estado do trabalho do socialismo de comando" do "capital criador".
Portanto, não pode ter sido a religião do trabalho profundamente enraizada dos comunistas que os fez "o perigo de todos os perigos". Todas as partes e correntes, sem excepção, defendiam o "trabalho" como o mais alto de todos os valores. Os comunistas, contudo, representavam para a consciência burguesa com as suas alucinações (incluindo agora a social-democracia) algo mais e diferente do que realmente eram; a saber, precisamente esse momento obscuro e não cumprido da emancipação social que se esconde na teoria de Marx e que toca os próprios fundamentos da sociedade capitalista de imposição, mesmo que no comunismo ocidental, tal como na União Soviética, só pudesse aparecer como um elemento vestigial, ou até numa forma negativa e apologeticamente repelida – demasiado fraca para reunir forças para uma viragem histórica contra a corrente da modernização. Mas é revelador do furor impiedoso e fanático do momento ditatorial do capitalismo, mesmo na sua forma democrática mais desenvolvida, o facto de até o mais ténue indício, o mero sopro de uma autodeterminação dos produtores concebível ao longe, contra as "leis naturais" da máquina social, ter sido capaz de desencadear uma explosão de ódio tão monstruosa por parte de toda a sociedade burguesa de crise abalada pelo medo na Alemanha.
Foi deste contexto que o ódio de toda a burguesia escorreu para a corrente sanguínea da ditadura nazi, também porque a Alemanha era o único país ocidental que, nas convulsões sociais após a guerra mundial, tinha experimentado, paralelamente à Rússia, a tentativa de criar conselhos e de retomar a ideia dos conselhos tanto na teoria como na prática. Nem em França, nem em Inglaterra, nem mesmo nos EUA, apesar de todos os sintomas de crise, tinha surgido uma experiência ainda que remotamente semelhante. Caso contrário, a democracia liberal também teria mostrado a sua verdadeira face nestes países. Os conselhos, evidentemente, não faziam parte de qualquer tradição alemã do movimento social, mas foram forçados por aquela ala completamente minoritária de Rosa Luxemburgo, que já se tinha oposto à guerra em vão e que, de qualquer modo, tinha permanecido um corpo estranho no movimento operário alemão; só nas condições de colapso, imediatamente após a guerra mundial perdida, é que esta ala pôde ganhar temporariamente um certo carisma.
É claro que esta tentativa foi muito rapidamente asfixiada pela social-democracia e pelos sindicatos (como, em condições diferentes e mais duras, na União Soviética) e transformada no debate fordista sobre racionalização e localização; o que permaneceu, na figura de "conselhos de empresa", como subalternos ajudantes de xerife da racionalidade da economia empresarial, foi algo patético, e até hoje assemelha-se mais aos órgãos de cogestão da "Frente do Trabalho" nazi do que a uma instituição socialmente emancipatória. Mas mesmo a fraca aparência de uma ideia de conselhos que vão além disso, cujas consequências contra o sistema de "trabalho abstracto" não foram pensadas nem mesmo pela minúscula minoria da extrema esquerda, já era suficiente para o furor da "bela máquina" e dos seus representantes. O espectro, prolongado para a consciência capitalista, daquele sonho ultra curto de florescimento dos sovietes imediatamente após 1918, e a violência da crise económica mundial, sem precedentes na Europa, entrelaçaram-se na Alemanha num complexo específico, para dar origem a uma ditadura de crise igualmente sem precedentes, a partir do útero podre da democracia capitalista.
Quando o comunismo alemão se tornou objecto do ódio irracional de toda a sociedade burguesa e foi finalmente abatido, há muito que estava muito longe de qualquer perspectiva social emancipatória. No decurso dos anos 20, o KPD, como todos os comunismos ocidentais, transformou-se num mero órgão representativo da União Soviética, sem qualquer substância teórica ou histórica própria. A ideia dos conselhos não foi desenvolvida consistentemente, e as suas consequências teriam de ter ido além do que era concebível na constelação dada; como mera militância social abstracta com base no sistema produtor de mercadorias e na sua religião do trabalho, contudo, este "comunismo" era completamente inútil no Ocidente, e pouco mais podia fazer do que fornecer um reservatório flutuante para desclassificados e desempregados (que, por outro lado, também faziam parte da base de massas do partido nazi).
Onde o partido comunista conseguiu uma influência relativamente maior, em países ocidentais como em França (e mais tarde na Itália), isso apenas se deveu ao facto de ter assumido algumas das ideologias e "tarefas" social-democratas logo no início, após o cisma. Embora os comunistas também tenham ocupado momentos de nacionalismo em todo o lado, foram logo considerados apenas como "a quinta-coluna de Moscovo", especialmente na Alemanha. Isto apenas alimentou ainda mais o ódio cego da consciência capitalista, já que agora se referia a uma dupla representação do "estranho": por um lado, ao sonho vago e perdido de emancipação da máquina social moderna em geral, e, por outro lado, à ideologia importada de um sistema concorrente de "modernização atrasada" na periferia inquieta.
Numa constelação comparável de contradição interna agudizada acima da média, teria provavelmente havido uma ditadura de "salvação da sociedade" em qualquer outro país ocidental, incluindo os EUA, embora certamente não com a mesma legitimidade ideológica que os nazis. O trauma capitalista dos conselhos de curta duração, o poder concorrencial vagamente percebido no Leste, e o seu próprio colapso económico fizeram com que a ainda insegura democracia alemã à moda de Bentham mudasse a partir de dentro para uma ditadura castanha, que prometia impor o impulso fordista de forma mais sustentável e com a eliminação brutal de todos os momentos perturbadores. A social-democracia não era uma alternativa nesta matéria, porque, tendo em conta a grave convulsão social e a sua integração ainda não consolidada como sub-Leviatã, não podia oferecer uma plataforma suficiente para o furor capitalista. Por outro lado, claro, estava ainda mais distante de poder entrar em qualquer tipo de aliança com o recém-separado irmão inimigo partido comunista, já que este não conseguia fazer nada como representação da "modernização atrasada" do Leste, nem com o potencial negativo das massas de desempregados, para não falar da ideia dos conselhos, que ele próprio tinha abafado maciçamente. Pelo contrário, mesmo entre os comunistas, que há muito tinham sido desmoralizados em termos de conteúdo (teórico e programático), já não havia qualquer ponto de contacto, e não só desde a política de terror de Estaline, que pudesse ter tido um efeito na sociedade; nem que fosse apenas para colocar o revolucionamento fordista no seu caminho de uma forma menos catastrófica.
Mas mesmo que já não pudesse desempenhar o papel principal, a social-democracia pelo menos deixou a sua marca na mutação da democracia para uma ditadura de crise, na fiel continuação da sua política nacionalista de guerra. Que esta democracia não representava uma "Alemanha melhor", mas que ela própria carregava terror no corpo, estava escrito no seu rosto desde o início. A formação das massas na democracia de Bentham não só teve origem nos buracos de sangue e lama da guerra mundial, como também foi fundada no assassinato, na sua constituição oficial do pós-guerra, e directamente sob direcção social-democrata. Os cadáveres de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, representativos dos mortos pela "salvação da sociedade" de 1918/19, foram de certa forma amuralhados na primeira pedra desta democracia, como um sacrifício humano arcaico. E isto não foi um "acidente" histórico, mas expôs o verdadeiro carácter da democracia.
Rosa Luxemburgo, em particular, unia na sua pessoa tudo aquilo que a consciência capitalista em geral e a consciência de crise em particular odiavam até aos ossos: o judeu, o estrangeiro (polaca!), o feminino numa figura nem sequer fofinha (teórica!) e o radicalismo de esquerda, com a sua vaga memória do futuro de uma libertação impensável do sistema de "trabalho abstracto". Claro que Rosa Luxemburgo também foi apanhada nas categorias burguesas do marxismo do movimento operário, ela não podia simplesmente saltar de uma já longa história de domesticação do pensamento oposicionista; mas, com a sua teoria de um limite interno objectivo do sistema capitalista e da necessária "auto-actividade das massas", ela aproximou-se contudo, mais do que todas as posições contemporâneas de pensamento, da crítica radical da "bela máquina" e da sua administração política dos seres humanos. Por conseguinte, com coerência convincente, o primeiro acto da democracia, "defensivamente" como sempre, foi esmagar o crânio desta mulher de 49 anos com a coronha de uma espingarda.
Quando há "perigo iminente", é por vezes necessário tomar medidas fora da via legal. Isto não é, de modo nenhum, uma polémica exagerada. Embora o grupo "Spartacus" em torno de Rosa Luxemburgo não representasse qualquer movimento de massas, o seu pensamento, chocante para os limites do universo burguês, parecia por si só ser um tremendo "perigo" e, por isso, teve de ser aniquilado a todo o custo. Assim, algumas centenas de trabalhadores armados foram estilizados como a "Revolta de Spartacus". Basicamente, era uma questão de mostrar (literalmente martelar) às pessoas, que tinham sido degradadas a material desde o início, onde as fronteiras intransponíveis da jaula democrática eram marcadas com sangue. O social-democrata Gustav Noske (1868-1946), ministro do Reich das forças armadas da nova república, assumiu-se neste sentido com a famosa frase: "Alguém tem de se tornar o cão de caça; eu não me fujo à responsabilidade" (citado de: Strübel 1996, 113). Esta mutação de funcionários que eram porcos domesticados em cães de luta e de caça do capitalismo era previsível.
A 1ª Divisão de Atiradores de Cavalaria da Guarda sob o comando do Capitão Waldemar Pabst assumiu o trabalho sujo, em nome de Noske e do governo liderado pelos Social-Democratas. Quando os cadáveres foram expostos, toda a jovem democracia se regozijou. Foi, de certo modo, a antecipação da mudança de pele da democracia de Weimar para a ditadura nazi. O liberal e altamente intelectual "Vossische Zeitung" (Thomas Mann publicou aí os seus ensaios) anunciou alegremente que "foi executado uma espécie de tribunal popular contra os dois líderes terroristas" (citado em Strübel, op. cit., 114). O "Vorwärts", o órgão central do SPD, também se expressou cheio de satisfação:
"A derrota da revolta de Spartacus significa para o nosso povo, e especialmente para a classe operária, um acto de salvação que fomos obrigados a realizar perante a história […]" (loc. cit., 115).
Friedrich Ebert (1871-1925), antigo ajudante de sela e líder social-democrata que foi eleito presidente ultrademocrata do Reich pouco depois do assassinato, comentou triunfantemente ao funcionário do SPD de Leipzig, Albert Konzowski: "Albert – mais duas vitórias, sobre Liebknecht e Luxemburgo, e nós triunfámos" (op. cit., 110). Escusado será dizer que os perpetradores foram absolvidos da acusação de homicídio. O capitão Pabst, a quem foi concedida uma vida longa e pacífica, ainda nos anos 60, como cidadão irrepreensível da nova democracia, se vangloriava em várias declarações do seu acto de "salvar a sociedade":
"Eu deixei-vos julgar [...] Não era apenas no interesse da nossa Alemanha [...], mas a vitória do comunismo na Alemanha teria derrubado todo o Ocidente cristão já em 1919. O fim deste perigo pesou certamente muito mais do que a eliminação de dois sedutores políticos [...] Temos finalmente de admitir o nosso passado [...], ninguém precisa de ter vergonha do que fez. Dei o trabalho aos homens. Realizaram-no correctamente. As pessoas fizeram um grande serviço pela Alemanha [...] Apenas um dos chefes compreendeu devidamente o que tínhamos feito pela nossa pátria alemã. Noske. Ele apertou-me a mão" (op. cit., 117ss.).
A transformação interior da democracia numa ditadura de crise também teve lugar no mesmo espírito que tinha apadrinhado a sua fundação. Também desta vez, a social-democracia e os sindicatos tentaram até ao fim ser absorvidos na lealdade nacional. Quando o 1º de Maio de 1933 foi declarado "Dia Nacional do Trabalho" pelos nazis vitoriosos, ironicamente cumprindo uma velha exigência do movimento operário, os sindicatos lançaram um apelo à participação, já redigido em vocabulário apropriado (grande parte do qual, afinal, provinha do vocabulário da guerra mundial da própria social-democracia):
"Colegas! [...] Saudamos o facto de o governo do Reich ter declarado este nosso dia como sendo um feriado legal do trabalho nacional, um feriado nacional alemão [...] O trabalhador alemão deve manifestar-se no dia 1 de Maio com consciência do seu estatuto (!), deve tornar-se um membro de pleno direito da comunidade nacional alemã [...] Em sincera camaradagem com todos vós, inabalavelmente unidos, enviamos-vos as nossas saudações sindicais neste dia. Berlim, 15 de Abril de 1933, o Comité Executivo Federal da Confederação Geral dos Sindicatos Alemães" (citado em Scharrer 1984, 113).
Tendo chegado o dia, quase todo o movimento operário em Berlim trotou na gigantesca marcha das colunas nazis, como o escritor de esquerda Franz Jung relatou como testemunha ocular:
"Pela primeira vez na história [...] uma massa de um milhão e meio de pessoas ia ser reunida numa única praça, em Tempelhofer Feld [...] A Federação Geral dos Sindicatos Alemães tinha instruído os sindicatos livres seus filiados para participarem na marcha em uníssono e em número tão grande quanto possível. O objectivo táctico pode ter sido mostrar aos novos governantes a boa vontade de cooperar [...]; o presidente da federação, o camarada Leipart, tinha-se colocado à disposição de Hitler. Assim, neste dia, os trabalhadores social-democratas e comunistas, a elite sindical dos trabalhadores alemães, marcharam no campo Tempelhof, intercalados entre os estandartes das SA e das SS da Grande Berlim, a Juventude Hitleriana, os líderes dos grupos locais, os guardas de bloco, a Liga das Raparigas Alemãs, a Cavalaria de Assalto Nacional-Socialista, o Corpo Nacional-Socialista de Automobilistas, o Corpo Nacional-Socialista da Aviação, e a Associação Nacional-Socialista de Mulheres [. ...] o grupo profissional dos metalúrgicos marchou em cerca de 20 sub-colunas, o grupo profissional dos transportes com os trabalhadores ferroviários [...], o grupo profissional papel e impressão, indústria química, têxtil [...]" (citado de: Scharrer, op. cit., 7s.).
O presidente sindical Theodor Leipart (1867-1947) já tinha oferecido aos nazis a caixa sindical; a 2 de Maio de 1933, as SA vieram e levaram-na sem serem convidadas: os edifícios sindicais foram ocupados, as organizações foram dissolvidas. Isto não impediu a social-democracia de, mais uma vez, favorecer a ditadura nazi no parlamento. Embora tivesse votado contra a "lei de plenos poderes", a fracção social-democrata no Reichstag saudou a declaração de política externa de Hitler a 17 de Maio de 1933. O deputado do SPD Wilhelm Hoegner (1887-1980) recordava-se mais tarde com palavras ainda pomposas:
"Agora veio a votação. Os nossos vizinhos à direita, os partidos católicos, olharam para nós cheios de expectativa. Levantámo-nos com eles e concordámos com a declaração do Reichstag alemão. Em seguida, uma tempestade de aplausos surgiu dos outros deputados. Até o nosso adversário irreconciliável, Adolf Hitler, pareceu comovido por um momento. Ele levantou-se e aplaudiu-nos [...] Depois os deputados da nação alemã começaram a cantar o hino alemão. A maioria nas nossas fileiras cantou também. Alguns tinham lágrimas a escorrer pelas faces […]" (citado de: Scharrer, op. cit., 8).
Nunca se deve esquecer as ocasiões em que a social-democracia se torna sempre sentimental. Um mês mais tarde, o SPD foi também proibido. A ditadura de crise dos nazis foi concebida de forma a não tolerar qualquer pluralismo, a todos os níveis, na senda de uma "uniformização" protofordista da sociedade. Todos os outros partidos, organizações sociais e culturais acabaram por ser também dissolvidos e substituídos por uniformes sub-entidades dos nazis, cujos membros foram em grande parte recrutados (por vezes sob coacção, mas mais ainda voluntariamente) a partir das organizações anteriormente independentes. O mesmo aconteceu com a "Frente do Trabalho Alemã" nacional-socialista, que substituiu os sindicatos. Sob as condições particularmente agravadas da Alemanha, o impulso interior do capitalismo para emergir com todas as suas forças da crise económica mundial e para fazer passar a capitalização total fordista tomou a forma de uma ditadura de crise e de uniformização, que na sua dinâmica própria já nem sequer queria recorrer a potenciais "cães de caça" social-democratas.
A social-democracia não estava consciente disso, e em 1933 reagiu basicamente do mesmo modo que já tinha reagido em 1914 e em 1918/19, e que correspondia à sua natureza de descendente da razão do iluminismo e do liberalismo. Uma vez que a posição de uma emancipação desta história e, portanto, do sistema de "trabalho abstracto" não estava realmente ocupada, a questão só podia ser de que forma e por que forças a ditadura de crise e a mobilização forçada fordista seriam aplicadas.
O facto de os comunistas, na sua desajeitada propaganda, identificarem directamente os nazis e os social-democratas e cunharem o termo de propaganda "social-fascismo" não resultou de uma posição teoricamente superior nem de uma análise adequada, pelo contrário, surgiu apenas de um míope ódio concorrencial entre dois campos políticos irreflectidos. Mas, independentemente do pensamento redutor e mecânico dos seus autores, num sentido que transcendeu a sua compreensão, esta designação continha de facto um momento de verdade. Claro que, ao nível da manifestação política, os nazis e os social-democratas não eram correntes idênticas, nem a social-democracia era simplesmente uma subdivisão dos nazis. Mas, vistos no contexto de uma metamorfose do sistema produtor de mercadorias na fase fordista do "trabalho abstracto", que culminou numa crise fundamental seguida de terrorismo de Estado, a social democracia e o nacional-socialismo estavam relacionados no mesmo sentido que o fordismo dos EUA e a União Soviética. Os comunistas alemães, pelo contrário, desprovidos de pensamento independente e historicamente sem substância após o assassinato de Rosa Luxemburgo, já tinham caído fora da história.
Basta perceber com toda a nitidez como a social-democracia se comportou em 1918/19, perante a ameaça imaginária colocada por Rosa Luxemburgo com o seu pequeno grupo, e como se comportou em 1933, perante a ameaça real colocada pelos nazis, para compreender o carácter da democracia. Não se trata aqui de um mero simbolismo da loucura nacional, nem é apenas uma questão de relações de forças. Pelo contrário, este comportamento deixa claro que a essência mais íntima da própria democracia é o terrorismo, que se manifesta imediatamente na crise. Sempre, em caso de dúvida, Rosa Luxemburgo é atingida e morta, e Noske ou Hitler democraticamente habilitados. Os portadores de ideias social-democratas, como pioneiros históricos e mais fervorosos defensores da democracia, estavam basicamente de gatas perante Hitler desde 1848, em antecipação da fé nacional no trabalho e no Estado, para além do facto de lhe terem fornecido as palavras-chave "nacional-socialistas". A própria democracia foi o útero de onde isto saiu.
Original Der verlorene Traum und der kapitalistische Furor, pags. 259-269 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (3.2021).
Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.