Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 7

O sistema das democracias totalitárias do mercado mundial

 

… … …

Secção 1

Ruínas novinhas em folha

Mesmo visto de modo puramente imanente e durante o período historicamente curto de prosperidade real, também é preciso relativizar o milagre como tal. Em primeiro lugar, esta riqueza de consumo, mesmo que se ignore a sua qualidade em muitos aspectos destrutiva, nunca poderia ser senão modesta para uma pessoa média. A impressão da inundação do consumo só foi esmagadora quando medida em relação à experiência anterior de meio século de catástrofes capitalistas mundiais. Devem ter vindo lágrimas de alegria aos olhos do material humano domesticado quando, para variar, finalmente deixou de ser torturado, baleado ou gaseado, quando finalmente deixou de ser conduzido à pobreza permanente e à miséria absoluta, quando todos foram finalmente "autorizados" a comer satisfatoriamente. No início nem sequer parecia assim, porque, pelo menos na Alemanha bombardeada e nos países da Europa Oriental devastados pelas forças armadas de Hitler, ainda se aplicou vários anos o velho padrão de comedor de batata e de fome, intensificado dramaticamente no infame "Inverno da Fome" de 1946/47. Heinrich Böll descreveu esse sentimento opressivo no seu romance "O Pão dos Primeiros Anos", publicado em 1953:

 

"A fome ensinou-me os preços; a ideia de pão acabado de cozer dava-me a volta à cabeça, e muitas vezes percorri a cidade durante horas à noite, pensando apenas em pão. Os olhos ardiam-me, os meus joelhos fraquejavam, e sentia que havia algo de lobo em mim. Pão. Era viciado em pão como se fosse viciado em morfina. Tinha medo de mim próprio [...] Mesmo agora o medo lupino daqueles dias apodera-se de mim e compro o pão fresco que está nas montras das padarias" (citado em: Becher 1990, 96s.).

 

A famosa "vaga de comida" subsequente, como primeiro fenómeno do boom inicial nos anos 50, foi simplesmente bastante compreensível neste contexto. Uma mãe de família recorda: "Já havia realmente presunto, queijo e saladas [...] E havia […] batatas fritas com ovos mexidos e coisas assim. Isso foi como a terra do leite e do mel para nós" (citado de: Wildt 1996, 48). O verdadeiro ponto de viragem a este respeito, porém, foi 1953, como se pode ver nas contas domésticas e nos relatos pessoais:

 

"Em 1953 tivemos o nosso primeiro ganso, pesava dez libras e custou 20 marcos, e fomos para casa com muito orgulho com este ganso gordo, e tivemos um Natal bastante bom. Não foi uma refeição, foi um verdadeiro banquete. Naqueles dias ainda se conseguia ter prazer em comer" (citado de: Wildt 1996, 49).

 

Mas este frenesim alimentar ainda tinha algo de lupino e degradante. A mais elementar satisfação de necessidades e prazeres, com que mesmo na Idade Média quase ninguém tinha de se preocupar, era avidamente vivida como a "terra do leite e do mel" realizada. Isto tinha qualquer coisa de animais famintos a devorar uma malga finalmente cheia.

Uma segunda relativização do milagre económico impõe-se na medida em que, mesmo nos mais ricos países industrializados capitalistas, nunca foi completamente eliminado um sedimento de pobreza durante esta época de prosperidade; certamente não nos EUA, a nova primeira potência mundial e ocidental, que no final da guerra gerava quase metade do produto social global. Apesar disso, os novos bairros de lata formados na crise económica mundial desapareceram apenas parcialmente; havia extensas bolsas de pobreza no Sul, sobretudo no Alabama e no Mississippi, e grandes segmentos da população negra em todo o país nunca saíram da situação de pobreza. O mesmo é válido para certos distritos e zonas rurais periféricas inglesas e francesas, para o mezzogiorno italiano etc.

Mesmo na RFA do milagre económico, até meados da década de 1970 persistiu obstinadamente uma certa população pobre, como grupo marginal não tão pequeno. No início da década de 1970, Jürgen Roth publicou um estudo intitulado "Pobreza na República Federal", que provou isso com números oficiais, indicando os sectores da população que permaneceram largamente excluídos do milagre económico: predominantemente pessoas das chamadas zonas "estruturalmente débeis" nas áreas rurais, pensionistas e sobretudo mulheres pensionistas isoladas ("pobreza na velhice"), delinquentes, crianças em instituições e outras vítimas de relações destruídas no domínio social micro. Mesmo nessa altura, meio milhão de pessoas sem abrigo foram contadas no país do milagre. No conjunto, era uma minoria considerável de pessoas ignoradas, que já não determinavam a percepção das condições no paraíso dos consumidores da maioria: "Hoje, na República Federal da Alemanha, cerca de 20% da população está excluída da possibilidade de participar no progresso social e societário; são os pobres" (Roth 1971, 67).

Só isso já seria suficientemente vergonhoso. Mas ainda mais grave é uma terceira necessária relativização da prosperidade do pós-guerra. Pois a experiência real do consumo maciço fordista estava em grande parte confinada àqueles poucos países industrializados em que a Segunda Revolução Industrial fora capaz de ter um impacto verdadeiramente a nível nacional. A maior parte da periferia capitalista nunca progrediu para além de rudimentos particulares do fordismo. Isto é especialmente verdade no chamado Terceiro Mundo, na Ásia, África e América Latina. Nas regiões asiáticas e africanas, a descolonização iniciada em 1918 continuou em grandes surtos após a Segunda Guerra Mundial; em parte forçada por sangrentas guerras de independência contra as últimas potências coloniais (sobretudo na Indochina e na Argélia contra a França), mas na maioria dos casos com uma "libertação para a independência" razoavelmente pacífica.

A aventura colonial do capitalismo europeu, um completo fracasso histórico de enormes proporções, terminou miseravelmente – sem, contudo, nunca ter surgido qualquer outra perspectiva na agenda das elites pós-coloniais dos "jovens Estados-nação", com os seus regimes de desenvolvimento (na sua maioria organizados mais ou menos como capitalismo de Estado), senão a tentativa de imitar o Ocidente industrial-capitalista e, assim, pôr em marcha uma modernização atrasada. O conceito associado de "desenvolvimento" foi orientado em parte para o padrão da União Soviética e para a conexa primeira vaga de modernização no século XX, mas também em parte para a prosperidade fordista do pós-guerra ocidental. Para os "países em desenvolvimento" agora como participantes auto-responsáveis no mercado mundial, contudo, esta perspectiva era pouco mais do que a esperança, vestida com ideologia nacionalista, de talvez recuperar o atraso nas condições de um próspero sistema mundial produtor de mercadorias. As indústrias capitalistas estatais da União Soviética, que ainda tinham brilhado com elevadas taxas de crescimento (a partir dum nível inicial naturalmente baixo) durante a crise económica mundial ocidental, conseguiram desenvolver uma versão grosseira e imperfeita do abrangente "Estado do trabalho" fordista; mas agora mais uma vez ficaram aquém da conclusão da Segunda Revolução Industrial nos países capitalistas antigos.

No seu conjunto, portanto, a era da prosperidade mundial não apenas era limitada em vários aspectos; também tinha inerente um elemento fundamental de ambiguidade e falsidade. A transição finalmente bem sucedida para uma coerência fordista de produção em massa, rendimento em massa e consumo em massa a um nível relativamente elevado continuou a estar sujeita aos ditames do fim-em-si capitalista, às suas formas absurdas e à sua cega dinâmica própria; foi assim um sucesso em retratação, permeado pelas patologias da concorrência generalizada e, portanto, não foi uma relação mundial positivamente estável em si mesma. O contraste entre o capitalismo privado ocidental e o capitalismo de Estado oriental, que explodiu no conflito do século e transformou este período na época da Guerra Fria, também distorceu ideologicamente a percepção. Esta oposição historicamente imanente obscureceu o quadro de referência comum do sistema mundial produtor de mercadorias, como objecto de um modo de vida negativo e destrutivo igualmente comum. Quanto mais agressiva e inconscientemente este mundo consumia, mais falso se tornava.

Mas há muito que não havia conceitos disponíveis para designar esta falsidade, e agora menos do que nunca. Só nas intuições da linguagem poética é que veio à superfície o que aqui não batia certo, actuando como uma provocação para aqueles que não compreendiam. "Algo que não tem cor, algo que não cheira a nada, algo viscoso" foi o que o jovem poeta Hans Magnus Enzensberger chamou na altura a este inominável, no poema "Landessprache" (“Língua nacional”), para mostrar não o consumo como tal, mas a sua assustadora forma social, e a vaga ameaça que continuava a ressoar sob a superfície cintilante:

 

O que é que eu perdi aqui,

neste país,

onde os meus velhos me trouxeram

por ingenuidade?

Nativo, mas não confiante,

ausente, aqui estou eu,

residente na confortável miséria,

no simpático buraco complacente.

 

O que é que eu tenho aqui? E o que procuro eu aqui,

nesta salsicha fresca, nesta terra do leite e do mel,

onde a coisa sobe, mas não avança,

onde o fastio passa fome,

onde a pobreza, nas mercearias finas, branca como a cal,

com a voz estrangulada pelo chantilly, agoniza e grita:

A coisa está a subir!

Onde, com uma margem de lucro longe dos pobres ricos, os ricos pobres

destroem com entusiasmo as cadeiras do cinema, aí a coisa sobe de caso para caso,

onde a balança de pagamentos canta hossana e tudo o que está certo

e grita: não basta,

que o tempo livre entre na linha e acelere e corra bem, [...]

Aqui vamos construir cabanas,

neste monte de sucata ariana,

neste barulhento parque de estacionamento,

onde das ruínas brotam ruínas

novinhas em folha, ruínas em stock, a prestações,

por encomenda, sujeitas a devolução [...]

 

"Ruínas novinhas em folha": não poderia ter sido dada melhor descrição do carácter desta riqueza incorporada no fim-em-si capitalista, dele dependente e humanamente mesquinha. O paraíso temporário do consumo para a maioria da minoria global nos centros capitalistas foi de facto uma ruína histórica: a ruína da emancipação social, da autodeterminação humana e do livre propósito, sufocada numa abundância tão cara como podre, no meio da qual, no entanto, a pobreza social sempre brilhou. O êxito da mobilização fordista não significou outra coisa senão que o sistema capitalista de imposições pôde fechar-se como totalidade social – pelo menos na medida do possível.

Pois, como efectiva totalidade no sentido de um absoluto, o sistema de "trabalho abstracto" e concorrência não seria, naturalmente, viável, e de uma forma social e psíquica muito imediata, se não tivesse constituído o "reverso" dos domínios que têm sido atribuídos ao sexo feminino desde o início da modernização (do "trabalho doméstico" à "dedicação"). Estes domínios, dissociados do fim-em-si capitalista e ainda assim com ele mediados, não foram simplesmente absorvidos pela mobilização fordista, mas sim transformados. O momento totalizador, então, referia-se ao facto de a imposição real da Segunda Revolução Industrial ter intensificado o acesso capitalista ao material humano necessário para a mesma. Em primeiro lugar, e superficialmente, isto significou uma mudança renovada na estrutura das relações laborais, em direcção ao modo de vida totalmente industrial exigido pelo fordismo. Em comparação com o nível de desenvolvimento imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, a plena industrialização só agora estava a atingir proporções "inglesas" em toda a parte:

 

Empregados por sectores básicos em 1968 (em percentagem)

País

Agricultura

Indústria

Serviços

Inglaterra

3,5

45,2

51,3

França

15,6

38,6

45,8

EUA

5,1

35,4

59,4

Alemanha (Ocidental)

9,9

47,1

43,0

Fonte: OCDE, Estatísticas Históricas (1995)

 

Em comparação com o período por volta de 1910, é notável sobretudo o declínio drástico do emprego na agricultura, devido à sua extensiva industrialização e "mercantilização". Em termos nominais, contudo, a quota da própria indústria aumentou apenas na Alemanha, enquanto que na Inglaterra, EUA e França até diminuiu ligeiramente, tendo a quota dos chamados serviços ou do "sector terciário" simplesmente explodido em todo o lado. Apenas à primeira vista esta descoberta parece contradizer o carácter da Segunda Revolução Industrial. Na realidade, o conceito aparentemente inalterado de serviços esconde o verdadeiro revolucionamento. Pois agora já não estamos a lidar com empregadas domésticas, criados e outros serviçais domésticos de todos os tipos, como tinha sido típico da antiga sociedade burguesa, mas sim com o pessoal em massa do "Estado do trabalho" fordista numa multidão de novos sectores, sobretudo das infra-estruturas industriais; desde a organização multifacetada do transporte individual automóvel até aos novos meios de comunicação (rádio, televisão), passando pela burocracia keynesiana do Estado social.

Em termos relativos, é o declínio dramático do emprego agrícola e o aumento igualmente dramático do emprego em infra-estruturas industriais que marca o avanço da Segunda Revolução Industrial. Além disto, porém, é essencial outro revolucionamento. Pois a relação percentual dos três sectores básicos dentro do sistema produtor de mercadorias nada diz sobre a dimensão absoluta das relações de emprego capitalistas. O desenvolvimento explosivo da produção industrial na era fordista da prosperidade, nisto bem classicamente no sentido do teorema de Say, foi muito superior aos efeitos de racionalização da produção em fluxo e da "ciência do trabalho". O número absoluto de trabalhadores no capitalismo aumentou assim enormemente, mesmo nos sectores de produção industrial directa.

A "taxa de actividade" social global (no sentido da reprodução capitalista) aumentou de forma correspondente, o que, por sua vez, significava que menos pessoas sem emprego remunerado capitalista dependiam de um posto de trabalho industrial. Ou, por outras palavras, que a população como um todo estava em maior medida à mercê da máquina social capitalista. Neste contexto, o sociólogo Burkart Lutz fala de uma mudança estrutural fundamental na reprodução da sociedade como um todo. Segundo isto, até pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados capitalistas caracterizavam-se por uma estrutura económica "dual", com uma relação complexa entre um "sector moderno de economia de mercado industrial, por um lado, e um sector tradicional ainda forte, por outro" (Lutz 1989, 21). Isto denota o facto de que ainda era verdade no império guilhermino, bem como noutros Estados industriais capitalistas antes da sua muda fordista, que o capitalismo era realmente o dominante e dinamizador, mas no entanto apenas um sector de toda a reprodução (e portanto também da vida prática e da experiência):

 

"O sector moderno [...] caracteriza-se sobretudo pela organização e pelo sistema económico capitalista em grandes empresas, pelo trabalho assalariado como forma dominante de emprego remunerado, e pela orientação predominante para mercados de grande escala (principalmente, mas claro que não exclusivamente, internacionais). Mesmo nas nações mais industrializadas, é contrastado por um sector tradicional ainda significativo, com um domínio das pequenas explorações familiares, uma mão-de-obra predominantemente familiar, e um peso ainda grande de estruturas e orientações de economia de subsistência" (Lutz, op. cit., 21).

 

Por um lado, portanto, (aproximadamente até 1950) o mercado não era uniformemente capitalista, mas os grandes mercados nacionais e internacionais estavam interligados com "mercados familiares" locais, sem o domínio dos critérios capitalistas do "trabalho abstracto"; por outro lado, a família média ainda era, em muitos aspectos, uma "economia" que também produzia bens para as suas necessidades. Assim, lembro-me pessoalmente de que na nossa família, até e para além dos anos 50, comprar roupa feita não era de modo nenhum a regra; pelo contrário, os têxteis eram comprados no mercado, e depois transformados em roupa pela mãe e pela avó em casa. O mesmo se aplicava a uma série de alimentos. Tais experiências podem ser generalizadas. O que ainda hoje é esporadicamente prosseguido como um "hobby" era então uma componente económica essencial da reprodução social; e de modo nenhum apenas como um fenómeno excepcional das dificuldades do pós-guerra, mas como um resíduo ainda considerável de um modo de produção mais antigo, que nunca se tinha extinguido completamente e estava sempre em interacção com o crescente sector capitalista.

Em comparação com o século XIX, este "sector tradicional" já tinha, de facto, derretido parcialmente, e já não tinha sido capaz de cumprir suficientemente a sua função de "tampão de crise" durante a crise económica mundial. Mas o seu desaparecimento quase completo deve, no entanto, ter parecido inconcebível. Mas foi precisamente esta a "conquista" do fordismo do pós-guerra: a produção e distribuição abrangente de todos os bens de consumo pelo capital industrial fordista e pelo seu "Estado do trabalho". A criação apenas agora em massa dos novos objectos de consumo como automóveis, bem como electrónica de entretenimento e doméstica (produtos "castanhos" e "brancos") foi assim acompanhada pela destruição sucessiva dos elementos de economia doméstica da produção de subsistência e da produção familiar local baseada nas necessidades. É claro que este "sector tradicional" tinha sido baseado na hierarquia de género e no trabalho intensivo. Mas não foi substituído pelo estabelecimento de finalidades industriais auto-determinadas, mas sim pela incorporação das massas na engrenagem da "bela máquina" e pela sua sujeição à disciplina forçada do trabalho fordista.

Este processo sem precedentes, que agora revolucionou verdadeiramente todo o modo de vida, tão drasticamente como a Primeira Revolução Industrial em tempos, teve como condição prévia a Segunda Guerra Mundial e os elementos da ditatorial "batalha do trabalho" a ela associada, e não apenas em termos técnicos e organizativos. Só com um "grau de penetração substancialmente maior da administração estatal e da economia" (Lutz, op. cit., 192), como a teoria de Burnham sobre o "regime dos gestores" já tinha postulado, foi possível implementar a Segunda Revolução Industrial para além da guerra como forma geral de reprodução socioeconómica. Por outras palavras, a conclusão do keynesianismo, que já tinha sido implicitamente praticada em certa medida por Hitler, Roosevelt e Estaline, tinha agora de ser generalizada independentemente das preferências ideológicas. Desta vez, portanto, não se tratava de desmantelar novamente as estruturas económicas do tempo da guerra, nem de as continuar apenas de forma pouco convicta, mas, para além do aumento numérico da quota do Estado no produto nacional, de as transferir para formas de regulação "da economia civil" e transformá-las num sistema permanente:

 

"No mesmo curso, tem havido um aumento sustentado da capacidade das entidades estatais ou para-estatais para controlar eficazmente os processos económicos, os fluxos de rendimentos, e o comportamento dos sujeitos económicos. E, enquanto depois da Primeira Guerra Mundial as frequentemente muito rudimentares instâncias de planeamento da economia de guerra foram novamente desmanteladas muito depressa em toda a parte, agora permaneceu uma elevada base do potencial de intervenção estatal, mesmo para além do período imediato do pós-guerra" (Lutz, op. cit., 192).

 

Nos EUA, que como primeira superpotência se transformaram em garante do "mercado mundial livre" e em "polícia mundial", o elemento económico de guerra permaneceu mesmo no sentido puramente militar; por isso, já nos anos 60 se falava aí de uma "economia de guerra permanente". Se tivermos em conta que o mecanismo de regulação económica estatal, que Keynes soube generalizar teoricamente, teve as suas raízes na economia de guerra das duas guerras mundiais, então podemos aplicar com confiança este termo a toda a era do pós-guerra. A "economia de guerra permanente" foi a característica da Segunda Revolução Industrial imposta num duplo sentido: desde logo indirectamente, como a "máquina keynesiana" da forma de regulação geral induzida pelo Estado; em segundo lugar directamente, como o potencial militar americano, sem rival no Ocidente, que constituiu o pano de fundo para uma expansão renovada do mercado mundial, após o seu colapso e estagnação generalizada na primeira metade do século. Sob o guarda-chuva da "Pax Americana", as economias capitalistas que tinham voltado a cair em posições de autarquia mudaram-se para uma nova fase de interdependência internacional. Esta também foi uma condição essencial para a vitória da Segunda Revolução Industrial, que anteriormente falhara no período entre guerras.

No entanto, não se deve esquecer que tudo isto só poderia ser a "condição de possibilidade" para a imposição do fordismo, e não a possibilidade em si, cuja estrutura central já tinha sido desenvolvida décadas antes. Por conseguinte, não basta afirmar simplesmente a absorção do sector "tradicional" pelo sector industrial-capitalista, e afirmar como mudança causal apenas a instalação do sistema de regulação keynesiana, bem como uma orientação ideológica para o "americanismo", como aparece em Burkart Lutz. Em vez disso, estes momentos apenas promoveram o avanço da nova estrutura de acumulação do capital há muito estabelecida.

Se só na RFA entre 1950 e 1973 nove milhões de trabalhadores adicionais foram sugados para o processo capitalista de valorização (na dicção capitalista, criação de nove milhões de "postos de trabalho" adicionais), então esta enorme expansão deveu-se em grande parte ao potencial imanente do próprio capital. Sem este potencial de acumulação existente, a regulação keynesiana teria sido em vão e teria falhado no início. Esta regulação pôde desencadear a anteriormente estagnada Segunda Revolução Industrial, mas não substitui-la. Foram portanto os métodos de racionalização económica inventados por Ford e Taylor que conseguiram agora o seu verdadeiro avanço e, ao duplicar, triplicar e quadruplicar a sucção do material humano, conseguiram alcançar o feito capitalista da coerência entre o aumento da acumulação de capital, a redução do tempo de trabalho e o aumento do consumo maciço de bens industriais (tendo o automóvel como mercadoria central).

O carácter pérfido desta identidade há muito preparada de entrega da energia vital numa escala fantástica, por um lado, e de consumo capitalistamente condicionado de mercadorias, por outro, contudo, já não tinha um conceito, e não era só isso; esta submissão total ao fim-em-si capitalista já nem sequer aparecia nas sensações como aquilo que era. A monstruosidade da imposição, finalmente realizada de forma abrangente, ocorreu literalmente como se se estivesse a dormir. É por isso que a época da prosperidade fordista aparece até hoje, e mesmo a críticos como Burkart Lutz, sem quaisquer aspas relativizantes, muito simplesmente como "prosperidade em massa" e, muito sem problemas, como o facto positivo de uma "real consideração dos interesses elementares dos trabalhadores assalariados" (loc. cit., 192). Continua, pois, a ser uma tarefa tornar claramente visível o conteúdo de descarada imposição e, portanto, o carácter verdadeiramente negativo até mesmo da suposta "idade de ouro" do capitalismo (de qualquer modo curta).

 

 

Original Nagelneue Ruinen , pags. 289-294 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (4.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

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