Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 7

O sistema das democracias totalitárias do mercado mundial

 

… … …

Secção 3

Mobilização total

A totalização capitalista não é possível sem a correspondente mobilização. Esta segunda palavra-chave da revolução industrial fordista também só foi cumprida em grande escala social após a Segunda Guerra Mundial. E, também a este respeito, as ditaduras totalitárias de Estado eram apenas uma forma específica de imposição desta mobilização, que não podia negar as suas origens militares na condução industrial da guerra desde a Primeira Guerra Mundial. A "mobilização" militar nestas condições era muito mais e até bastante diferente das batalhas não motorizadas de soldados a pé e cavaleiros em campo aberto, as quais, apesar de todos os canhões, ainda não exigiam uma logística industrial profundamente escalonada nem uma mobilização social de suporte. Sob o signo da Segunda Revolução Industrial, no entanto, a guerra não exigiu apenas a mobilização de múltiplas reservas adicionais. A sociedade como um todo teve de ser posta em movimento acelerado, a todos os níveis e em todas as áreas, a fim de poder suportar a acumulação acelerada e condensada de capital. Após o fracasso da primeira tentativa do fordismo na década de 1920, a "mobilização" alargada, tanto nas democracias como especialmente nas ditaduras estatal-totalitárias, começou primeiro a nível propagandístico e político. A filósofa americana Hannah Arendt (1906-1975) prestou particular atenção a este aspecto no seu livro de 1951 sobre "As origens do totalitarismo":

 

"Nada é mais característico dos movimentos totalitários em geral, e do tipo de fama dos seus líderes em particular, do que a rapidez surpreendente com que se esquecem, e a facilidade surpreendente com que podem ser substituídos [...] Esta descontinuidade tem certamente algo [...] a ver [... ] com a dependência do movimento característica dos movimentos totalitários, que só podem manter-se a si próprios enquanto se mantiverem em movimento e colocarem tudo à sua volta em movimento [...] Se existe algo como um carácter totalitário ou mentalidade totalitária, é precisamente esta extraordinária capacidade de mudança e falta de continuidade, sem dúvida uma característica extraordinária [...]" (Arendt 1991/1951, 495s.).

 

É óbvio que Hannah Arendt também tem em mente aqui apenas o lado político-estatal. O que passa diante deste olhar são as intermináveis marchas de massas, desfiles de lanternas, manifestações rituais, paradas e "imagens vivas" nos grandes estádios, com que as ditaduras totalitárias de Estado encenaram a mobilização das massas. Ludendorff, o estratega louco da guerra total, também falou nesse sentido de uma "mobilização mental" (Ludendorff 1935, 26). Mas é precisamente uma formulação como esta que teria de ser desconcertante. Pois o conceito de "mobilização mental" vai além das intenções limitadas do seu criador; não deve ser entendido apenas no sentido militar, nacionalista, capitalista de Estado, ou político em geral. Sugere mesmo pensar nos "sedutores secretos" (Vance Packard) das posteriores campanhas publicitárias maciças para o consumo capitalista de massas.

Só na aparência a massa sem rosto da primeira metade do século, mobilizada politicamente por ditaduras ou formas democráticas transitórias, contrasta com o culto comercial do indivíduo como "consumidor" nas democracias do pós-guerra. Pelo contrário, a massa mobilizada nas marchas, pode ser entendida como o ensaio para o indivíduo consumidor isolado. É a dialéctica da massa sem rosto e da individualidade abstracta não menos sem rosto, como Theodor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) observaram na sua "Dialéctica do Iluminismo" de 1944: "Cada um é tão-somente aquilo mediante o que pode substituir todos os outros: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo, é o absolutamente substituível, o puro nada" (Adorno/Horkheimer 1997/1944, 168). Este estatuto de nada, formado nas guerras mundiais e movimentos políticos de massas, não só continua na "mobilização psíquica" do ser humano comercial individualizado do pós-guerra, como só assim se completa a si próprio: estes são apenas dois estados de agregação históricos diferentes da mobilização capitalista que resulta numa "pseudo-individualidade" (loc. cit., 177). O indivíduo capitalista das democracias da economia de mercado que emerge desta história desmente-se a si mesmo:

 

"Ele só é tolerado na medida em que sua identidade incondicional com o universal está fora de questão [...] O individual reduz-se à capacidade do universal de marcar tão integralmente o contingente que ele possa ser conservado como o mesmo [...] Só porque os indivíduos não são mais indivíduos, mas sim meras encruzilhadas das tendências do universal, é que é possível reintegrá-los totalmente na universalidade [...]" (op. cit., 177s.).

 

O indivíduo democrático "livre" do pós-guerra não é mais do que o "exemplar" padronizado e espremido pela máquina político-militar, libertado apenas para estar disponível para o continuado curso comercial da máquina mundial. O novo culto da individualidade, que havia de caracterizar a segunda metade do século, apenas continua por outros meios a "substituição mentirosa do individual pelo estereotipado " (loc. cit.), 179), o destino da massa sem rosto, semelhante ao autómato; os indivíduos consumidores, postos em movimento pela publicidade, pelas modas e conjunturas, não são menos determinados externamente do que as massas das marchas, apenas de modo diferente: "personality significa para eles pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres do suor nas axilas e das emoções" (loc. cit., 191). Tal como antes as massas padronizadas, também agora os indivíduos padronizados que emergem desta massa são objectos da mobilização capitalista. São mantidos permanentemente "em movimento" pelos imperativos de um sistema que já não lhes deixa qualquer vontade própria.

Na sua fixação nos movimentos de massas políticos totalitários da primeira metade do século, Hannah Arendt ignora completamente até que ponto as suas formulações sobre a natureza do totalitarismo reflectem precisamente o carácter e a relação mundial do mercado que se está a tornar totalitário, e portanto da própria democracia ocidental. A "espantosa rapidez do esquecimento" – a que se aplicaria este rótulo melhor do que às conjunturas capitalistas, que já não são o desenvolvimento humano, mas apenas a passagem de conteúdos indiferentes através do fantasmagórico automovimento do dinheiro? A "facilidade de substituição" – a que se aplicaria mais precisamente este nome do que à objectividade universal das mercadorias, à qual corresponde a personalidade de seres humanos universalmente permutáveis e reduzidos a um objecto? E o que poderia ser mais "viciado no movimento" do que o próprio capitalismo que, como sistema de bola de neve industrial, só pode de facto "manter-se a si próprio enquanto se mantiver em movimento e colocar tudo à sua volta em movimento"? Onde seria a "extraordinária capacidade de mudança" uma virtude maior do que na economia de mercado mundial democrática, como nos é hoje novamente pregada, com o chicoteamento da permanente "adaptação" a uma eterna "mudança estrutural" cega e destrutiva? E, finalmente, o que poderia representar uma "falta de continuidade" mais radical do que o mercado universal sem história, que realiza o seu movimento sempre igual e auto-referencial numa espécie de nirvana económico intemporal?

Em 1947, o arquitecto suíço-americano e teórico Siegfried Giedion, ele próprio um promotor do mundo fordista, escreveu nesta linha, numa súbita visão negativa relacionada não com o totalitarismo estatal europeu, mas com a "dominação da mecanização" nos Estados Unidos mais desenvolvidos em termos fordistas:

 

"A opinião pública julga as invenções e produtos apenas em termos do seu sucesso comercial. Esta atitude desculpa-se ao dizer: ‘Não olhamos para trás, mas para a frente’. Isto nega o tempo, tanto o passado como o futuro. O que conta é apenas o momento presente. As épocas posteriores não compreenderão estes actos de destruição, este assassinato da história" (Giedion 1987/1948, 14).

 

A mobilização das massas na forma política (ou seja, positivamente relacionada com o Estado), tal como inventada pela social-democracia no final do século XIX, tornou-se na primeira metade do século XX, ou seja, na história da imposição da Segunda Revolução Industrial, a lei geral do movimento do capitalismo que já não podia continuar a existir a não ser na forma democrática de massas. O totalitarismo político-estatal, também em relação à "mobilização", foi apenas uma manifestação específica deste desenvolvimento muito mais geral. No auge do fordismo, o sistema de bola de neve económico capitalista só poderia avançar através da mobilização de todas as suas reservas. Subjacente ao "assassinato da história" (que só deveria ser formulado explícita e positivamente muito mais tarde, na versão pós-moderna) estava, como um momento abrangente, a unidade de totalização e mobilização da produção capitalista em massa. O que esta "lei do movimento" realmente significa, e que linha de desenvolvimento continua, é mais uma vez expresso por Hannah Arendt com surpreendente clareza, novamente dizendo muito mais do que ela própria sabe:

 

"Por detrás da reivindicação de domínio mundial que todos os movimentos totalitários fazem, está sempre a reivindicação de produzir uma raça humana que, agindo activamente, encarne as leis que de outro modo só sofreria passivamente, cheia de resistência, e nunca perfeitamente [...] A lei do movimento [.... ] equivale em cada caso a uma lei de eliminação do 'prejudicial' ou supérfluo, em favor do bom funcionamento do movimento do qual, como fénix das cinzas, uma espécie de humanidade vai finalmente surgir [...] A paz dos cemitérios que, de acordo com a teoria clássica, a tirania estabelece sobre a Terra [...] permanece tão negada à Terra governada pelo totalitarismo como o repouso em geral. Embora os seus habitantes estejam privados de qualquer acção ou mesmo actividade que surja da livre espontaneidade, são no entanto mantidos em constante movimento, como representantes do gigantesco processo sobre-humano da natureza ou da história que corre através deles [...] A essência do domínio totalitário [... ] é o terror que, no entanto, não é levado a cabo arbitrariamente nem de acordo com as regras da ânsia de poder de um indivíduo (como na tirania), mas de acordo com processos extra-humanos e suas leis naturais ou históricas [...] O terror neste sentido é, por assim dizer, a 'lei' que já não pode ser transgredida. Esta estabilização terrorista destina-se a servir a libertação da história ou da natureza em movimento. Uma discussão com os aderentes dos movimentos totalitários sobre a liberdade já é extraordinariamente improdutiva porque não só não estão interessados na liberdade humana, ou seja, na liberdade de acção humana, como a consideram perigosa para a libertação de processos naturais ou históricos. A chamada liberdade da história e da natureza, que se realiza de acordo com regras observáveis, só pode de facto aparecer ao ser humano sob a capa da necessidade" (Arendt, op. cit., 706, 708ss.).

 

É francamente para rir como aqui sai da boca de uma respeitável filósofa liberal, na sua justa ira contra o totalitarismo político, uma autocondenação impiedosa, sem que ela se aperceba minimamente disso. Pois aquilo que ela denuncia veementemente como o núcleo da ideologia totalitária e da "lei do movimento" não é, afinal, nada mais do que a essência da teoria iluminista liberal há séculos, e ao mesmo tempo a efectiva objectivação da lei capitalista pseudonatural. Foram precisamente os teóricos do liberalismo que desde o início declararam o sistema capitalista de imposições como sendo "lei natural", e que sempre afirmaram executar "as leis da natureza e da história" sobre os seres humanos. E não foi senão a nata da economia política e da filosofia do iluminismo burguesas que, desde o século XVIII, nas figuras de Mandeville, Smith, Bentham, Malthus & Cª, postulou "uma lei de eliminação do prejudicial ou supérfluo em favor do bom funcionamento de um movimento" e a combinaram com fantasias brutais de ajustamento, de repressão e até de extermínio.

Como todos os teóricos do totalitarismo, Hannah Arendt está cega não só pela experiência imediata contemporânea, mas também pela fixação no espaço político e nas questões constitucionais democráticas, sem que as pretensões totalitárias da economia capitalista alguma vez se tornem o tema – precisamente porque esta "lei do movimento", que na verdade e a longo prazo é a lei abrangente e dominante, parece na verdade fazer parte da "natureza". Pelo menos nada em contrário é dito também por Hannah Arendt. Assim, o conteúdo real da sua própria percepção escapa-lhe; pois, independentemente da manifestação histórica específica do totalitarismo estatal, é sempre o fim-em-si do capitalismo que "priva os habitantes do espaço social em que reina de toda a acção ou mesmo actividade que surja da livre espontaneidade" – toda a actividade neste espaço é axiomaticamente formatada pelo imperativo económico da rentabilidade abstracta e da subjugação do ser humano ao ditame dos chamados mercados de trabalho. Em virtude da economia fetichista do capital, os indivíduos alienados de si próprios são mantidos "em constante movimento como representantes do gigantesco processo sobre-humano" de rupturas estruturais de uma dinâmica cega de crescimento que "corre através deles" e é feita passar pelos ideólogos liberais como um "processo da natureza e da história" objectivo.

Qualquer definição livre e autodeterminada de objectivos é negada à partida por esta reivindicação avassaladora de falsas objectivações económicas. Mas, até meados do século XX, este sistema ainda não estava fechado como contexto social total. A esmagadora mobilização política das massas como meros objectos de uma pseudonatureza sobre-humana, que Hannah Arendt tinha perante os seus olhos, era apenas a forma de imposição política do imperativo económico do capitalismo fordista pleno. "A essência do domínio totalitário é o terror", de facto, mas o terror político acaba por ser, no processo histórico global, um mero veículo daquilo que encontrou a sua plenitude fordista na história democrática do pós-guerra como "terror da economia".

É na verdade "extraordinariamente improdutivo" discutir a liberdade humana com liberais, democratas, iluministas burgueses e outros totalitários, uma vez que todos eles sempre colocaram a liberdade de acção sob o jugo da "necessidade" de constrangimentos económicos irracionais, que eles consideram ser "a libertação de processos naturais ou históricos". A filósofa liberal Hannah Arendt pronunciou inconscientemente a sentença de morte intelectual sobre o liberalismo capitalista ou capitalismo liberal, que assim é exposto como a matriz da mobilização totalitária. Na medida em que o marxismo também é atingido no processo, especialmente na sua variante ideológica de legitimação da modernização atrasada das ditaduras de desenvolvimento do Leste e do Sul, trata-se precisamente desses elementos que ele assumiu do liberalismo. Hannah Arendt ignora completamente que a teoria de Marx pode ser lida de forma muito mais coerente exactamente ao contrário, nomeadamente como uma crítica radical da pseudolei da natureza (que Marx, afinal, apresenta como uma ilusão fetichista e não simplesmente como uma "lei" a ser executada). A lei económica do terror, "que já não pode ser transgredida", não é a segunda natureza a ser afirmada, mas o escândalo de uma socialização assim cega e inconsciente, contra a qual a revolta emancipatória tem de ser desencadeada.

Foram novamente os próprios ideólogos do totalitarismo político que expuseram abertamente o verdadeiro carácter das "leis do movimento" e da conexa "mobilização" no contexto fordista. Neste contexto tornou-se famoso o ensaio de Ernst Jünger sobre a "mobilização total", que constituiu uma palavra de ordem para os nazis e foi sempre entendida em termos puramente militares no sentido da guerra total, embora o seu pensamento vá para além disso, ainda muito mais conscientemente do que Ludendorff. Jünger atribui a mera "mobilização parcial" à "essência da monarquia", "que excede a sua escala na medida em que é forçada a envolver no armamento as formas abstractas do espírito, do dinheiro, do 'povo', em suma, os poderes da democracia amadurecida" (Jünger 1941/1934, 130). Para Jünger é claro que este é um processo que transcende os militares, uma constatação que reconhece o totalitarismo positivamente invocado da mobilização como forma superior e consumada precisamente na hostil figura democrática liberal:

 

"Assim, nos Estados Unidos, um país de constituição muito democrática, a mobilização pôde iniciar-se com medidas de um rigor que não teria sido possível no Estado militar da Prússia, a terra do sufrágio de classe. E quem duvidaria que a América, a terra onde não há castelos em ruínas, basaltos, histórias de cavaleiros, ladrões e fantasmas, tenha emergido como o vencedor visível desta guerra? Já nesta guerra não se tratava do grau em que um Estado era ou não era um Estado militar, mas do grau em que era capaz da mobilização total" (loc. cit., 138s.).

 

Jünger também já estabelece directamente a ligação da linguagem militar à económica, quando assinala que, na mobilização total para os campos de batalha, "um consumo que também se tinha tornado muito mecânico assumiu o papel do consumidor" (loc. cit., 135). Assim, é óbvio o passo para decifrar a mobilização total como uma máquina social do trabalho de massas fordista, cujo verdadeiro significado reside na "lei do movimento" económica, ao nível da aceleração da Segunda Revolução Industrial:

 

"[... ] basta contemplar esta nossa própria vida no seu pleno desencadeamento e na sua disciplina implacável, com os seus recintos fumegantes e brilhantes, com a física e a metafísica do seu tráfego, os seus motores, aviões e cidades de milhões, para suspeitar, com um sentimento de horror misturado com prazer (!), que não há aqui um átomo que não esteja a trabalhar, e que nós próprios estamos profundamente empenhados neste processo frenético. A mobilização total é muito menos realizada do que ela própria se realiza (!); é, na guerra e na paz, a expressão da misteriosa e convincente exigência a que esta vida na era das massas e das máquinas nos submete" (op. cit., 134s.).

 

Jünger, claro, não pode nomear o imperativo económico da forma do fetiche capitalista como tal; mas, na sua típica prontidão masoquista para aceitar, e com o seu inevitável sussurro do "misterioso", ele diz que o que está aqui em jogo não é de modo nenhum uma "racionalidade tecnológica" em si mesma, que seria, por assim dizer, como tal inerente às forças produtivas (ciências naturais e potências humanas), mas sim a afirmação irracional de que não deve haver "nenhum átomo" que "não esteja a trabalhar", ou seja, o fim-em-si capitalista da valorização do valor, que molda a tecnologia e, portanto, o mundo tecnologicamente transformado e cultivado à sua própria imagem. A "turbina alimentada a sangue" (loc. cit., 135) da mobilização total teve a guerra industrial como seu precursor, mas como um "processo que a si próprio se executa" teve de acelerar ainda mais na paz fordista das democracias do pós-guerra. A este respeito, a época da prosperidade, com a sua mobilização total da produção em massa e consumo em massa sob os ditames do processo de valorização, poderia também ser entendida como uma espécie de "guerra fria" virada para dentro, paralela à "guerra fria" externa dos sistemas mundiais de capitalismo de Estado e capitalismo privado.

A forma estatal-totalitária de mobilização total não se limitou de modo nenhum ao registo político e militar, mas antecipou muitos elementos das campanhas do mercado livre nas democracias do pós-guerra. Se os programas do New Deal já foram acompanhados por uma espécie de onda de propaganda com efeitos espectaculares, comícios de massas e desfiles de lanternas (Sautter, op. cit., 382), a Alemanha nazi mobilizou as massas para a "batalha do trabalho" com um esforço ainda maior. E isto também era uma característica comum da época: a coerção tinha de ser complementada pela "arte da motivação", mais uma vez à semelhança da campanha pedagógica industrial de "diligência", que já tinha complementado o terror benthamiano na Primeira Revolução Industrial; agora, porém, a um nível muito mais elevado, em maior escala, e com meios mais refinados. Tal como na União Soviética e, pelo menos em parte, também nos EUA do New Deal, a propaganda nazi ao serviço da "batalha do trabalho" conseguiu de facto criar uma espécie de "clima de despertar" social global, que não se assemelhava de modo nenhum à euforia patológica de Agosto de 1914. O revolucionamento no sentido da burocracia social total do "Estado do trabalho" fordista foi encenado com o gesto precisamente do desburocratizado, com o apelo à auto-actividade pessoalmente responsável e com o charme de uma "revolta juvenil", como um gestor nazi ainda recordava orgulhosamente décadas mais tarde:

 

"Procurou-se aqui um certo tipo: jovem, ágil, empenhado, inteligente, responsável, não convencional e não burocrático [...] A revolução nacional-socialista foi, afinal de contas, também uma revolução do jovem contra o velho. Na selecção de pessoas, reestruturação e remodelação de departamentos, autoridades e associações, estava em primeiro plano, expresso ou não, o pensamento menos amável de que 'os velhos idiotas têm de ir embora' [...]" (Kehrl 1973, 33s.).

 

Isto já soa bastante ao sermão democrático das encenações políticas de "despertar" e às campanhas da gestão de reorganização da economia empresarial para cada vez mais adaptação, pressa no trabalho, orientação para o desempenho, mentalidade competitiva etc. O incessante fogo de barragem da publicidade, com as suas campanhas para a mobilização total de um consumo de mercadorias sempre a subir e cada vez mais insensato, corresponde a estas agitadoras campanhas de desempenho e competição, a fim de forçar até ao máximo o material humano. O economista Schumpeter chamou traiçoeiramente a este permanente virar do avesso "destruição criativa": numa sucessão interminável de novos produtos e processos de produção, novas constelações de concorrência, de regulamentação social e política etc., os conteúdos e procedimentos anteriores tornam-se sempre obsoletos, para fixar as pessoas no imperativo económico e para as manter "em movimento".

Um tal terror da abrangente e permanente agitação do movimento faz lembrar a vida interior das seitas religiosas e políticas: Quanto mais irracionais e monstruosos forem os seus objectivos, mais ferozmente os membros são repetidamente forçados a mobilizarem-se, e mais forte é o impulso para sempre novas campanhas de aturdimento, apenas para impedir que as pessoas pensem, e para desviar toda a energia para um activismo que se tornou um fim-em-si e já não segue qualquer intenção autoconsciente e autodeterminada. A este respeito, o capitalismo pode ser visto como uma gigantesca seita utópica negativa, que se objectivou através da mobilização fordista num sistema mundial total.

Na estrutura social, a mobilização industrial total levou pela primeira vez a uma percentagem sempre elevada de mulheres no emprego capitalista. O trabalho assalariado feminino aumentou significativamente na maioria dos países ocidentais a partir de 1960, e muito mais nos países capitalistas estatais do bloco de Leste. A taxa de emprego feminino industrial do capitalismo inicial foi quase recuperada, embora nessa altura se relacionasse com a ainda relativamente pequena população de trabalhadores industriais, e tivesse diminuído acentuadamente com o crescimento desta na segunda metade do século XIX. No final da década de 1960, havia duas vezes mais mulheres empregadas nos Estados Unidos do que em 1930, e o quadro era semelhante em todos os países industrializados:

 

Percentagem de mulheres no total da força de trabalho (1963-1967):

EUA

RFA

RDA

França

Inglaterra

União Soviética

34,1

36,9

46,0

34,9

34,4

48,0

Fonte: Sullerot 1971, 115.

 

Embora o processo fosse em princípio o mesmo em todo o lado, os factos são em parte obscurecidos por diferentes formas de recolha de dados estatísticos em cada Estado; é por isso que a taxa de emprego feminino parece mesmo estar a diminuir em alguns países. O problema aqui é que frequentemente as actividades femininas no "sector tradicional" só são incluídas nas estatísticas na medida em que envolvem actividades de produção para os mercados locais. Enquanto, por exemplo, o trabalho doméstico na família, mesmo quando inclui a produção de subsistência, não é registado como uma ocupação ou um emprego remunerado, a produção feminina nas empresas familiares camponesas, artesanais e de pequena escala produtoras de mercadorias ("pequenos negócios") aparece como um factor nas estatísticas capitalistas, geralmente sob o título de "trabalhadores familiares". Além disso, o trabalho da empregada doméstica extremamente mal remunerada desempenhou um papel considerável nas estatísticas de emprego remunerado feminino até à década de 1920.

Também na estrutura de género das relações de produção, a mobilização industrial fordista reafectou assim a massa de actividades do "sector tradicional" à forma capitalista totalizante. Enquanto a actividade produtiva feminina, especialmente na agricultura familiar, foi com isto radicalmente derretida (e a "empregada doméstica" praticamente desapareceu), as indústrias e infra-estruturas fordistas absorveram grandes massas de "trabalho" feminino na relação de trabalho assalariado da Segunda Revolução Industrial. Esta mudança tem sido apresentada repetidamente como o momento essencial da emancipação da mulher. Mas isso não é nem metade da verdade.

É verdade que muitas mulheres tornaram-se agora mais independentes dos seus maridos ao ganharem o seu próprio salário, pois nas actividades familiares tinham trabalhado como "membros auxiliares da família" sem qualquer remuneração, enquanto o chefe de família masculino podia, pelo menos formalmente, decidir sozinho sobre os rendimentos auferidos. Mas, como já tinha sido demonstrado com o trabalho assalariado feminino nas fábricas de munições da economia de guerra, as mulheres estavam apenas a trocar a dependência pessoal dos parceiros masculinos pela dependência objectivada da agitação do trabalho fordista e da disciplina da fábrica ou do escritório. Substituir as estreitas condições domésticas pelas imposições do "trabalho abstracto" não foi (nem ainda é) mais do que uma mudança de mal, mas não a emancipação. Além disso, a hierarquia de género prosseguiu nas relações laborais mobilizadas pelo fordismo: as mulheres eram sempre mais mal pagas, frequentemente pelo mesmo trabalho, e só raramente podiam avançar para posições de chefia (e mesmo isso seria apenas uma mudança de mal, porque a gestão capitalista, tal como a política democrática, exige acima de tudo qualidades negativas e desumanizantes). Nada de essencial também mudou a este respeito, como mostram as estatísticas dos salários das mulheres na indústria na Europa, por exemplo:

 

Salários das mulheres em percentagem dos salários dos homens (início dos anos 90).

EUA

RFA

RDA

França

Inglaterra

União Soviética

81

89

75

74

72

69

Fonte: Wikander 1998, 191.

 

Por último, mas não menos importante, paralelamente à sua mobilização fordista, as mulheres permaneceram contudo pregadas ao trabalho doméstico. Nada de fundamental mudou na estrutura familiar burguesa das relações de género como resultado do aumento do emprego industrial das mulheres. As identidades de género, com as suas atribuições específicas à "mulher", profundamente enraizadas na psique colectiva após um desenvolvimento de várias centenas de anos, continuaram a reproduzir a forma da "dissociação" (Roswitha Scholz) de todas as actividades e comportamentos que continuaram a não poder ser absorvidos no processo de valorização como uma esfera especificamente feminina. Tendo em conta a subjugação fordista tanto de homens como de mulheres ao sistema de "trabalho abstracto" fora da economia doméstica, uma redistribuição dos domínios dissociados teria parecido verdadeiramente óbvia. Em vez disso, a estrutura inabalada da família nuclear burguesa, agora dominante, levou a uma relação que em breve seria caracterizada como um generalizado "duplo fardo para as mulheres".

Para que isto fosse possível, a mobilização industrial teve de abranger também os pequenos orçamentos familiares parcelados. Uma parte considerável do consumo de massas fordista sob a forma de "produtos brancos" (frigoríficos, fogões a gás e eléctricos, fornos microondas, máquinas de lavar roupa, máquinas de lavar louça, aspiradores etc.) pertence a esta rubrica, embora o potencial só se acumule lentamente, à medida que o poder de compra aumenta:

 

"Em 1955, dez por cento de todas as famílias possuíam um frigorífico [...] Enquanto nos Estados Unidos, em 1953, já 76% das famílias possuíam uma máquina de lavar roupa, na altura, na RFA eram apenas 3,5% […] Em 1962 cerca de 34% dos lares na RFA tinham um aparelho de televisão, 52% um frigorífico, 25% uma máquina de lavar roupa e 65% um aspirador [...] Em 1973 uma máquina de lavar pertencia ao equipamento padrão de todos os lares [...] O móbil da mecanização e racionalização dos lares não era aliviar a dona de casa do trabalho, mas explorar as possibilidades técnicas e as oportunidades de venda. Do mesmo modo, a expansão dos aparelhos domésticos, mesmo a aplicação de fogões eléctricos e a gás na área da cozinha, estava intimamente relacionada com a expansão e desenvolvimento do fornecimento de electricidade e gás" (Koppen 1994, 130s., 230).

 

Estes aparentes produtos de consumo, na verdade, mais não são do que agentes redutores para uma actividade industrializada na economia doméstica, ou seja, de modo nenhum são mero consumo no sentido convencional. Só assim foi possível a muitas mulheres serem "donas de casa" e profissionais ao mesmo tempo. De facto, não se tratava de modo nenhum de facilitar as actividades definidas como "femininas", mas de incluir as mulheres na mobilização total fordista, por um lado, e de manter os domínios sociais "dissociados" como atribuídos às "mulheres", por outro, transformando mesmo indirectamente estes domínios, eles próprios, em campos de acumulação industrial.

Para as mulheres, a mobilização assumiu deste modo um carácter paradoxal: A industrialização do trabalho doméstico facilitou a utilização industrial adicional da sua força de trabalho; por outro lado, tiveram de assumir o trabalho assalariado industrial para poderem comprar os "produtos brancos" dos meios de produção da economia doméstica! O resultado final foi um fardo maior e não menor do que antes – um absurdo que tinha caracterizado o "progresso" capitalista industrial desde o início, e que agora, na Segunda Revolução Industrial realizada, também atingiu o terreno da divisão de funções por género.

Naturalmente que o verdadeiro impulso do fordismo pós-guerra completo só foi dado pela massificação finalmente bem sucedida do automóvel, um processo em si carregado de imaginários especificamente "masculinos" e que foi de facto capaz de transformar elementos da "teoria do movimento" militar na vida quotidiana. Não há mobilização fordista sem "automobilização" total (Williams 1992). Também a mercadoria exemplar da Segunda Revolução Industrial só saiu da linha de montagem a uma escala verdadeiramente grande e social mundial nas democracias do pós-guerra.

E, neste como em todos os outros aspectos, as ditaduras estatal-totalitárias provaram ser pioneiras. Os nazis, em particular, ficaram apaixonados pelo automóvel, depois de o "Führer" já ter estabelecido programaticamente a importância da motorização de massas. Foi ideia pessoal de Hitler deliciar a raça de senhores alemã com um "Volkswagen para todos", que deveria ser baseado no "Modelo T" de Henry Ford. O famoso VW carocha era um projecto nazi muito típico, com um design hipermoderno, que pela primeira vez fez desaparecer os contornos até então dominantes da carroçaria de "diligência"; concebido principalmente pelo engenheiro Ferdinand Porsche, que Hitler nomeou em 1934 como o seu "constructor do Reich" para a fabricação dos automóveis alemães. O "carro para toda a gente" alemão, juntamente com a auto-estrada que o acompanhava, foi propagado com grandes meios como uma necessidade nacional. Em 1935, os primeiros protótipos do Carocha rolaram ao longo das estradas, e em 1938 começou a construção, na cidade de Wolfsburg, onde estava planeada a maior fábrica de automóveis do mundo na altura:

 

"O salão de montagem principal devia estender-se por um quilómetro, e dois turnos de 10 000 e 7000 trabalhadores deviam produzir mais de meio milhão de carros por ano. Isto exigiria a construção de uma nova cidade inteira para alojar os trabalhadores e as suas famílias num raio de três quilómetros" (Burnham 1991, 12).

 

Esperava-se mesmo que o preço do Volkswagen fosse quase um terço inferior ao do automóvel Ford produzido em série. Robert Ley, o líder da "Frente do Trabalho Alemã", concebeu uma espécie de esquema de poupança a prestações para entusiasmar os alemães com a realização do sonho do homem do movimento fordista:

 

"O plano, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1939, exigia que os futuros compradores se comprometessem a comprar selos de poupança no valor de pelo menos 5 marcos do Reich por semana, que tinham de ser colados numa caderneta de poupança [...] Cerca de 337 000 credores assinaram este plano, o que levou a uma acumulação de 280 milhões de marcos do Reich durante os anos de guerra. Mas, paradoxalmente, não foi um grande estratagema para gerar capital para fins militares, uma vez que cada centavo [...] foi depositado no Banco dos Trabalhadores de Berlim – de que os russos se apoderaram no final da guerra. E assim os depositantes nunca entraram na posse do seu carro; em 1961 (após anos de processo judicial) foi-lhes oferecida uma compensação pela VW sob a forma de 100 marcos em dinheiro, ou 600 marcos do preço de um novo Volkswagen. Quase metade escolheu esta última opção" (Burnham 1991, 13).

 

O amor dos nazis pelo automóvel diz muito sobre o próprio automóvel; de modo nenhum foi um fenómeno neutro da época ou uma história de desenvolvimento. De certo modo, o elemento fascista em todas as sociedades fordistas, incluindo as democracias do pós-guerra, encontrou a sua expressão central na automobilização total. A totalitária "mania do movimento", como Hannah Arendt a tinha descrito a nível político, objectivou-se, nesta forma de lata, num sistema técnico-material e numa acção quotidiana compulsiva e omnipresente. Apenas tinha de ser excedida uma certa massa crítica para tornar esta objectivação tão esmagadora e irreversível que um mundo completamente novo pudesse ser criado à imagem do capital transformado em automóvel.

Até à Segunda Guerra Mundial, não foi possível alcançar essa massa crítica. Em 1932, foram construídos pouco mais de 40 000 automóveis na Alemanha. Hitler enfureceu-se no Salão Automóvel de Berlim em 1934 porque, vergonhosamente, havia apenas um carro por cada 50 alemães. Em 1938, a produção alemã tinha aumentado para apenas 222 000 automóveis. A produção em série do Carocha, prevista para o Outono de 1939 em Wolfsburg, não se concretizou; em vez do carro familiar "para três adultos e uma criança", a versão militar do VW foi construída a partir de 1940 como um carro blindado "para três soldados e uma metralhadora" (Burwitz et al. 1992, 28). Foi só nas democracias do pós-guerra que começou a avalanche de automóveis, com a qual a massa crítica foi alcançada e ultrapassada:

 

Automóveis existentes na RFA (em milhões)

1958

1968

1978

1985

1992

3,1

11,7

21,2

25,5

36,1

Fontes: Bode et al. 1986, 39; Burwitz et al. 1992, 11.

 

O desenvolvimento da concentração de automóveis foi igualmente explosivo em todos os países industrializados, e também na periferia capitalista. A enorme dimensão da produção automóvel reflecte-se também, consequentemente, no número de unidades produzidas:

 

Produção anual de automóveis de 1938 a 1979 (em Milhões)

 

EUA

Alemanha

Bloco de Leste

Japão

Total mundial

1938

2,0

0,28

0,04

0,008

3,04

1979

8,49

3,93

2,25

6,29

31,54

Fonte: Eckermann 1989, 169ss.

 

No início dos anos 90, havia mais de 400 milhões de automóveis nas estradas do mundo; no início do novo século, o número já deve ser 700 milhões. Em 1990, a produção total da indústria automóvel alemã era de mais de cinco milhões de unidades. Há quase um carro para cada dois habitantes da RFA. Hitler teria ficado entusiasmado. Seja ele totalitário de Estado ou democrático – o totalitarismo económico do capital celebrou o seu triunfo não só nesta automobilização, mas também a militarização da vida quotidiana. O "trânsito das horas de ponta", o "trânsito dos fins-de-semana" e as avalanches turísticas de carros durante as férias traduzem a mobilização motorizada dos exércitos na sociedade civil, como mobilização comercial de tipo militar.

O engarrafamento, em que a automobilização total é reduzida ao absurdo, é definitivamente avaliado como uma "experiência" de guerra: enquanto originalmente surgiam sentimentos de claustrofobia e pânico, dores de cabeça e transpiração, agora está a aumentar o "prazer do engarrafamento", de acordo com um estudo de 1995 do BAT – Instituto de Pesquisa do Tempo Livre, especialmente entre as gerações mais jovens, que estão mais fortemente condicionadas, de acordo com o lema: "Algo está a acontecer, e eu estou mesmo no meio disso". Desde o início do século XX, o momento anárquico de se poder desfrutar de "um pouco de caos" só se tinha aberto para o material humano domesticado e conformista do capitalismo na forma negativa da guerra mundial; nas democracias do pós-guerra, transformou-se na "batalha do trânsito". O publicista Ludger Lütkehaus, em 1995, chamou a esta "experiência interior" do anti-social e autoritário automobilista alemão "No trovejar da condução". Sessenta anos antes, o especialista no tema Ernst Jünger já tinha descrito de forma bastante sensível as analogias que estavam a surgir entre a batalha industrial do material na guerra mundial e a vida quotidiana fordista, que deveriam estruturar a vida quotidiana de massas a partir de 1950:

 

"Em geral, os sons pelos quais estamos rodeados nas nossas grandes cidades são na sua maioria de natureza triste e perigosa; estão quase todos sintonizados no U ou no I. O som das sirenes a chamar ao trabalho poderia ter sido inventado por demónios. Da torrente dos meios de transporte emana sem cessar uma abundância de sinais uivantes, sibilantes, estridentes ou de sombrio aviso [...] E não só os ruídos muito altos, mas também os ruídos muito baixos do nosso mundo têm este carácter sombrio ligado a eles. Assim, no som da campainha, que desempenha um grande papel entre nós, exprime-se uma espécie de malignidade de insecto. Isto torna-se-nos especialmente claro quando entramos à noite numa sala em que este som ressoou durante muito tempo, ocasionalmente interrompido por um fino zumbido" (Jünger 1934, 66s.).

 

Não são apenas analogias e referências metafóricas que podem ser feitas entre a mobilização militar das guerras mundiais e a automobilização total civil nas democracias do pós-guerra. A Terceira Guerra Mundial não declarada também está literalmente em fúria nas estradas do mundo. De acordo com estimativas aproximadas, cerca de 17 milhões de pessoas foram mortas por automóveis no decurso deste século; provavelmente muito mais, porque as estatísticas incluem normalmente apenas as vítimas falecidas na estrada, enquanto as vítimas que morrem mais tarde nos hospitais já não são incluídas. O número de feridos e mutilados permanentes resultantes da Terceira Guerra Mundial do trânsito individual é ainda maior, numa dimensão que antes antes apenas acontecia nas grandes batalhas militares. O ser humano, outrora saudável, sem pernas ou paraplégico numa cadeira de rodas é a continuação macabra do "motorista" – a roda mecânica torna-se parte do corpo do mutilado cyborg fordista. E todas estas monstruosidades conseguiram sedimentar-se em "irrefutável" normalidade. No emaranhado da concorrência económica universal e da agressividade estrutural da automobilização, o momento inerentemente "fascista" do capitalismo objectivou-se em contexto social universal nas democracias totalitárias. Cheio de pressentimentos, Theodor W. Adorno expressou-se em 1944 sobre esta continuação automóvel do terror totalitário por outros meios:

 

"Não se julgará imparcialmente o novo tipo humano sem a consciência do efeito que, de modo incessante, nele produzem, até às suas mais ocultas inervações, as coisas do ambiente [...] Que condutores não teria já levado a força do seu motor à tentação de esmagar toda a bicharada da rua, transeuntes, crianças e ciclistas? Nos movimentos que as máquinas exigem daqueles que as operam reside já o violento, o brutal e o constante atropelo dos maus tratos fascistas" (Adorno 1983/1951, 42s.).

 

Os sacrifícios humanos oferecidos à "bela máquina" na sua forma democrática-automóvel aperfeiçoada são muito mais numerosos e cruéis do que todos os rituais de sangue arcaicos juntos; e, no entanto, a mesma consciência horrorizada pelos sacrifícios de sangue astecas, em que se diz que os corações eram arrancados às pessoas vivas, aceita o ritual de batalha em massa e igualmente sangrento e quotidiano nas ruas e auto-estradas como normalidade e destino abstracto. O horror incomensurável, o choque que assola as verdadeiras vítimas tanto e talvez mais (porque sem uma selecção ritualmente integrada e, portanto, sem conhecimento prévio) permanece mudo na consciência oficial e é sofrido individualmente; revela-se assim ainda mais terrível. Ernst Jünger, o ideólogo daquela figura universal do "trabalhador" que socialmente vem a si na automobilização total, ainda se interroga sobre a qualidade moral desta ignorância fordista em vésperas da Terceira Guerra Mundial civil:

 

"Como é que, numa época em que se luta pela cabeça de um assassino com toda a variedade de visões opostas do mundo, não existe qualquer diversidade de opinião em relação às inúmeras vítimas da tecnologia, e especialmente da tecnologia dos transportes? Que isto nem sempre foi assim pode ser facilmente visto na redacção das primeiras leis ferroviárias, que exprimem claramente o esforço para tornar os caminhos-de-ferro responsáveis por quaisquer danos resultantes puramente do facto da sua existência. Hoje, pelo contrário, prevalece a opinião de que o 'peão' não só se deve adaptar ao trânsito, mas também é responsável pelas violações da disciplina do trânsito. Esta disciplina do trânsito é em si mesma uma das marcas da revolução objectiva que, discretamente e sem contradição, subordina o ser humano a uma legalidade alterada [...] Este facto está fora de qualquer dúvida para a mesma mente que está inclinada a considerar, por exemplo, a dor que as pessoas se infligiam nos mosteiros durante séculos como uma estranha aberração. As vítimas do trânsito tombam ano após ano; atingiram um número que excede as baixas de uma guerra sangrenta. Enfrentamo-lo com um sentimento de naturalidade [...] Os sacrifícios exigidos pelo processo técnico parecem-nos necessários porque são apropriados ao nosso espaço, ou seja, ao espaço do trabalho" (Jünger 1934, 198s.).

 

Quase 20 anos mais tarde, o espanto de Jünger perante os sacrifícios humanos de uma automobilização total já era muito menor. Agora, estabelecido no fordismo democrático do pós-guerra, sabia fazer quase rotineiramente a distinção moral entre a culpa subjectiva e a objectivação cega:

 

"Podemos acompanhar diariamente nos jornais as tentativas de moralizar o acidente de trânsito, que atinge números assustadores no globo. No entanto, permanecerá sempre uma diferença entre aquele que envenena a sua mulher e aquele outro que a tem 'na sua consciência' porque ela estava sentada ao seu lado quando ele estava a conduzir negligentemente, mesmo que estivesse bêbado na altura. Sabe-se exactamente com qual dos dois ainda é possível 'sentar-se ao lado na mesa' [...]" (Jünger 1953, 92).

 

O "espaço do trabalho", isto é, a lógica abstracta da acumulação de capital, deve necessariamente legitimar também a permanente matança e mutilação de seres humanos em virtude do esmagador imperativo económico. No auge do capitalismo fordista pleno, este imperativo tornou-se idêntico a uma "prioridade de passagem" geral do bem central, o automóvel, que não só rola literalmente sobre cadáveres, mas também sobre as relações jurídicas e a psique dos indivíduos automóveis. Aos instintos assassinos da agressiva mentalidade do automobilista ("caminho livre para cidadãos livres" – a liberdade democrática não poderia ser resumida de forma mais acertada) corresponde uma jurisprudência de um cinismo de cortar a respiração, que já está calibrada de modo totalmente automático para condições "amigas do automóvel". Este facto básico pode ser extraído de qualquer jornal diário:

 

"Pelo menos 20 carros atingiram ontem uma menina de 12 anos que estava a tentar obter ajuda para o seu pai ferido de morte num acidente de trânsito. Um condutor acabou por chamar a polícia. Os funcionários encontraram partes do corpo espalhadas por um trecho de cinquenta metros [...] Há relatos mais do que suficientes de penas espantosamente indulgentes para a ‘forma de homicídio socialmente aceite na América'. Por exemplo, um homem do Wisconsin, que atropelou e matou uma criança, saiu com uma multa de 284 dólares [...] O assassino de um rapaz de 15 anos foi condenado a dois anos de liberdade condicional e a uma multa de 200 dólares. A carta de condução foi-lhe apreendida por 16 meses [...]" (citado de: Williams 1992, 96s.).

 

Antologias deste tipo, aqui da imprensa anglo-saxónica, poderiam ser encontradas sem esforço em todos os países do mundo – especialmente na Alemanha, onde a mentalidade nazi subterrânea (e entretanto também de novo aberta) consegue entrar em actividade no "comportamento na condução". Até hoje, a RFA é um dos poucos países sem limites gerais de velocidade nas estradas nacionais e auto-estradas; uma imprudência notável, sobre a qual não só o lobby automóvel, mas também os principais partidos políticos assistem tão unânimes como ciumentos. Mesmo as consequências indirectas da automobilização total – smog e poluição pelo ozono – com os seus efeitos negativos sobre o corpo humano são apresentadas de forma insensível como uma "necessidade a ser aceite". Sintomático desta atitude é uma decisão do tribunal administrativo de Frankfurt, após os pais de uma criança de 5 anos, que sofria de alergias, neurodermatite e bronquite espasmódica, terem processado a cidade e o Estado por não estarem dispostos a ordenar quaisquer restrições de trânsito, apesar de os limites de ozono terem sido excedidos. O tribunal comportou-se de uma forma socialmente conforme e "amiga do automóvel" ao arquivar o processo, invocando a primazia da "circulação sem dificuldades".

 

"O rapaz só poderia obter uma 'protecção' se a sua dignidade humana tivesse sido violada [...] Mas ‘esse só poderia ser o caso se o sofrimento duma pessoa devido aos elevados níveis de ozono fosse tão elevado que já não fosse compensado pelas vantagens que a pessoa afectada tem na circulação sem dificuldades (!)' [...] Não é 'contra a dignidade humana se se exige a um cidadão [...] que evite o mais possível deslocar-se ao ar livre durante alguns dias' [...]" (Frankfurter Rundschau, 15.7.1995).

 

O que é verdadeiro para o imperativo económico da valorização em geral é dupla e triplamente verdadeiro para o imperativo dele derivado da automobilização: a cumplicidade de todas as instituições sociais com o anteposto fim-em-si do capital sobrepõe-se também aos interesses elementares da vida. O facto de justamente as crianças estarem entre as vítimas favoritas da "batalha do trânsito" é particularmente significativo para este estado de coisas. Por exemplo, os célebres valores-limite não são medidos à "altura das crianças", embora a exposição aos poluentes seja maior imediatamente acima do nível do solo. Entretanto, as estatísticas provam que as alergias graves e as perturbações respiratórias são mais frequentes em crianças pequenas; isto também se nota no facto de dermatologistas e otorrinolaringologistas nas aglomerações urbanas terem frequentemente criado uma sala de espera especial para crianças. Tem de ser feito o sacrifício ao ídolo. E as instituições do capitalismo automóvel podem ter a certeza de que a divindade secularizada do capitalismo monetário também tomou forma automóvel nos desejos e valorizações morais da consciência de massas:

 

"De acordo com uma sondagem Gallup International de 1983 em 16 países sobre valores morais, o pior crime que as pessoas podem cometer não é genocídio, matricídio, roubo, pilhagem, ou violação, mas conduzir o carro de outra pessoa sem a permissão do proprietário. Era também o único valor que as pessoas nos 16 países tinham em comum" (citado em Williams 1992, 91).

 

Claro que o problema não é apenas que a vida humana pesa pouco em relação ao "caminho livre" em sentido legal, e que mesmo os condutores transformados em assassinos por comportamento imprudente são punidos de forma excessivamente condescendente. Afinal, não estamos a lidar com uma soma de más condutas subjectivas, mas sim com a forma especificamente fordista-automóvel assumida pela relação de capital mundial objectivada. O monstruoso deslocamento de todos os padrões sociais e morais, mesmo de "senso comum" irreflectido, visto com distanciamento, é apenas a continuação daquela lógica da desmoralização que Mandeville já tinha celebrado na sua "Fábula das Abelhas": Em contraste com os habituais assassinatos e homicídios involuntários, as acções e mentalidades em conformidade com o capital, mesmo que as suas consequências sejam a destruição humana e mundial, de novo parecem ser, em última análise, positivas ou pelo menos "inevitáveis". Na sociedade produtora de mercadorias mais totalizada possível, os riscos e efeitos secundários de todas as actividades de "livre vontade" de produtores e consumidores não recaem sobre a responsabilidade humana, mas sim sobre a "natureza". Tal como o assassinato indirecto de crianças por "leis" da economia de mercado e pelo empobrecimento delas resultante não é visto como assassinato, mas como uma catástrofe natural ou um acidente sócio-técnico, também o é o assassinato directo de crianças pelo capital tornado automóvel.

A objectividade fordistamente produzida da automobilização e das suas consequências não se limita à forma imediata de existência do veículo e dos seus condutores, mas engloba todo o espaço social e natural. Esta mobilização revela-se também total em termos sociais, ecológicos, estéticos e de planeamento urbano. Cidades e paisagens são cortadas por estradas para automóveis, espaços sociais e estéticos são literalmente devorados pelo terror da automobilização. Não é sem razão que a expressão "consumo da paisagem" foi cunhada neste contexto. Não há lugar que não seja afectado por isto; ninguém pode escapar aos ditames do trânsito fluente. As áreas de urbanização e as condições de habitação foram forçosamente subordinadas e adaptadas ao automóvel, como demonstram estudos recentes tomando como exemplo a República Federal da Alemanha:

 

"Na fase de reconstrução, 'modernos' urbanistas e planeadores de trânsito orientaram-se para o modelo da América e exigiram auto-estradas urbanas, circulares periféricas e parques de estacionamento. Os amplos espaços de rua destinavam-se a garantir a capacidade de funcionamento da cidade, e simbolizavam um novo padrão de planeamento urbano na era dos arranha-céus, espaços amplos entre edifícios e estruturas urbanas fragmentadas. As cidades de Hanôver e Kassel, por exemplo, foram consideradas exemplares para tal promoção do transporte individual motorizado [...] Nos anos 50 e 60, foi prosseguida a política de proporcionar espaço suficiente para o automóvel na cidade e tornar a condução agradável. Alargamento de ruas, redesenho de cruzamentos de trânsito urbano e 'roubo de espaço' de ciclovias e percursos pedonais foram as consequências de um planeamento de trânsito fortemente fixado na técnica e no automóvel [...] Foi necessário um espaço adicional para automóveis. Os eléctricos foram encerrados, foram construídos ou prolongados os metropolitanos; as ciclovias e os percursos pedonais tiveram de ceder, as árvores foram sacrificadas: tudo para que mais carros pudessem circular nas ruas" (Burwitz/Koch/Krämer-Badoni 1992, 29).

 

A profunda intervenção na vida social e pessoal provocada pela automobilização foi levada a cabo de forma insidiosa e nas costas das pessoas. Todas as circunstâncias foram trazidas "como se por si mesmas" para uma condição que transformou o carro, para além de objecto de culto, numa necessidade quotidiana. O capitalismo automóvel não se limitou apenas a colocar o seu próprio sino acústico sobre o mundo e a soprar as suas nuvens de fumo de escape para a atmosfera; também impôs "restrições silenciosas" em todas as áreas da vida, o que implicou necessariamente um novo inchaço da avalanche de carros:

 

"Desde que o automóvel se tornou propriedade de amplos círculos da população, desenvolveu-se uma estrutura de povoamento urbano completamente nova. Até à idade do automóvel, o desenvolvimento urbano era caracterizado por uma alta densidade de construção e uma grande mistura de usos residenciais, laborais e comerciais. Este tipo de urbanização estava condenado à extinção depois da automobilização de grandes sectores da população. Surgiram povoamentos suburbanos e subúrbios amigos do automóvel, cujo planeamento não tinha de ter especialmente em conta a densidade de construção, os serviços públicos e as ofertas de emprego, uma vez que todos os habitantes eram agora (auto)móveis. Esta mudança na estrutura do povoado criou assim novas restrições e teve como consequência que cada vez mais pessoas tiveram de utilizar efectivamente o automóvel. Para o habitante do subúrbio, as distâncias para o trabalho, compras e lazer são muito maiores do que para o habitante urbano, a oferta de transportes públicos é pior e as condições para andar a pé e de bicicleta são em geral menos atractivas. A falta de equipamentos tem, portanto, de ser compensada por mais automobilidade [...] Um habitante suburbano faz três vezes e meia mais quilómetros de carro para as chamadas 'viagens de abastecimento' como residente do que o dum bairro antigo bem equipado no núcleo urbano [...] A reconversão das cidades em função do automóvel, desde a década de 1930 e especialmente após a destruição da Segunda Guerra Mundial, foi descrita, provavelmente com razão, como o vandalismo dos construtores de estradas" (Burwitz/Koch/Krämer-Badoni 1992, 31s.).

 

A ditadura do automóvel, que parece ter atingido hoje o seu auge, está a fazer-se sentir até às relações íntimas na sociedade transformada pelo fordismo. Como todos os desenvolvimentos capitalistas, este também se estabeleceu na consciência social como uma relação pseudonatural; mesmo na primeira fase da história do pós-guerra, a omnipresença dos automóveis, cuja anti-estética desconexa e particular obscurece a visão, tinha-se tornado uma questão natural. E tal como a racionalização fordista dos anos 20, a automobilização total do período pós-guerra apareceu em todos os campos políticos e ideológicos como um facto puramente positivo de uma suposta enorme melhoria do "nível de vida", que afinal de contas se traduziu apenas numa padronização do comportamento humano.

Apenas em queixas tímidas, que se caracterizavam acima de tudo por uma retórica conservadora bastante indefesa (como nos anos 20 em relação ao novo paradigma da racionalização), "O último peão" (Muthesius 1960) reivindicou respeito, contra o poder esmagador de um mundo completamente automobilizado. A social-democracia, agora finalmente "libertada" do seu "marxismo" de pau, transformou-se, de acordo com a consciência de massas condicionada, no primeiro e absolutamente fanático "partido automobilista"; e em nenhum outro lugar com mais entusiasmo e consistência do que na RFA. Foi o presidente social-democrata da câmara de Munique e mais tarde presidente do SPD, Hans-Jochen Vogel, que propagou explicitamente a "cidade amiga do automóvel". Desde então, cobrir o mundo de asfalto e betão para transformar o campo num conjunto de intersecções de auto-estradas tem permanecido uma preocupação sincera da social-democracia. A social-democracia a todos os níveis pode afirmar ser o partido de vândalos dos construtores de estradas. Após meio século de automobilização total, mesmo o mais recente chanceler social-democrata, Schröder, professa alegremente ser um "homem do automóvel".

Na sua forma popular, como automóvel produto de consumo de massas que é investimento, como transformação do mundo "amiga do automóvel" e como massificada consciência automobilística, o capitalismo não só tornou omnipresente a rede de traços comportamentais benthamianos e a teceu tão densamente como nunca antes; a mobilização capitalista do ser humano também se tornou assim, finalmente, a essência do movimento operário, que na história do pós-guerra eliminou os últimos resquícios do pensamento emancipatório, para permanecer na "paralisação frenética" (Paul Virilio 1992) de um mundo de "inválidos bem equipados" (Virilio, loc. cit.). op. cit, 51). É precisamente no amor perverso da automobilização que a identidade interior sempre negada do liberalismo, da social-democracia e do nazismo se torna clara e reconhecível. E, como um eco do Ernst Jünger dos anos 30, o "filósofo da velocidade", Virilio, olhando para trás na Segunda Revolução Industrial, mostra que não só esta identidade inclui os democráticos Estados Unidos, mas a inter-relação do poder mobilizador civil e militar também desenvolveu o maior poder de penetração na democracia mais avançada:

 

"Embora a revolução do transporte e da velocidade seja global, a corporeidade do homem projéctil varia de acordo com as suas origens culturais; nos Estados Unidos, por exemplo, a logística do trânsito é democrática, e o objectivo do ‘grande festival de consumo’ é [...] manter o material humano da nação em viagem [...] Os jovens que conduzem carros aos milhares, que estudam a mecânica, as leis da transmissão de forças e do trânsito, que se habituam à resistência motorizada, aumentam inconscientemente a capacidade militar dos Estados Unidos [...]" (Virilio 1978, 14s.).

 

Virilio, um arquitecto de formação, não tem qualquer conceito do fetichismo do fim-em-si capitalista e, como tantos críticos, pára na sua argumentação ao nível da manifestação tecnológica; no entanto, na sua descrição da mobilização "sem conteúdo" e da velocidade por amor de si mesma, ele articula o enorme vazio de capital monetário em feedback consigo mesmo:

 

"Levados pela tremenda violência da velocidade, não vamos a lado nenhum, contentamo-nos com o abandono do VIVO a favor do VAZIO da velocidade [...]" (Virilio 1992, 135).

 

Este "vazio" stressado, esta "trajectória sem trajectória", este "espaço de tempo sem espaço de tempo" (loc. cit.) – o que são eles senão metáforas para o tempo de fluxo abstracto, dessensibilizado e desumanizado da "bela máquina" e do seu espaço funcional da economia empresarial? Para além de todos os propósitos humanos autoconscientes, a máquina mundial capitalista, na sua mobilização fordista, desdobra até à sua consequência final a dialéctica que lhe é própria, na qual as coisas mortas são fantasmagóricamente animadas e as pessoas são feitas coisas:

 

"Como mistura arquitectónica entre a cabine de um veículo e o edifício da estação de serviço, o quarto do hotel ilustra hoje melhor do que qualquer outro ambiente doméstico a evolução das condições de habitação humanas [...] Já não são quartos, mas 'caixas' de nove ou mesmo seis metros quadrados [...] Por vezes até, como no caso da cadeia hoteleira COCOON, localizada perto do aeroporto de Roissy, já nem há janelas, sendo as celas ventiladas unicamente por uma rede de ar condicionado interna. Aqui, o sistema do parque de estacionamento serviu obviamente de modelo, pois o armazenamento humano de um viajante já não é tão diferente do da bagagem que ele traz consigo [...]" (Virilio 1992, 139).

 

O "progresso" mecânico de um fim-em-si, de facto socialmente constituído, mas paradoxalmente desumano e extra-humano, fez das pessoas puros objectos móveis, lançou-as como projécteis, por assim dizer, numa trajectória em que são socialmente paralisadas e levadas a alta velocidade, ou, como diz Virilio, "tornadas satélites". A imensa tristeza e monotonia desta vida desencarnada, que conduz o ser humano mobilizado sem objectivo como produtor em massa e consumidor em massa do capital, ressoa numa canção do grupo "Kraftwerk", que foi escrita nos anos 70 sem qualquer intenção crítica:

 

Lá vamos nós na auto-estrada,

Lá vamos nós na auto-estrada.

 

À nossa frente um grande vale

e o sol brilhante a cintilar.

 

A faixa de rodagem é cinzenta,

com linhas brancas e verde ao lado.

 

Agora ligamos o rádio,

e ouve-se do altifalante:

 

Lá vamos nós na auto-estrada,

Lá vamos nós na auto-estrada. [...]

 

 

 

Original Totale Mobilmachung, pags. 303-317 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (4.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/